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Muddy Waters Electric Mud (1968) Revela a

complicada história da aproximação do bluesman ao


LSD e como o resultado foi musicalmente sublime!
As bebidas alcoólicas são parte importante da cultura do blues, pois
que nos barracões, tendas improvisadas e botecos por entre as
“plantations” onde os bluesmans e as divas do blues mandavam ver,
eram os álcoois que ajudavam a esquentar a alma junto a música.
Não são poucos os casos trágicos de alcoolismo no blues, e nem as
músicas que exaltam esse combustível que ajudava e segue nos
ajudando a curar dores, ou a comemorar alegrias.

Muddy Waters possui muitas canções onde o whisky é a bebida


preferida para curtir ou sofrer, caso de um dos seus primeiros
singles na Chess Records, Sittin’ Here and Drinkin'(Whiskey
Blues), onde o mestre canta: “Whiskey you ain’t no good I
declare I’m thru with you/ Whiskey you ain’t no good I
declare I’m thru with you/You have taken all my
money/You have taken my baby too” Perdeu dinheiro e
mulher com o traste do whisky, e aí surge aquela velha e boa
promessa de que vai “largar” a bebida. 

Seja a cerveja, o whisky ou mesmo o vinho, são as bebidas alcoólicas


que entorpeciam os corpos e mentes, criando relaxamento ou
tensão, servindo para acompanhar ou mesmo causar, tristeza ou
alegria. E obviamente isso se refletia nas produções musicais
dos mestres do blues, pois estavam intimamente ligados ao
ambiente e consequentemente ao aprendizado que os mesmos
tiveram. 

A relação entre música e drogas, arte e drogas é um tema bastante


antigo, desde os pintores rupestres a arte esteve relacionada com a
expansão dos sentidos e da consciência, geralmente através de meios
artificiais. Com a música não é diferente, experiências diversas
geram artes diversas, o que não quer dizer que a simples ingestão de
alguma substância que alterem nossa percepção gerem artistas. 

Sendo assim, a pergunta do título deste artigo se justifica, e se


pretende responder sobre um contexto musical e cultural onde
progressivamente o L.S.D foi utilizado como fonte de inspiração
para produção musical. Sendo assim, porque  Muddy Waters,
experiente bluesman curtido no  álcool, teve que provar L.S.D? E
mais importante do que o porque, ou tão importante quanto, é no
que essa experiência resultou musicalmente. Qual foi o resultado
estético desse adentrar na cultura psicodélica? Para tanto,
precisamos fazer um breve percurso a fim de remontar alguns
importantes aspectos dessa história.

Os anos 60 deram a conhecer o ácido lisérgico (L.S.D.) e influenciou


muito toda a produção artística da época, atraindo cineastas,
escritores, pintores, mas sobretudo músicos. E a galera branca do
rock eram sem dúvida os maiores consumidoras do LSD. O impacto
disso na música é amplo e não se configura aqui em nosso objeto
principal. O fato é que no final dos anos 60, a cultura do flower
power era proeminentemente branca, e na música rock americana,
era a atração mais consumida pela juventude que tinha vivido o
Woodstock.

Vindo do Mississipi, o senhor McKinley Morganfield é certamente


um dos maiores nomes no desenvolvimento do blues elétrico dos
anos 50, juntamente com nomes como Howlin’ Wolf, BB King e
John Lee Hooker entre outros. O senhor McKinley foi batizado
ainda nas “plantations” onde trabalhava e fazia a diversão da galera
com sua música, com nome artístico de Muddy Waters (Águas
Barrentas). Apelido de infância, pois tinha o costume de se banhar
em um rio quando criança, Deixando assim, o nome dos senhores
“brancos” para trás e incorporando uma força da natureza do seu
lugar de origem.

Ainda pelo fim dos anos 40, Muddy Waters, ainda McKinley
Morganfield, foi contatado pelo pesquisador Alan Lomax, que
naquela altura produzia uma série de gravações da música folk
americana pelo sul dos Estados Unidos da América, sob encomenda
para a biblioteca do congresso americano. 

