Você está na página 1de 11

ARTIGOS COMPLETOS

2º ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS


SOBRE QUADRINHOS E CULTURA POP

simpósio temático 4
REPRESENTAÇÕES, VALORES E
QUADRINHOS
A PREDOMINÂNCIA VALORATIVA EM O RACISTA, DE MORTADELO E
S ALAMINHO

Nildo Viana
Doutor em Sociologia/UnB
Universidade Federal de Goiás, nildoviana@ymail.com

RESUMO
O presente artigo busca explicitar qual é a predominância valorativa na história O Racista, de
Mortadelo e Salaminho, personagens de Francisco Ibañez. Apesar das contradições existentes na
história, a análise rigorosa do universo ficcional, complementada pela análise extraficcional, conclui
que a obra não é racista, como alguns afirmam, e sim não-racista, sendo este seu valor predominante.
Nesse sentido, O Racista é uma história em quadrinhos axionômica e não axiológica.

Palavras-Chave: Racismo, Valores, Axionomia, Axiologia, Predominância Valorativa.


As HQ, assim como toda manifestação cultural, materializa determinados valores. As histórias
em quadrinhos são, em geral, manifestações axiológicas e, excepcionalmente, axionômicas.
Mas, assim como um indivíduo possui uma escala de valores que pode conter tanto valores
dominantes quanto autênticos, então é necessário descobrir qual é a predominância valorativa
para saber se tal HQ é axiológica ou axionômica. Nesse sentido, realizaremos a análise de uma
das histórias em quadrinhos dos personagens Mortadelo e Salaminho, intitulada “O Racista”.
Nesta história, na qual se tematiza a questão racial e étnica, alguns valores e desvalores são
apresentados e demonstram uma determinada predominância valorativa que é manifestação
aparentemente axionômica, mas que somente uma análise mais profunda pode dar uma resposta
mais conclusiva sobre isso.

Antes de analisarmos os valores manifestos em O Racista, de Mortadelo e Salaminho, é


necessário definir alguns conceitos, apresentar nossa concepção metodológica e apresentar tais
personagens. Sem dúvida, o primeiro ponto é explicitar alguns conceitos. O primeiro deles é o
próprio conceito de valores, muito utilizado, mas geralmente não definido. Em nossa concepção,
valor é aquilo que é importante ou significativo para os indivíduos, grupos, classes sociais
(Viana, 2007). Os valores, portanto, não são atributos das coisas, tal como alguns colocam
(Frondizi, 1993) e sim atribuições que fornecemos às coisas. Essa atribuição não é arbitrária, é
fundada numa relação entre os seres humanos e aquilo que para eles se torna relevante,
importante. Os objetos, as obras de arte, as relações sociais, entre inúmeros outros exemplos,
podem ser valoradas ou desvaloradas, isto é, podem se tornar importantes ou desimportantes
para os indivíduos, grupos, classes. O processo pelo qual um objeto, obra de arte, etc., se torna
importante ou não para alguém, está ligado às relações sociais em que essa pessoa vive, seu
processo histórico de vida, o que envolve valores anteriores, sentimentos, consciência,
pertencimento de classe, etc. (Viana, 2007).

Alguns autores pensam os valores como elementos normativos, máximas, etc., e outros os
consideram apenas objetos escolhidos, preferências, gostos. No fundo, os valores possuem os
dois aspectos. Todos possuem uma escala de valores e no conjunto dos seus valores existem
alguns que são fundamentais e estes funcionam de critério para a definição de outros valores,
que são derivados. Assim, se a arte é um valor fundamental para um indivíduo, então sua
posição diante do dinheiro ou da política estará relacionado com esse valor. A distinção entre
valores fundamentais e valores derivados (Viana, 2007) é importante para perceber que os
valores não são equivalentes para os indivíduos. A percepção da existência de uma escala de
valores também serve para perceber que podem existir ambiguidades e conflitos de valores na
mente de um indivíduo.

