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Origens

A origem das marionetas não é clara, e é objecto de discussão entre estu-


diosos e historiadores. A acção imprimida a um boneco com apenas uma arti-
culação, e que assim se transforma em algo que não estava previsto, pode ser
entendida como o primeiro espectáculo com marionetas. Tal pode ser o caso
de uma brincadeira de criança ou da adoração a um Deus.
A religião, como no teatro de actores da tragédia grega, terá contribuído
bastante para a formação e o desenvolvimento das marionetas. Os Egípcios
faziam procissões com falos gigantes movidos por cordas, havendo deuses que
mexiam a cabeça e os membros através de fios ou varas.
Sabemos que na índia as marionetas eram usadas em cerimonias religio-
sas há, pelo menos, 4000 anos. No teatro sânscrito indiano, o protagonista
chama-se Sutradhara, que significa «aquele que detém os fios», o que, apesar
de não ser uma evidência, atesta uma ligação clara ao mundo da manipulação.
Na Grécia, julga-se que as marionetas remontam a 800 a.C, embora
existam testemunhos de ser prática popular só por volta do séc. IV a.C. Eram
manipuladas com fios: a palavra grega para marioneta é neurospastos, e neu-
ron significa fio ou corda. Por outro lado, o facto de koree ser simultanea-
mente uma manga comprida e uma pequena estatueta, fornece pistas para a
existência de marionetas de luva.

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LUOO-6|SIU! WOJJ jeuueosLUBo Aq pejaiauen
168 MANUAL DE TLAIKU

• , ereeo do séc. II, na sua obra Deipnosophists, refere o


• J r " n X ° c o n h e c i d o , Potheinos, a propósito de um espectáculo

n T^tro Dioniso, em Atenas,


no leatro L/ influenciadas pelos mimos doncos e pelas
As marionetas gregas sao
Hias de Phlyax, manifestações teatrais formadoras de personagens-tipo
C
° m e s tornavam populares. O universo simbólico dos mimos e das máscaras
orlta-se facilmente a ser adaptado às marionetas, que por vezes desempe-
nham um papel importante na divulgação e preservação das tradições popu-
lares George Speaight (v. Bibl.) chega a afirmar que ao longo da História elas
têm servido de elo de ligação entre as formas teatrais que decaem e as novas
que se instauram, transportando referências que anos ou séculos mais tarde
são repescadas, e que de outro modo se perderiam para sempre.
Quando cai o Império romano, no séc. V, há uma tradição de manifes-
tações teatrais e parateatrais (influenciadas também pelas farsas atelanas,
como os mimos, jograis e bobos) que se mantém até ao drama religioso da
Idade Média. Nesta altura, marionetistas ambulantes percorriam toda a
Europa e os bonecos eram usados para ilustrar as Escrituras e figurar em pre-
sépios animados.
No fim do séc. XIV surge uma nova forma teatral, a Commedia deWArte.
Não é clara a sua relação com as comédias antigas, mas ambas apresentam
fortes semelhanças. Deste novo gênero e da sua galeria de personagens tru-
culentos e histriónicos como o Arlechino, Pantalone e // Dottore (entre
outros), nasce uma das mais importantes figuras do teatro de marionetas, o
Pulcinella. Fruto em grande parte do imaginário popular, aparece por volta
de 1600 em Nápoles, depressa se espalhando por toda a Europa e chegando
até aos nossos dias metamorfoseado nas mais variadas personagens, quase
sempre de cariz cômico. O gosto popular em qualquer parte do mundo ele-
geu as suas personagens próprias, que muitas vezes dão o nome a um tipo de
teatro marcadamente nacional: o Polichinelle (mais tarde Guignot) em França,
o Punch em Inglaterra, Don Cristóbal em Espanha, Petrouchka na Rússia ou
o Dom Roberto em Portugal.