No filme Cadillac Records (2008) vemos essa cena com riqueza


de detalhes, o Alan Lomax a gravar o Muddy Waters em sua
varanda, após um dia de exaustivo trabalho. E ao conseguir se ouvir
pela primeira vez numa gravação, o homem McKinley decide se
tornar o Muddy Waters em tempo integral e ruma assim para a
cidade grande, nesse caso, Chicago. 

Foi na Chess Records onde Muddy Waters teve sua chance de se


tornar um artista recebendo a ajuda do grande Leonard Chess, onde
juntos desenvolveram parte fundamental da gramática do blues
elétrico. Primeiro artista de sucesso, essa dupla construiu juntos a
gravadora que viria a ser parte importante da história da música
americana. 

Em pouco tempo o Muddy viu sua carreira decolar, ali por volta do


inicio, para o meio da década de 50, onde o Hoochie Coochie
Man conseguiu seus cadilacs e andava sempre impecável em seus
ternos, com o sucesso retumbante de seus singles e discos pela
Chess Records. Já um pouco depois, pelo meio e final da década
de 60, Muddy Waters já sofria com a queda vertiginosa na venda de
discos.

Ora, vivia-se num país segregado ainda em diversos estados, e


obviamente isso se refletia na industria cultural que teve bastante
sucesso em embranquecer as paradas de sucesso e oportunizar
shows, aparições em televisão etc para um cast
embranquecido. Toda a máquina dessa industria sempre funcionou
para valorizar seus astros brancos, e estamos falando aqui de um
período onde a Motown, Stax,  assim como a Chess eram a casa
dos grandes artistas negros. No entanto, mesmo com uma enxurrada
de artistas geniais, nas mais diversas expressões acima supracitadas,
nomes como Muddy Waters e Howlin’ Wolf e outros, enfrentavam
sérias dificuldades no fim dos anos 60.

E por incrível que possa parecer, os artistas negros perdiam espaço


também para seus discípulos, que faziam em muitos casos versões
ou músicas que em sua estrutura profunda, copiavam técnicas e
tinham sido criadas e desenvolvidas por eles, e outros esquecidos e
grandes do Blues.

A British Invasion,  junto ao Blues Britânico no final de 67/69, com


bandas super influenciadas pelos artistas negros americanos, como
Cream, The Animals, John Mayall & The Bluesbrakers e
americanos como The Doors, The Blues Project e Paul Butterfield
Blues Band, The Allman Brothers Band e Janis Joplin se
embebedavam com a música negra. Faziam mega shows, gravavam
velhos sucessos, mas o mesmo reconhecimento não alcançava os
verdadeiros criadores. Com a exceção de um breve brilho
proveniente de alguns dos artistas ingleses que jogaram os holofotes
na direção de alguns artistas do blues, os mesmos, estavam em geral
colocados pra escanteio.

Obviamente, a história não é estática e houveram  acréscimos e


desenvolvimentos que ultrapassavam a linguagem artística e musical
que o blues elétrico de Muddy desenvolveu e que tinha ajudado
a criar o rock, pelas mãos de outros artistas negros. Dentro dessas
expressões surgidas dentro dos anos 60, a música psicodélica é parte
fundamental desse processo que escapava e geracionalmente
ultrapassava ao trabalho de Muddy Waters.

Nesse aspecto e em todos os outros, Hendrix é sem sombra de


dúvida o caso mais emblemático, se levarmos em conta esse
contexto, racial e geracional. Não é impossível se pensar que, se não
fosse o seu contato com um músico inglês, o baixista do The
Animals, Chas Chandler, hoje poderíamos estar ainda descobrindo
discos obscuros de um guitarrista genial. Como aconteceu e acontece
com vários artistas ao longo dos anos, que possuem grande talento
mas, que não receberam a devida atenção.

Seria mais justo dizer que Hendrix é um artista britânico, pois em


seu país natal ele não recebeu as chances de se tornar aquilo que era,
o maior guitarrista de todos os tempos, um dos maiores artistas da
história da humanidade. Já tendo dominado a ilha da rainha com a
mesma rapidez dos seus solos e desenvoltura de seus riffs, os
E.U.A só o reconheceram quando ele literalmente botou fogo no
palco do Monterey Pop Festival em 1967.

