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Relato crítico

“Nietzsche e as origens do sujeito fractal”,


de FRANCISCO RÜDIGER
PPGCOM-PUC/RS

Por MARIA CRISTINA FRANCO FERRAZ


IACS/UFF

A fim de estabelecer um primeiro diálogo crítico com o texto em questão,


parto de certas reflexões acerca do valor da leitura, da interpetação, inspiradas no próprio
filósofo que o ensaio privilegia. Nietzsche remeteu a interpretação não mais à busca por
uma suposta “verdade” oculta (posição que vinculou ao que chamou de “metafísica”),
mas a um gesto inevitável de apropriação por parte de forças presentes nos corpos. Tal
perspectiva inviabiliza, evidentemente, qualquer crença dogmática em leituras que se
pretendam únicas, definitivas. Entretanto, para o filósofo, se o gesto interpretativo é
incontornável, isso não equivale a dizer que todas as interpretações têm o mesmo valor.
Para avançar mais nessa perspectiva, seria necessário, discutir o tema do valor em
Nietzsche, o que não caberia nesse breve relato1. Menciono, de saída, tais reflexões a fim
de ressaltar que minha visada crítica com relação ao referido texto sustenta-se em uma
leitura interpretativa da filosofia nietzschiana que, embora não se pretendendo única
possível, está longe de ser uma leitura apressada, e que se ancora no cuidado de recorrer
aos textos de Nietzsche no orginal, a partir da edição crítica elaborada por Giorgio Colli e
Mazzino Montinari2, fonte reconhecidamente mais segura para o estudo da obra do
filósofo, atualmente. Não se trata, com isso, de pretender que só especialistas teriam o
“direito” de ler Nietzsche (filósofo que escreveu “para todos e para ninguém”, como no
subtítulo de Assim falou Zaratustra), mas de assinalar questões problemáticas que podem
perpassar certas leituras menos “ruminantes”. Foi o próprio Nietzsche, aliás, que vinculou
a “arte da interpretação” à lenta e elaborada digestão bovina3. Embora sendo ponto de
partida recomendável, tal cuidado não impede, entretanto, que sempre se deva avaliar
leituras (mesmo as de leitores cuidadosos), não apenas por sua “propriedade”, mas
sobretudo pela discussão e avaliação de suas implicações (políticas, filosóficas,
existenciais).
Em primeiro lugar, o texto de Rüdiger se apóia, diversas vezes, em certas
passagens extraídas de um livro (Vontade de poder) que não foi organizado pelo próprio
Nietzsche, mas sobretudo por sua irmã, Elizabeth Förster-Nietzsche, que, ocupando-se do
1 Para um desenvolvimento desse tema, remeto ao trabalho por mim apresentado no GT Nietzsche, no
último encontro da ANPOF (Poços de Caldas, outubro 2000), ainda inédito, intitulado “A arte da
inerpretação em Nietzsche”, que, em nova versão (com o título “Leitura, interpretação e valor em
Nietzsche”), será apresentado no colóquio “Nietzsche para o século XXI”, a realizar-se em 10 e 11 de maio
próximos, na Universidade de Lisboa.
2 Nietzsche, Friedrich, Kritische Studienausgabe, 15 vol., Munique/Nova Iorque/Berlim, DTV/de Gruyter,
1988.
3 Cf. Genealogia da moral, prólogo, § 8.
Arquivo Nietzsche no período final da vida do filósofo, procedeu a mutilações, censuras e
perniciosas manipulações da obra do irmão (hoje identificadas), contribuindo para graves
implicações do suposto pensamento de Nietzsche com o movimento nazista, de que ela
era bastante próxima4. Por esse motivo, Vontade de poder não se trata, de modo algum, de
uma fonte confiável para sustentar qualquer especulação acerca da obra de Nietzsche. A
ressonância, por exemplo, das futuras apropriações nazistas ouve-se no trecho citado no
quarto parágrafo da primeira página (p. 18) do ensaio de Rüdiger. Acrescento que,
inclusive, para o desenvolvimento de seu fio condutor – estabelecer, a partir de Nietzsche,
uma “arqueologia da consciência tecnológica contemporânea” (p. 29), a partir da crítica
nietzschiana à concepção substancialista do “sujeito” – o autor poderia prescindir de tais
referências (no mínimo problemáticas), recorrendo, antes, a certos textos extraídos da
obra efetivamente publicada por Nietzsche e de que, em alguns trechos do ensaio, o
próprio Rüdiger lança mão, como Além de bem e mal (ABM) (cf. pp. 22, 26, 27 do
ensaio). Aliás, como a crítica nietzschiana à concepção substancialista do sujeito e à
modernidade, articulada à sua concepção do “eu” como multiplicidade, está bastante clara
nos textos em que o filósofo comenta as falácias implicadas no cogito cartesiano e na
noção shopenhaueriana de “vontade” - ambas tomadas como “certezas imediatas” - atento
o autor do ensaio para a leitura em paralelo dos seguintes parágrafos: ABM, § 16 e § 17
(para a desconstrução do cogito), § 19 (citado por Rüdiger, na página 22), que trata da
“vontade” em Schopenhauer. Para o desenvolvimento acerca das implicações filosóficas e
morais finamente identificadas por Nietzsche na crença no “sujeito”, sugiro, ainda, a
leitura interpretativa do § 13 da primeira dissertação de Genealogia da moral. Com vistas
a uma leitura mais completa da crítica do sujeito moderno, na figura da “substância
pensante” cartesiana (oposta, antes, à “substância extensa” do que, como sugere Rüdiger,
à “realidade”5), gostaria, à guisa de contribuição, de indicar ainda o livro de Sarah
Kofman, Nietzsche et la scène philosophique (Paris, Galilée, 1986), em especial o
capítulo “Descartes piégé”.
A questão mais problemática do texto concerne, a meu ver, ao
estabelecimento de uma afinidade e mesmo de uma linha de continuidade (p. 24, segundo
§; p. 28, final do penúltimo § e últimas linhas da p. 29) entre o sujeito “fractal”6, a
concepção nietzschiana do “eu” como efeito hierarquizante, provisório e cambiante, da
luta entre múltiplas forças ou pulsões (Triebe) do corpo, e uma “nova mitologia” (p. 19)
vinculada às “teses dos principais teóricos da cibercultura”, as experiências de derrocada
das identidades fixadas e de “criação de vários eus” (p. 24) propiciadas pela participação
em uma “esfera pública virtual” (p. 24). Em primeiro lugar, nunca se trataria, em
Nietzsche, de “escolher ser plural” (p. 24)7, de exercer uma pretensa “liberdade” de “ser e
fazer o que se desejar”, de “ser o que [se] quiser” (p. 24): afirmá-lo seria desconhecer a
radicalidade da crítica nietzschiana à própria concepção de sujeito, ponto de partida do
ensaio. Para Nietzsche, nunca se é o que “se quer”, mas o que “se pode”, no sentido das
forças que nos atravessam, que em nós se digladiam para afirmar-se e conquistar
supremacia, sem que a consciência ou a razão tenham o menor controle de todo o
processo. Por isso mesmo, na perspectiva nietzschiana, não há lugar para remorsos, para a