Os valores são constituídos socialmente e, nas sociedades de classes, reproduzem a divisão de


classes (Viana, 2007; Viana, 2011). Os valores dominantes são os valores da classe dominante.
Tais valores são particularistas, históricos, transitórios, expressando interesses de classe que se
contrapõe aos interesses da emancipação humana. Contudo, de forma marginal, expresso
principalmente através das classes exploradas, se manifestam valores divergentes, que são
manifestações das necessidades humanas, da essência humana, sendo, portanto, valores
autênticos. Uma determinada configuração de valores dominantes constitui a axiologia e uma
determinada configuração de valores autênticos constitui a axionomia (Viana, 2007; Viana,
2011). Assim, podemos dizer que os valores dominantes são ligados aos interesses da classe
dominante e, por conseguinte, são conservadores e estão ligados ao processo de reprodução da
exploração, dominação, opressão. Os valores autênticos, no entanto, estão ligados ao processo
de busca da emancipação humana.

542
São perceptíveis, nas mais diversas manifestações culturais, os valores que são repassados por
elas. As obras de arte, os trabalhos científicos, as representações cotidianas, etc., manifestam
valores e desvalores. Os valores se manifestam no mundo dos quadrinhos, tal como se vê no
gênero da superaventura (Viana, 2005; Reblin, 2008; Marques, 2011) A análise dos valores
requer não apenas o domínio teórico dos conceitos fundamentais (valores, axiologia, axionomia)
e da teoria que os constituem, mas também um procedimento metodológico necessário para sua
efetivação. O método dialético fornece os elementos fundamentais para uma análise dos valores.
A categoria da totalidade, fundamental no método dialético, é um desses elementos. Analisar os
valores em uma manifestação cultural, tal como no caso de uma história em quadrinhos, requer
uma concepção totalizante que dê conta de ver as relações instituídas entre os valores, as
representações, os sentimentos, isso tudo num conjunto expressivo cultural. Ou seja, é preciso
tomar cuidado com análises apressadas e supostas concepções metodológicas que, em si, são
bastante pobres.

É o caso, por exemplo, da análise que se fundamenta em índices quantitativos. A frequência de


uso das palavras pode significar valoração, mas nem sempre. A análise de panfletos estudantis
que revela que um grupo estudantil usa com mais frequência a palavra democracia e outro grupo
a palavra “revolução” é interessante e útil, mas em si mesmo não oferece nenhuma conclusão
sobre quais os valores fundamentais em nenhum dos dois casos. A conclusão apressada seria a
de que o valor fundamental para um grupo é a democracia e, para o outro, a revolução. Porém,
além de compreender o que é dito sobre democracia e sobre revolução em ambos os casos, é
necessário saber que mesmo sendo um valor (e não um desvalor) 1 , a democracia ou a revolução
tem que ser entendidos (ou seja, o que é democracia e o que é revolução para os grupos
estudantis que redigiram o referido panfleto) no sentido atribuído a eles pelos autores dos
panfletos. Se democracia é concebida como um ideal, como o governo do povo sem
organizações burocráticas, etc., então sua posição é bem mais próxima de uma concepção
revolucionária do que poderia parecer à primeira vista. Se revolução significa, para quem
redigiu o panfleto, revolução política, mudanças no quadro político e nas bases das decisões
políticas, então sua proximidade com a outra concepção aumenta drasticamente. Inclusive, uma
análise profunda pode até revelar que dois grupos podem se considerar rivais por
desentendimento comunicativo. Contudo, o que nos interessa aqui é a análise dos valores em
histórias em quadrinhos e compreender que a mera frequência de palavras é insuficiente e pode
ser enganosa se fora do contexto, ou seja, da totalidade das histórias em quadrinhos.

Por conseguinte, a análise da totalidade da obra de arte, das histórias em quadrinhos ou qualquer
outro fenômeno é fundamental. E a análise das relações instituídas no seu interior também é
fundamental para compreender as determinações, o que é essencial e o que não é, bem como as
exigências formais, estilísticas, etc., e os objetos e intenções de determinada produção cultural,
entre diversos outros elementos.