Todo esse processo foi sentido pela Chess Records e a gravadora que
foi a casa de grandes nomes da música negra americana acabou
sendo vendida em 1969, o fim de uma era chegava ao fim, e de algum
modo o disco Electric Mud (1068) seria um marco final desse
processo, deixando claro hoje que não se tratava nunca de
acompanhar a evolução, o problema que levou a Chess a falência. É
bom lembrar que nesse período, o rock era bastante plural
musicalmente, contando já com diversos sub gêneros, e não seria
exagero dizer que a psicodelia era uma linguagem de bastante
sucesso. Infiltrada em diversos desses sub gêneros mas também no
funk e no soul, não é exagero dizer que a psicodelia era então o
espirito da época. 

Nesse sentido foi o filho de Leonard Chess, Marshall Chess quem


teve a ideia de fazer um disco psicodélico com o um dos grandes
senhores do blues elétrico, de forma a aproximar o coroa do público
jovem e aproveitar o hype que os discípulos dele estavam vivendo.
Em 1968 o mundo conheceu Electric Mud um disco genial, mas que
recebeu o mais puro rechaçamento de critica, público e dos próprios
artistas.
Em 1967 Marshall Chess começa a produzir um grupo chamado
Rotary Connection, através de uma subsidiaria da Chess, a Cadet
Concept. Para tal feito, ele convida o supervisor musical e arranjador
da Chess, Charles Stepney que produz arranjos maravilhosos que
cairiam como uma luva para o som da banda. O Rotary Connection
fazia um chamber pop psicodélico (música pop de câmara
psicodélica), apostando muito nos doces vocais da Minnie
Riperton, que já tinha sido artista da Chess.

Para as gravações, um elenco importantíssimo para a nossa história


foi chamado, o baterista Morris Jennings e os guitarristas Phil
Upchurch, Bobby Christian e Pete Cosey. De 1967 até 1971, o Rotary
Connection lançou discos que se não fizeram sucesso para além do
meio oeste americano, naquela altura, hoje podem ser devidamente
apreciados e são considerados influentes. 

Todo esse processo e personagens vão desembocar neste marcofinal


da Chess e num dos melhores discos da carreira de Muddy Waters:
Electric Mud (1968). Uma tentativa que pretendia – Marshall Chess
pretendia – atualizar o blues elétrico do mestre com a linguagem
psicodélica de modo a conquistar a juventude flower power. Como
dito acima o disco foi odiados por critica, público e pelos artista,
Muddy Waters renegou o álbum considerando-o: “dogs shit”.

No entanto, com o afastamento temporal e o passar dos anos, é


possível perceber que não é bem assim. Apesar do disco se afastar de
tudo, absolutamente tudo feito até então, é exatamente por esse
motivo que Electric Mud (1968) se tornou sem sombra de dúvidas,
um dos melhores discos do Águas Barretas.

Algo bastante comum a certa forma de critica musical é o apreço que


alguns profissionais possuem por seus critérios de como deve ser a
arte. E pra ficar em apenas um exemplo, o Led Zeppelin foi saudado
como uma banda muito ruim em seus primeiros dois discos. Leiam
essa excelente matéria que copila as merdas que alguns críticos
da Rolling Stones (sim, ela mesma) falaram na época do lançamento.

No caso de Muddy Waters o disco psicodélico em sua carreira mexeu


num vespeiro pior, pois o afastava de uma linguagem que dominava
e o aproximava de formas musicais que naquela altura eram
amplamente utilizadas dentro de uma estética completa que o
mestre do blues não tinha, digamos, contato.
Além de existir até hoje uma visão de que o blues precisa ser idílico,
rústico apenas, sem o verdadeiro entendimento dos processos pelos
quais o mesmo passou e como esse desenvolvimento não restringe
ou anula outras formas do blues. A eletrificação do som é algo
inerente à música urbana, algo sem o qual ela perde a força de
disputa e intersecção diante do caos urbano. O blues mesmo no
campo, diga-se de passagem, sempre foi plural em suas
manifestações, dialogando com bastante intimidade com o ambiente
e o tempo ao redor. Basta uma verificada em estilos como o blues
rural, o piano blues entre outros para notarmos que a diversidade e a
adaptação é algo fundamental para esses três acordes que
possibilitam o infinito.

Para o bem ou para o mal, a eletrificação das guitarras abriu todo


um campo de experimentação que foi dominado e dixavado
criativamente pelos negros americanos. Para só depois ser
surrupiado. Ops! Ter influenciado os músicos britânicos e termos
com isso o desenvolvimento do rock branco.