4 Cf., a esse respeito, meu livro Nietzsche, o bufão dos deuses, Rio, Relume Dumará, 1994 (Nietzsche, le
bouffon des dieux, Paris, Harmattan, 1998).
5 Cf. último prágrafo da página 22 do ensaio.
6 Este conceito, utilizado por Baudrillard, remete à obra de Benoît Mandelbrot, que, rompendo com o
paradigma da geometria euclideana, pensa “fractalmente” a estrutura dos cristais ou a mensuração não mais
“linearizada”, expurgada de suas irregularidades infinitesimais, da costa da Bretanha, na França.
7 Cf. a crítica nietzschiana às noções de “livre arbítrio” e de “vontade”, especialmente in Genealogia da
moral (primeira dissertação, em especial § 13, já mencionado), bem como ABM, § 19, citado no próprio
texto.
venenosa e inquietante “mordida da consciência” (Gewissensbiß), nem para qualquer
crença em pretensos “méritos”. Além disso, pode-se estabelecer uma distância radical
entre ser “plural” (o que é sempre redutível à unidade) e ser “múltiplo”, experiência
implicada na densidade da obra-vida de Nietzsche. A experiência nietzschiana da
“multiplicidade”, remetida a uma concepção não linear do tempo (noção de
“extemporaneidade” [Unzeitgemäßigkeit], de “devir” [Werden] ou a enigmática hipótese
do eterno retorno), implica uma consistência ontológica totalmente ausente da
mencionada “emancipação das tiranias da identidade”, do exercício de um suposto “livre
jogo da imaginação” proporcionados, segundo relatos, “apenas tocando em uma tecla” do
computador (p. 28). Nesse sentido, mais do que vincular-se às promessas de tornar-se
outros oferecidas por uma “participação ativa” (p. 25) de tal teor em um espaço virtual -
como no caso da mencionada aficcionada em cibersexo (p. 24) -, a concepção
nietzschiana da multiplicidade pode, a meu ver, ser mais fertilmente associada, por
exemplo, ao denso exercício de “outramentos” efetuado, no século XX, por Fernando
Pessoa8. Como se pode observar, um dos parâmetros que aqui balizam minha visada
crítica remete não ao dogmatismo de uma pretensa leitura única, definitiva, mas, antes, ao
cuidado de se verificar, por um mergulho efetivo em uma obra filosófica, aquilo que ela
continua não apenas dizendo, mas permitindo pensar, viver, criticar. Trata-se de procurar
resgatar a potência crítica do pensamento de Nietzsche, não apenas assinalando certos
mal-entendidos, impropriedades ou afirmações problemáticas (como, por exemplo, mal
entender o curioso sentido paródico da referência nietzschiana ao “mensageiro da última
boa nova” (p. 19)9; a no mínimo discutível referência ao filósofo como “inaugurador de
uma nova era metafísica” [final da p. 23], ou ainda a referência a um suposto “ser
cósmico” [p. 28] como compatível com a filosofia de Nietzsche), mas extraindo de sua
obra conseqüências que façam jus à radicalidade de suas reflexões e que explorem suas
efetivas implicações. O contrário disso equivaleria, na verdade, a não ler o filósofo, e,
nesse caso, caberia, então, deixá-lo simplesmente de lado. Certas apropriações pós-
modernizantes do pensamento de Niezsche, como as que sustentam, em parte, a
argumentação de Rüdiger, são, portanto, a meu ver, duplamente problemáticas: por
remeterem a leituras pouco cuidadosas das obras do filósofo e por tenderem a neutralizar
e mitigar sua radical potência crítica.
Nesse sentido, para uma crítica ao aspecto banal desse jogo de “alteridade”
no ciberespaço, a seu caráter cabotino, talvez valesse a pena, de fato, reler o aforisma 356