Mortadelo e Salaminho são dois personagens espanhóis que durante os anos 1970 tiveram um
grande sucesso no Brasil. Recentemente ganharam álbuns luxuosos e dois filmes, além do
desenho animado um pouco mais antigo. As suas histórias são marcadas por algumas
características que são a chave para explicar sua comicidade: os atos violentos, gags e as
expressões faciais dos personagens (espanto, raiva, surpresa, etc.) em contextos e ações
rocambolescos. As histórias em quadrinhos de Mortadelo e Salaminho (Mortadelo y Filemón,
na Espanha) passaram por fases distintas. Elas surgiram em 1958 e satirizavam situações

1
Um grupo estudantil pode escrever um panfleto ou jornal no qual discute a questão da revolução e pod e fazer isso no sentido de
ironizá-la, combatê-la, etc. – e o mesmo vale para a palavra democracia – e por isso não revela, necessariamente, que seja um
valor apenas por sua frequência matemática.

543
cotidianas até que em 1969 entraram para a TIA (paródia da CIA, Central de Inteligência
Americana), cujo significado é: Técnicos em Investigação Avançada. Mortadelo é o rei dos
disfarces e Salaminho era o líder da dupla. A TIA combate terroristas, criminosos e tem como
grande inimiga a SOGRA (Secreta Organização de Gatunos, Raptores e Assassinos) e teve, em
versão portuguesa, um episódio intitulado “A TIA contra a SOGRA”.

Em 1992 é publicada a aventura O Racista (El Racista). A aventura foi publicada entre os
números 100 e 102 de Super Mortadelo. O desenho é do criador dos personagens, Francisco
Ibañez com a arte final de Juan Manuel Muñoz. A história se inicia com uma introdução na qual
apresenta a opressão racial no reino animal, vegetal e humano.

Nesse momento, aparecem alusões a épocas, fatos, personagens de cinema, etc., tais como o
etnocídio dos indígenas nos Estados Unidos, a Ku-Klux-Klan, nazismo, etc. Após isso os
personagens entram em cena com sua famosa entrada na sede da TIA, sempre realizada nos
lugares mais estranhos e “secretos” e, nesse momento, ficam sabendo que existe um novo vice-
presidente. Este, porém, é racista, tal como se pode observar por suas práticas em relação aos
diversos membros da organização que possuem antepassados de outras raças, incluindo a
secretária Ofélia, o Professor Bactério e o próprio Super (chefe de Mortadelo e Salaminho,
abreviatura de Superintendente, cujo nome é Vicente).

Fig. 01: Capa de O Racista, de 1992.

A missão que o Super apresenta para Mortadelo e Salaminho é a de ajudar os agentes de outras
raças em suas missões complicadas que são atribuídas pelo novo vice-presidente. O objetivo é
ajudá-los a conseguir cumprir suas missões, pois assim o vice-presidente poderá ser punido e
perder o cargo. A figura do vice-presidente aparece, então, e sua semelhança com Adolf Hitler
não é casual (veja sua imagem na capa de uma das edições espanholas da revista abaixo). Em
sua primeira aparição ele está sentado em cima de um indivíduo de “raça inferior”, embora isso
não seja dito em nenhum lugar. A partir desse momento começa a aventura dos dois

544
personagens, com as tiradas cômicas de sempre. Ao tentar ajudar os agentes, o que Mortadelo e
Salaminho fazem é atrapalhá-los. Depois de muitos insucessos buscando ajudar agentes com
antepassados de raças diversas (negros, judeus, muçulmanos, etc.). Depois de muita trapalhada,
uma nova missão é ajudar M´Orrongo, negro. Nesse momento, diversas piadas que podem ser
consideradas racistas são feitas principalmente por Mortadelo. Ele pergunta se o agente negro
iria fazer o translado de zebra ou camelo e ao ser defendido por Salaminho da irritação de
M´Orrongo, ao dizer que era só uma piada, Mortadelo retorna dizendo que posteriormente irão
comer salada de banana e amendoim, o que novamente irrita o personagem negro. Depois disso,
M´Orrongo vai no carro da dupla de agentes secretos, mas agarrado à parte traseira do mesmo e
depois tem que trabalhar sozinho e ainda ouvir outras piadas de Mortadelo e Salaminho. Outro
agente a ser ajudado é um oriental e, embora em menor grau, Mortadelo faz novas afirmações
de teor racista, como chamá-lo de “piolho amarelo” (o que, aliás, ao contrário das outras
passagens, soa mais agressivo e sem a comicidade das outras afirmações anteriores).