A banda recrutada por Marshall Chess para a gravação do disco


psicodélico do Muddy é um verdadeiro espetáculo a parte, e
dominava plenamente todos os processos acima mencionados.
Ajudando-o a produzir no Electric Mud (1968), um trabalho
finíssimo, fazendo com que o Muddy Waters transcendesse o blues
completamente, levando-o para um lugar onde nunca mais ninguém
ousou estar.

Esse é um disco que qualquer pessoa admiradora de rock e sons


psicodélicos e mega groovados, vai ouvir e chapar. Na guitarra solo
temos o Pete Cosey, na batera Morris Jennigs, no baixo Louis
Satterfield, na guitarra base Phil UpChurch e Roland Faulkner,
contando ainda com Gene Page no sax e Charles Stepney nos
arranjos e piano. 

Pode-se considerar sem tirar nem por, um super time de músicos,


Louis Satterfield tocou com nomes como: BB King, Donny
Hathaway e Earth & Wind and Fire. Phil UpChurch engatou
uma carreira muito elogiada pela critica depois desses dois discos,
apesar de pouco conhecido. O grande Pete Cosey foi o guitarrista de
ninguém menos que Miles Davis, em excelentes discos, é dele a
guitarra na gigantesca viagem jazz-funk: Agharta (1975).

O saxofonista Gene Page transitou nos mais diversos estilos, do rock,


do soul, do blues e do jazz, tocou com gente do quilate de um Jack
McDuff, Keef Hartley Band e Shuggie Otis. Finalizando essa
ficha corrida de excelentes servições prestados a música, o batera
Morris Jennigs tocou com gente da potência de Ramsey Lewis e
Oscar Brown Jr., pra ficar com dois. 

A Electric Mud Band, era uma banda da pesada e isso fica bastante
evidente nas construções musicais que os caras operam com
bastante ousadia em clássicos do próprio Mud, assim como em
versões presentes no disco. Transitando num blues chapado,
misturando andamentos funkeados, a Electric Mud Band conseguiu
de fato, não modernizar o blues que já era moderno em sua essência,
como queria Marshall Chess, e muito menos abrir um filão de
mercado. Pelo contrário, Muddy Waters junto a essa banda, criou
um hibrido irrepetível, singular e fruto de uma humildade artistica
impressionante. 

O Blues é devidamente psicodelizado e funkeado já na primeira faixa


do disco, a clássica I Just Want To Make To Love You, onde o
ouvinte já começa a perceber que não está em território seguro,
conhecido. A tríade Cosey, Jennigs e Satterfield, mostra uma coesão
absurda, com Cosey simplesmente nos hipnotizando, enquanto o
grande Uppchurch segura a onda na guitarra base. I’m Your
Hoochie Coochie Man segue mais ou menos o mesmo padrão da
anterior, com a inserção do excelente Gene Page, ainda se
restringindo a breves floreados iniciais. O trabalho de Pete Cosey em
todo o disco é fundamental, pois é dele a função de estraçalhar sua
guitarra produzindo solos absurdos, e improvisos geniais. 

Muddy Waters era já na altura das gravações desse disco um


veterano, e é perceptivel o quanto ele deixa o jogo correr solto,
muitas vezes se esforçando para conseguir alcançar o que os jovens
músicos o propõe. Basta ver a beleza e a força de “Let The Spend
The Night“, cover  dos influenciados Rolling Stones, presente no
disco. Nessa faixa, é possível ouvir o Muddy bater palmas como para
marcar o tempo na loucura proposta pelos caras, a qual ele vai
colocando seu vozeirão a serviço. O resultado é sublime! 

Talvez uma das mais loucas faixas desse discos, She’s Allright, é um
outro exemplar maravilhoso do trabalho da Electric Mud Band e da
força do grande Muddy Waters, Talvez um dos exemplares que mais
comuniquem hoje com as novas gerações. Como diz o rapper Chuck
D, que no documentário Godfathers & Sons (2003) da série The
Blues produzida pelo Martin Scorcese, conta como foi esse disco
que o fez querer conhecer o trabalho de Muddy. 
O disco possui 8 faixas e nenhuma está abaixo da qualidade do
grande mestre Muddy Waters pelo contrário, é um passeio onde um
velho mestre da cultura encontra e se entrega – por exigências do
produtor – a juventude negra que então dominava a tal da
psicodelia.