de Gaia ciência, citado no ensaio (p. 26). No entanto, não se trata de fácil empreitada,
mas de tarefa que requereria uma verdadeira ruminação de vários estômagos, na medida
em que tal texto é (como, aliás, a maioria dos textos do filósofo) de difícil leitura,
exigindo a mais fina arte das nuances. De saída porque, se nesse aforisma Nietzsche
questiona o aspecto farsante, “comediante” do europeu de sua época, o filósofo valoriza,
em geral em sua obra, a potência disruptura da máscara, do teatro, de todas as mascaradas,
enfim, do simulacro em sua mais alta potência10. A distância entre o simulacro em sua
8 Cf., a esse respeito, meu artigo “Teatro e máscara no pensamento de Nietzsche”, in Assim falou Nietzsche
II (Rio, Faperj/Relume Dumará, 2000, pp. 37-48), bem como os relevantes livros de Gil, José, Fernando
Pessoa ou a metafísica das sensações (Lisboa, Relógio d’Água, s/d) e Diferença e negação na poesia de
Fernando Pessoa (Rio, Relume Dumará, 2000).
9 Cf. meu Nietzsche, o bufão dos deuses, op. cit.
10 Por não caber, no exíguo espaço deste relato, um maior desenvolvimento desse complexo tema, remeto a
meu artigo “Nietzsche: filosofia e paródia” (Assim falou Nietzsche, Rio/Ouro Preto, Sette Letras/UFOP, pp.
28-37), no qual proponho uma leitura do curioso § 223 de ABM. Nele aparece a figura do Mischmensch
(“homem-mistura”) em que, segundo Nietzsche, se tornara o europeu de sua época, instaurando-se no texto
um movimento que, inicialmente crítico, se transmuta, no final do aforisma, na positividade de uma situação
interessante, uma vez radicalizada, no sentido da ultrapassagem do modelo de identidade hegemônico na
filosofia ocidental, pelo menos desde Platão. Quanto à valorização nietzschiana da potência do falso, remeto
maior potência, em suas implicações ontológicas, e um sentido enfraquecido de
simulacro/simulação pode, inclusive, funcionar como eixo central em um trabalho de
crítica a certas novas apropriações do pensamento de Nietzsche. Para desenvolver a
potência crítica do pensamento de Nietzsche nesse tema, talvez coubesse, ainda, ressaltar
a distância entre a perspectiva nietzschiana e a valorização atual da “comunicabilidade” e
da “informação”. O filósofo que viveu grande parte da vida em radical solidão; que
gostava quando seus melhores amigos, que tinham ido visitá-lo, iam embora; que julgou
positiva e fundamental a perda progressiva de sua própria capacidade de ler (cf. Ecce
homo, fim do § 4 da parte sobre Humano, demasiado humano); que caricaturou, em
Assim falou Zaratustra, o homem “moderno” como uma imensa orelha, aberta à
banalidade da “informação”, sustentada pelo mais miserável dos corpúsculos11,
dificilmente poderia ser aproximado dos “arautos da era virtual” (p. 21), dos aficcionados
pela Internet, pelas salas de chats, pela “interatividade”. Apenas a título de exemplo,
vejamos o que Nietzsche pensou acerca da “comunicação”:
Não nos estimamos mais o bastante quando nos comunicamos. Nossas
vivências próprias não são, de modo algum, tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se
quisessem. É que lhes falta a palavra. Aquilo para o que temos palavra, também já o
ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi
inventada para o que é médio, mediano, comunicável. Com a fala, já se vulgariza o
falante. (Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, § 26).