Por fim, após tantos fracassos da dupla, chega ao momento final, quando o diretor geral se reúne
com o Superintendente e o Vice-Presidente. Mortadelo e Salaminho elaboram um plano: o
primeiro usaria diversos disfarces de agentes de diversas raças e o segundo narraria seus grandes
feitos. Assim, Mortadelo se disfarça de oriental, negro, hispano, judeu, árabe, e Salaminho
colocava suas missões bem sucedidas e ações extraordinárias. Antes disso, o vice-presidente já
havia colocado que os agentes de outras raças deveriam ser demitidos. O Diretor Geral, ao saber
das façanhas dos agentes de outras raças, demite o vice-presidente e passa a colocar na direção
árabes, negros, etc., inclusive o cargo do Superintendente, que, como ocorre constantemente nas
histórias desses personagens, passa a correr atrás da dupla de agentes, sendo que Mortadelo que
oferece preferência a um negro para passar à frente, onde teria areia movediça (veja imagem
abaixo).

Fig. 02: Quadros finais de “O Racista

545
Após esta descrição da evolução da história, cabe agora analisarmos o seu conteúdo e sua
relação com o racismo. Existem algumas formas de análise da questão do racismo em O
Racista. A primeira forma consiste na análise rigorosa do universo ficcional. A segunda é a
análise do processo social de produção das histórias em quadrinhos de Mortadelo e Salaminho.
A terceira é uma síntese das duas, na qual o primeiro elemento é complementado pelo segundo.
No fundo, essa é a forma mais adequada de análise de qualquer história em quadrinhos (Viana,
2012). Contudo, nem sempre é acessível ao pesquisador o processo de constituição social e
histórica de uma história em quadrinhos e por isso acaba tendo que se fundamentar apenas na
análise do universo ficcional. Isso, no entanto, deve ser feito com o suficiente rigor para fugir
das atribuições de significado. No caso da análise dos valores, o processo investigativo se torna
um tanto restringido. Porém, a análise dos valores não pode se dar ao luxo de deixar de lado a
totalidade e, por isso, o foco é a questão valorativa, mas deve se remeter a outros aspectos
relacionados e que seria impossível deixar de lado.

Uma interpretação possível seria a de que a mensagem de Mortadelo e Salaminho é racista e


repassa valores determinados, como o da superioridade racial branca. Essa interpretação teria a
seu favor um conjunto de quadros. A começar pelo quadro de apresentação, no qual Mortadelo
segura uma bola de boliche e os pinos são indivíduos de diferentes “raças”. Nos quadr os
seguintes, os exemplos de diferenças raciais mostram um macaco esmagando um rato; o
nascimento de um coqueiro que é esmagado por outro maior; o massacre dos indígenas nos
Estados Unidos, etc. No decorrer da história, Mortadelo e Salaminho buscam ajudar os agentes
de outras raças a cumprirem suas missões e mais atrapalham do que ajudam. Contudo, quando
se trata de um personagem negro, M´Orrongo, o que acontece é que eles passam a fazer piadas e
maltratar o indivíduo de outra raça e no final da história, há a sugestão de que o novo
personagem negro ganhe a preferência para andar num lugar com areia movediça. Essa
interpretação parece, então, ser plausível. No que se refere aos valores, Mortadelo e Salaminho
deixam claro seu desvalor pelo negro.

No entanto, em uma análise mais atenta, essa interpretação pode ser questionada. Numa
interpretação rigorosa, é necessário ver não apenas a ação dos dois personagens centrais em
relação às demais “raças”, mas também a dos outros personagens e, ainda, como é retratada a
figura do racista declarado da história, mesmo porque é este personagem a razão de ser da
história. O racista é apresentado como tendo uma fisionomia semelhante à de Adolf Hitler. Isso
mostra uma perspectiva crítica em relação a ele (a não ser que o autor da história, Francisco
Ibañez, fosse nazista, o que não é o caso). Nos quadros iniciais, quando se apresenta as
diferenças de raças, além de satirizar John Wayne, matando índios (207, sem recarregar a arma),
e ditador (novamente Hitler). A situação-problema da história é justamente o racismo, pois é
isso que faz o Super apresentar a missão de Mortadelo e Salaminho: ajudar os agentes de outras
raças a cumprir sua missão. A descrição das barbaridades que o vice-presidente racista realiza
também não é algo que um racista apresentaria, não pelo menos numa sociedade não
comandada por regime totalitário e racista (como foi o caso do nazismo). Da mesma forma, as
atrapalhadas dos dois agentes em sua suposta ajuda aos demais, seria algo incoerente com
alguma concepção de “raça superior”. No que se refere aos outros personagens, o Super se
mostra antagônico ao racista e o Diretor Geral também, ao ver os méritos dos agentes de outras
raças.

