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É tica e conhecimento
Elas aparecem quando tentamos,
por exemplo, fazer a distinção entre
ética e conhecimento. Podemos dizer
Quando pretendemos situar a éti- que quando descrevemos o mundo e
ca no contexto das dimensões culturais, procuramos compreendê-lo efetuamos
encontramos de pronto um primeiro pro- juízos que nos permitem assimilar a
blema. Como separá-la de outras mani- verdade dos fatos; para compreender
festações como, por exemplo, o conhe- estes fatos efetuamos outros juízos,
cimento e a religião? Será possível uma mais abstratos, acerca da ligação en-
separação tal que a ética se constitua tre eles e das razões que sustentam tais
como uma instância autônoma da cul- conexões. Conhecer as coisas é
tura, claramente definida na sua descrevê-las e apreender racionalmen-
especificidade? A relevância da ética nos te as relações que interligam os fenô-
leva naturalmente a assinalar para menos. Dizemos que aí encontram-se
ela um campo próprio, a partir do juízos porque se trata de uma ativida-
qual possamos reconhecer um modo de que inclui não apenas a mera des-
singular de existir, em primeiro lugar crição, mas julgamentos acerca da
característico do ser humano e, em validade e da necessidade das cone-
seguida, delimitado com nitidez en- xões que pouco a pouco vamos conhe-
tre as dimensões da existência. Po- cendo. São tais julgamentos que nos
demos partir deste pressuposto, mas permitem enunciar leis científicas. Es-
quando vamos entender concreta- tas não se encontram dadas simples-
mente esta separação e esta mente naquilo que percebemos, mas é
especificidade as dificuldades se mul- a partir do que percebemos e observa-
19 tiplicam. mos que nos julgamos autorizados a
formulá-las, atingindo assim conheci- da realidade como ela é, e a moral da
mentos que superam os fatos parti- realidade como ela deve ser. A ciência
culares, embora digam respeito a eles. elaboraria juízos de realidade e a mo-
Isto significa que a observação da re- ral juízos dependentes de
alidade com vistas ao conhecimento normatividade. Mas já vimos que a
nos leva a julgamentos acerca desta ciência atinge justamente os graus
própria realidade. É claro que quando mais elevados de conhecimento quan-
falamos em julgamentos, nesse senti- do apreende as regras de conexão res-
do, queremos dizer apenas que a ob- ponsáveis pela produção dos fenôme-
servação nos autoriza a avaliar de for- nos. Já Aristóteles reconhecia que o
ma mais ampla e mais geral o com- saber acerca das coisas inclui neces-
portamento dos fenômenos, o que nos sariamente o conhecimento das cau-
libera do particular e nos abre o vasto sas de seu aparecimento e de seu modo
horizonte da legislação da natureza: de ser. E as epistemologias modernas
sabemos não apenas como os fenôme- enfatizam a constância das relações
nos se comportam, mas também como causais como um dos mais importan-
eles devem se comportar, pois as leis tes requisitos de conhecimento. Reme-
gerais valem para todos os fenômenos ter desta maneira fatos a outros fatos
dentro das condições determinadas para apreender não apenas relações
pelos critérios da experiência. específicas mas a estrutura dos fenô-
É evidente que assim alcançamos menos já é, certamente, avaliar a na-
regras de generalidade e de universali- tureza, se não no sentido de qualificá-
dade que ultrapassam o mero plano la pelo menos na tentativa de compre-
dos fatos estritamente considerados. ender na maior generalidade possível
Atribuímos à natureza um grau de ne- a trama tecida pelos fatos.
cessidade que nenhuma observação É preciso lembrar, ainda, que al-
particular poderia em si mesma justi- gumas teorias do conhecimento da
ficar. E quando representamos a natu- antiguidade – como a de Aristóteles –
reza desta maneira, entendemos que e da modernidade – como a de Leibniz
possuimos acerca dela um conheci- – incluíam na compreensão desta tra-
mento muito superior àquele que nos ma não apenas a eficiência causal da
forneceria a percepção atomizada de produção fenomênica como também
fatos isolados. Julgamos que o conhe- a finalidade a que cada parte está sub-
cimento progride quando empregamos metida na arquitetônica da totalidade.
