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Parte II - Conceitos Básicos

Franklin Leopoldo e Silva

Da Ética Filosófica à Ética


em Saúde

É tica e conhecimento
Elas aparecem quando tentamos,
por exemplo, fazer a distinção entre
ética e conhecimento. Podemos dizer
Quando pretendemos situar a éti- que quando descrevemos o mundo e
ca no contexto das dimensões culturais, procuramos compreendê-lo efetuamos
encontramos de pronto um primeiro pro- juízos que nos permitem assimilar a
blema. Como separá-la de outras mani- verdade dos fatos; para compreender
festações como, por exemplo, o conhe- estes fatos efetuamos outros juízos,
cimento e a religião? Será possível uma mais abstratos, acerca da ligação en-
separação tal que a ética se constitua tre eles e das razões que sustentam tais
como uma instância autônoma da cul- conexões. Conhecer as coisas é
tura, claramente definida na sua descrevê-las e apreender racionalmen-
especificidade? A relevância da ética nos te as relações que interligam os fenô-
leva naturalmente a assinalar para menos. Dizemos que aí encontram-se
ela um campo próprio, a partir do juízos porque se trata de uma ativida-
qual possamos reconhecer um modo de que inclui não apenas a mera des-
singular de existir, em primeiro lugar crição, mas julgamentos acerca da
característico do ser humano e, em validade e da necessidade das cone-
seguida, delimitado com nitidez en- xões que pouco a pouco vamos conhe-
tre as dimensões da existência. Po- cendo. São tais julgamentos que nos
demos partir deste pressuposto, mas permitem enunciar leis científicas. Es-
quando vamos entender concreta- tas não se encontram dadas simples-
mente esta separação e esta mente naquilo que percebemos, mas é
especificidade as dificuldades se mul- a partir do que percebemos e observa-
19 tiplicam. mos que nos julgamos autorizados a
formulá-las, atingindo assim conheci- da realidade como ela é, e a moral da
mentos que superam os fatos parti- realidade como ela deve ser. A ciência
culares, embora digam respeito a eles. elaboraria juízos de realidade e a mo-
Isto significa que a observação da re- ral juízos dependentes de
alidade com vistas ao conhecimento normatividade. Mas já vimos que a
nos leva a julgamentos acerca desta ciência atinge justamente os graus
própria realidade. É claro que quando mais elevados de conhecimento quan-
falamos em julgamentos, nesse senti- do apreende as regras de conexão res-
do, queremos dizer apenas que a ob- ponsáveis pela produção dos fenôme-
servação nos autoriza a avaliar de for- nos. Já Aristóteles reconhecia que o
ma mais ampla e mais geral o com- saber acerca das coisas inclui neces-
portamento dos fenômenos, o que nos sariamente o conhecimento das cau-
libera do particular e nos abre o vasto sas de seu aparecimento e de seu modo
horizonte da legislação da natureza: de ser. E as epistemologias modernas
sabemos não apenas como os fenôme- enfatizam a constância das relações
nos se comportam, mas também como causais como um dos mais importan-
eles devem se comportar, pois as leis tes requisitos de conhecimento. Reme-
gerais valem para todos os fenômenos ter desta maneira fatos a outros fatos
dentro das condições determinadas para apreender não apenas relações
pelos critérios da experiência. específicas mas a estrutura dos fenô-
É evidente que assim alcançamos menos já é, certamente, avaliar a na-
regras de generalidade e de universali- tureza, se não no sentido de qualificá-
dade que ultrapassam o mero plano la pelo menos na tentativa de compre-
dos fatos estritamente considerados. ender na maior generalidade possível
Atribuímos à natureza um grau de ne- a trama tecida pelos fatos.
cessidade que nenhuma observação É preciso lembrar, ainda, que al-
particular poderia em si mesma justi- gumas teorias do conhecimento da
ficar. E quando representamos a natu- antiguidade – como a de Aristóteles –
reza desta maneira, entendemos que e da modernidade – como a de Leibniz
possuimos acerca dela um conheci- – incluíam na compreensão desta tra-
mento muito superior àquele que nos ma não apenas a eficiência causal da
forneceria a percepção atomizada de produção fenomênica como também
fatos isolados. Julgamos que o conhe- a finalidade a que cada parte está sub-
cimento progride quando empregamos metida na arquitetônica da totalidade.
procedimentos intelectuais de ordena- Não bastaria entender como os fatos
ção, para por meio deles justamente se produzem, mas seria preciso com-
inferir a ordem dos fatos. preender a função de cada um no con-
Ora, uma das distinções que se junto e as razões da ordem esta-
costuma fazer para separar conheci- belecida. Embora muitas vezes
mento e moral é considerar que os criticada na história das epistemo-
juízos que a ciência emite estão na logias modernas, a causalidade fi-
ordem do ser e os juízos propriamente nal indica que o esforço de conheci-
morais na ordem do dever ser. Com mento solicita, como que natural-
isto, se quer dizer que a ciência trata mente, completar-se na formulação 20
das indagações relativas ao porquê dos coisas aparecessem como propícias ou
fenômenos descritos na estrutura da maléficas, extravasando poderes que
realidade. E certamente este tipo de interferiam na vida e nas ações huma-
resposta, se fosse possível, permitiria nas. Conhecer, neste caso, era também
um tipo de conhecimento que não se- saber como aproveitar o caráter bené-
ria somente mais abrangente, mas fico e propiciatório ou conjurar o mal
mais avaliativo, isto é, possibilitaria que as coisas poderiam causar. A ci-
julgamentos mais seguros acerca da ência eliminou esta valoração primei-
totalidade, pois nos faria ver – talvez ramente pelo conhecimento das cau-
com mais clareza – o sentido das par- sas materiais que regem o comporta-
tes e do todo, a razão da posição de mento dos seres naturais e, em segun-
cada elemento na articulação geral e do lugar, estabelecendo leis gerais e ne-
o modo pelo qual convergem, na cessárias que nos permitem prever este
sintonia e na diferença. Não se pode- comportamento para, desta forma,
ria dizer a partir daí que inferiríamos, dominá-lo. O mundo deixa de ser enig-
ao menos parcialmente, algo como as ma quando o conhecimento se torna
normas que governam o real tanto no sinônimo de determinação necessária.
sentido do ser quanto no sentido do
dever ser?