546
Esses aspectos da história complexificam a questão do racismo e ameniza a interpretação (e
acusação) de que ela seria racista. No plano dos valores, o que se vê é uma valoração da
igualdade entre as “raças”. Ela é vista no personagem Super (o racismo é sua grande
preocupação, embora ele seja prejudicado e vítima do mesmo, por ser descendente de outra
“raça”), no personagem Salaminho (que sempre defende o vice-presidente da acusação de
racismo ao deduzir por parte de conversas que ele está sendo bondoso com os agentes de outras
raças, em várias passagens e faz isso com um sorriso de simpatia pelo não-racismo), ou quando
Mortadelo, apoiado por Salaminho, atacam o vice-presidente quando estava batendo em um
indivíduo negro (que era o criminoso Servando, o Obscuro) ou, ainda, quando inventam
histórias para provocar a demissão do vice-presidente racista. O quadro final (veja imagem
acima), Mortadelo fala em “respeitar as raças” (e oferece preferência ao personagem negro).
Assim, no plano dos valores, o único personagem que se mostra racista e desvalorar as demais
raças, de forma consciente, é o vice-presidente.

Contudo, a história mostra que o seu criador tem uma concepção confusa de raça. Obviamente
que ele não é coerente com o conceito de raça enquanto diferenças fenotípicas (Viana, 2009a) e
nem com diversas outras concepções (Banton, 1979). Ao considerar que árabes, judeus, entre
outros, seriam “raças”, acaba se colocando numa concepção que não ultrapassa as
representações cotidianas (ilusórias), que teve como uma de suas expressões ideológicas o
nazismo, bem como outras concepções que confundem raça com etnia. Sem dúvida, isso
dificulta a análise, pois une duas coisas distintas (embora no mundo ideológico ou do
imaginário – representações cotidianas ilusórias – isso seja comum): preconceito étnico e
racismo (Viana, 2009b). No entanto, sua concepção é ainda mais confusa a esse respeito, pois
quando coloca as diferenças raciais no mundo animal e vegetal mostra um macaco esmagando
um rato (isso nada tem a ver com racismo ou diferença racial, pois macacos e ratos são de
diferentes espécies e não raças, já que a raça é uma divisão no interior de uma espécie ou
subespécie2 ). O que importa, para nossa análise, é destacar que o criador da história tem uma
percepção confusa e pouco desenvolvida sobre a questão das raças, do conceito de raça e, por
conseguinte, do racismo. Contudo, esse é apenas um detalhe, mas que mostra que os valores
estão ligados a um determinado saber e o criador demonstra não ter grande preocupação com o
tema e por isso reproduz representações cotidianas sobre o assunto.

Mas, para ter uma concepção mais ampla sobre quais valores são transmitidos por essa história
de Mortadelo e Salaminho, é necessário ir além do universo ficcional. Neste sentido, vamos
apresentar alguns elementos extraficcionais para tornar mais completa a análise dos valores em
O Racista. O primeiro ponto é o objetivo da história. O objetivo da história é tematizar a questão
do racismo. Mas além desse objetivo há o objetivo geral de todas as histórias em quadrinhos de
Mortadelo e Salaminho: o humor. A receita do sucesso destes personagens é o humor e esse é o
seu ponto fundamental. E o humor desses personagens, que tem inspiração em Asterix, e pode
ser tido como tendo semelhanças com Lucky Lucke, entre outros personagens europeus das
histórias em quadrinhos, é recheado de expressões faciais fortes e ações rocambolescas (alguns
diriam surreais), nas quais espanto, raiva, surpresa, são frequentes e unidas com os disfarces
quase mágicos de Mortadelo, as gags e quedas, chutes, armas que aparecem do nada, que
mostram a face violenta das histórias em quadrinhos destes personagens. A comicidade é um
elemento fundamental e sua fórmula se encontra nesses aspectos e nos diálogos e trapalhadas
dos personagens, marcadas por piadas, ironias, confusões, tragédias, etc.