procedimentos intelectuais de ordena- Não bastaria entender como os fatos
ção, para por meio deles justamente se produzem, mas seria preciso com-
inferir a ordem dos fatos. preender a função de cada um no con-
Ora, uma das distinções que se junto e as razões da ordem esta-
costuma fazer para separar conheci- belecida. Embora muitas vezes
mento e moral é considerar que os criticada na história das epistemo-
juízos que a ciência emite estão na logias modernas, a causalidade fi-
ordem do ser e os juízos propriamente nal indica que o esforço de conheci-
morais na ordem do dever ser. Com mento solicita, como que natural-
isto, se quer dizer que a ciência trata mente, completar-se na formulação 20
das indagações relativas ao porquê dos coisas aparecessem como propícias ou
fenômenos descritos na estrutura da maléficas, extravasando poderes que
realidade. E certamente este tipo de interferiam na vida e nas ações huma-
resposta, se fosse possível, permitiria nas. Conhecer, neste caso, era também
um tipo de conhecimento que não se- saber como aproveitar o caráter bené-
ria somente mais abrangente, mas fico e propiciatório ou conjurar o mal
mais avaliativo, isto é, possibilitaria que as coisas poderiam causar. A ci-
julgamentos mais seguros acerca da ência eliminou esta valoração primei-
totalidade, pois nos faria ver – talvez ramente pelo conhecimento das cau-
com mais clareza – o sentido das par- sas materiais que regem o comporta-
tes e do todo, a razão da posição de mento dos seres naturais e, em segun-
cada elemento na articulação geral e do lugar, estabelecendo leis gerais e ne-
o modo pelo qual convergem, na cessárias que nos permitem prever este
sintonia e na diferença. Não se pode- comportamento para, desta forma,
ria dizer a partir daí que inferiríamos, dominá-lo. O mundo deixa de ser enig-
ao menos parcialmente, algo como as ma quando o conhecimento se torna
normas que governam o real tanto no sinônimo de determinação necessária.
sentido do ser quanto no sentido do
dever ser?
E, contudo, estaríamos ainda no
plano dos juízos de realidade, no sen- C ritérios éticos
tido em que os entendemos quando
dizemos que a ciência os produz para Quando pela primeira vez se ten-
descrever compreensivamente os seus tou ligar conhecimento e ética, o pro-
objetos, articulando as percepções e blema que surgiu foi justamente o da
sistematizando a experiência. Mas tal- determinação necessária, isto é, a di-
vez não fiquemos apenas nisto. Por um ficuldade de estabelecer parâmetros de
misto de ingenuidade e pretensão, necessidade para as ações e, princi-
muitas vezes emitimos juízos que qua- palmente, para os critérios pelos quais
lificam a realidade. Dizemos não ape- conferimos às ações este ou aquele
nas que as coisas são desta ou daque- valor. É possível estabelecer condições
la maneira, mas também que é bom gerais e necessárias a partir das quais
que sejam assim, ou que é mau, ou que possamos determinar o valor ético das
poderiam ser de outra maneira. Talvez, ações? Aristóteles pensava que não.
de maneira implícita, isto ocorra sem- Aquele que julga eticamente não o faz
pre, sendo impossível olhar as coisas a partir das mesmas condições daquele
sem atribuir a elas um valor, embora a que conhece os objetos físicos. Aquele
disciplina da atitude científica nos leve que age moralmente não o faz da mes-
a recalcar este modo de julgamento. ma maneira pela qual avalia a causa-
Talvez persista na mentalidade do sen- lidade necessariamente presente na li-
so comum, e naquilo que o cientista gação entre os fenômenos. Isto ocorre
tem de homem comum, algo do porque o universo das ações humanas
animismo da relação primitiva com o não é regido pela necessidade. O co-
21 mundo, que fazia com que todas as nhecimento eventualmente presente na
esfera da moral pode, portanto, não ser certo em moral da mesma forma que
também necessário. É conhecida a in- chego à conclusão de um teorema.