Nesse encontro, podemos perceber com tranquilidade, pelo menos


na exigência dele, como a industria cultural é muitas vezes perversa.
Não me recordo de ter visto ou ouvido Frank Sinatra ter que gravar
um disco de rock para alcançar a juventude, mas tal exigência foi
feita ao grande Muddy. Exigência que ele simplesmente transformou
em aula, que foi rechaçada, mas que hoje já começa a ser
plenamente encarada como tal. 

Escute-se com atenção as versões de Tom Cat (com a genialidade


de Gene Page operando) e a estranha Herbert Harper’s Free
Press News, para notar que estamos de um genuíno disco de
inéditas, sejam as já conhecidas do repertorio sejam essas outras que
são regravas com primor. 

Poderíamos discorrer longamente aqui, sobre a delicia dos arranjos


do Stepney, sobre a força com a qual Pete Cosey coloca a
virtuosidade de sua guitarra a serviço da música que está tocando. A
bateria ora marcial do Morris Jennings, ora super swingada, as
linhas de baixo super funkeadas do grande Louis Sutterfield. 

Demonstrar como a voz de trovão e a juventude que o grande Muddy


Waters exala por todo o disco, ao longo das 8 faixas é infinitamente
superior a diversos outros exemplares do famoso blues rock da
época. Ou ainda, mostrar a inferioridade através de comparações,
desse disco com a própria música psicodélica produzida então, e que
foi devidamente incensada e apimentada para os ouvintes, pelos
mesmos críticos que destruíram esse disco durante seu lançamento.

Mas, o melhor remédio é a escuta atenta e sobretudo sem


pressupostos, apenas ouvir e perceber que esse disco é uma
excelente amostra da força originária da música negra. O título do
disco já deveria nos esclarecer que quando se eletrifica a lama, se
tratando do velho Mississipi o resultado é sem dúvida alguma
soberano. Não há noticias de que o velho Muddy tenha
experimentado LSD para fazer seu disco psicodélico, nem os
músicos. A música, a boa música vem sempre da vida do espirito e
da carne curtida pela existência, o resto é placebo.
Miles Davis - Bitches Brew
Na longa discografia de Miles Davis, Bitches Brew tem uma importância tão
grande quanto Kind of Blue. Se em 1959, definiu tudo que era "cool jazz" e
tornou-se um imenso sucesso - inclusive comercial - Bitches Brew foi o disco
que aproximou Miles Davis dos anos 70 e dos grupos de rock. Contando com
um time excepcional de músicos, lançou um álbum duplo revolucionário e
inovador e que revitalizou sua carreira, que entrava em um período de baixa,
já que os grupos de rock o superavam em larga escala em vendagens. Mas,
com Bitches Brew, Miles colocou as coisas no devido lugar, influenciado de
Jimi Hendrix a Soft Machine.

O sucesso de In a Silent Way fez com que Miles


Davis resolvesse continuasse a perseguir um som
mais elétrico, moderno.

Em julho de 1969, o excepcional baterista Tony


Williams deixa o grupo, entrando em seu lugar o
não menos excelente Jack DeJohnette, para alegria
do baixista Dave Holland, que conseguia,
finalmente, entrar um músico que tocasse dentro
do seu estilo.

Mas, Jack não foi o único músico chamado para as


gravações de um novo disco. Miles, na verdade,
convidou uma legião de músicos:

Don Alias - Percussion, Conga, Drums


Khalil Balakrishna - Sitar
Harvey Brooks - Bass, Electric bass
Ron Carter - Bass
Billy Cobham - Drums, Triangle
Chick Corea - Electric piano
Jack DeJohnette - Drums
Steve Grossman - Soprano saxophone
Herbie Hancock - Electric piano
Dave Holland - Bass, Electric bass
Bennie Maupin - Bass clarinet
John McLaughlin - Guitar
Airto Moreira - Berimbau, Cuíca, Percussion
Bihari Sharma - Tabla, Tamboura
Wayne Shorter - Soprano saxophone
Juma Santos (Jim Riley) - Conga, Shaker
Lenny White - Drums
Larry Young - Organ, Celeste, Electric piano
Joe Zawinul - Electric piano
Miles tinha uma idéia clara na cabeça;
ele queria dar continuidade às idéias
esboçadas no disco anterior,
especialmente em uma composição
antiga, de nome "Spanish Key".

