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A CULTURA DAS COLEÇÕES DE DISCOS DE VINIL

Pedro Gonçalves Neto

RESUMO

O artigo se propõe a analisar a cultura que se gerou ao redor dos colecionadores de


discos de vinil, uma mídia que é considerada ultrapassada recorrente a vinda dos CDs
na década de 80/90 e mais recentemente do MP3 e música via streaming. É feita uma
retrospectiva dos antigos formatos analógicos até a chegada do LP, comparando
tecnicamente e culturalmente com as mídias digitais. Procurou-se ver a fundo as manias
dos colecionadores, suas rotinas e preferências em relação aos seus discos, como
também seus rituais inseridos no ato de colecionar e como isso influencia na hora da
aquisição e do uso do produto.

Palavras-chave: Disco de vinil, colecionar, rituais, indústria musical.

INTRODUÇÃO

Nos últimos tempos, o vinil vem retomando seu espaço entre o público, mas
para um tipo de pessoas ele nunca morreu. Na nossa sociedade sempre foi presente a
ideia de coleção, objetos parecido, mas nunca idênticos, agrupados em certas categorias
que fazem sentido no contexto inserido e que não exercem sua função primária, mas
ganham a nova função de ser uma coleção. Como cita Milton Carlos Farina (2006) “o
colecionismo é um tipo diferente de consumo, e o colecionador apresenta um
comportamento diferenciado. Por outro lado, o crescimento da indústria de objetos de
coleção e a entrada de grandes empresas e marcas no mercado de colecionismo
sinalizam para a oportunidade e mesmo a necessidade de pesquisas em marketing
envolvendo essa área de estudo”

O desejo do colecionador, além de completar sua coleção (ou não, como


veremos mais à frente), também pode ser uma reafirmação do ser, do self, como pode
também ser levado pela nostalgia de algum lugar, momento ou pessoa a que o objeto da
coleção remete. No caso dos discos de vinil, analisaremos a diferença entre tipos
diferentes de colecionadores e quais suas motivações, o que eles acham do vinil em
relação à outras mídias mais recentes como o CD e o MP3 e o que os atraiu e os levou a
colecionar tais artefatos. Faremos uma análise técnica e social sobre as diferentes
mídias e o tipo de sociedade e mentalidade que elas representam. Quais os rituais que
acompanham esse comportamento e o que entra e o que não entra para uma coleção?

Antes de entrarmos direto no assunto, façamos uma pequena retrospectiva sobre as


mídias analógicas do século XIX até o disco de vinil propriamente dito.

1 - A HISTÓRIA DO DISCO DE VINIL

Antes do LP que conhecemos hoje, existiam outras formas de armazenamento


sonoro. Começou com o fonógrafo de Thomas Edison, criado e patenteado em 1877,
que permitia gravação e reprodução de áudio por meio de cilindros. O aparelho era
formado por um cone com uma agulha na extremidade oposta que lia os sulcos do
cilindro disposto na vertical, que girava através de um motor à manivela. Os cilindros
eram feitos de materiais extremamente frágeis – inicialmente com papel estanho
(cilindros que vinham fixos no fonógrafo), depois mudando para cera (cilindros
removíveis) – o que prejudicava sua durabilidade por se desgastarem e quebrarem com
facilidade. Diferentemente do disco de vinil, que em sua produção conta com um disco
master* usado como molde para as demais cópias, o cilindro de fonógrafo era único,
original:

Ainda que considerados a mais nova “maravilha” da ciência, o fonógrafo e seus


cilindros apresentavam limitações técnicas para a formação de uma indústria em termos
massivos. Primeiramente, se o aparelho permitia a gravação e reprodução sonora, ele
deixava escapar a possibilidade de reprodutibilidade técnica do som, pois não havia
como fazer cópias das gravações: uma vez gravado, o conteúdo estava condenado a
permanecer no mesmo cilindro, tornando-se uma peça única. (MARCHI, 2005, p. 7)