terrogação socrática acerca da possi- E no entanto existe o Bem, assim
bilidade de se ensinar a virtude. Ensi- como existe a Verdade. São critérios
nar alguma coisa supõe saber com que em última instância servem de prin-
certeza o que esta coisa é para poder cípios para tudo que é bom e para tudo
transmiti-la com clareza àquele que vai que é verdadeiro. Mas não se passa do
aprender. O homem de bem sabe com Bem ao bom da mesma forma que se
absoluta segurança teórica o que é o passa da Verdade ao verdadeiro. Me-
Bem? A prática do bem supõe este lhor dizendo: não encontramos o Bem
saber? É possível saber, ensinar e na contingência dos fatos humanos da
aprender em moral como sabemos, mesma forma que encontramos a Ver-
aprendemos e ensinamos geometria? dade refletida na demonstração das
A resposta é não, e a razão disto conexões necessárias da ciência. En-
é a diferença que existe entre conheci- tre o que é necessário e o que é contin-
mento teórico e conhecimento prático. gente a diferença está na impossibili-
O conhecimento teórico se constitui dade de demonstração; daí a aparen-
como saber acerca do que é necessá- te relatividade das coisas humanas e
rio. O conhecimento prático se consti- do que se pode conhecer acerca de-
tui como saber acerca do que é con- las. A Política, assim como a Ética,
tingente. O saber das coisas humanas participa deste caráter. Mas isto não
pertence a este segundo tipo. Daí as significa um relativismo total, que re-
dificuldades e as oscilações que carac- sultaria na impossibilidade de critéri-
terizam os juízos morais. Daí a inter- os que não fossem puramente circuns-
ferência, nestes juízos, de fatores que tanciais e subjetivos. A dificuldade da
no conhecimento teórico têm pouca ou Ética consiste justamente em introdu-
nenhuma influência. Por que nos jul- zir normatividade na contingência,
gamentos que envolvem decisões mo- pois está fora de dúvida que quem age
rais as pessoas são sensíveis à persu- moralmente o faz a partir de normas
asão derivada da eloqüência e da ha- que não são apenas relativas à pessoa
bilidade retórica daquele que defende e ao momento.
determinada causa? Por que a influ- Dizer que as coisas humanas são
ência das emoções nestes casos pode relativas é o mesmo que compará-las
ser determinante? – e os advogados sa- a um absoluto que as transcende. Este
bem muito bem utilizar isto, já que se absoluto nunca se fará presente no
exercitam em influir nas emoções da- universo das ações, de maneira dire-
queles que vão dar o veredicto. É por- ta, mas constituirá sempre uma refe-
que nestes assuntos não é possível a rência, pois agir bem significa realizar
demonstração, ao menos no mesmo o bem no plano da contingência, isto
sentido em que ela pode ser efetuada é, agir em vista de um Bem que trans-
nas ciências teóricas. O bem e o mal cende a desordem humana. O fato de
não aparecem com a mesma imediatez que não existem regras teóricas para
e o mesmo caráter coercitivo da ver- isto não afasta inteiramente a ação do
dade e do erro; não chego ao que é conhecimento do Bem. Podemos dizer 22
que quem age moralmente conhece de com um perfil absolutamente próprio.
certa maneira o Bem, pois o traduz, Também a praxis humana ganha, as-
por assim dizer, na particularidade de sim, um estatuto específico, já que é
sua conduta. A extraordinária dificul- definida não apenas em relação aos
dade que a Ética tem que superar é o objetos da ciência teórica, como algu-
reconhecimento das mediações que se ma coisa menor ou mais pobre, mas
interpõem entre o Bem absoluto e as como um domínio singular, afetado por
ações particulares e contingentes. Nes- extrema complexidade, sendo a con-
ta mediação está contido o tingência de que se reveste um sinal
discernimento, que é a distinção entre desta singularidade complexa. Esta
o bem e o mal sem qualquer regra teó- diferença de objeto e de procedimento
rica de identificação. Pois as ações enfatiza de alguma maneira as proprie-
humanas acontecem sempre numa dades singulares do universo humano,
confluência complexa de circunstânci- mostrando que ele é diferente do mun-
as, no meio das quais é preciso do natural, muito embora o homem
discernir o modo correto de agir. É sá- esteja, por muitos outros aspectos, in-
bio aquele que possui este serido na natureza. O que distingue
discernimento. Trata-se de um saber assim tão fortemente o universo huma-
bem diferente do saber teórico, pois no do mundo natural é o valor, e por
consiste essencialmente em discernir o isto a Ética é o domínio dos juízos de
verdadeiro em meio à contingência, valor.
que não é a ordem ideal das conexões Isto nos leva ao problema da ori-
necessárias da ciência. gem e da especificidade destes juízos.
Em geral, pode-se dizer que um juízo é
sempre a subordinação de um parti-
T eoria e prática
cular a um universal. Quando dizemos
que a água é uma substância, estamos
referindo um elemento particular do
É a este saber que denominamos mundo físico a uma categoria que,
prático. Não significa que ele seja uma enquanto conceito geral, subordina o
aplicação da teoria, mas sim um ou- particular e o define. O mesmo se po-
tro saber que versa sobre um objeto deria também dizer da subordinação
específico: a ação. Esta separação en- da espécie ao gênero (o cavalo é um
tre o teórico e o prático pode dar a animal). Tais relações servem para or-
entender que a Ética está irremedia- denar o real e agrupar os objetos par-
velmente relegada a um grau menor de ticulares, ressaltando a estrutura e o
certeza, sendo portanto um tipo de sa- teor sistemático do conhecimento. É
ber inferior. Na verdade, esta distinção possível notar que os conceitos gerais
faz aparecer a autonomia e a subordinam particulares empíricos,
especificidade da Ética. Pois justamen- mas relações do mesmo tipo podem ser
te mostra que ela não é uma teoria de estabelecidas entre entes abstratos, na
segundo grau, uma ciência incomple- matemática e na lógica, como quan-
ta ou um tipo de certeza flutuante. Tra- do dizemos que seis é um número par
23 ta-se de um saber de outra natureza, ou que a substância é uma categoria.