Para Miles, era importante ter mais de


um baterista e um baixista, já que sua
idéia era que uma "cozinha" produzisse
uma base sólida, enquanto os demais
bateristas e baixistas dessem uma nova
cara, buscamos outros ritmos e texturas.
Seria um imenso desafio para os
engenheiros de som, já que Miles
necessitava que seu instrumento fosse
amplificado de forma que não ficasse
totalmente encoberto pelos
instrumentos elétricos.

As gravações durante apenas três dias - 19, 20 e 21 de agosto - e foi impressionante


a quantidade de música gravada. Sem contar, as discussões entre Miles e o produtor
Teo Macero.

A primeira sessão foi um caos. Miles Davis


começou a bater boca com Teo, exigindo, por
alguma razão, que o produtor demitisse a
secretária com quem trabalhava.

Irritado com as exigências de Davis, Teo disse


que não era seu empregado, que não interessava o
que ele queria. À medida que a conversa ficava
mais ríspida, Teo o expulsou não apenas do
estúdio, mas do prédio da gravadora, mandando
que levasse também os músicos.

Revoltado, Miles saiu, voltou, entrou na sala de


controle do estúdio e disse ao microfone aos
músicos, que viam tudo aquilo, atônitos: "Teo me
mandou embora e disse para levar os músicos
comigo. Vamos embora". Mas os músicos ficaram,
sem entender nada, até que, minutos depois, o
próprio Miles retornou, ordenou que ligassem os
gravadores e começaram a gravar.

No primeiro dia, os músicos dentro do estúdio eram


Wayne Shorter, Chick Corea, Dave Holland, Jack
DeJohnette, Jumma Santos e Don Alias, além de
Miles. Juntos gravaram "Sanctuary". Logo depois, o
grupo recebeu o reforço de Bernie Maupin, Joe
Zawinul, John McLaughlin, Harvey Brooks e Lenny White e gravaram "Bitches
Brew".

Se In a Silent Way era um disco mais controlado em termos de experimentos e


texturas, Miles deixava dar mais liberdade aos músicos e em buscar texturas mais
densas e pesadas, até para respaldar o apelido de Prince of Darkness (Príncipe da
Escuridão) que havia recebido, em 1967.

No segundo dia de gravação - 20 de agosto - a banda foi acrescida de Larry Young


e gravaram "Spanish Key" e "Miles Runs the Voodoo Down" - essa, sem Joe
Zawinul. No terceiro e derradeiro dia foram registradas "John McLaughlin" e
"Pharaoh's Dance", composição de Zawinul. Das seis canções originais do disco,
apenas essa e "Sanctuary" (de Wayne Shorter) não eram de Miles Davis.

Apesar de gravado em agosto de 1969, Bitches


Brew só saiu em abril de 1970, já que In a Silent
Way ainda nem havia sido editado pela CBS.

O disco chocava em vários aspectos: primeiro pelo


uso da palavra bitch em um título, algo como
"prostituta".

Depois pela belíssima capa desenhada pelo alemão


Abdul Mati Klarwein, que teria seu trabalho
requisitado depois por nomes como Santana, Buddy
Miles, Gregg Allman, Hermeto Pascoal, Eric
Dolphy, entre outros.

O disco trazia uma sonoridade impensável para um disco de jazz. Utilizando os


melhores equipamentos e engenheiros, Bitches Brew era um mantra hipnótico de
93 minutos, distribuídos em dois discos, com faixas longas e bem mais avançadas
do que In a Silent Way.

O disco original trazia as seguintes faixas:

Lado 1

1. "Pharaoh's Dance" (Joe Zawinul) – 20:06

Lado 2

1. "Bitches Brew" – 27:00

Lado 3

1. "Spanish Key" – 17:34


2. "John McLaughlin" – 4:26
Lado 4

1. "Miles Runs the Voodoo Down" – 14:04


2. "Sanctuary" (Wayne Shorter) – 11:01

Com o lançamento, Miles


levava seu público e até
amigos a uum território novo,
inexplorado e por vezes difícil.