2
As espécies podem ser divididas em subespécies e estas em raças e caso não exista subespécie em raças (ou não, dependendo do
caso concreto). No caso da humanidade, não existe subespécie, a não ser nos estudos arqueológicos em que se postula essa
possibilidade num passado remoto.

547
Isso ajuda a entender a história (o que é difícil para quem, por exemplo, só leu esta história
destes personagens e por isso não conhece o seu modos operandi de comicidade), pois se a
intenção de Mortadelo e Salaminho é ajudar os agentes de outras “raças”, estes sempre acabam
perdendo com a suposta ajuda. Isso poderia ser interpretado como racismo, pois os personagens
da suposta “raça superior”, mesmo ajudando (ou melhor, atrapalhando) os de “raça inferior”,
estes ainda saem perdendo. Aqui temos a ironia: querem ajudar, mas atrapalham. E é aí que
reside a comicidade. Se eles quisessem ajudar e tivesse resultado, então não haveria graça. Da
mesma forma, o quadro final no qual Mortadelo oferece preferência ao indivíduo negro só tem
graça devido sua frase anterior, o respeito pelas raças (ironicamente o seu respeito o faz colocar
o indivíduo de outra raça na frente num lugar onde há areia movediça). Da mesma forma, os
maus tratos que Mortadelo e Salaminho fazem com M´Orrongo, possuem comicidade, apesar de
demonstrar um certo racismo dos personagens. Assim, as histórias rocambolescas de Mortadelo
e Salaminho não podem ser “politicamente corretas” (esta, por exemplo, foi escrita em 1992) e
seu sucesso vem, justamente, da violência, do humor sem grandes preocupações com indivíduos
ou formas usuais de comportamento, etc. Nesse sentido, se compreende melhor a história e os
valores repassados pela mesma: nem tudo que acontece e é dito ou aparece, revela os valores do
criador da história e suas intenções, concepções, etc.

Contudo, outro elemento fundamental para entender a predominância valorativa da história,


reside em saber qual é a perspectiva da história, pois esta revela os valores do seu criador. Nesse
caso, seria necessário saber com qual personagem o criador se identifica e, por conseguinte,
utiliza para repassar seus valores. Em uma entrevista, ele responde ao entrevistador que lhe
indaga sobre por qual motivo estes dois personagens são tão perversos e ele responde:
“Sencillamente, porque la gente es así, y eso los convierte en personajes más reales. Y si no es
real, el gag no tiene tanta gracia. Estos son un par de cabroncetes, como la gente normal, como
la que puedes encontrarte en una oficina” (Ibañez, 2012, p. 04). Desta forma, apesar da
afirmação que “a gente é assim”, o que é uma generalização questionável, Ibañez mostra o real
motivo da perversidade dos personagens (não só pela violência, mas por outros elementos,
inclusive o tratamento racista de M´Orrongo): a comicidade.

Em uma outra pergunta, sobre um número especial sobre a copa do mundo de futebol de 1998,
no qual aparece um negro canibal da Papua Nova Guiné, na qual ele não temeria ser acusado de
“politicamente incorreto”, Ibañez responde:

Lo hago de una forma inconsciente y a veces he tenido problemas. Antes hablábamos de la


censura, pero es mucho peor la que muchos mensajes llevan en su barriga. Recuerdo que en una
viñeta saqué a Mortadelo desnudo, enseñando el culillo, y recibí la carta de una señora diciendo
que aquello era material pornográfico. De todo hay. Otros, hace años, a cuenta del miope
Rompetechos, que por cierto es mi personaje favorito, me decían que no estaba bien hacer burla
de un defecto físico. Tuve que contarles que el autor está en el mismo caso del personaje, que a
mí me quitan las gafas y han de llevarme de la mano. Así que en todo caso me estaba riendo de
mí mismo. En una ocasión quise referirme a Juan Guerra y se me ocurrió recurrir a un nombre
aproximado: Juanito Batalla. Bueno, pues enseguida recibí la carta del abogado de un tal Juan
Batalla que, al parecer, estaba cabreadísimo (Ibañez, 2012, p. 05).