E, contudo, estaríamos ainda no
plano dos juízos de realidade, no sen- C ritérios éticos
tido em que os entendemos quando
dizemos que a ciência os produz para Quando pela primeira vez se ten-
descrever compreensivamente os seus tou ligar conhecimento e ética, o pro-
objetos, articulando as percepções e blema que surgiu foi justamente o da
sistematizando a experiência. Mas tal- determinação necessária, isto é, a di-
vez não fiquemos apenas nisto. Por um ficuldade de estabelecer parâmetros de
misto de ingenuidade e pretensão, necessidade para as ações e, princi-
muitas vezes emitimos juízos que qua- palmente, para os critérios pelos quais
lificam a realidade. Dizemos não ape- conferimos às ações este ou aquele
nas que as coisas são desta ou daque- valor. É possível estabelecer condições
la maneira, mas também que é bom gerais e necessárias a partir das quais
que sejam assim, ou que é mau, ou que possamos determinar o valor ético das
poderiam ser de outra maneira. Talvez, ações? Aristóteles pensava que não.
de maneira implícita, isto ocorra sem- Aquele que julga eticamente não o faz
pre, sendo impossível olhar as coisas a partir das mesmas condições daquele
sem atribuir a elas um valor, embora a que conhece os objetos físicos. Aquele
disciplina da atitude científica nos leve que age moralmente não o faz da mes-
a recalcar este modo de julgamento. ma maneira pela qual avalia a causa-
Talvez persista na mentalidade do sen- lidade necessariamente presente na li-
so comum, e naquilo que o cientista gação entre os fenômenos. Isto ocorre
tem de homem comum, algo do porque o universo das ações humanas
animismo da relação primitiva com o não é regido pela necessidade. O co-
21 mundo, que fazia com que todas as nhecimento eventualmente presente na
esfera da moral pode, portanto, não ser certo em moral da mesma forma que
também necessário. É conhecida a in- chego à conclusão de um teorema.
terrogação socrática acerca da possi- E no entanto existe o Bem, assim
bilidade de se ensinar a virtude. Ensi- como existe a Verdade. São critérios
nar alguma coisa supõe saber com que em última instância servem de prin-
certeza o que esta coisa é para poder cípios para tudo que é bom e para tudo
transmiti-la com clareza àquele que vai que é verdadeiro. Mas não se passa do
aprender. O homem de bem sabe com Bem ao bom da mesma forma que se
absoluta segurança teórica o que é o passa da Verdade ao verdadeiro. Me-
Bem? A prática do bem supõe este lhor dizendo: não encontramos o Bem
saber? É possível saber, ensinar e na contingência dos fatos humanos da
aprender em moral como sabemos, mesma forma que encontramos a Ver-
aprendemos e ensinamos geometria? dade refletida na demonstração das
A resposta é não, e a razão disto conexões necessárias da ciência. En-
é a diferença que existe entre conheci- tre o que é necessário e o que é contin-
mento teórico e conhecimento prático. gente a diferença está na impossibili-
O conhecimento teórico se constitui dade de demonstração; daí a aparen-
como saber acerca do que é necessá- te relatividade das coisas humanas e
rio. O conhecimento prático se consti- do que se pode conhecer acerca de-
tui como saber acerca do que é con- las. A Política, assim como a Ética,
tingente. O saber das coisas humanas participa deste caráter. Mas isto não
pertence a este segundo tipo. Daí as significa um relativismo total, que re-
dificuldades e as oscilações que carac- sultaria na impossibilidade de critéri-
terizam os juízos morais. Daí a inter- os que não fossem puramente circuns-
ferência, nestes juízos, de fatores que tanciais e subjetivos. A dificuldade da
no conhecimento teórico têm pouca ou Ética consiste justamente em introdu-
nenhuma influência. Por que nos jul- zir normatividade na contingência,
gamentos que envolvem decisões mo- pois está fora de dúvida que quem age
rais as pessoas são sensíveis à persu- moralmente o faz a partir de normas
asão derivada da eloqüência e da ha- que não são apenas relativas à pessoa
bilidade retórica daquele que defende e ao momento.
determinada causa? Por que a influ- Dizer que as coisas humanas são
ência das emoções nestes casos pode relativas é o mesmo que compará-las
ser determinante? – e os advogados sa- a um absoluto que as transcende. Este
bem muito bem utilizar isto, já que se absoluto nunca se fará presente no
exercitam em influir nas emoções da- universo das ações, de maneira dire-
queles que vão dar o veredicto. É por- ta, mas constituirá sempre uma refe-
que nestes assuntos não é possível a rência, pois agir bem significa realizar
demonstração, ao menos no mesmo o bem no plano da contingência, isto
sentido em que ela pode ser efetuada é, agir em vista de um Bem que trans-
nas ciências teóricas. O bem e o mal cende a desordem humana. O fato de
não aparecem com a mesma imediatez que não existem regras teóricas para
e o mesmo caráter coercitivo da ver- isto não afasta inteiramente a ação do
dade e do erro; não chego ao que é conhecimento do Bem. Podemos dizer 22
que quem age moralmente conhece de com um perfil absolutamente próprio.
certa maneira o Bem, pois o traduz, Também a praxis humana ganha, as-
por assim dizer, na particularidade de sim, um estatuto específico, já que é
sua conduta. A extraordinária dificul- definida não apenas em relação aos
dade que a Ética tem que superar é o objetos da ciência teórica, como algu-
reconhecimento das mediações que se ma coisa menor ou mais pobre, mas
interpõem entre o Bem absoluto e as como um domínio singular, afetado por
ações particulares e contingentes. Nes- extrema complexidade, sendo a con-
ta mediação está contido o tingência de que se reveste um sinal
discernimento, que é a distinção entre desta singularidade complexa. Esta
o bem e o mal sem qualquer regra teó- diferença de objeto e de procedimento
rica de identificação. Pois as ações enfatiza de alguma maneira as proprie-
humanas acontecem sempre numa dades singulares do universo humano,
confluência complexa de circunstânci- mostrando que ele é diferente do mun-
as, no meio das quais é preciso do natural, muito embora o homem
discernir o modo correto de agir. É sá- esteja, por muitos outros aspectos, in-
bio aquele que possui este serido na natureza. O que distingue
discernimento. Trata-se de um saber assim tão fortemente o universo huma-
bem diferente do saber teórico, pois no do mundo natural é o valor, e por
consiste essencialmente em discernir o isto a Ética é o domínio dos juízos de
verdadeiro em meio à contingência, valor.
que não é a ordem ideal das conexões Isto nos leva ao problema da ori-
necessárias da ciência. gem e da especificidade destes juízos.