Em 1888 surgia o Gramofone, criado por Emile Berliner, que consistia no


mesmo princípio do fonógrafo porém com uma diferença considerável: o cilindro foi
deixado da lado para dar lugar ao disco, esse agora com possibilidade de duplicação de
cópias produzidas em goma-laca (shellac) usando como base um master de cobre, com
10 polegadas de diâmetro. “Com o formato de disco plano, são superadas as
dificuldades do formato cilíndrico e os processos de produção passaram de semi-
artesanais para industriais” (PICCINO, 2003, p. 14). Esse novo modelo serviu para a
popularização da música como produto, forjando a indústria fonográfica. O discos já
vinham pré-gravados e rodavam no aparelho em uma velocidade de 78 r.p.m. (rotações
por minuto). A partir do século XX os discos começaram a ser fabricados com
gravações dos dois lados, e possuíam em média 4 minutos de duração em cada face.
Após a Segunda Guerra Mundial finalmente surge o disco feito de vinil, um
plástico térmico feito de Policloreto de Vinila (PVC), que apresenta maior qualidade
sonora e durabilidade. “Além disso, a descoberta do processo de gravação em
microssulco (microgroove) possibilitaria diminuir o tamanho dos entalhes na superfície
dos discos ao mesmo tempo em que aumentava a frequência sonora registrada.”
(MARCHI, 2005, p. 9-10). Os discos em microssulco geraram uma nova geração de
mídias: um novo modelo de disco em 78 r.p.m.; o Long-Play (LP) de 12 polegadas que
rodava em 33¹/³ r.p.m.; e o disco 7 polegadas de 45 r.p.m., que mais tarde foi batizado
de Compacto ou Single.

Apesar de, no início, o vinil ter pouco impacto mercadológico pela


concorrência com o 78 r.p.m. já estabilizado no mercado, o formato acaba conquistando
seu espaço no final dos anos 50. O LP, que consegue armazenar em média 20 minutos
de música – cinco ou seis vezes mais canções que o 78 r.p.m. - torna-se então a mídia
preferida no público. “O disco de longa duração, apresentando entre 4 e 6 canções por
face, simula uma apresentação artística completa e diversificada, dispensando o ouvinte
de frequentar casas de espetáculos ou sequer trocar os discos (quando muito era preciso
apenas virar o LP)” (COUGO, 2011, p. 6). Os compactos de 45 r.p.m. foram
importantíssimos para a nova cena musical que se formava, o rock'n'roll. Eles
substituíram os discos de 78 r.p.m. que tinham a função de “singles”¹ e “seu sulco é
considerado por muitos audiófilos como a melhor alternativa em áudio analógico”
(PICCINO, 2003, p. 22). Muda também a relação entre artista e ouvinte. Na época do 78
r.p.m., as capas dos discos não continham nenhuma imagem ou informação. Constavam
de uma embalagem de papelão com um furo no centro, para mostar a label² da
gravadora, com o nome do cantor e da canção, e as vezes com algum impresso
publicitário da loja. “A chegada do Long-Playing exige mudanças em tais estratégias
comerciais. Agora, é necessário que um disco alcance o sucesso pelo conjunto artístico
(e não apenas por uma ou duas canções)” (COUGO, 2011, p. 18), a indústria musical
começa a pensar em novas formas de venda, novas formas de atrair o público que vão
além da música do artista. Novas manobras de marketing faz com que esses cantores
agora ganhem rostos impressos na capa dos discos; pintores, artistas plásticos e
fotógrafos são contratados para dar o acabamento artístico à embalagem. O disco se
torna um conjunto artístico, um produto derivado da indústria cultural formado de
diferentes artes. Discos mais voltados para os jovens, como Elvis Presley, The Beatles
ou a Velha Guarda, mostravam na capa o rosto de seus ídolos para eu agrado. Discos
mais voltado para o público adulto, como o erudito e o jazz, vinham com capas duplas
dobráveis repletas de informações sobre o artista e o gênero musical.

