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Nitzche e As Origens PDF
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4 Cf., a esse respeito, meu livro Nietzsche, o bufão dos deuses, Rio, Relume Dumará, 1994 (Nietzsche, le
bouffon des dieux, Paris, Harmattan, 1998).
5 Cf. último prágrafo da página 22 do ensaio.
6 Este conceito, utilizado por Baudrillard, remete à obra de Benoît Mandelbrot, que, rompendo com o
paradigma da geometria euclideana, pensa “fractalmente” a estrutura dos cristais ou a mensuração não mais
“linearizada”, expurgada de suas irregularidades infinitesimais, da costa da Bretanha, na França.
7 Cf. a crítica nietzschiana às noções de “livre arbítrio” e de “vontade”, especialmente in Genealogia da
moral (primeira dissertação, em especial § 13, já mencionado), bem como ABM, § 19, citado no próprio
texto.
venenosa e inquietante “mordida da consciência” (Gewissensbiß), nem para qualquer
crença em pretensos “méritos”. Além disso, pode-se estabelecer uma distância radical
entre ser “plural” (o que é sempre redutível à unidade) e ser “múltiplo”, experiência
implicada na densidade da obra-vida de Nietzsche. A experiência nietzschiana da
“multiplicidade”, remetida a uma concepção não linear do tempo (noção de
“extemporaneidade” [Unzeitgemäßigkeit], de “devir” [Werden] ou a enigmática hipótese
do eterno retorno), implica uma consistência ontológica totalmente ausente da
mencionada “emancipação das tiranias da identidade”, do exercício de um suposto “livre
jogo da imaginação” proporcionados, segundo relatos, “apenas tocando em uma tecla” do
computador (p. 28). Nesse sentido, mais do que vincular-se às promessas de tornar-se
outros oferecidas por uma “participação ativa” (p. 25) de tal teor em um espaço virtual -
como no caso da mencionada aficcionada em cibersexo (p. 24) -, a concepção
nietzschiana da multiplicidade pode, a meu ver, ser mais fertilmente associada, por
exemplo, ao denso exercício de “outramentos” efetuado, no século XX, por Fernando
Pessoa8. Como se pode observar, um dos parâmetros que aqui balizam minha visada
crítica remete não ao dogmatismo de uma pretensa leitura única, definitiva, mas, antes, ao
cuidado de se verificar, por um mergulho efetivo em uma obra filosófica, aquilo que ela
continua não apenas dizendo, mas permitindo pensar, viver, criticar. Trata-se de procurar
resgatar a potência crítica do pensamento de Nietzsche, não apenas assinalando certos
mal-entendidos, impropriedades ou afirmações problemáticas (como, por exemplo, mal
entender o curioso sentido paródico da referência nietzschiana ao “mensageiro da última
boa nova” (p. 19)9; a no mínimo discutível referência ao filósofo como “inaugurador de
uma nova era metafísica” [final da p. 23], ou ainda a referência a um suposto “ser
cósmico” [p. 28] como compatível com a filosofia de Nietzsche), mas extraindo de sua
obra conseqüências que façam jus à radicalidade de suas reflexões e que explorem suas
efetivas implicações. O contrário disso equivaleria, na verdade, a não ler o filósofo, e,
nesse caso, caberia, então, deixá-lo simplesmente de lado. Certas apropriações pós-
modernizantes do pensamento de Niezsche, como as que sustentam, em parte, a
argumentação de Rüdiger, são, portanto, a meu ver, duplamente problemáticas: por
remeterem a leituras pouco cuidadosas das obras do filósofo e por tenderem a neutralizar
e mitigar sua radical potência crítica.