Em geral, pode-se dizer que um juízo é
sempre a subordinação de um parti-

T eoria e prática
cular a um universal. Quando dizemos
que a água é uma substância, estamos
referindo um elemento particular do
É a este saber que denominamos mundo físico a uma categoria que,
prático. Não significa que ele seja uma enquanto conceito geral, subordina o
aplicação da teoria, mas sim um ou- particular e o define. O mesmo se po-
tro saber que versa sobre um objeto deria também dizer da subordinação
específico: a ação. Esta separação en- da espécie ao gênero (o cavalo é um
tre o teórico e o prático pode dar a animal). Tais relações servem para or-
entender que a Ética está irremedia- denar o real e agrupar os objetos par-
velmente relegada a um grau menor de ticulares, ressaltando a estrutura e o
certeza, sendo portanto um tipo de sa- teor sistemático do conhecimento. É
ber inferior. Na verdade, esta distinção possível notar que os conceitos gerais
faz aparecer a autonomia e a subordinam particulares empíricos,
especificidade da Ética. Pois justamen- mas relações do mesmo tipo podem ser
te mostra que ela não é uma teoria de estabelecidas entre entes abstratos, na
segundo grau, uma ciência incomple- matemática e na lógica, como quan-
ta ou um tipo de certeza flutuante. Tra- do dizemos que seis é um número par
23 ta-se de um saber de outra natureza, ou que a substância é uma categoria.
A questão é saber se há um procedi- impediria que a afirmação da generosi-
mento rigorosamente paralelo quando dade de Pedro tivesse um caráter
dizemos que Pedro é generoso ou que teórico. O que faz com que Pedro seja
a pobreza é uma forma de opressão, generoso passa por uma incrível com-
ou que a mentira é um vício. plexidade de fatores, entre os quais
Para que um juízo seja coerente, está um que é particularmente impor-
deve haver concordância entre os ter- tante para avaliarmos o significado do
mos empregados. Esta concordância que atribuímos a Pedro. Este fator é a
aparece na visão da compatibilidade vontade. Ainda que esta vontade este-
entre o sujeito e o predicado, para to- ja mesclada com mil outros fatores, tais
marmos o juízo na sua forma mais sim- como a educação e a influência do
ples. Assim, quando dizemos que a meio, os interesses de Pedro e o con-
água é uma substância ou que o ca- texto das suas ações, há sempre um
valo é um animal, a relação de subor- nível em que a atribuição do predicado
dinação está corretamente estabe- moral supõe que o sujeito quis possuí-
lecida porque, nestes casos, há uma lo, decidiu algo a respeito de si, optou
relação necessária entre os termos, o por uma determinada maneira de agir
que faz com que o juízo exprima um e de posicionar-se diante de si e dos
conhecimento. Aquele elemento que outros. Ainda que a vontade esteja
liga cavalo a animal ou água à subs- mais ou menos determinada por múl-
tância é de tal ordem que não permite tiplos fatores, ela se exerce, e o sujeito
a afirmação contrária como expressão projeta-se diante de si mesmo de uma
de conhecimento. É fácil notar que esta certa maneira, a qual depende das es-
relação de necessidade não existe en- colhas que faz. É este elemento, não
tre os termos da proposição Pedro é submetido a uma necessidade estrita,
generoso. Certamente, podemos dizer que confere à generosidade de Pedro
que quando a formulamos exprimimos o caráter moral atribuído a este
que o indivíduo Pedro pode ser incluí- predicado. Suponhamos que Pedro fos-
do no conjunto dos indivíduos gene- se um ser estritamente determinado a
rosos; mas isto não corresponde exa- agir generosamente, da mesma forma
tamente à inclusão do cavalo no con- que os corpos pesados estão determi-
junto dos animais. Pois o que faz com nados a cair se algo não os sustenta.
que Pedro seja generoso é diverso da- Não haveria, neste caso, moralidade na
quilo que faz com que o cavalo seja generosidade de Pedro – moralidade
um animal. Não podemos entender supõe vontade e escolha.
que cavalo não seja animal, mas po- Mas supõe, então, da mesma
demos entender que Pedro eventual- maneira, que possamos apontar o ser
mente fosse mesquinho, ao invés de que é capaz de escolher a partir da
generoso. Isto significa que não é ne- vontade, isto é, o ser não submetido
cessário que Pedro seja generoso, da à necessidade. A tendência a respon-
mesma forma que é necessário que o der imediatamente que os seres hu-
cavalo seja um animal. manos são dotados de tal capaci-
O que liga Pedro à generosidade, dade não é, de maneira alguma,
não sendo da ordem da necessidade, tão óbvia quanto se poderia pensar. 24
O homem não é um ser que se defi-
na apenas por um aspecto. A expres- A questão dos fundamentos
da ética
são animal racional, a mais antiga
definição teórica do homem, mostra
por si mesma a dualidade de aspec- Assim como os juízos acerca de
tos. Enquanto animal, o homem tem fatos, os juízos de valor também se re-
algo que o vincula aos seres puramen- metem à generalidade. Quando dize-
te naturais. Enquanto racional, tem mos que Pedro é generoso, e ainda o
algo que o distingue. Se permanece- admiramos por isto, o que queremos
mos no âmbito da sensação e da per- dizer é que Pedro adota, como diretriz
cepção, estamos falando de modali- de suas ações, um valor dotado de su-
dades de representação que, embo- perioridade em relação aos indivíduos
ra eventualmente mais aperfeiçoadas particulares. Ainda mais: assim fazen-
no homem, não diferem essencial- do, Pedro se coloca como um exemplo
mente do que acontece no caso dos da possibilidade de as ações humanas
animais, que são capazes não ape- particulares encarnarem valores gerais
nas de sentir e perceber como tam- que as transcendem. Quando julgamos
bém de estabelecer relações de con- Pedro por sua generosidade, estamos
secução, como o cão que foge quan- implicitamente entendendo que o
do seu dono pega um bastão, se aca- mundo seria melhor se todos fossem
so aconteceu de já ter sido espanca- como ele. Pois se todos os valores re-
do. No entanto, apenas o homem metem ao Bem, aquele cujas ações
pode emitir juízos, isto é, relacionar encarnam algum valor está contribu-
um caso particular com uma idéia indo para a realização do Bem no
geral, por definição não imediata- mundo humano. Pedro seria aquele
mente presente na situação empírica sábio, de que se falou antes, que sabe
dada. A origem destas idéias gerais, como situar-se no mundo, discernindo
mesmo no que se refere ao mundo entre o bem e o mal, e escolhendo
natural, é problema que foi resolvido a partir deste conhecimento práti-
de diversas formas na história do pen- co – que seria algo como um senso
samento. Mesmo assim não há como moral. O sentido da apreensão de
explicar o juízo sem este tipo de valores é um saber prático, que
vinculação. A questão que se coloca muitos filósofos chamaram de sa-
no caso da Ética é: a que espécie de bedoria.