[…] o LP passa a ser consumido como livros, ou seja, um suporte fechado passível de
coleção em discotecas privadas – com status de objeto cultural, afinal, julga-se a cultura
musical de uma pessoa pela discoteca que possui. (DE MARCHI, 2005, p. 13)

2 – O LP, O CD, O MP3 E O STREAMING

Ao entrar oficialmente no mercado fonográfico, no início da década de 80 pelas


empresas SONY e PHILIPS, o Compact Disc (CD) mudou completamente a indústria,
juntando a qualidade sonora do vinil com a praticidade da fita k7. Possui menor
tamanho que um disco de 45 r.p.m., é mais leve, comporta até 70 minutos de música
sem precisar trocar de lado e, graças a sua natureza digital, é isento dos característicos
chiados do vinil. Com o tempo, o CD praticamente obliterou todas as outras mídias e
dominou o mercado até a popularização da mídia virtual, como o MP3:

Com os formatos virtuais – que não se restringem ao MP3 – o próprio padrão de


consumo se altera. Ao invés de se restringir a um objeto em si, surge um consumo
diretamente on-line, transformando a gravação sonora numa informação transferível de
suportes (do CD para um HD, para o I Pod, para CD, por exemplo). Isso significa que o
formato fonográfico físico tornou-se uma tecnologia para armazenamento da
informação, não mais um símbolo cultural em si, como o LP. (De Marchi, 2005, p.15)

Nos dias atuais, o MP3 divide espaço na internet com a música via streaming
através de sites ou apps (aplicativos) como o Youtube, Spotify, SoundCloud e Last.fm.
Interessante acompanhar como a música cada vez vai perdendo mais seu caráter como
objeto, tornando sua mídia imaterial. Nesse caso, o senso de propriedade deixa de
existir (QUINES, 2012) pois coloca de lado o elemento colecionável.
Na lógica capitalista, um formato torna-se hegemônico enquanto os anteriores
caem na obsolecência (QUINES, 2012), porém sabemos que os formatos não são
substituídos mas passam a existir simultaneamente, assim como a televisão não engoliu
o rádio e a internet não invalidou o impresso. Apesar das baixas nas vendas do CD, eles
ainda enchem prateleiras e a venda de LP nos EUA subiram de US$181.6 milhões em
2013 para US$346.8 milhões em 2014, um aumento de 54,7%³. Os artistas ainda lançam
seus álbuns em CDs, serviços de MP3 – como o iTunes e Spotify- e também em LP, que
geralmente vem acompanhado de um cupom contendo um código para download do
álbum em MP3. A chegada das mídias virtuais não significa uma crise na indústria
fonográfica, mas sim um período em que ela, novamente, tenta adaptar-se à nova
realidade econômica e tecnológica (De Marchi, 2005).

O que podemos então dizer do público que ainda consume uma mídia sonora
considerada “ultrapassada”? Se a cada novo formato tecnológico a mídia parece ser
melhor e mais prática, o que causa o aumento das vendas de mídias como o disco de
vinil? Será que conveniência é sinônimo de qualidade sonora? Aficionados por vinil e
engenheiros de som alegam sua superioridade sonora em relação ao MP3 e inclusive ao
CD devido à sua natureza analógica:

Uma gravação digital interpreta o sinal analógico até uma determinada taxa […] e mede
cada sinapse com uma certa precisão […]. Isso significa que, por definição, uma
gravação digital não captura a onda sonora completamente. É uma aproximação feita
por uma série de etapas. Alguns sons que possuem transições muito rápidas, como uma
batida de bateria ou um tom do trompete, ficarão destorcidos pois é uma mudança muito
rápida para a taxa de amostragem.4
Figura 1 – Gráfico de comparação entre as ondas sonoras analógicas e digitais. Fonte:
(http://electronics.howstuffworks.com/question487.htm)