Materiais e técnicas

do ser misturaT" 1 ^ 3 5 ^ " ^ C m a t e r i a i s P^ra construir marionetas, poden-


E«e capítulTé °" ^ " ^ ^ ^ m a " e i r a P a r t i c"lar por determinado artista.
apenas um breve levantamento das possibilidades clássicas c
170 MANUAL DE TEATRO

onde, o que nem sempre acontece, os materiais e a manipulação são clara-


mente identificáveis.
As marionetas são tradicionalmente esculpidas em madeira, que deve ser
macia para facilitar o trabalho do escultor e ao mesmo tempo leve para per-
mitir uma manipulação precisa e sem esforço. As árvores de fruto ou a tília c
o amieiro correspondem a estas características.
Esculpir em madeira é u m processo lento e que requer grande habilida-
de, daí que hoje em dia seja mais freqüente o uso de pasta de papel, poliesti-
reno ou a moldagem em barro e posterior tiragem em poliéster. Para efeitos
de elasticidade, temos a mousse de poliuretano ou a esponja, que pode ser
revestida com tecido ou látex.
As marionetas podem ser classificadas em quatro tipos básicos:
Marioneta de luva: vulgarmente conhecida como fantoche, tem as mãos
e a cabeça em madeira ou pasta de papel e o corpo em tecido. É manipulada
directamente pela mão (p. ex.: indicador e médio na cabeça, polegar na mão
esquerda, anelar e m i n d i n h o na mão direita). O marionetista esconde-se por
detrás de u m biombo ou torre, que normalmente tem a boca de cena deco-
rada. É u m gênero bastante popular, especialmente junto do público mais
jovem.
M a r i o n e t a de vara ou haste: é manipulada através de uma vara de
madeira ou arame que atravessa o corpo do boneco até à mão do marionetis-
ta; outras varas podem ser utilizadas para as mãos. Manipulada por baixo da
cena, os materiais em que é construída variam consoante o tipo de expressi-
vidade pretendida, p o d e n d o ser operada por mais de u m manipulador.
M a r i o n e t a de fios: feita normalmente em madeira, pode ser completa- ££
m e n t e articulada, assim leve maior quantidade de fios. O s fios são comanda- o
dos através de uma cruzeta, ligados às articulações ou a outros órgãos (boca, "c?5
olhos), permitindo uma manipulação bastante complexa e que por vezes se E
aproxima bastante dos movimentos h u m a n o s . o
M a r i o n e t a de sombras: figuras planas recortadas em cartão, tecido ou ^
. CD
materiais translúcidos c o m o o acetato (nas sombras indianas consegue-se este c
efeito com couro), p o d e n d o ser coloridas. Funcionam contra uma tela bran- £3
ca iluminada e são manipuladas por detrás da tela com arames, varas de CO
madeira ou fios. O
Cada tipo de marioneta não é melhor nem pior do que outro: cada um ^
tem as suas especificidades q u e devem ser aproveitadas mediante a direcção -o
dramatúrgica, o efeito pietórico ou o imaginário simbólico pretendido. cc
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C
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CD
^