generalidade vinculamos o particular Não se adquire a sabedoria da
quando formulamos juízos morais? mesma forma como se adquire o sa-
Como já sabemos que na Ética for- ber teórico. Por vezes se concebeu que
mulamos juízos de valor, responderí- as duas coisas se opõem. No início do
amos que é a valores que remete- Cristianismo, São Paulo opõe a ciên-
mos os termos dos juízos morais. cia mundana, fruto do orgulho da ra-
E dizendo isto abrimos uma outra zão, à sabedoria da cruz, fruto da hu-
questão, que é a da generalidade mildade. Por isto, a sabedoria cristã
dos valores e do fundamento desta aparece como loucura para os não-
25 universalidade. cristãos. Santo Agostinho, em perspec-
tiva semelhante, difere ciência de sa- na Ética. A moral propriamente cristã
piência para mostrar que a atitude te- vê esta autonomia da vontade como
órica, mesmo que atinja alturas ele- subordinação a Deus, entendida como
vadas de contemplação da verdade, livre aceitação da condição de criatu-
como aconteceu com alguns filósofos ra e dos desígnios de Deus. A
gregos, não permite a posse e a fruição modernidade vai entender a autono-
do objeto mais desejado em termos de mia como autonomia da razão, e isto
um saber absoluto, que seria Deus. Pelo certamente repercutirá nas teorias éti-
contrário, a aceitação da fé e do mis- cas. Mesmo assumindo a finitude e as
tério da mediação de Cristo na rela- limitações humanas, Descartes, no sé-
ção com Deus é que possibilitaria pos- culo XVII, não admitirá como critério
suir a verdade. A hierarquia que o Cris- de verdade em qualquer âmbito senão
tianismo estabelece entre a alma e o a demonstração racional. A autonomia
mundo redunda numa separação das da razão consuma assim a sua sepa-
duas instâncias, o que não ocorria ração da natureza. Esta é menos a to-
entre os gregos, para quem o homem talidade na qual o homem está inseri-
e sua alma eram parte do mundo. A do e muito mais algo que ele deve do-
separação cristã, propondo o despre- minar para seu proveito através do
zo pelas coisas do mundo, concebe a poder que lhe confere o pensamento,
alma como peregrina, isto é, como não traduzido nos procedimentos racionais
integrada ao cosmos no qual ela pro- da ciência e da técnica. Por isto, a no-
visoriamente se encontra, já que o seu ção cristã de sabedoria é modificada:
destino deve se realizar em outra di- considera-se agora que sabedoria é a
mensão. O homem estaria sozinho na perfeita integração da teoria e da prá-
imensidão do universo, não fôra o con- tica com a finalidade de conseguir para
tato com Deus, e por isto Deus deve o homem a felicidade, isto é, o gozo
ser o único objeto de aspiração. Isto dos bens que podem advir do saber e
significa que nada, a não ser Deus, do domínio racional da natureza. Esta
determina como a alma deve agir no perfeita integração, numa perpectiva
itinerário de purificação moral. Deter- racionalista, se transforma rapidamen-
minar-se por qualquer objeto sensível te numa subordinação da prática à
ou natural é renunciar à condição so- teoria, na medida em que se concebe
brenatural que constitui a natureza da uma continuidade entre a ciência e a
alma. Portanto, somente valores sobre- tecnologia. Neste império da razão, a
naturais são dignos de orientar o homem; ética só pode ser concebida a partir
tomar qualquer outro objeto como de uma perspectiva teórica e
valor ou como critério de ação é re- racionalista. Este é o motivo pelo qual
baixar a alma. Com isto, a solidão e o a moral aparece em Descartes como
estranhamento da alma num mundo a um ramo do saber que depende, para
que ela não pertence tornam-se ocasião a sua constituição, das ciências mais
para a afirmação da autonomia, isto é, fundamentais que a precederiam,
a liberdade da alma perante as coisas. como a metafísica, a física e a mate-
Assim como a vontade, a auto- mática. De direito não haveria dife-
nomia constitui também noção central rença, a não ser em termos de grau 26
hierárquico, entre a moral e as outras ente mas talvez confinada a um domí-
ciências. nio restrito?
Assim se perde aquela diferença A afirmação da autonomia racio-
entre o teórico e o prático, estabelecida nal constitui o que ficou conhecido na
por Aristóteles. O prático passa a ser história por Iluminismo. Kant o define
concebido como o domínio de aplica- como a maioridade do gênero humano,
ção do teórico, maneira como ainda isto é, a capacidade de utilização plena
hoje o entendemos. As conseqüências da razão, sem a submissão a dogmas
desta mudança são de largo alcance. ou a autoridades; portanto, o exercício
O que aí se afirma é a unidade de uma maduro da liberdade. Mas como definir
racionalidade que doravante deve go- a liberdade? Se analisarmos o que ocor-
vernar todas as instâncias do mundo re na ciência, verificaremos que a
humano. Esta racionalidade tem um racionalidade da experiência consiste
paradigma e uma finalidade. O justamente em compreender a necessi-
paradigma é a exatidão do saber ma- dade que, a partir de princípios lógicos
temático, que a razão clássica consi- do entendimento, governa a natureza.
dera como critério por excelência de Isto significa que no âmbito da experi-
conhecimento e de obtenção de certe- ência de conhecimento, que é o domí-
za. A finalidade é o domínio racional nio da razão teórica, não se pode falar
que se traduzirá concretamente na su- em liberdade pois tudo a que temos
bordinação da natureza às necessida- acesso é a uma conexão de fenômenos
des humanas e na expansão da técni- logicamente sistematizada, mas carac-
ca como extensão da ciência, que deve terizada justamente pela insepara-
realizar praticamente o domínio do bilidade de causa e efeito, condição e
homem sobre o mundo. A prerrogati- condicionado. Sempre haverá, na ordem
va do sujeito intelectual que desta ma- da experiência, que é a ordem da teoria,
neira se estabelece contribuirá para fenômenos condicionados, por mais lon-
obscurecer a especificidade da praxis, ge que formos na cadeia dos eventos
já que esta deve forçosamente se sub- naturais. Isto faz parte do determinismo
meter aos critérios da racionalidade da natureza e é o que possibilita a ciên-
técnica. De modo que a predominân- cia, no rigor das suas explicações. As-
cia de uma perspectiva em princípio sim, a liberdade terá que ser procurada
humanista, posto que afirmadora da fora do campo da experiência e da ra-
autonomia da razão, traz consigo esta zão teórica. Kant institui, então, o domí-
ambigüidade, ou pelo menos esta nio da razão prática em que é possível
questão: terá a racionalidade técnica pensar a liberdade e reivindicá-la para
alcance suficiente para cobrir todos os o sujeito moral, mas nunca para um
aspectos da vida humana, sobretudo objeto natural. Esta separação permite
os aspectos éticos? Submeter a totali- que se fale como que de dois mundos:
dade do mundo e a totalidade da vida um em que as coisas estão estritamente
a tais critérios não implicaria em re- determinadas, pois não existe efeito sem
duzir o mundo humano à perspectiva causa; outro em que o sujeito moral, no
decorrente dos princípios metafísicos plano das decisões éticas que nada tem
27 e metódicos de uma razão auto-sufici- a ver com o plano dos eventos empíricos,
pode escolher e optar, atuando assim do inteligível no qual a pura
como causa livre, isto é, como aquele racionalidade da norma universal ga-
tipo de causa que nunca se encontra no rante a moralidade do ato. Por isto o
universo dos fenômenos. Com isto as próprio Kant nos diz que, dentro de tais
ações humanas podem ser remetidas à parâmetros, jamais houve um só ato
liberdade do sujeito, quer dizer, a algo moral praticado pela humanidade.