A revista AudioHolics realizou um pequeno teste5 comparando 3 álbuns (Phil


Collins - Hello I Must Be Going , Spyro Gyra – Breakout, Miles Davis - Kind of Blue)
com suas versões em vinil e CD6. Ligados no mesmo equipamento, os dois álbuns eram
ouvidos primeiramente em CD e depois em LP; os três participantes do experimento
então davam notas de 0 a 10 sobre aspectos específicos do som, como baixo, vocal,
detalhe, realismo, ruído, dinâmica e experiência no geral. Ao final do teste, o vinil
obteve duas vitórias (Phil Collins e Miles Davis) e o CD uma (Spyro Gyra), com poucos
décimos de diferença entre todas as notas. Apesar da aparente vitória do LP, a matéria
conclui que o CD, tecnicamente, é superior ao vinil tem todos os aspectos, mas isso
levanta a dúvida: então porque é que as vezes o vinil soa melhor? O problema que
acontece com o CD, e com todos os outros formatos digitais, é a compressão excessiva
da música, que diminui sua qualidade. Ao mixar o disco para o formado digital, muitas
produtoras comprimem a faixa dinâmica7 do áudio, diminuindo os tons altos e
aumentando os tons baixos para deixá-lo uniforme e, assim, conseguir aumentar a
amplitude da onda para deixar a música mais alta. A música, porém perde
“profundidade”, pois diminui a diferença entre os altos e bafixos, gerando uma música
“estourada”.
Figura 2 - Exemplo de compressão dinâmica

Mas por que as gravadoras produziriam um álbum com músicas que não soam
tão boas como deveriam? Na lógica da indústria musical, quanto mais alta a música,
maior a chance de ela chamar a atenção do ouvinte na rádio, por exemplo. Na tentativa
de competir, outras gravadoras também precisam produzir as músicas o mais alto
possível. Esse fenômeno é chamado de Loudness War e começou a partir do início da
década de 90. No documentário “Loudness Wars for our Living in a Media World Class
” (2013) o engenheiro de masterização Michael Romanowksi comenta:

Primeiro de tudo, é uma competição, então um está tentando soar mais alto que o outro,
e é só o que importa para eles. Durante um tempo eu recebia as pessoas aqui enquanto
eu estava masterizando um álbum, e de vez em quando eu recebia alguns que diziam
“Sabe o que mais, antes de tudo preciso que esse álbum seja alto, depois nos
preocupamos em como ele vai ficar”. E é por isso que, para mim, isso é totalmente
errado. Você passa por todas essas etapas para finalizar um álbum [...] e depois vai
8
colocar tudo isso em um moedor de carne? (MICHEL ROMANOWSKI,

DOCUMENTÁRIO Loudness Wars for our Living in a Media World Class,


2013)

No caso do MP3 acontece ainda mais outro tipo de compressão: a compressão


de dados. Isso faz com que o arquivo da música fique mais leve, em troca da qualidade
sonora. Ou seja, a música além de comprimida dinamicamente, ainda pode ter seu
arquivo comprimido para ocupar menos espaço no disco rígido. Isso não significa que
todo o arquivo de música digital tem baixa qualidade, tudo depende de como a música
original foi mixada e da taxa de compressão em que essa música será renderizada.
“Assim, consumir música digital no formato MP3 não significa colocar os bolachões na
lixeira. Os formatos podem coexitir e serem utilizados paradiferentes fins – alguém que
vai andar de ônibus vai ouvir música em MP3 no seu iPod, enquanto o DJ vai tocar na
festa com seus Lps.” (QUINES, 2012, p. 6)

Nesse cenário, o disco de vinil mantém sua “pureza” sonora, com a faixa
dinâmica intacta e sem risco de compressão por ser uma mídia analógica. Porém, o som
do LP por ser mecânico e prover do atrito da agulha contra os sulcos gera uma
distorção, dependendo da qualidade e do estado dos materiais. Tal distorção
eletromagnética gera os graves envolventes do vinil*, tão elogiado pelos puristas e
saudosistas do formato. Também há o famoso chiado, que incomoda alguns e é visto
com charme por outros. Além dos aspectos técnicos, existe também o lado nostálgico,
artístico, fetichista, curioso e, principalmente, colecionável do vinil. “Na cultura popular
dos anos 80, o avanço do CD e desvalorização do LP contribuiu para a formação de
uma nova subcultura: a dos colecionadores de vinil” (QUINES, 2012).

3 – O ATO DE COLECIONAR DISCOS DE VINIL

Como cita Milton Carlos Farina (2006) “O ato de colecionar, ou colecionismo


é definido como o processo de adquirir e possuir coisas de forma ativa, seletiva e
apaixonada, que fazem parte de um conjunto de objetos não idênticos e que não são
utilizadas na sua forma usual”. É um comportamento comum do consumidor, ligado ao
ato de adquirir algo que não necessariamente exerça sua função original.