Finalmente, apontamos para uma certa concepção linear do tempo, para a


crença em “sucessões históricas” que, subjacentes a alguns trechos do texto de Rüdiger,
foi alvo direto de diversos ataques de Nietzsche, que identificou agudamente suas graves
implicações. Trata-se das seguintes passagens: p. 28, penúltimo §; p. 29, final; e,
sobretudo, da seguinte afirmação: “Nietzsche […] várias décadas antes do surgimento da
informática, refletiu sobre o significado dessa experiência. As cogitações sobre os
possíveis modos de ser do homem em curso hoje em dia foram discutidas por ele bem
antes de serem inventados os computadores.” (p. 25). Tal afirmação supõe certa
concepção linear e teleológica do tempo (tributária da filosofia de Hegel), apoiada em
falaciosos nexos de causalidade que funcionam como eixo de sustentação da crença no
acontecer histórico como previamente determinado, como embutido, “em germe”, desde o
início – o que, evidentemente, leva a legitimá-lo, a torná-lo não apenas plenamente
justificado, mas ainda necessário e incontornável.

a meu ensaio “A potência do simulacro em Deleuze, Nietzsche e Kafka”, que será publicado ainda este ano
e que foi apresentado no último colóquio Nietzsche/Deleuze, da Universidade Federal do Ceará, em
Fortaleza, em outubro de 2000.
11 Cf. meu texto “Por uma filosofia para pequenas orelhas”, apresentado no colóquio internacional sobre
Nietzsche, na UERJ, em agosto de 2000, a ser publicado este ano no livro Assim falou Nietzsche III.

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