que não atua determinadamente, mas Porém isto não o impede de formular
que pode iniciar absolutamente uma sé- o que o ato moral deve ser, na coerên-
rie de ações. cia lógica que teria de caracterizá-lo,
A esta liberdade corresponde a independentemente das condições con-
autonomia de que deve ser dotado o cretas de realização.
sujeito nas suas decisões morais, au-
tonomia que para Kant deve ser abso-
luta, ou seja, nenhum motivo de qual-
quer ordem pode interferir na decisão F undamento e experiência
moral
do sujeito, sob pena de contaminar a
vontade com elementos que a tornari-
am dependente de outra coisa que não O que sobretudo impressiona nes-
ela mesma. Mas, então, qual o critério ta concepção formalista da moral é a
para a decisão moral, se absolutamente separação drástica entre os planos do
nada pode interferir? O critério é a for- ser e o do dever ser. Não se trata ape-
ma da universalidade que deve orien- nas de separar o conhecimento teóri-
tar a ação. Somente a forma atinge a co ou científico da moral, mas de se-
pureza que o ato moral deve revestir. parar todos os aspectos da vida con-
Qualquer conteúdo, por mais geral que creta da realização ética. Independen-
seja, constituirá uma motivação te da apreciação que possamos fazer
extrínseca e comprometerá a autono- da teoria kantiana, o importante é per-
mia do ato moral. Quando estamos guntar o que isto significa no processo
diante de uma decisão moral devemos histórico da civilização moderna. No
perguntar: o que ocorreria se esta ação limiar da contemporaneidade, numa
fosse adotada universalmente? Deve- época em que a ciência calcada no
mos agir como se o critério de nossa modelo newtoniano alcança a plenitu-
ação devesse estender-se universal- de de suas possibilidades, o homem é
mente. Qualquer ato que não seja sus- separado como que em dois sujeitos:
ceptível de universalização se o teórico, que realiza o ideal de certe-
autocontradiz em termos morais. O que za absoluta no interior dos limites do
se percebe é o esforço de Kant para conhecimento científico, e o moral, que
encontrar o critério universal que de- para compreender-se na esfera de sua
veria pautar o juízo moral. A liberdade é obrigado a colocar esta li-
radicalidade com que ele concebe este berdade numa altura transcendental
critério o faz encontrá-lo somente na em que ela se situa distante do plano
esfera do formal. Assim, o que Kant da experiência. Talvez possamos ver
chama de prático não corresponde à nesta solução a que chega a filosofia
esfera da contingência, mas a um mun- crítica uma espécie de consolidação 28
do caminho tomado pela moder- trabalhavam de maneira pacífica. O
nidade. O que Kant percebe é que, na Existencialismo é seguramente a cor-
continuidade do teor unitário da rente de pensamento em que estes pro-
racionalidade, instituído por Descar- blemas apareceram de forma mais
tes, não seria possível dar conta da aguda. Pois nele, pela primeira vez, a
moral pois a racionalidade científica liberdade é vista como o exercício do-
não atinge o plano dos requisitos do loroso da constante invenção de si
ato moral, autonomia e liberdade. Isto mesma. Nas teorias clássicas, a liber-
o levou a conceber uma outra esfera dade aparece como uma sábia confor-
de racionalidade na qual os critérios mação à necessidade. Existe um Deus,
de determinação teórica não teriam existe um mundo transcendente de
vigência. E com isto separou o conhe- valores, existe uma teleologia históri-
cimento da ação, ao menos naquilo ca, existem referências que dão senti-
que a ação comporta de decisão mo- do ao mundo e aos homens. Claro,
ral. Podemos medir o alcance deste existe a insensatez, o erro, o pecado, a
acontecimento lembrando que, no caso desordem, a contingência, enfim, mas
do saber prático preconizado por tudo isto tem causas e explicações que
Aristóteles, o sujeito discernia no seio são fornecidas pela razão e mesmo pela
da contingência o meio de realizar a fé. Há uma ordem previamente dada.
ação que guardasse alguma correspon- Quando me insiro nela de maneira
dência com o Bem absoluto. Em Kant harmônica, sintonizo com o universo
este é um princípio formal, que a ra- e com os seus princípios. Quando se
zão pensa de maneira isolada do mun- torna mais difícil descobrir esta ori-
do concreto, que vai decidir acerca da gem e esta finalidade, como em Kant,
moralidade, isto é , da conformidade tenho ainda o recurso da forma, que
da ação à moral. Isto significa a tenta- é também um princípio a que posso
tiva de vincular a universalidade for- tentar conformar minhas ações.
mal à ação. Ora, o mundo da contin- Quando não me ponho em sintonia
gência se distingue de um universo com a totalidade, não é de todo mi-
logicamente necessário como o da nha culpa, é antes algo derivado da
ciência exatamente devido à impossi- finitude que afeta irremediavelmente
bilidade desta vinculação. Por isto a o ser humano. Enfim, há essência,
moralidade kantiana acaba sendo que posso realizar de maneira mais
muito mais um ideal de que devemos ou menos completa, mas que consti-
nos aproximar do que um critério de tui referência prévia à minha exis-
discernimento para a experiência mo- tência. Mesmo quando sinto o uni-
ral concreta. verso imenso e estranho, e Deus
A época contemporânea sentiu afastado, posso contar ainda com
mais de perto o impacto da experiên- a esperança.