MARIONETAS F. FANTCKHES 171

A marioneta no Mundo
\

Em alguns países, as marionetas são autênticas in,m..; -


. , , ,. «uicncicas instituições nacionais,
portadoras das mais antigas tradições ou veículo de arrojadas experiências
vanguardistas. Vamos aqui abordar alguns dos gêneros que, pela sua particu-
^ lar.dade, merecem u m olhar a partir d o país que lhes deu origem
^ N o O r i e n t e , o teatro de marionetas não vive separado do teatro de acto-
, res, sendo m e s m o considerado mais eficaz na possibilidade de criar magia e
de se envolver em clima de grande religiosidade.
O t e a t r o d e s o m b r a s i n d i a n o , de n o m e Wayang Kulit, tornou-se
popular a partir d o reinado de Vikramaditya (375-414). As sombras de
cartão ou c o u r o (perfurado e trabalhado a ponto de permitir a transparên-
cia) são desenhadas de perfil e manipuladas como se descreveu atrás.
Alguns destes teatros itinerantes representavam-se nas festas religiosas,
;
c o m o rituais de fertilidade da terra ou curas de doenças. O s manipulado-
í res recitam e c a n t a m , sob a luz tremula de lamparinas de óleo, ao longo de
1 espectáculos q u e d u r a m vários dias. O s temas são essencialmente religiosos
I e mitológicos, destinados a provocar emoção através da harmonia entre o
prazer estético e a intensidade d o drama épico, estado psicológico que tem
o n o m e d e rasa. As personagens são tipos e símbolos conhecidos do públi-
co e o marionetista tem sempre u m a margem para improvisar e inserir
temas actuais.
O teatro de marionetas de Osaka, no Japão, apareceu por volta de
1630. Mais c o n h e c i d o p o r teatro bunraku, devido ao trabalho de Vemura
Bunrakuken, q u e o popularizou na sua sala chamada Bunraku-za. Este O
ü
I teatro, m u s i c a d o pelo shamisen (instrumento de três cordas) tem um nar-
i rador q u e c o n t a a história e n q u a n t o a marioneta é operada por três mani-
| puladores (o mestre move a cabeça e a mão direita, o primeiro ajudante a
i mão esquerda e o s e g u n d o move os pés), técnica inventada pelo mestre
Yoshida B u n z a b u r o (?-1760) em 1730. O nome correcto deste drama é
(D
j Ningyo-Joruri, q u e teve n o d r a m a t u r g o Chikamatsu (1653-1724) o seu
expoente m á x i m o , e m peças que duravam dez a doze horas, do nascer ao g

pôr d o Sol. São-lhe atribuídos cerca de cento e setenta textos, disputando <£
' a preferência d o pübl.co c o m o mais popular gênero dramático japonês, o g

Kab
A E u r o p a d e Leste constitui u m caso único no panorama do teatro |
(D
( de marionetas m u n d i a l . Até ao séc. XX, a sua act.v.dade era esscnual- 4—•
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172 MANUAL DE TEATRO

t i r ^^ » nos temas regionais, mudando r*A;^ i


mente baseada nas tradições e nos cem*» & uuo radicalmen-
te com a conjuntura socialista. A primeira man.festação de mecenato esta-
tal ocorreu após a revolução russa de O u t u b r o de 1917, no segu i n i C n t o
das políticas revolucionárias de propaganda. O s temas deixaram de ser
apenas tradicionais para terem também conteúdos sociais e políticos, com
vista a formar as novas consciências. Mas o mais importante foram as pos-
sibilidades de experimentação que os novos teatros nacionais permitiam,
com salas próprias para representação e grandes estruturas técnicas e artís-
ticas que mudaram definitivamente a arte da marioneta. O Teatro
Nacional Drak (República Checa) dirigido por Jan Dvorak, o Teatro
Central de Moscovo de Serge Obraztsov (um dos mais famosos marione-
tistas de sempre) ou o Teatro Central de Praga, são apenas alguns dos
exemplos de companhias que fizeram escola pelas arrojadas propostas que
apresentavam, tanto pela inovação nos materiais, c o m o ao nível da mani-
pulação. Apenas como curiosidade, nos anos cinqüenta e sessenta conta-
vam-se às dezenas o número de teatros nacionais de marionetas: 190 na
URSS, 24 na Polônia, 21 na Romênia, 18 na Bulgária, entre outros que
não cabe aqui referir. A sua importância na vida cultural e na educação
levou a que em 1952 fosse criado o primeiro curso de marionetas na
Academia de Belas-Artes de Praga.
Na Europa Ocidental, entre 1550 e 1600, surgem em Itália as primei-
ras marionetas na tradição da Commedia delVArte. Alguns anos mais tarde,
em Nápoles, a personagem Pulcinella afirma-se definitivamente no imaginá-
rio popular italiano, concorrendo já no séc. XVIII com o teatro de actores,
devido à qualidade técnica e à excelência do seu repertório. São três os tipos o|
de marionetas desta altura: os burrattini, que são de luva, prestando-se mais
(/)
a crítica social e funcionando numa linguagem encriptada para fugir à cen- 4—»