O ato de colecionar difere do conceito de consumir pelo fato de indicar a formação de


um conjunto de coisas, que é a coleção, e o comportamento decorrente utilizados para o
consumo propriamente dito, como por exemplo, uma coleção de moedas, as quais não
são empregadas na compra, ou uma coleção de selos que não são utilizados para
postagem (FARINA, 2006, p.3).

Segundo Farina (2006), não há uma teoria concreta e final sobre colecionismo
ainda pelo fato de existir diversas variáveis para a motivação de colecionar e vários
significados para o prazer de fazer uma coleção. Podemos dizer que a nostalgia pode
influenciar; um sentimento nostálgico ligado a um momento ou a um objeto pode ser a
causa de começar uma coleção. Adultos colecionam brinquedos antigos, ou podem
colecionar pequenos souvenirs a cada vez que viajam a um lugar diferente, ou então
colecionam discos de vinil para lembrar-se dos bons tempos. A extensão do self
também é outro fator importante ao formar uma coleção. “A pessoa não é somente o que
se vê nela, mas também o que se vê nas coisas que possui” (FARINA, 2006, p. 4).
Em específico, quais são as motivações que levam a colecionar discos de
vinil? Antes de tudo devemos notar que existem basicamente dois tipos de
colecionadores de LP: Os chamados “saudosistas”, pessoas mais velhas que viveram a
época do vinil e os colecionadores jovens, que não necessariamente viveram nesse
contexto mas se interessam por LPs. Esse jovens nasceram em um mundo digital,
globalizado, com acesso à tecnologias jamais pensadas por sua contraparte; e se tiveram
algum contato com o disco foi rapidamente ou indiretamente por meio de parentes ou
algum LP jogando em algum canto da casa. “Hoje, os discos assumem diferentes
funções sociais e simbólicas; a busca por esse suporte musical não está mais baseada no
fato de ele ser a mídia padrão de escuta musical” (PORTUGAL, 2013, p. 17). Esses
jovens vivenciam um mundo em que a música está perdendo sua materialidade para os
arquivos digitais e, por mais que possa se criar uma coleção de MP3 organizados por
pasta, eles sentem a necessidade de ter algo físico para tocar e sentir e acabam criando
um “fetiche do objeto” (PORTUGAL, 2013).

Já os colecionadores mais antigos aparecem como “heróis da resistência,


avessos à música digitalizada. São representados majoritariamente como fetichistas,
vinilófilos, saudosistas e apreciadores de rock, fãs grisalhos e “garimpeiros” na caça ao
tesouro” (QUINES, 2012, p. 8). São pessoas que nunca deixaram de consumir vinil ou
então que venderam seus LPs na época em que o CD estava em alta no mercado e anos
depois voltaram a colecionar discos por arrependimento. São colecionadores levados
pela nostalgia do ritual de escutar um disco de vinil, de tocar o disco e a capa com as
mãos, apreciar o encarte e a arte da capa; o objeto vira artefato, que leva o usuário à
lugares remotos, pessoas e momentos que se perderam no tempo. O aspecto sentimental
do disco carrega mais peso que seus aspectos técnicos, apesar de a maioria dos
colecionadores afirmarem com toda a certeza que o vinil é a melhor mídia.

