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127599-Texto Do Artigo-243517-1-10-20170306 PDF
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Este artigo focaliza atributos de uma This article focuses on the attributes of
categoria de arranjo musical que se a musical arrangement category which
tornam informações indissociáveis turn into information that is inseparable
da canção para a qual foi feito, from the song for which it was made,
desempenhando um papel significativo thus playing a significant role in the
no plano composicional da obra. O compositional plan of the work. Planning
planejamento estrutural de determinado a certain arrangement structurally and
arranjo, assim como a definição da textura defining its sound texture that will sustain
sonora que sustentará a melodia, passam the melody are then the parameters
as ser parâmetros que identificam a which identify the song itself. Rogério
própria canção. O arranjo de Rogério Duprat’s arrangement for “Construção”
Duprat para a canção “Construção”, de [Construction], a song by Chico Buarque
Chico Buarque de Holanda, é o trabalho de Holanda, is the work chosen for our
escolhido para desenvolver as análises. analysis.
canos que realizavam o referido curso (numa características são facilmente reconhecíveis em
escola fundamentalmente estruturalista), entre trabalhos como “Domingo no Parque”, de Gil-
eles Frank Zappa. Cage lançava propostas e ati- berto Gil, e “Construção”, de Chico Buarque.
tudes comportamentais que engajaram a juven- Abaixo, segue um roteiro de observações
tude dos anos 50. Os happenings libertários, a para a música “Construção”, anotadas a partir da
música concreta (contato com os poetas Décio escuta. Do lado direito está a letra, em negrito,
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos) e os conhecida por seus geniais versos dodecassíla-
pianos preparados esculpiram o perfil de um bos, por suas terminações em proparoxítonas,
Duprat que redesenharia o cenário da música pela riqueza que esses versos adquirem com o
brasileira nos anos 1960. rodízio dessas terminações descrevendo o drama
Essas poucas informações sobre o arran- épico do trabalhador em seu cotidiano; do lado
jador escolhido devem avivar a curiosidade esquerdo, a descrição da entrada de elementos
sobre um universo que transcende o código importantes a serem identificados nesse arranjo
musical da época, passando a determinar pos- escrito por Rogério Duprat1.
turas comportamentais, que são encontradas em Após esse roteiro, há algumas considerações
Tropicália ou Panis et Circenses, considerado com pontos de reflexão sobre o arranjo em questão.
o álbum-manifesto dos tropicalistas, lançado Naturalmente, para que o leitor possa usufruir de
em 1968, e grifa sua influência na construção fato deste artigo, será necessário que ouça a refe-
do caráter performático e comportamental do rida versão desse arranjo, se possível duas ou três
grupo Os Mutantes. É notável ver como Duprat vezes durante a leitura do que segue.
se especializou na elaboração de imagens so-
noras a partir da decodificação dos textos po-
éticos das canções, estando em sintonia com o 1 D i s p o n í v e l e m : h t t p s : // w w w . y o u t u b e . c o m /
pensamento de vanguarda da época. Essas suas watch?v=jzWI_JjFBr0&list=RDjzWI_JjFBr0.
j) Com a finalização do verso 17.a, inicia-se a como se ouvisse música”. Nesse ponto, insta-
repetição estrutural da composição propria- la-se um espaço sonoro, caracterizando uma
mente dita, pois melodia e harmonia serão função dramática poderosa. E, como se fosse
repetidas à risca. Contudo, os novos 17 ver- impossível esgotar as possibilidades sonoras
sos se apresentarão com novas conotações, que já são complexas nesse momento, ouve-se
promovidas pelas trocas de palavras que a a entrada do pandeiro e a volta do agogô (per-
letra propõe. sonagem importante dessa trama) se juntando
Ao contrário da estrutura melódico-harmôni- à multidão que está em cena.
ca da composição que se repete, verificamos o) Em 14.b, 15.b 2 16.b. o grupo vocal assume
que o arranjo orquestral de Rogério Duprat o protagonismo do canto na canção até a es-
não possui repetição alguma. O desenvolvi- perada suspensão do acompanhamento, per-
mento do discurso orquestral está integral- mitindo que a frase “Morreu na contramão
mente conectado com as ideias que vão sendo atrapalhando o público” seja cantada em solo
reveladas pela poesia. Parodiando A. Tarko- pelo cantor sobre o silêncio. Com o retorno
vski, podemos dizer que esse arranjo “esculpe dos instrumentos, nota-se a presença do sam-
o tempo” sem pausas, sem repetição, buscan- ba sob a textura orquestral.