A questão é saber se há um procedi- impediria que a afirmação da generosi-
mento rigorosamente paralelo quando dade de Pedro tivesse um caráter
dizemos que Pedro é generoso ou que teórico. O que faz com que Pedro seja
a pobreza é uma forma de opressão, generoso passa por uma incrível com-
ou que a mentira é um vício. plexidade de fatores, entre os quais
Para que um juízo seja coerente, está um que é particularmente impor-
deve haver concordância entre os ter- tante para avaliarmos o significado do
mos empregados. Esta concordância que atribuímos a Pedro. Este fator é a
aparece na visão da compatibilidade vontade. Ainda que esta vontade este-
entre o sujeito e o predicado, para to- ja mesclada com mil outros fatores, tais
marmos o juízo na sua forma mais sim- como a educação e a influência do
ples. Assim, quando dizemos que a meio, os interesses de Pedro e o con-
água é uma substância ou que o ca- texto das suas ações, há sempre um
valo é um animal, a relação de subor- nível em que a atribuição do predicado
dinação está corretamente estabe- moral supõe que o sujeito quis possuí-
lecida porque, nestes casos, há uma lo, decidiu algo a respeito de si, optou
relação necessária entre os termos, o por uma determinada maneira de agir
que faz com que o juízo exprima um e de posicionar-se diante de si e dos
conhecimento. Aquele elemento que outros. Ainda que a vontade esteja
liga cavalo a animal ou água à subs- mais ou menos determinada por múl-
tância é de tal ordem que não permite tiplos fatores, ela se exerce, e o sujeito
a afirmação contrária como expressão projeta-se diante de si mesmo de uma
de conhecimento. É fácil notar que esta certa maneira, a qual depende das es-
relação de necessidade não existe en- colhas que faz. É este elemento, não
tre os termos da proposição Pedro é submetido a uma necessidade estrita,
generoso. Certamente, podemos dizer que confere à generosidade de Pedro
que quando a formulamos exprimimos o caráter moral atribuído a este
que o indivíduo Pedro pode ser incluí- predicado. Suponhamos que Pedro fos-
do no conjunto dos indivíduos gene- se um ser estritamente determinado a
rosos; mas isto não corresponde exa- agir generosamente, da mesma forma
tamente à inclusão do cavalo no con- que os corpos pesados estão determi-
junto dos animais. Pois o que faz com nados a cair se algo não os sustenta.
que Pedro seja generoso é diverso da- Não haveria, neste caso, moralidade na
quilo que faz com que o cavalo seja generosidade de Pedro – moralidade
um animal. Não podemos entender supõe vontade e escolha.
que cavalo não seja animal, mas po- Mas supõe, então, da mesma
demos entender que Pedro eventual- maneira, que possamos apontar o ser
mente fosse mesquinho, ao invés de que é capaz de escolher a partir da
generoso. Isto significa que não é ne- vontade, isto é, o ser não submetido
cessário que Pedro seja generoso, da à necessidade. A tendência a respon-
mesma forma que é necessário que o der imediatamente que os seres hu-
cavalo seja um animal. manos são dotados de tal capaci-
O que liga Pedro à generosidade, dade não é, de maneira alguma,
não sendo da ordem da necessidade, tão óbvia quanto se poderia pensar. 24
O homem não é um ser que se defi-
na apenas por um aspecto. A expres- A questão dos fundamentos
da ética
são animal racional, a mais antiga
definição teórica do homem, mostra
por si mesma a dualidade de aspec- Assim como os juízos acerca de
tos. Enquanto animal, o homem tem fatos, os juízos de valor também se re-
algo que o vincula aos seres puramen- metem à generalidade. Quando dize-
te naturais. Enquanto racional, tem mos que Pedro é generoso, e ainda o
algo que o distingue. Se permanece- admiramos por isto, o que queremos
mos no âmbito da sensação e da per- dizer é que Pedro adota, como diretriz
cepção, estamos falando de modali- de suas ações, um valor dotado de su-
dades de representação que, embo- perioridade em relação aos indivíduos
ra eventualmente mais aperfeiçoadas particulares. Ainda mais: assim fazen-
no homem, não diferem essencial- do, Pedro se coloca como um exemplo
mente do que acontece no caso dos da possibilidade de as ações humanas
animais, que são capazes não ape- particulares encarnarem valores gerais
nas de sentir e perceber como tam- que as transcendem. Quando julgamos
bém de estabelecer relações de con- Pedro por sua generosidade, estamos
secução, como o cão que foge quan- implicitamente entendendo que o
do seu dono pega um bastão, se aca- mundo seria melhor se todos fossem
so aconteceu de já ter sido espanca- como ele. Pois se todos os valores re-
do. No entanto, apenas o homem metem ao Bem, aquele cujas ações
pode emitir juízos, isto é, relacionar encarnam algum valor está contribu-
um caso particular com uma idéia indo para a realização do Bem no