Tarcila Martins Portugal (2013) afirma que entre o primeiro contato com o
disco de vinil e o vir a se tornar colecionador, existe um espaço de tempo que podemos
chamar de fase do conhecimento: o ingresso no universo dos discos, o tomar contato
com o objeto, o encantar-se, apreciar, experimentar a música através de um novo meio e
até mesmo comprar um disco ou outro. Alguns passam um tempo comprando e ouvindo
discos sem se considerarem colecionadores. A principal diferença é que o colecionador
é aquele que começa a prestar atenção em outros aspectos do disco além da música, que
tornam aquele artefato mais ou menos propenso a fazer parte de sua coleção.
Informações específicas como data de prensagem do disco, sua raridade, gramatura, cor
do vinil, edição, história e originalidade pesam na hora de adquirir o objeto, seja
garimpando em sebos ou procurando na internet. São informações que extrapolam o
senso comum de escolha de um álbum, ao mesmo tempo que esse novo tipo de busca
abre portas para descobertas de músicas além de sua realidade de escuta, gerando um
amadurecimento musical. Outro fator vem da vontade inata de todos que começam uma
coleção: terminá-la. Como não é possível possuir todos os discos do mundo,
colecionadores de vinil focam seus esforços em completar discografias de seus artistas
favoritos e tudo o que é lhes são relacionados. “Isso remete a outro aspecto central do
colecionamento: o objeto único, aquele de excepcional valor, aquele que falta para
completar a coleção” (PORTUGAL, 2013, p. 28), e aí entra o conceito de raridade do
disco e sua elevação de objeto para “artefato sagrado”. Um disco é raro por inúmeros
motivos, as vezes simplesmente por ser uma edição limitada ou então por causa de uma
história curiosa. Por exemplo, o primeiro disco do Roberto Carlos chamado Louco por
Você, teve poucas cópias impressas, foi um fracasso na época e até o próprio cantor o
repudia até hoje. O que deixa a história interessante é que desde então alguns assistentes
do Roberto Carlos ficam circulando pelas capitais do país tentando encontrar esse disco.
Quando o acham, compram, e o quebram na frente do lojista. Esse tipo de lenda urbana
valoriza a raridade do LP, que hoje é considerado um dos disco mais raros do Brasil,
custando na faixa dos 7 mil reais em condições razoáveis. Um disco perde a raridade
quando é relançado em CD ou em vinil, e é um problema sério para os colecionadores,
pois assim o produto perde sua unicidade. Outro ponto interessante desse modelo de
coleção são os rituais que dividem-se em dois momentos: o ritual de busca e o ritual de
escuta (PORTUGAL, 2013). O ritual no conceito da teórica Mariza Peirano:

O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de


sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por
múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e arranjos caracterizados por graus
variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação
(fusão) e redundância (repetição) (PEIRANO, 2003, p. 11).

A atividade de “garimpar” significa procurar por discos em sebos ou lojas de


discos com o sem nenhum alvo em mente. Hoje em dia também procura por discos na
internet por meio de sites de leilão ou lojas especializadas em discos. É uma atividade
que entra como ritual de busca por conta da “emoção da caçada”, realizado
periodicamente (para dar tempo da loja receber novos estoques) e indefinidamente e que
possui suas peculiaridades de acordo com o colecionador. Geralmente os donos e
atendentes de sebo já conhecem o colecionador e até trocam conhecimentos sobre
discos e música. Naquele momento o indivíduo está cem por cento concentrado em
garimpar, procurar, e sempre em busca do disco raro por um preço acessível que só ele
teve a sorte de achar.
O ritual de escuta acontece quando o colecionador, em seu momento de lazer,
dedica seu tempo a única e exclusivamente apreciar o vinil. Geralmente há um espaço
ou um quarto separado na casa com a coleção de discos e seus aparelhos de som.

O momento de escuta é, inclusive, o que os colecionadores mais sentem e expressam


como um ritual. Em diversos momentos das entrevistas o ritual de escutar o vinil foi
enfatizado como uma das singularidades que motivam e alimentam a paixão pelo
artefato. Esse ritual, então, foi construído coletivamente. Eles o sentem e vivem como
um evento singular (PORTUGAL, 2013, p. 39)

O momento em que a agulha pousa no disco, o cheiro da capa, o encarte com


aquela ilustração belíssima, tudo isso sendo digerido com o disco de fundo musical
preenchendo o ambiente com sua música. É um momento do colecionador consigo
mesmo, em que tudo o que importa é o prazer de absorver a música com todos os outros
sentidos além da audição. O chiado, que para muitos significa um incomodo, para eles
faz parte do charme, assim como trocar o lado do disco significa um comprometimento
com a música. É a materialidade da música que torna a experiência com a música
diferenciada e significativa, que leva a consumir e colecionar ainda mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente estão surgindo ainda mais colecionadores de vinil, pelo


saudosismo e nostalgia, mas também colecionadores jovens, curiosos e influenciados
pelos pais, televisão, internet que colecionam pelo prazer de possuir a música como algo
físico.