c
sura; a marionette, de fios, destinada a um público aristocrata e burguês e os
puppi, bonecos com uma vara de ferro à cabeça e um fio numa mão ou joe- 2
lhos, típicos da Sicília e famosos pelos dramas de cavalaria como o Orlando fc
Furioso. c
í»ao os teatros itinerantes italianos que introduzem importantes figuras £
no resto da Europa. Chegaram a França no séc. XVII, onde mais tarde, em §
^808, o Pulcinella se transformou em Guignol pelas mãos de Laurent O
^ r g u e t . Pietro Gimonde, de Bolonha, introduz o Pulcinella em Inglaterra, £
an o origem ao Punch, que assim foi representado pela primeira vez em ffi
CoventCardena9deMaiodel662 %
c
CD
CD
MARIONETAS E FANTOCHES 173

\
* Portugal

É provável que as marionetas tenham sido introduzidas em Portugal por


companhias estrangeiras itinerantes, embora a documentação a esse nível seja
escassa.
No início do séc. XVIII, Lisboa dispunha apenas de dois teatros, o Pátio
das Arcas (fundado em 1591) e o Teatro da Mouraria, também conhecido
como Pátio da Bitesga, que desde 1594 se dedicava principalmente às comé-
dias de bonifrates (marionetas). É para este teatro que, em 1742, Afonso
Luiz, picheleiro de profissão, pede autorização para representar com os seus
títeres ao almoxarife do Real Hospital de Todos-os-Santos - regulador da
1
actividade teatral - por 2000 réis1. Os dois teatros desapareceram com o ter-
1 ramoto de 1755.
I Mas a mais importante figura da história da marioneta em Portugal é
| Antônio José da Silva, o Judeu. Nascido em 1705 no Brasil, vem para Lisboa
| em 1713, onde mais tarde vem a exercer advocacia. A sua actividade no
Teatro do Bairro Alto (ao cimo da Rua da Rosa, em Lisboa), desenvolve-se
j entre 1733 e 1738, altura em que faz representar as suas óperas «joco-sérias»
com bonecos. A primeira foi Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do
Gordo Sancho Pança, seguindo-se Esopaida, Os Encantos de Aíedeia, O
Anfitrião, entre outras. Infelizmente, pouco sabemos acerca das suas mario-
netas e da forma como eram manipuladas, embora seja certo o enorme
sucesso que as suas representações tinham junto do público lisboeta. O
Judeu é condenado à morte e «relaxado em carne na fogueira» a 18 de
Outubro de 1739, com a assistência de D. João V. As marionetas continua-
ram a representar-se no Teatro do Bairro Alto pelo menos até ao terramoto.
Frei Inácio Xavier do Couto, religioso da Ordem da Santíssima Trindade,
fez nesse teatro pelo menos duas óperas de sua autoria: Firmezas de Proteu
(em data desconhecida) e Endimião e Diana, em 1740, ambas provavel-
mente com bonecos.
Da fusão entre a tradição oitocentista européia dos teatros de presépio e
do teatro de títeres secular nascem, em meados do séc. XIX, os Bonecos de
Santo Aleixo. Oriundos da Vila de Santo Aleixo, em Estremoz, eram tam-
bém conhecidos como «Bonecos dos Wpromucenos» devido à família que os
animava, os Nepomucenos. Antónia Maria Nepomuceno é a mais antiga fan-

flnw
" " " " • « " " documento exposto no Museu da Marioneta, em 1 isboa.