geral, por definição não imediata- mundo humano. Pedro seria aquele
mente presente na situação empírica sábio, de que se falou antes, que sabe
dada. A origem destas idéias gerais, como situar-se no mundo, discernindo
mesmo no que se refere ao mundo entre o bem e o mal, e escolhendo
natural, é problema que foi resolvido a partir deste conhecimento práti-
de diversas formas na história do pen- co – que seria algo como um senso
samento. Mesmo assim não há como moral. O sentido da apreensão de
explicar o juízo sem este tipo de valores é um saber prático, que
vinculação. A questão que se coloca muitos filósofos chamaram de sa-
no caso da Ética é: a que espécie de bedoria.
generalidade vinculamos o particular Não se adquire a sabedoria da
quando formulamos juízos morais? mesma forma como se adquire o sa-
Como já sabemos que na Ética for- ber teórico. Por vezes se concebeu que
mulamos juízos de valor, responderí- as duas coisas se opõem. No início do
amos que é a valores que remete- Cristianismo, São Paulo opõe a ciên-
mos os termos dos juízos morais. cia mundana, fruto do orgulho da ra-
E dizendo isto abrimos uma outra zão, à sabedoria da cruz, fruto da hu-
questão, que é a da generalidade mildade. Por isto, a sabedoria cristã
dos valores e do fundamento desta aparece como loucura para os não-
25 universalidade. cristãos. Santo Agostinho, em perspec-
tiva semelhante, difere ciência de sa- na Ética. A moral propriamente cristã
piência para mostrar que a atitude te- vê esta autonomia da vontade como
órica, mesmo que atinja alturas ele- subordinação a Deus, entendida como
vadas de contemplação da verdade, livre aceitação da condição de criatu-
como aconteceu com alguns filósofos ra e dos desígnios de Deus. A
gregos, não permite a posse e a fruição modernidade vai entender a autono-
do objeto mais desejado em termos de mia como autonomia da razão, e isto
um saber absoluto, que seria Deus. Pelo certamente repercutirá nas teorias éti-
contrário, a aceitação da fé e do mis- cas. Mesmo assumindo a finitude e as
tério da mediação de Cristo na rela- limitações humanas, Descartes, no sé-
ção com Deus é que possibilitaria pos- culo XVII, não admitirá como critério
suir a verdade. A hierarquia que o Cris- de verdade em qualquer âmbito senão
tianismo estabelece entre a alma e o a demonstração racional. A autonomia
mundo redunda numa separação das da razão consuma assim a sua sepa-
duas instâncias, o que não ocorria ração da natureza. Esta é menos a to-
entre os gregos, para quem o homem talidade na qual o homem está inseri-
e sua alma eram parte do mundo. A do e muito mais algo que ele deve do-
separação cristã, propondo o despre- minar para seu proveito através do
zo pelas coisas do mundo, concebe a poder que lhe confere o pensamento,
alma como peregrina, isto é, como não traduzido nos procedimentos racionais
integrada ao cosmos no qual ela pro- da ciência e da técnica. Por isto, a no-
visoriamente se encontra, já que o seu ção cristã de sabedoria é modificada:
destino deve se realizar em outra di- considera-se agora que sabedoria é a
mensão. O homem estaria sozinho na perfeita integração da teoria e da prá-
imensidão do universo, não fôra o con- tica com a finalidade de conseguir para
tato com Deus, e por isto Deus deve o homem a felicidade, isto é, o gozo
ser o único objeto de aspiração. Isto dos bens que podem advir do saber e
significa que nada, a não ser Deus, do domínio racional da natureza. Esta
determina como a alma deve agir no perfeita integração, numa perpectiva
itinerário de purificação moral. Deter- racionalista, se transforma rapidamen-
minar-se por qualquer objeto sensível te numa subordinação da prática à
ou natural é renunciar à condição so- teoria, na medida em que se concebe
brenatural que constitui a natureza da uma continuidade entre a ciência e a
alma. Portanto, somente valores sobre- tecnologia. Neste império da razão, a
naturais são dignos de orientar o homem; ética só pode ser concebida a partir
tomar qualquer outro objeto como de uma perspectiva teórica e
valor ou como critério de ação é re- racionalista. Este é o motivo pelo qual
baixar a alma. Com isto, a solidão e o a moral aparece em Descartes como
estranhamento da alma num mundo a um ramo do saber que depende, para
que ela não pertence tornam-se ocasião a sua constituição, das ciências mais
para a afirmação da autonomia, isto é, fundamentais que a precederiam,
a liberdade da alma perante as coisas. como a metafísica, a física e a mate-
Assim como a vontade, a auto- mática. De direito não haveria dife-
nomia constitui também noção central rença, a não ser em termos de grau 26
hierárquico, entre a moral e as outras ente mas talvez confinada a um domí-
ciências. nio restrito?