Joe Zawinul disse que não


gostou do disco pronto quando
o ouviu, pela primeira vez, e
confessou isso a Miles, que
ficou decepcionado ao saber.

Mas, o pianista admite, que


anos depois, ao entrar no
escritório da CBS, ficou
maravilhado com a música
ambiente que corria no prédio. "O que é isso que está tocando?". "Ora bolas, você
fez esse disco com Miles e não se lembra mais?", respondeu um funcionário,
incrédulo. Era Bitches Brew.

O disco foi pioneiro em algumas técnicas de


edição e mixagem, um trabalho que exigiu
muito de Teo Macero e dos engenheiros.

Teo, aliás, tinha uma maneira peculiar de


trabalhar com Miles. "Miles nunca falava na
frente de ninguém", relembra Macero. O que
eles faziam era sentar calmamente, calados, e
ouviam o que haviam gravado. Miles
perguntava a opinião do produtor. Algumas
poucas palavras eram trocadas e Miles
retornava ao estúdio para dar o polimento
final.

Eufórico com o lançamento, Clive Davis,


presidente da CBS reforçou o pedido de que Miles deveria montar uma banda fixa
e tocar em grandes estádios junto com grupos de rock. Sem Bitches Brew boa
parte dos grupos mais experimentais estariam órfãos e o mundo seria limado de
obras fundamentais como Third, do Soft Machine.

E, de fato, antes mesmo do lançamento, Miles vivia um novo período em sua


carreira, sendo convidados para tocar em festivais de rock, além de colecionar
prisões por dirigir sua Ferrari alucinadamente pelas ruas de Nova York.
Miles acabou discutindo com o guarda - "só
me prendeu porque sou negro e um negro não
pode ter um carro desses, a não ser que seja
um traficante. Ele nem sabia quem eu era!".
Na verdade, Miles estava sem sua carteira de
motorista e carregava uma espécie de porrete
para proteção.

Ao longo dos anos, Bitches Brew recebeu


várias reedições. A primeira, em CD, trazia
apenas uma canção extra: "Feio", de Wayne
Shorter. Mas foi em 1998 que os fãs urraram
de prazer quando foi editado - primeiro em um lindo estojo e depois em uma caixa
retangular - Miles Davis - The Complete Bitches Brew Sessions.

O material trazia as seguintes faixas:

CD 1

1. "Pharaoh's Dance" (Joe Zawinul) – 20:06


2. "Bitches Brew" (Miles Davis) – 26:58
3. "Spanish Key" (Davis) – 17:34
4. "John McLaughlin" (Davis) – 4:22

CD 2

1. "Miles Runs the Voodoo Down" (Davis) – 14:01


2. "Sanctuary" (Wayne Shorter) – 10:56
3. "Great Expectations" (Davis - Zawinul) – 13:45
4. "Orange Lady" (Zawinul) – 13:50
5. "Yaphet" (Davis) – 9:39
6. "Corrado" (Davis) – 13:11

CD 3

1. "Trevere" (Davis) – 5:55


2. "The Big Green Serpent" (Davis) – 3:35
3. "The Little Blue Frog" (alternate take) (Davis) – 12:13
4. "The Little Blue Frog" (Davis) – 9:09
5. "Lonely Fire" (Davis) – 21:09
6. "Guinnevere" (David Crosby) – 21:07

CD 4

1. "Feio" (Shorter) – 11:49


2. "Double Image" (Zawinul) – 8:25
3. "Recollections" (Zawinul) – 18:54
4. "Take It or Leave It" (Zawinul) – 2:13
5. "Double Image" (Zawinul) – 5:52

Apesar da bela edição, a edição sofreu críticas de ninguém menos que o próprio
Teo Macero, por três problemas básicos:

1) as faixas foram remixadas sem que ele fosse consultado.


2) inclusão de material não-utilizado por serem de qualidade inferior.
3) erro histórico: na caixa há gravações realizadas em Novembro de 1969,
Janeiro e Fevereiro de 1970, que nada tinham a ver com as originais de Bitches
Brew, que foram realizadas apenas no mês de agosto de 1969. E, pior: muitos
takes originais dessas gravações foram ignorados na edição.