cia moral concreta. Talvez a drama- Mas quando não há mais Deus
ticidade da história deste século tenha nem valores transcendentes, quando
manifestado de forma mais intensa não há um plano a realizar, que sen-
certas contradições entre elementos da tido atribuir às contradições, à de-
29 ação moral, com que antes as teorias sordem dentro e fora do homem, e à
miséria histórica? O Existencialismo mais como essência, mas como proje-
coloca da maneira mais crua a ques- to. Mas há uma outra vertente que faz
tão da imanência, isto é, nada existe da exterioridade a matriz do pensamen-
acima do humano com que o homem to ético, e nesta linha estão as éticas
possa contar para ordenar o seu mun- utilitaristas. Partem, por exemplo, de
do e para orientar as suas ações. É uma concepção da evolução dos con-
apenas diante de si mesmo que ele ceitos éticos para estabelecer a origem
deverá construir seus critérios e suas prática e utilitária destes conceitos. O
justificações. A liberdade não é uma bom teria sido, na origem, o útil, isto
forma de Deus testar o homem, é a é, a ação benéfica para o indivíduo e,
forma de o homem existir, é o dado principalmente, para o grupo. Má se-
primeiro, não há critérios anteriores de ria a ação prejudicial. Com o passar
como utilizá-la, ela se faz na continui- do tempo e com o progresso da civili-
dade dos atos que a exprimem, cada zação esta utilidade imediata deixou
vez que o homem se projeta na cons- de aparecer claramente como critério,
trução de si mesmo. A liberdade é um mas se manteve a distinção, que foi aos
fardo, como foi o destino para o ho- poucos tornada abstrata e resultou nos
mem antigo. É isto o que significa di- valores Bem e Mal. Esta posição pro-
zer que a existência vem antes da es- cura buscar a origem dos valores por
sência e que o homem está condena- meio de uma reflexão histórica e psi-
do a ser livre. A história da humanida- cológica acerca da evolução da huma-
de e a história de minha vida me colo- nidade, e utiliza critérios de uma lógi-
cam diante de opções. Como enfrentá- ca imanente ao desenvolvimento das
las sem critérios absolutos de necessidades humanas. Em última ins-
discernimento e de escolha? Tenho de tância, seria a sobrevivência do grupo
inventar, para cada ato, o valor a par- a origem dos valores, que são então
tir do qual eu o escolho, não encontro estabelecidos para manter obrigações
este valor, ainda que outro mo apre- morais que assegurem a sociabilida-
sente, tenho que torná-lo meu. Cada de, a cooperação e a coesão necessá-
um é aquilo que se torna, aquilo que rias à estabilidade da sociedade. Nes-
faz de si em cada momento da exis- ta vertente, a liberdade importa menos
tência. Uma ética com um único crité- do que a adaptação do indivíduo a
rio, que se confunde com um dado esquemas de conduta que ele já encon-
irredutível de realidade: a liberdade. tra prontos e aos quais é coagido a
Assumi-la é lucidez e autenticidade; aceitar. A relatividade cultural dos va-
negá-la é má-fé. lores aparece, assim, de forma mais
O Existencialismo está na verten- nítida, pois é a perspectiva históri-
te das éticas que partem de uma pro- co-sociológica que procura dar con-
funda meditação acerca da situação ta do estabelecimento e das mudan-
humana, tal como a reflexão a apre- ças dos critérios morais. Existe uma
senta. Procura então uma maneira de racionalidade na prescrição dos valo-
proporcionar o encontro do homem res, mas ela está a serviço da coesão
consigo próprio e com a história a par- social. Trata-se de uma figura da
tir da consciência, entendida agora não racionalidade técnica que se estrutura 30
por parâmetros exclusivamente utilitá- progresso da razão gerou novas formas
rios. de dominação ideológica, que se mani-
festam nos campos social, político, eco-
nômico e que somente são possíveis num

É tica e progresso da razão


mundo em que domina a produção, es-
sencialmente vinculada ao aperfeiçoa-
mento dos meios técnicos de transfor-
A modernidade se caracteriza pela mação da natureza. O que se questiona
hegemonia da razão, o que se traduz é se, num mundo governado pela razão
no triunfo do seu mais eminente pro- liberada das amarras que a prendiam em
duto, a ciência e os seus prolongamen- épocas passadas, o homem pode viver
tos técnicos. Na verdade, esta efetivamente de maneira emancipada,
hegemonia nunca deixou de ser con- isto é, realizar a autonomia enquanto
testada, quase desde o seu apareci- condição da vida ética. A profunda re-
mento. Mas o século XX assiste a uma flexão de Marx a propósito das relações
crítica procedente de fundamentos his- entre racionalidade e ideologia serviu,
toricamente concretos, que derivam de pelo menos, para estabelecer sérias dú-
uma reflexão acerca da relação entre vidas acerca da vinculação iluminista
meios e fins nas realizações da razão. entre progresso e liberdade.
Trata-se de um problema ético, mas de O que se nota é que a emancipa-
certa forma colocado de maneira mais ção não se realizou porque as exigên-
abrangente. O que se questiona é se cias do progresso técnico fizeram com
as promessas de emancipação conti- que as instâncias de controle em to-
das no ideário iluminista foram cum- dos os aspectos da vida se tornassem
pridas ou estão efetivamente se reali- autônomas, o que trouxe como conse-
zando. E um olhar crítico sobre a his- qüência a submissão do indivíduo a
tória da modernidade mostra que não. tais mecanismos num mundo totalmen-
A expectativa de que haveria a união te administrado. Tais instâncias de con-
entre a teoria e a praxis, que deveria trole não pesam sobre o indivíduo
corresponder a uma proporcionalidade como a fatalidade das forças naturais
entre o progresso científico-técnico e ou a autoridade eclesiástica. Elas fo-
o aumento da felicidade, não se con- ram estabelecidas como mecanismos
firmou. Isto pode ser constatado de racionais absolutamente necessários
várias maneiras no plano do desenvol- num mundo regido pelo progresso téc-
vimento histórico. O homem da nico. Isto significa que foram
modernidade não mais se encontra introjetadas na consciência do homem
submetido a injunções que caracteri- moderno como parâmetros naturais de
zavam, por exemplo, a ligação do ho- relacionamento com os outros e com
mem medieval com as instâncias do o mundo. Esta autonomização dos cri-
sagrado, concretamente representadas térios de racionalidade provocou uma
pela imposição dos dogmas e da au- inversão entre os meios e os fins: o que
toridade religiosa. Tampouco se encon- redundou na dificuldade de se
tra submetido às forças naturais, que dimensionar, no mundo contemporâ-
31 a ciência explicou e dominou. Mas o neo, a capacidade de discernir os fins
à possibilidade de mobilizar os meios. soluções é que a crise da ética provém
Nunca se dispôs de tantos meios, e de um desdobramento de atributos e
nunca eles estiveram tão distanciados conseqüências inerentes à própria
dos fins a que deveriam servir. Ora, es- racionalidade técnica e ao progresso ci-
tabelecer a relação entre meios e fins entífico e tecnológico ocorrido a partir
é problema ético. A característica da dela. Por isto, para aqueles que conside-
contemporaneidade é a incapacidade ram a inevitabilidade dos rumos da his-
de estabelecer esta relação pensando tória da razão na modernidade, a situa-
o prático, ou seja, o universo da reali- ção que estamos vivendo deve ser acei-
zação humana, como finalidade do ta como conseqüência necessária, mes-
progresso técnico. O que se observa, mo porque seria insensato pensar em
então, é a constante reposição das con- soluções que representassem retrocesso
dições do progresso técnico como se em relação ao já conquistado pela ciên-
este fosse uma finalidade em si mes- cia moderna. A dependência da civili-
mo. A racionalização do social, do zação em relação aos produtos da ciên-
político, do econômico e até da instân- cia e da técnica afasta do horizonte his-
cia cultural significa a administração tórico este tipo de hipótese.