Assim se perde aquela diferença A afirmação da autonomia racio-
entre o teórico e o prático, estabelecida nal constitui o que ficou conhecido na
por Aristóteles. O prático passa a ser história por Iluminismo. Kant o define
concebido como o domínio de aplica- como a maioridade do gênero humano,
ção do teórico, maneira como ainda isto é, a capacidade de utilização plena
hoje o entendemos. As conseqüências da razão, sem a submissão a dogmas
desta mudança são de largo alcance. ou a autoridades; portanto, o exercício
O que aí se afirma é a unidade de uma maduro da liberdade. Mas como definir
racionalidade que doravante deve go- a liberdade? Se analisarmos o que ocor-
vernar todas as instâncias do mundo re na ciência, verificaremos que a
humano. Esta racionalidade tem um racionalidade da experiência consiste
paradigma e uma finalidade. O justamente em compreender a necessi-
paradigma é a exatidão do saber ma- dade que, a partir de princípios lógicos
temático, que a razão clássica consi- do entendimento, governa a natureza.
dera como critério por excelência de Isto significa que no âmbito da experi-
conhecimento e de obtenção de certe- ência de conhecimento, que é o domí-
za. A finalidade é o domínio racional nio da razão teórica, não se pode falar
que se traduzirá concretamente na su- em liberdade pois tudo a que temos
bordinação da natureza às necessida- acesso é a uma conexão de fenômenos
des humanas e na expansão da técni- logicamente sistematizada, mas carac-
ca como extensão da ciência, que deve terizada justamente pela insepara-
realizar praticamente o domínio do bilidade de causa e efeito, condição e
homem sobre o mundo. A prerrogati- condicionado. Sempre haverá, na ordem
va do sujeito intelectual que desta ma- da experiência, que é a ordem da teoria,
neira se estabelece contribuirá para fenômenos condicionados, por mais lon-
obscurecer a especificidade da praxis, ge que formos na cadeia dos eventos
já que esta deve forçosamente se sub- naturais. Isto faz parte do determinismo
meter aos critérios da racionalidade da natureza e é o que possibilita a ciên-
técnica. De modo que a predominân- cia, no rigor das suas explicações. As-
cia de uma perspectiva em princípio sim, a liberdade terá que ser procurada
humanista, posto que afirmadora da fora do campo da experiência e da ra-
autonomia da razão, traz consigo esta zão teórica. Kant institui, então, o domí-
ambigüidade, ou pelo menos esta nio da razão prática em que é possível
questão: terá a racionalidade técnica pensar a liberdade e reivindicá-la para
alcance suficiente para cobrir todos os o sujeito moral, mas nunca para um
aspectos da vida humana, sobretudo objeto natural. Esta separação permite
os aspectos éticos? Submeter a totali- que se fale como que de dois mundos:
dade do mundo e a totalidade da vida um em que as coisas estão estritamente
a tais critérios não implicaria em re- determinadas, pois não existe efeito sem
duzir o mundo humano à perspectiva causa; outro em que o sujeito moral, no
decorrente dos princípios metafísicos plano das decisões éticas que nada tem
27 e metódicos de uma razão auto-sufici- a ver com o plano dos eventos empíricos,
pode escolher e optar, atuando assim do inteligível no qual a pura
como causa livre, isto é, como aquele racionalidade da norma universal ga-
tipo de causa que nunca se encontra no rante a moralidade do ato. Por isto o
universo dos fenômenos. Com isto as próprio Kant nos diz que, dentro de tais
ações humanas podem ser remetidas à parâmetros, jamais houve um só ato
liberdade do sujeito, quer dizer, a algo moral praticado pela humanidade.