Teo está certo. Boa parte do CD2 e todas as canções inclusas no CDs 3 e 4, foram
gravadas entre 19 de novembro de 1969 e 6 de fevereiro de 1970. Mas, apesar do
erro histórico, o resultado é excelente para quem gosta de Miles. Foram nessas
gravações posteriores que aparece o percussionista brasileiro Airto Moreira.

Vale ressaltar que algumas dessas composições foram usados em discos posteriores
de Miles, como Big Fun, Live-Evil e Circle In The Round.

Deixo vocês com a discografia de Miles. Um abraço e até a próxima coluna.

Discografia

Discos de estúdio

Birth of the Cool (1949)


And Horns (1950)
Blue Period (1951)
Conception Original Jazz (1951)
1951 The New Sounds of Miles Davis (1951)
Diggin' (1951)
Dig (1951)
Live at the Barrel, Vol. 2 (1952)
Miles Davis Plays the Compositions of Al Cohn (1952)
Miles Davis Quartet (1953)
Blue Haze (1953)
Miles Davis Quintet (1954)
Bags' Groove (1954)
Miles Davis Quintet (1954)
Miles Davis and the Modern Jazz Giants (1954)
Walkin' (1954)
Green Haze (1955)
The Musings of Miles (1955)
Odyssey (1955)
Milt and Miles (1955)
Miles Davis and Milt Jackson Quintet/Sextet (1955)
Circle in the 'Round (1955)
Cookin' (1955)
The New Miles Davis Quintet (1955)
Miles (1955)
Miles Davis & Horns 51-53 (1955)
Workin' (1956)
Steamin' (1956)
Relaxin' (1956)
Cookin' with the Miles Davis Quintet (1956)
'Round About Midnight (1956)
Miles Ahead (1957)
L'ascenseur pour L'Échafaud (1957)
Milestones (1958)
Porgy and Bess (1958)
Kind of Blue (1959)
Sketches of Spain (1960)
Directions (1960)
Someday My Prince Will Come (1961)
Quiet Nights (1962)
Sorcerer (1962)
Seven Steps to Heaven (1963)
E.S.P. (1965)
Miles Smiles (1966)
Nefertiti (1967)
Miles in the Sky (1968)
Filles de Kilimanjaro (1968)
In a Silent Way (1969)
Bitches Brew (1970)
Big Fun (1969)
A Tribute to Jack Johnson (1971)
On the Corner (1972)
Get Up With It (1972)
We Want Miles (1981)
The Man with the Horn (1981)
Star People (1982)
Decoy (1983)
Aura (1985)
You're Under Arrest (1986)
Tutu (1986)
Music from Siesta (1986)
Amandla (1989)
Dingo (1990)
Doo-Bop (1991)

Discos ao vivo

Miles & Monk at Newport (1955)


Miles Davis at Newport 1958 (1958)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 1 (1960)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 2 (1960)
Friday at the Blackhawk (1960)
Friday at the Blackhawk, Vol. 2 (1960)
Friday and Saturday Nights in Person (1961)
In Person: Friday Night at the Blackhawk (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 1 (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 2 (1961)
In Person: Saturday Night at the Blackhawk (1961)
At Carnegie Hall (1961)
Miles in St Louis (1961)
In Person at the Blackhawk (1961)
Miles at Antibes (1962)
Miles in Antibes (1963)
Four & More (1964)
My Funny Valentine (1964)
Miles in Tokyo (1964)
Miles in Berlin (1964)
Miles Davis in Europe (1964)
Live at the Plugged Nickel (1965)
In Berlin [live] Columbia (1966)
Live-Evil (1970)
Miles Davis at Fillmore: Live at the... (1970)
Black Beauty: Miles Davis at Fillmore West (1970)
Miles Davis at the Lincoln Center (1972)
Dark Magus (1974)
Pangaea (1975)
Agharta (1975)
Live A'Round the World (1988)
Miles in Montreux (1989)
Miles & Quincy (1991)
Green Dolphin Street (1992)
Newport Jazz Festival (1993)
On Green Dolphin Street (1999)
Miles Davis Live (2000)
Olympia 11 Juillet 1973 (2001)
At Newport 1958 (2001)

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