Nesse sentido, para uma crítica ao aspecto banal desse jogo de “alteridade”
no ciberespaço, a seu caráter cabotino, talvez valesse a pena, de fato, reler o aforisma 356
de Gaia ciência, citado no ensaio (p. 26). No entanto, não se trata de fácil empreitada,
mas de tarefa que requereria uma verdadeira ruminação de vários estômagos, na medida
em que tal texto é (como, aliás, a maioria dos textos do filósofo) de difícil leitura,
exigindo a mais fina arte das nuances. De saída porque, se nesse aforisma Nietzsche
questiona o aspecto farsante, “comediante” do europeu de sua época, o filósofo valoriza,
em geral em sua obra, a potência disruptura da máscara, do teatro, de todas as mascaradas,
enfim, do simulacro em sua mais alta potência10. A distância entre o simulacro em sua
8 Cf., a esse respeito, meu artigo “Teatro e máscara no pensamento de Nietzsche”, in Assim falou Nietzsche
II (Rio, Faperj/Relume Dumará, 2000, pp. 37-48), bem como os relevantes livros de Gil, José, Fernando
Pessoa ou a metafísica das sensações (Lisboa, Relógio d’Água, s/d) e Diferença e negação na poesia de
Fernando Pessoa (Rio, Relume Dumará, 2000).
9 Cf. meu Nietzsche, o bufão dos deuses, op. cit.
10 Por não caber, no exíguo espaço deste relato, um maior desenvolvimento desse complexo tema, remeto a
meu artigo “Nietzsche: filosofia e paródia” (Assim falou Nietzsche, Rio/Ouro Preto, Sette Letras/UFOP, pp.
28-37), no qual proponho uma leitura do curioso § 223 de ABM. Nele aparece a figura do Mischmensch
(“homem-mistura”) em que, segundo Nietzsche, se tornara o europeu de sua época, instaurando-se no texto
um movimento que, inicialmente crítico, se transmuta, no final do aforisma, na positividade de uma situação
interessante, uma vez radicalizada, no sentido da ultrapassagem do modelo de identidade hegemônico na
filosofia ocidental, pelo menos desde Platão. Quanto à valorização nietzschiana da potência do falso, remeto
maior potência, em suas implicações ontológicas, e um sentido enfraquecido de
simulacro/simulação pode, inclusive, funcionar como eixo central em um trabalho de
crítica a certas novas apropriações do pensamento de Nietzsche. Para desenvolver a
potência crítica do pensamento de Nietzsche nesse tema, talvez coubesse, ainda, ressaltar
a distância entre a perspectiva nietzschiana e a valorização atual da “comunicabilidade” e
da “informação”. O filósofo que viveu grande parte da vida em radical solidão; que
gostava quando seus melhores amigos, que tinham ido visitá-lo, iam embora; que julgou
positiva e fundamental a perda progressiva de sua própria capacidade de ler (cf. Ecce
homo, fim do § 4 da parte sobre Humano, demasiado humano); que caricaturou, em
Assim falou Zaratustra, o homem “moderno” como uma imensa orelha, aberta à
banalidade da “informação”, sustentada pelo mais miserável dos corpúsculos11,
dificilmente poderia ser aproximado dos “arautos da era virtual” (p. 21), dos aficcionados
pela Internet, pelas salas de chats, pela “interatividade”. Apenas a título de exemplo,
vejamos o que Nietzsche pensou acerca da “comunicação”:
Não nos estimamos mais o bastante quando nos comunicamos. Nossas
vivências próprias não são, de modo algum, tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se
quisessem. É que lhes falta a palavra. Aquilo para o que temos palavra, também já o
ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi
inventada para o que é médio, mediano, comunicável. Com a fala, já se vulgariza o
falante. (Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, § 26).
a meu ensaio “A potência do simulacro em Deleuze, Nietzsche e Kafka”, que será publicado ainda este ano
e que foi apresentado no último colóquio Nietzsche/Deleuze, da Universidade Federal do Ceará, em
Fortaleza, em outubro de 2000.
11 Cf. meu texto “Por uma filosofia para pequenas orelhas”, apresentado no colóquio internacional sobre
Nietzsche, na UERJ, em agosto de 2000, a ser publicado este ano no livro Assim falou Nietzsche III.