que não atua determinadamente, mas Porém isto não o impede de formular
que pode iniciar absolutamente uma sé- o que o ato moral deve ser, na coerên-
rie de ações. cia lógica que teria de caracterizá-lo,
A esta liberdade corresponde a independentemente das condições con-
autonomia de que deve ser dotado o cretas de realização.
sujeito nas suas decisões morais, au-
tonomia que para Kant deve ser abso-
luta, ou seja, nenhum motivo de qual-
quer ordem pode interferir na decisão F undamento e experiência
moral
do sujeito, sob pena de contaminar a
vontade com elementos que a tornari-
am dependente de outra coisa que não O que sobretudo impressiona nes-
ela mesma. Mas, então, qual o critério ta concepção formalista da moral é a
para a decisão moral, se absolutamente separação drástica entre os planos do
nada pode interferir? O critério é a for- ser e o do dever ser. Não se trata ape-
ma da universalidade que deve orien- nas de separar o conhecimento teóri-
tar a ação. Somente a forma atinge a co ou científico da moral, mas de se-
pureza que o ato moral deve revestir. parar todos os aspectos da vida con-
Qualquer conteúdo, por mais geral que creta da realização ética. Independen-
seja, constituirá uma motivação te da apreciação que possamos fazer
extrínseca e comprometerá a autono- da teoria kantiana, o importante é per-
mia do ato moral. Quando estamos guntar o que isto significa no processo
diante de uma decisão moral devemos histórico da civilização moderna. No
perguntar: o que ocorreria se esta ação limiar da contemporaneidade, numa
fosse adotada universalmente? Deve- época em que a ciência calcada no
mos agir como se o critério de nossa modelo newtoniano alcança a plenitu-
ação devesse estender-se universal- de de suas possibilidades, o homem é
mente. Qualquer ato que não seja sus- separado como que em dois sujeitos:
ceptível de universalização se o teórico, que realiza o ideal de certe-
autocontradiz em termos morais. O que za absoluta no interior dos limites do
se percebe é o esforço de Kant para conhecimento científico, e o moral, que
encontrar o critério universal que de- para compreender-se na esfera de sua
veria pautar o juízo moral. A liberdade é obrigado a colocar esta li-
radicalidade com que ele concebe este berdade numa altura transcendental
critério o faz encontrá-lo somente na em que ela se situa distante do plano
esfera do formal. Assim, o que Kant da experiência. Talvez possamos ver
chama de prático não corresponde à nesta solução a que chega a filosofia
esfera da contingência, mas a um mun- crítica uma espécie de consolidação 28
do caminho tomado pela moder- trabalhavam de maneira pacífica. O
nidade. O que Kant percebe é que, na Existencialismo é seguramente a cor-
continuidade do teor unitário da rente de pensamento em que estes pro-
racionalidade, instituído por Descar- blemas apareceram de forma mais
tes, não seria possível dar conta da aguda. Pois nele, pela primeira vez, a
moral pois a racionalidade científica liberdade é vista como o exercício do-
não atinge o plano dos requisitos do loroso da constante invenção de si
ato moral, autonomia e liberdade. Isto mesma. Nas teorias clássicas, a liber-
o levou a conceber uma outra esfera dade aparece como uma sábia confor-
de racionalidade na qual os critérios mação à necessidade. Existe um Deus,
de determinação teórica não teriam existe um mundo transcendente de
vigência. E com isto separou o conhe- valores, existe uma teleologia históri-
cimento da ação, ao menos naquilo ca, existem referências que dão senti-
que a ação comporta de decisão mo- do ao mundo e aos homens. Claro,
ral. Podemos medir o alcance deste existe a insensatez, o erro, o pecado, a
acontecimento lembrando que, no caso desordem, a contingência, enfim, mas
do saber prático preconizado por tudo isto tem causas e explicações que
Aristóteles, o sujeito discernia no seio são fornecidas pela razão e mesmo pela
da contingência o meio de realizar a fé. Há uma ordem previamente dada.
ação que guardasse alguma correspon- Quando me insiro nela de maneira
dência com o Bem absoluto. Em Kant harmônica, sintonizo com o universo
este é um princípio formal, que a ra- e com os seus princípios. Quando se
zão pensa de maneira isolada do mun- torna mais difícil descobrir esta ori-
do concreto, que vai decidir acerca da gem e esta finalidade, como em Kant,
moralidade, isto é , da conformidade tenho ainda o recurso da forma, que
da ação à moral. Isto significa a tenta- é também um princípio a que posso
tiva de vincular a universalidade for- tentar conformar minhas ações.