Podemos dizer que o mercado olha positivamente para esse nicho. Em 2008
foi reaberta a fábrica brasileira de vinil POLYSOM, que é a única atualmente aberta na
América Latina. Ela possui um selo próprio e hoje está relançando álbuns famosos de
artistas brasileiros e inclusive lançando discos de artistas novos. A verdade é que na
América do Norte e na Europa a cultura do vinil nunca morreu, e agora vem como
reflexo de uma sociedade cada vez mais digital e carente de objetos materiais. O vinil
agora ocupa um lugar importante novamente na indústria musical e tem seu próprio
nicho de mercado, mas creio impossível o disco voltar a ter a importância que teve no
seu auge, pois sua função agora é outra. Ele não tem mais o papel de ser a mídia do
momento para ser consumida, ele se transformou em um refúgio para as pessoas que
querer conhecer mais sobre a música e sua cultura.

O vinil representa o aspecto humano da música, a troca entre conhecidos, a


busca em sebos, o disco raro daquela gravação perdida que ninguém mais tem, que se
junta à nossa realidade digital para, ao invés de substituir, somar, como diz Sarah
Oliveira Quines (2012): “Quanto à circulação, não há dúvidas de que houve um
aumento na oferta do vinil com a complementariedade entre o meio digital e o formato
analógico. O que antes estava disponível apenas em sites de variedades, como Mercado
Livre ou de leilões como o eBay, hoje pode ser encontrado facilmente, por exemplo, no
portal Prefiro Vinil, que reúne vários sebos e lojas de todo o Brasil que vendem discos.”
NOTAS

1- Alternativa barata para uma ou duas músicas, foi o modelo que trouxe a
popularização do rock’n’roll por seu baixo custo de produção e venda. O termo é
até hoje usado para lançar uma música antes do álbum completo como forma de
marketing para tocar nas rádios;
2- É a etiqueta que vem colada no centro do disco e possui informações como o
nome da gravadora, do artista e as músicas que vem gravadas no disco;
3- Disponível em: (Fonte: http://www.ifpi.org/news/IFPI-publishes-global-vinyl-
market-details);
4- Original: A digital recording takes snapshots of the analog signal at a certain rate
[...] and measures each snapshot with a certain accuracy[…]. This means that, by
definition, a digital recording is not capturing the complete sound wave. It is
approximating it with a series of steps. Some sounds that have very quick
transitions, such as a drum beat or a trumpet's tone, will be distorted because
they change too quickly for the sample rate.;
5- Disponível em: (Fonte: http://www.audioholics.com/editorials/analog-vinyl-vs-
digital-audio);
6- Exceto pelo álbum Miles Davis - Kind of Blue que foi comparado sua versão em
vinil com uma cópia em FLAC, um formato digital com qualidade superior ao
MP3;
7- Na música, o termo normalmente se refere às diferenças de volume, ou nível de
som, entre diferentes partes de uma canção (macro-dinâmica) ou até mesmo
dentro de uma sessão ou frase (micro-dinâmica).
(fonte: http://academiadoprodutormusical.com/blog/84-a-tal-dinamica/);
8- Disponível em: (Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=w9xXzTjBt5c).
REFERÊNCIAS

QUINES, Sarah Oliveira. Admirável vinil novo: o retorno dos discos na era do mp3.
Rio de Janeiro: Contemporânea, 2012.

FARINA, Milton Carlos. Colecionismo: uma perspectiva abrangente sobre o


comportamento do consumidor. São Paulo: USP, 2006.

DE MARCHI, Leonardo. A angústia do formato: uma história dos formatos


fonográficos. Rio de Janeiro: e-Compós: 2005.

PORTUGAL, Tarcila Martins. Colecionando discos na era digital. Brasília: UNB,


2013.

PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

COUGO, Francisco Alcides. Os riscos do disco: a valorização do objeto-disco na


relação entre história e música. Porto Alegre: Outros Tempos, 2011.

PICCINO, Evaldo. Um breve histórico dos suportes sonoros analógicos:


surgimento, evolução e os principais elementos de impacto tecnológico. Campinas:
Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas, 2003

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