de todos os aspectos da vida através
de parâmetros de objetividade técni-
ca, o que se traduz principalmente na
hegemonia da tecnocracia. C rise da razão e ética
aplicadas
O que evidencia a profundidade da
crise que afeta o mundo contemporâneo
é que, do ponto de vista ético, a O surgimento das éticas aplicadas,
tecnocracia é uma contradição em ter- entre as quais está a ética da saúde, res-
mos. A técnica se caracteriza como a ponde a uma dupla necessidade: de um
produção de meios. Se ela mesma coor- lado, tenta-se diminuir a distância que
dena a aplicação dos meios às finalida- se abriu, na modernidade, entre ética e
des, esta relação acaba se estabelecen- conhecimento; de outro, procura-se ins-
do no interior da própria técnica. Esta é trumentos para recolocar questões per-
a razão pela qual a planificação tinentes à relação entre ciência e valor,
tecnocrática não produz efeitos fora do relação esgarçada por conjunturas his-
próprio âmbito técnico. Vistas as coisas tóricas sobretudo contemporâneas, que
no limite, o que caracteriza uma tal cul- contribuíram para o aparecimento de
tura é a recusa da ética. Vivemos num dúvidas profundas acerca do significa-
mundo técnica e administrativamente or- do e alcance do progresso científico.
denado, de modo unilateral, pela Há nisto algo como uma
alternância entre progresso técnico e sa- constatação implícita de que a
tisfação de necessidades criadas na pró- hegemonia da racionalidade técnica já
pria esfera da produção. Nesse sentido, não permite que o pensamento acerca
o consumo não é a finalidade da produ- da vida prática, que os antigos deno-
ção, mas a sua necessária contrapartida minavam discernimento, realize-se numa
tecnológica. O que caracteriza a situa- instância autônoma, gerando parâ-
ção presente e torna difícil a busca de metros de conduta tais que resultassem 32
numa manutenção da densidade do Após a Segunda Guerra tomou-se co-
espaço público, isto é, o plano das re- nhecimento de práticas experimentais
lações sociais e da ação política. A em seres humanos, conduzidas sob o
esfera da vida prática esvaziou-se na nazismo por médicos e cientistas, que
medida em que a liberdade, nas socie- ultrapassavam qualquer expectativa
dades capitalistas modernas, passou imaginável de degradação. A primeira
a ser considerada simples possibilida- manifestação de caráter mais sistemá-
de de decidir individualmente sobre tico e normativo a respeito do assunto
assuntos privados. Mas as causas que consta do Código de Nuremberg, que
contribuíram para isto também susci- estabelece regras a serem observadas
taram um tipo de reação que consiste quanto à experimentação com seres
em tentativas de adaptar a reflexão éti- humanos. Dentre os preceitos formu-
ca à diversidade dos domínios das es- lados destacam-se: a necessidade de
pecializações. É claro que o pano de consentimento daqueles que serão sub-
fundo destas tentativas é uma reflexão metidos ao experimento; o consenti-
mais abrangente sobre a relação entre mento deve ser dado livremente, por
ciência e valor; mas a impossibilidade pessoas que estejam em plena capaci-
de levar a cabo esta reflexão na sua dade de decisão e às quais devem ser
generalidade, bem como a urgência explicadas com absoluta clareza todas
histórica de restabelecer pelo menos as condições do experimento, quais se-
alguma parcela da dimensão ética do jam, natureza, duração, objetivos, mé-
conhecimento, levaram à constituição todos, riscos, efeitos e inconvenientes.
de campos delimitados de reflexão, Não se deve optar por experimentos
sobretudo a partir de áreas que se em seres humanos quando houver ou-
mostraram especialmente problemáti- tros procedimentos compatíveis com os
cas. Não se pode deixar de dizer que, resultados esperados. Os experimentos
no fundo, trata-se de uma subordina- em seres humanos, quando absoluta-
ção da ética ao processo de especiali- mente essenciais, devem ser precedi-
zação e de fragmentação do saber. A dos de experiências com animais, de
outra face desta atitude nos mostra, no modo a prover o pesquisador de um
entanto, um esforço para recompor, razoável conhecimento acerca do pro-
dentro de certos limites, o interesse blema estudado. Deve-se reduzir ao mí-
ético que deve fazer parte da atuação nimo os incômodos decorridos do ex-
do pesquisador e do profissional, prin- perimento, e este não deve ser condu-
cipalmente quando os fatos indicam zido se houver risco razoável de dano
que a ausência de preocupação ética grave e permanente. O paciente e o
ocasiona a transgressão das fronteiras sujeito de pesquisa humana devem ser
que separam o humano do inumano. protegidos por meio de cuidados es-
Foi devido a razões como essas peciais, sob a responsabilidade do pes-
que a Bioética surgiu a partir da pres- quisador, que deve suspender de ime-
são de fatos históricos, reveladores de diato os procedimentos se houver situ-
práticas de pesquisa das quais estava ação indicadora de risco grave. O su-
ausente qualquer parâmetro de consi- jeito do experimento deve poder reti-
33 deração da dignidade do ser humano. rar-se dele a qualquer momento, por
livre decisão. Os riscos devem ser pro- tos de normas que disciplinam proce-
porcionais aos benefícios para o indi- dimentos, os mesmos devem ser vistos
víduo e para a sociedade. a partir de uma questão mais
O que estes preceitos indicam é abrangente, que apenas se explicitou
um esforço para estabelecer uma rela- em conseqüências assustadoras.