mal à ação. Ora, o mundo da contin- Quando não me ponho em sintonia
gência se distingue de um universo com a totalidade, não é de todo mi-
logicamente necessário como o da nha culpa, é antes algo derivado da
ciência exatamente devido à impossi- finitude que afeta irremediavelmente
bilidade desta vinculação. Por isto a o ser humano. Enfim, há essência,
moralidade kantiana acaba sendo que posso realizar de maneira mais
muito mais um ideal de que devemos ou menos completa, mas que consti-
nos aproximar do que um critério de tui referência prévia à minha exis-
discernimento para a experiência mo- tência. Mesmo quando sinto o uni-
ral concreta. verso imenso e estranho, e Deus
A época contemporânea sentiu afastado, posso contar ainda com
mais de perto o impacto da experiên- a esperança.
cia moral concreta. Talvez a drama- Mas quando não há mais Deus
ticidade da história deste século tenha nem valores transcendentes, quando
manifestado de forma mais intensa não há um plano a realizar, que sen-
certas contradições entre elementos da tido atribuir às contradições, à de-
29 ação moral, com que antes as teorias sordem dentro e fora do homem, e à
miséria histórica? O Existencialismo mais como essência, mas como proje-
coloca da maneira mais crua a ques- to. Mas há uma outra vertente que faz
tão da imanência, isto é, nada existe da exterioridade a matriz do pensamen-
acima do humano com que o homem to ético, e nesta linha estão as éticas
possa contar para ordenar o seu mun- utilitaristas. Partem, por exemplo, de
do e para orientar as suas ações. É uma concepção da evolução dos con-
apenas diante de si mesmo que ele ceitos éticos para estabelecer a origem
deverá construir seus critérios e suas prática e utilitária destes conceitos. O
justificações. A liberdade não é uma bom teria sido, na origem, o útil, isto
forma de Deus testar o homem, é a é, a ação benéfica para o indivíduo e,
forma de o homem existir, é o dado principalmente, para o grupo. Má se-
primeiro, não há critérios anteriores de ria a ação prejudicial. Com o passar
como utilizá-la, ela se faz na continui- do tempo e com o progresso da civili-
dade dos atos que a exprimem, cada zação esta utilidade imediata deixou
vez que o homem se projeta na cons- de aparecer claramente como critério,
trução de si mesmo. A liberdade é um mas se manteve a distinção, que foi aos
fardo, como foi o destino para o ho- poucos tornada abstrata e resultou nos
mem antigo. É isto o que significa di- valores Bem e Mal. Esta posição pro-
zer que a existência vem antes da es- cura buscar a origem dos valores por
sência e que o homem está condena- meio de uma reflexão histórica e psi-
do a ser livre. A história da humanida- cológica acerca da evolução da huma-
de e a história de minha vida me colo- nidade, e utiliza critérios de uma lógi-
cam diante de opções. Como enfrentá- ca imanente ao desenvolvimento das
las sem critérios absolutos de necessidades humanas. Em última ins-
discernimento e de escolha? Tenho de tância, seria a sobrevivência do grupo
inventar, para cada ato, o valor a par- a origem dos valores, que são então
tir do qual eu o escolho, não encontro estabelecidos para manter obrigações
este valor, ainda que outro mo apre- morais que assegurem a sociabilida-
sente, tenho que torná-lo meu. Cada de, a cooperação e a coesão necessá-
um é aquilo que se torna, aquilo que rias à estabilidade da sociedade. Nes-
faz de si em cada momento da exis- ta vertente, a liberdade importa menos
tência. Uma ética com um único crité- do que a adaptação do indivíduo a
rio, que se confunde com um dado esquemas de conduta que ele já encon-
irredutível de realidade: a liberdade. tra prontos e aos quais é coagido a
Assumi-la é lucidez e autenticidade; aceitar. A relatividade cultural dos va-
negá-la é má-fé. lores aparece, assim, de forma mais
O Existencialismo está na verten- nítida, pois é a perspectiva históri-
te das éticas que partem de uma pro- co-sociológica que procura dar con-
funda meditação acerca da situação ta do estabelecimento e das mudan-
humana, tal como a reflexão a apre- ças dos critérios morais. Existe uma
senta. Procura então uma maneira de racionalidade na prescrição dos valo-
proporcionar o encontro do homem res, mas ela está a serviço da coesão
consigo próprio e com a história a par- social. Trata-se de uma figura da
tir da consciência, entendida agora não racionalidade técnica que se estrutura 30
por parâmetros exclusivamente utilitá- progresso da razão gerou novas formas
rios. de dominação ideológica, que se mani-
festam nos campos social, político, eco-
nômico e que somente são possíveis num
Bibliografia
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