do inexoravelmente o futuro. p) Os últimos sete versos constituem o desfecho
k) O segundo grupo de 17 versos (.b) se inicia estrutural. Os versos são cantados de forma
com uma informação nova forte: a inserção justaposta, numa síntese gestual da história
das vozes do grupo vocal (MPB4), o que gera narrada; são cantados em uníssono pelo grupo
não só um tônus mais robusto à narração da vocal até o “breque” instrumental e a voz a
história, mas também a torna plural, ou seja, cappella em 07.c. – “Morreu na contramão
agora a notícia é de conhecimento de muitos, atrapalhando o sábado”. Durante esses versos,
é contada por muitos. É oportuno observar o arranjo define um “desenho lógico” para a
que o tratamento vocal segue um plano de orquestra numa progressão em que se ouve
ação diversificado, evitando ser previsível. notas fixas e repetidas para os instrumentos
Nas três primeiras frases o grupo canta a pri- de metal e uma sequência melódica (cromáti-
meira parte dos versos prolongando a última ca) descendente para as cordas.
sílaba, sobre a qual o cantor (Chico Buarque) q) Nesse arranjo, a música “Deus lhe Pague” é
complementa a frase. Ele cantará sozinho o acoplada ao final de “Construção”. O arranjo
último verso dessa estrofe: “E atravessou a orquestral cria as condições para a transição
rua com seu passo bêbado”. entre as músicas, colocando-as no mesmo am-
l) A orquestra ocupa o espaço entre as duas es- biente, no mesmo cenário sonoro. Interessante
trofes (dois quartetos) desse início de reexpo- notar que elementos musicais que foram uti-
sição da composição, assumindo também uma lizados no decorrer de “Construção” servem
ação coletiva do grupo instrumental. Pode-se como agentes desse cenário, que é caracteri-
observar um grande crescendo por meio da zado tanto pela linha de baixo, que caminha
soma gradativa de participações. com uma figuração acelerada que se repete,
m) Nota-se, no próximo quarteto de versos, que como com as figuras ornamentais nos sopros
o grupo vocal (cantando em uníssono e har- (flautas, oboés, etc.), que fazem comentários
monizando palavras dos finais dos versos) se entre os versos cantados.
alterna com a voz solo e que a orquestra traz Nota-se que o arranjo, que jamais teve algum
novas informações em cada espaço entre ver- tipo de repetição de ideias no decorrer de
sos, fazendo com que a narração do discurso “Construção”, em “Deus lhe Pague” repete-
musical seja coletiva. Acredito mesmo que o -se nas três vezes em que a estrofe é cantada,
arranjador já não se contenta em conferir à apenas com terminações diferentes. Talvez
orquestra um papel cenográfico apenas. isso ocorra exatamente para que o arranjo
n) É importante notar a fundamental relevância desempenhe a função de redundância, reme-
da orquestra após 13.b – “E tropeçou no céu tendo ao cotidiano.
da orquestra. A forma como essas notas são A introdução é feita por um piano protago-
tocadas, curtas, com um rigor rítmico acen- nista acompanhado por percussão e um violon-
tuado, imediatamente traduz o gesto do tango celo. Há que se dizer que se trata de um piano
argentino. O que se ouve faz lembrar o final do técnica e criativamente especial, pois, após re-
arranjo original de Rogério Duprat, pois são alizar a introdução, continuará alinhavando os
praticamente as mesmas notas que o contra- versos, mantendo coerência e unidade entre as
baixo realiza em “Deus lhe pague”, executadas frases tocadas. No segundo quarteto de versos,
num tempo musical mais lento. há a entrada do contrabaixo e dos instrumentos
No segundo quarteto de versos (5.a) entra o de cordas (sons de batidas com o lenho do arco),
piano e, mais à frente, a caixa clara, que pro- introduzindo o caráter étnico do tango para a
duzirão a suspensão do ritmo dos instrumentos canção brasileira.
da orquestra no final do verso 13.a. Existirá O ingresso em A’ é surpreendentemente tênue.