ção adequada entre meios e fins. Su- Na verdade, e por mais que nos
põe-se que há uma medida humana seja difícil reconhecê-lo, planejar politi-
para avaliar-se os custos do progresso camente o extermínio de pessoas em
científico, e isto, por sua vez, pressu- grande escala, organizar os meios racio-
põe que o destinatário deste progresso nais, isto é, administrativos e científicos
é o homem, o que torna contraditório para que o extermínio seja eficiente, apli-
que ele seja visto única e exclusivamen- car tais métodos de forma sistemática
te como meio. Um dos preceitos fun- e calculada, utilizar pessoas como co-
damentais da ética kantiana diz que baias, tudo isto está em continuidade
nenhum ser humano será visto como com o predomínio da racionalidade téc-
meio para a obtenção de qualquer fi- nica desde que esta seja concebida como
nalidade, porque a dignidade huma- absolutamente hegemônica, quer dizer,
na impõe que o homem seja conside- sem qualquer parâmetro externo com o
rado somente como fim. Nesse senti- qual tenha de se confrontar. No contex-
do a Declaração de Helsinque é bem to de tal situação não há incoerência no
mais explícita, mormente na sua segun- fato de que seres humanos sejam vistos
da formulação, ao dizer claramente como simples cobaias, mormente se se
que “os interesses do indivíduo devem trata de um determinado grupo que se
prevalecer sobre os interesses da ciên- quer excluir da categoria da humanida-
cia e da sociedade”. Uma maneira de de. Certamente estamos, neste caso, di-
compatibilizar esta hierarquia com a ante de uma anomalia, caracterizada
necessidade de experiências com se- pela situação de barbárie a que os indi-
res humanos é uma avaliação cuida- víduos são conduzidos sob um regime
dosa da relação entre riscos e benefí- totalitário. A tendência é recuar ante o
cios, bem como uma antecipação horror, mas considerar que foi apenas
criteriosa dos possíveis efeitos resultan- um “episódio”, terrivelmente incompre-
tes. Tudo isto decorre de uma concep- ensível, na escalada histórica em que
ção básica: há direitos humanos, que afinal predomina o progresso da civili-
se situam acima de qualquer outro in- zação. Mas é possível pensar, também,
teresse. Nada justifica a exposição de que os totalitarismos, com tudo o que
qualquer ser humano a situações que trazem de violência e desumanidade, não
possam configurar crueldade ou degra- são interregnos malignos que uma com-
dação. Este restabelecimento da preo- preensão abrangente poderia ajustar à
cupação ética no planejamento e de- totalidade da história. São, em grande
senvolvimento do experimento cientí- parte, conseqüências de virtualidades re-
fico responde à urgência histórica de gressivas que o progresso traz entranha-
coibir os abusos cometidos pelos na- das em seu percurso.
zistas em nome da ciência. Apesar de Esta visão, que pode parecer pessi-
tratar-se de códigos, isto é, de conjun- mista, auxilia-nos a compreender as 34
ambigüidades do progresso e a prevenir Talvez por isto, na contempo-
as monstruosidades que ele pode dar à raneidade, tentamos realizá-los na es-
luz. É nesta direção que podemos enten- cala reduzida de certos aspectos im-
der as preocupações éticas que se ex- portantes da vida humana, e a saúde
pressam nos códigos de conduta e em certamente está entre eles, quando con-
outros conjuntos de normas aplicadas às siderada com suficiente abrangência.
pesquisas e às profissões. A Bioética é Na verdade, esta “redução” de princí-
a ética da vida, quer dizer, de todas as pios absolutos visa traduzi-los nas con-
ciências e derivações técnicas que dições concretas da vida histórica e
pesquisam, manipulam e curam os se- das determinações sociopolíticas e
res vivos. A ética da saúde ocupa lugar econômicas. Exemplo deste objetivo é
proeminente neste conjunto, uma vez a definição de saúde que consta do
que se ocupa de questões que têm a ver Relatório Final da VIII Conferência
com a manutenção da vida no caso dos Nacional de Saúde, realizada em 1986:
seres humanos. Sendo a vida o primeiro “Em seu sentido mais abrangente, a
de todos os direitos, a ética da saúde saúde é a resultante das condições de
enraíza-se profundamente no solo dos alimentação, habitação, renda, meio
direitos humanos, e no seu estudo va- ambiente, trabalho, transporte, empre-
mos encontrar, como regras de go, lazer, liberdade, acesso e posse da
normatização, alguns dos grandes prin- terra e acesso a serviços de saúde”.
cípios que vimos aparecer no percurso Esta enumeração de condições soci-
da ética filosófica. A autonomia, quer ais implica na recusa de um conceito
dizer, o direito à liberdade, o respeito ao abstrato de saúde e na afirmação das
ser humano considerado como fim (que responsabilidades, em todos os níveis,
em Bioética recebe o nome de benefi- inerentes à consecução de um “esta-
cência) e a justiça, isto é, a eqüidade de do de saúde”, em conformidade com
todos os indivíduos inscritos no reino da a Declaração de Alma-Ata, que define
humanidade. Considerados como prin- a saúde como “estado de completo
cípios absolutos não se pode dizer que bem-estar físico, mental e social e não
qualquer um deles tenha sido plenamen- apenas a ausência de doença ou en-
te realizado em qualquer época ou cir- fermidade”, enfatizando o seu caráter
cunstância histórica. Ou são proposições de direito fundamental.
da ética filosófica ou são ideais presen- Assim, também, a ética da saúde
tes nas grandes transformações políticas, deve guiar-se por princípios concretos.
por exemplo, nas grandes revoluções da Isto significa que a preservação dos ide-
era moderna, que entretanto os traíram ais éticos propostos historicamente pe-
no próprio ato de tentar realizá-los, las filosofias implica menos na procla-
como ocorreu na Revolução America- mação de idéias do que no compromis-
na, na Revolução Francesa e na Re- so com a realização histórica de valores
volução Russa. Dir-se-ia que não es- que encarnem nas condições determina-
tão dentro das possibilidades humanas, das de situações sociais e políticas dife-
embora sejam o motor do progresso renciadas o direito de que todo ser hu-
civilizatório e das transformações his- mano deveria primordialmente usu-
35 tóricas. fruir. Este compromisso se fundamenta
principalmente no estado de carência de
grande parte da humanidade. Nesse sen-
tido, a atitude justificacionista, isto é, a
tentativa de simplesmente explicar e com-
preender as desigualdades que resultam
na carência da saúde, é profundamente
antiética, mesmo e sobretudo quando
assumida por filósofos e eticistas. É pre-
ciso conhecer a realidade e as situações
sobre as quais se vai exercer o juízo éti-
co; mas fazer com que este juízo traduza
uma mera justificação do que existe é
propriamente renunciar à ética.

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