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174 MANUAL DE TEATRO

tocheira portuguesa, que ficou com os bonecos depois de se separar


1940, do seu marido, Manuel Jaleca. Este, juntamente com um anti
empregado, de nome Antônio Talhinhas, continuaram a tradição dos bon
cos fazendo réplicas dos antigos, tradição que ia passando de pais para filhos
até Antônio Talhinhas, o actual Mestre Talhinhas (com a sua família), o últi-
mo titereiro de formação popular. Os Bonecos de Santo AJeixo foram entre-
gues ao Centro Cultural de Évora, que com eles representa até hoje, cm
1981. Os bonecos propriamente ditos são de cortiça pintada e têm roupas de
tecido, medem entre 20 a 40 centímetros, sendo manipulados com uma vara
de ferro à cabeça. Segundo Henrique Delgado2 : «Panos de chita com flores
escondem os manipuladores em número de cinco ou seis, que actuam em
cima de um pequeno estrado assente sobre estacas. Sobre elas saltitam as
marionetas.» Os bonecos mais pequenos são Adão e Eva, e os maiores são
Chanca e Mestre Salas que é o apresentador. Este possui uma moca que usa
para repor a ordem, espancando outras personagens em cenas de grande
comicidade que deleitam os espectadores, especialmente quando os espanca-
dos são figuras de peso na sociedade, como o Padre. O programa dos espec-
táculos consiste na apresentação de Autos Sacramentais, seguidos de uma
Farsa e concluindo com uma Dança.
Ao longo do nosso século, o teatro de marionetas tem-se mantido em
regular actividade, se bem que por vezes demasiado discreta. Há, no entanto,
alguns nomes a registar: o Teatro de Mestre Gil, fundado em Lisboa por
Augusto Santa Rita (1888-1955) em 1948, que com mais doze colaborado-
res se dedicava às marionetas de luva, acabando com a sua morte; o Teatro de
Dom Roberto, de Antônio Dias, que a partir de 1952 actua nas ruas c nas
praias com as suas marionetas de luva, essencialmente sobre temas tradicio-
nais portugueses; o Teatro de Branca Flor, fundado em 1958 por Lília da
Fonseca, que era responsável pelos textos, marionetas e manipulação, com
um conjunto de sete manipuladores. Existem documentos da sua actividade
no Teatro de S. Luiz, em Lisboa.
Um dos casos que merece particular destaque é a Companhia de Opera
Bufa, criada em 1973 por Helena Vaz e José Alberto Gil. Em 1975 muda o
nome para Marionetas de São Lourenço — Teatro de ópera, em conseque
cia de um projecto de itinerância por vilas e aldeias do interior do pais. A p
ticular técnica de manipulação, em que as mãos e os pés do boneco sao

2. In Alrundrc Pa**o*. Addfio, p <>'>


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—* 176 MANUAL DE TEATRO
D)
1—I-
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próprio marionetista/actor e a beleza surrealizante e expressionista dos bone-


O
D) cos, com a cabeça esculpida em terracota e o corpo em tecido, são a marca de
3
C/) originalidade desta companhia, uma das mais importantes no panorama das
O
D)
marionetas dos últimos anos. O s seus espectáculos pretendiam recriar o espí-
CD rito das óperas com bonecos de Antônio José da Silva, autor que era a base
do seu repertório. Segundo I lelena Vaz:
O
3 «Antônio José da Silva, ao considerar no seu teatro a
5'
i—i-
Ç/) marioneta como marioneta e não como actor, e ao
ò reconhecer-lhe, não as características de um estereóti-
o po (o boneco «bom» ou o «vilão», e t c ) , mas a com-
3
plexidade de um ser com todos os seus acessórios: psi-
cologia, sentimentos, dúvidas, e t c , antecipou-se 200
anos sobre a maneira de olhar a marioneta e prenun-
ciou o lugar e importância que lhe são devidas.'»