também a parada antes de 17.a – “Morreu na Realiza o verso 09.a – “Sentou pra descansar
contramão atrapalhando o tráfego”. Em vez como se fosse sábado” – a cappella e recebe a
dos metais estridentes que soam em Duprat, entrada do violoncelo, que realiza sucessivos co-
observa-se aqui grande densidade orquestral e mentários. A tensão do arranjo cresce subitamen-
também que o pulso rítmico (andamento) do- te, preparando um forte apoio (correspondente às
bra, acelera. Portanto, o arranjador explora os suspensões rítmicas já mencionadas) exatamente
sons orquestrais de forma a criar, como Duprat, antes do verso 13.a – “E tropeçou no céu como se
o cenário do enredo. Após a suspensão rítmica fosse um bêbado”. Na sequência, o tecido cons-
antes do verso 13.b – “E tropeçou no céu como truído como background dos versos de 14.a até
se ouvisse música” –, o tecido orquestral, com 16.a é ainda bastante etéreo, transparente, leve;
traço étnico cada vez mais regional, desempe- inclusive o verso 17.a – “Morreu na contramão
nha uma função dramática definitivamente, atrapalhando o tráfego” –, ao contrário do que
assim como procedeu Duprat. concebeu Duprat, não recebe a estridência que
Destaco a solução encontrada por Sujato- poderia representar de forma épica ou trágica o
vich ao final da canção quando, após 17.b – cenário caótico do trânsito urbano.
“Morreu na contramão atrapalhando o público” O arranjo segue com uma modulação harmô-
–, volta ao tempo inicial com a sequência de nica, ou seja, o canto passa a ser entoado numa
quatro notas curtas nos contrabaixos, porém tonalidade mais aguda e com um acompanha-
agora lentas, criando assim um ambiente opos- mento, mas desenvolto, recebendo a entrada
to ao de Duprat. Entretanto, alguns compassos dos contracantos do bandoneón. O crescendo
à frente, retoma o tempo rápido e retorna ao instrumental se torna cada vez mais instigante
último trecho de “Construção” novamente. até atingir a suspensão rítmica na qual se ouve
o som do piano deslizando das notas agudas às
notas graves, após o verso 12.b – “Dançou e gar-
Arranjador: Popi Spatocco6 galhou como se fosse o próximo”.
(para a cantora Ligia Piro)7 Na sequência, no verso 13.b pode-se obser-
var a elegância e o lirismo das frases ouvidas
nos tangos argentinos ao som do bandoneón.
O arranjo não é orquestral, e sim elaborado
No final do verso 16.b, na suspensão rítmica,
para um grupo de instrumentos. Spatocco uti-
ouve-se o movimento deslizante, não sobre as
liza o piano, o contrabaixo, a bateria e cordas,
teclas do piano, mas sim nas cordas dos violinos
além do bandoneón.
e violoncelos.
Nova modulação ascendente é feita para a en-
trada de A’’, tendo o pulso da música acelerado,
6 Gustavo “Popi” Spatocco é produtor, diretor, compositor,
arranjador e pianista argentino. tornando os versos justapostos mais dramáticos
7 Disponível em: http://www.ligiapiro.com.ar/discogra- até a conclusão súbita após 07.c – “Morreu na
fia.html. contramão atrapalhando o sábado”.
após, acrescenta-se o naipe dos contraltos (har- empilhadas) e, logo após, faz o grupo cantar as
monizado em quintas justas). Os versos 5.b a palavras proparoxítonas justapostas também, a
8.b são cantados com imitações ágeis de todos força expressiva da poesia. Segue-se o último
os naipes. De 9.b a 13.b os versos são harmoni- verso, 7.c, em uníssono.
zados, evidenciando dissonâncias que traduzem E, para finalizar, o arranjador organiza um mo-
o desconforto da história. mento de textura aleatória em crescendo em que
No quarteto de 14.b a 17.b, enquanto os tenores se ouve comentários de transeuntes e a sirene de
cantam a melodia, as demais vozes entoam de ma- uma ambulância, terminando com uma sílaba (não
neira súbita apenas as palavras proparoxítonas. No decifrável) dita em uníssono como ponto final.
interlúdio que antecede o próximo bloco de ver- E, também para finalizar este artigo, fico
sos, o grupo coral realiza progressão vocal potente, com a expectativa de que pelo menos alguns
produzindo uma modulação para tom ascendente. dos leitores tenham resistido à travessia dessas
O grupo dos sete versos finais é realizado análises, sem dúvida, exaustivas. Desejo que
de forma justaposta e constitui o momento de possamos cada vez mais apreciar e divulgar
maior criatividade desse arranjo. O arranjador a arte do arranjador, esse personagem que na
estabelece, de forma cumulativa, a entrada su- maioria das vezes não chega a ser apresentado
cessiva dos naipes do coro a cada verso (terças para os ouvintes.
Bibliografia