As Marionetas de São Lourenço, depois da sua extinção, têm o espólio


exposto no Museu da Marioneta, em Lisboa, museu dirigido por Helena Vaz.
No presente, as companhias mais visíveis são A Tarumba, dirigida por
Luís Vieira e o Teatro de Marionetas de Lisboa, de José Ramalho. A norte,
o Teatro de Marionetas do Porto, de João Paulo Seara Cardoso, desenvolve
um trabalho de reconhecido mérito, mesmo fora do âmbito específico da
marioneta, como foi o caso da sua participação na E X P O ' 9 8 .
Muito importante na divulgação e na criação de novos públicos são os
festivais, que num curto espaço de tempo nos oferecem um pouco do que se
vai fazendo pelo estrangeiro. A Bienal de Marionetas de Évora (BIME), que
decorre no Verão, dirige-se mais às técnicas e formas ancestrais, contando nas
últimas edições, por exemplo, com as marionetas sicilianas, de Itália, ou as
marionetas sobre água do Vietname. Por outro lado, o Festival Internacional
de Marionetas do Porto dedica-se essencialmente às propostas contemporâ-
neas, onde figuram os mais importantes nomes da actualidade. Na edição de
1998 estiveram presentes, entre outros, a Compagnie Philippe Genty
(França), Massimo Schuster/Roman Paska (França/EIIA), Joan Baixas
(F.spanha), o Teatro Ciioco Vita (Itália) e Cláudio Cinelli (Itália), que dirigiu
alunos da Academia Contemporânea do Fspectáculo.
Entre a tradição e a modernidade, os dois festivais complementam-se, c

\ In l l r l c i u VAI. /./•••/, .1,•/./•., 1.1, ulc


MARIONETAS E FANTOCHES 177

são já eventos de presença obrigatória por parte dos muitos espectadores que
esgotam as salas dos seus espectáculos.

Teatro de marionetas e educação

O teatro de marionetas pode representar um papel muito importante na


educação, desde a infância até à juventude, que será tanto mais pertinente
quanto o desejo dos educadores de integrar actividades ligadas à concepção,
construção e representação no seio do currículo escolar, e não apenas enquan-
to actividade ocasional de ocupação de tempos livres.
As marionetas permitem uma abordagem bastante vasta no campo da
expressão individual e de grupo, pois não exigem uma total exposição do
aluno, que assim se projecta nos conflitos criados através dos bonecos.
Exercícios matemáticos de medidas, escalas e dimensionamento de espa-
ços; criação de formas, pesos e jogos de proporções através do desenho, pin-
tura e escultura; relações espaciais: «ao lado», «à volta», «atrás»; trabalho com
o som e com a luz. Todos estes temas podem ser estudados do ponto de vista
científico introduzindo ao mesmo tempo uma componente lúdica na apren-
dizagem.
A marioneta, estando «ao mesmo nível» do educando, permite-lhe colo-
car questões e descobrir respostas sem que os conteúdos didácticos sejam
apresentados por uma figura de autoridade, função que o professor, por si,
não pode de modo algum deixar de exercer.

Novos rumos

Nas formas populares de teatro, assim como nos rituais orientais e afri-
canos, a marioneta sobrepunha-se ao marionetista, que apenas servia de
impulso físico à sua grande espiritualidade e poder mágico. Hoje, o mario-
netista apresenta-se como artista, como performer dotado de capacidades
expressivas alargadas a todo o espectro do evento cênico. O seu corpo faz
parte do espectáculo a par da marioneta ou dos objectos quotidianos, pois
tudo é passível de ser teatralizado.
A manipulação de objectos enquanto formas abre novos caminhos esté-
ticos, criando um teatro que já não é só de marionetas, mas sim de figuras
animadas. Sem excluir a figura tradicional, antes integrando-a num nível de
significação mais complexo, revelando-se mais interessanre quer para os artis-

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178 MANUAL DE TEATRO

tas, quer para o público adulto iniciado. Os objectos não vêm reclamar o
lugar da marioneta, visto que funcionam a um nível simbólico distinto: a sua
acção é mais do domínio plástico do que propriamente teatral, sendo aí que <
reside o seu poder.
Este novo entendimento da marioneta tem a sua origem nas vanguardas
do início do século, quando artistas plásticos, músicos e dramaturgos se inte-
ressam pela sua capacidade transfiguradora. Desde a supermarioneta de E. G.
Craig até às sessões futuristas de Marinetti (anos 10), ou o Cabaret Voltaire
de Zurique (1916), animado pelo movimento do dadaísmo, onde começa a
idéia de retirar os objectos quotidianos do seu contexto funcional, carregan-
do-os de sentimentos exteriores a si, relevando-os para o mundo das formas,
cores e símbolos.
Em 1906, Meyerhold utiliza marionetas na sua encenação de Little Fair
Theatre de Alexander Blok, e üskar Schlemmer, no teatro da Bauhaus, faz
experiências onde os conceitos de «arquitectura móvel» e «homens artificiais»
estão profundamente ligados ao jogo formal da marioneta. Segundo
Schlemmer, a abstracção separa as partes do todo, cada parte é assim poten-
cializada tornando-se maior, primordial e profunda.
Mais tarde, nos anos sessenta e setenta, o interesse analítico consagrado
às marionetas sistematiza esta idéia através da sua decomposição em três pon-
tos essenciais: a força plástica da figura, a sua manipulação e a voz. A toma-
da de consciência destes factores gera uma nova relação entre os componen-
tes do espectáculo e entre estes e o público, ao qual não é alheia a cisão figu-
rativa operada pelo cubismo, surrealismo e expressionismo, oferecendo ao
espectador não um espectáculo acabado, polido, mas uma experiência criati-
va que se forma no momento, com a sua participação.
O texto não assume aqui a importância que tem no teatro de actores,
o gesto e a voz encontram sentido num território não verbal, ou pré-verbal.
«A marioneta é um conceito; não é um actor»\ ela não representa, ela é, pois
não existe fora da acção dramática, não trazendo para a performance nada que
não esteja na sua forma, movimento e voz. É o actor ideal segundo a teoria
do já citado E. G. Craig. Cria um «outro espectáculo», que se situa no espaço
que permite intensificar as contradições entre real/artificial, verdadeiro/falso.
vida/representação, simples/complexo. É teatro concentrado, em pó, q u e
exige do espectador uma acção criativa e agregadora, cm estado liquido.

4 I ) i. nl < uicll, < umplrlr Hvolr of fupfirt líirdtrr.

v
180 MANUAL DE TI Al RO

>

Conclusão

O teatro de nurionctas é, vocacionalmentc, um teatro de itineráncia


pois na maior parte dos casos a língua não é entrave para a compreensão dos
espectáculos. A troca ditecta de idéias e práticas é um dos factores essenciais
para o desenvolvimento desta arte, que é tantas vezes menosprezada pelas
entidades oficiais, mesmo sabendo que muitos manonetistas são autênticos
embaixadores culturais junto dos países que visitam. Kste permanente inter-
câmbio a nível mundial criou uma classe de artistas que valoriza, muito antes
de ser moda, a interdisciplmanedade (pela absorção de técnicas diferentes) c
o multiculturalismo (pelo interesse em compreender — através da prática
artística — povos e etnias diferentes). Prova disso é a criação, em Praga, no
ano de 1929, da U N I M A (União Internacional da Marioneta), organização
que conta com associados em praticamente todo o mundo e que, após sus-
pender as suas actividades durante a Segunda Guerra Mundial, tem vindo a
crescer de importância desde 1957 até aos nossos dias. Um dos grandes even-
tos que organiza é o Festival Internacional de Marionetas, em Charlevillc-
-Mezières, onde funciona também desde 1987 a École National Supeneure
des Arts de Ia Marionette.
Citando Pater: «Pouco a pouco a escultura suprime tudo o que é aci-
dental, tudo o que suprime a impressão produzida por tipos de humanidade
acabados e os despoja dos vestígios de vulgaridade que pudessem subsistir
neles.»' C o m o a marioneta, que sintetiza o essencial da expressão artística nos
seus gestos sempre maiores que a vida que invoca; o seu corpo, pasta que
reconstitui o território fracturado da percepção, é o corpo em estado de êxta- £
se, «espírito vivo descendente dos antigos ídolos de pedra dos templos, e a <j
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