Desta forma, o que se percebe é que o criador produz histórias com muitos elementos (como em
toda produção fictícia) espontâneos que brotam de sua imaginação e que para ele não tem
grande significado (consciente) e, por conseguinte, não revela valores e sim, geralmente,
sentimentos ou o inconsciente. O fato dele não se atentar para isso – ou seja, para a questão
racial – é revelador de que ele não é um antirracista, embora também não seja um racista

548
propriamente dito. É possível até dizer que ele reproduz elementos racistas por reproduzir as
representações cotidianas – ao buscar a comicidade e parecer “realista” para conseguir isso – e
talvez até mesmo por sentimentos e manifestações inconscientes, o que, no entanto, não poderia
ser concluído sem uma análise mais profunda do indivíduo, sua biografia e, em determinados
aspectos (as manifestações inconscientes) sem um conhecimento muito mais amplo de sua
história de vida, o que não possuímos e dificilmente algum pesquisador conseguirá
aprofundadamente. Obviamente que, por ter escolhido o personagem negro para o quadro
cômico final e ser o único que os dois personagens centrais fizeram piadas e maus tratos, é um
índice de pelo menos um processo psíquico inconsciente negativo em relação aos negros.

Na verdade, pelas próprias características das histórias em quadrinhos de Mortadelo e


Salaminho, mais centrada em ações rocambolescas e aventuras cheias de violência, gags, etc.,
então a manifestação através dos personagens é relativamente pequena. As manifestações
valorativas dos personagens, diretamente, são os desvalores do vice-presidente, que desvalora as
demais raças além da dele, e os valores do Super, Mortadelo e Salaminho, que valoram as
demais raças. Estes dois últimos personagens, por sua prática (e não por suas afirmações), caem
em contradição, pois também demonstram desvalorar as outras raças, especialmente os negros.
O narrador da história, que aparece nos quadros iniciais, naturaliza as diferenças e conflitos
entre as raças, mas como não assume posição favorável a nenhuma, e ainda mostra as ações
racistas dos “brancos” contra os índios, negros, judeus e “orientais”, então parece manifestar
uma valoração da igualdade racial e não da opressão racial. Claro que por “raça” se entenda
aqui o seu sentido nas representações cotidianas, que, engloba realmente a questão racial, mas a
confunde com religião e etnia.

Quais valores, então, predominam na referida história? O conjunto da história mostra que o
grande personagem racista, aquele que desvalora as demais raças além da sua própria, é o vice-
presidente e a história gira em torno dele, sendo que os demais personagens lutam contra ele,
especialmente Super, Mortadelo e Salaminho, sendo os dois últimos os principais protagonistas
dessas histórias em quadrinhos. O vice-presidente é derrotado no final da história e se vê
obrigado a engraxar sapatos dos bantus. Assim, é possível considerar que a predominância
valorativa é não-racista, pois os elementos racistas que se podem atribuir a Mortadelo e
Salaminho são derivados da comicidade típica dos personagens e não funcionaria se não usasse
estereótipos e outros elementos das representações cotidianas (o que é realizado
espontaneamente pelo criador3 e isso pode explicar sua não preocupação com a questão racial).
Nesse sentido, O Racista é predominantemente axionômica e não axiológica. Contudo, isso se
limita a esta história específica, pois é necessária uma análise mais ampla e de conjunto dos
valores repassados por outras histórias para uma análise conclusiva a este respeito em relação ao
caso geral das histórias em quadrinhos de Mortadelo e Salaminho, o que é objeto de outro
estudo, mais amplo e profundo. É possível que em determinada história isolada de um
personagem haja uma predominância valorativa que não expressa a predominância valorativa do
conjunto da obra, da mesma forma que apenas um quadro numa história não possa definir a
predominância valorativa do conjunto da história, mesmo porque existe sempre uma escala de
valores, bem como valores contraditórios nos criadores das histórias em quadrinhos e isso se
reproduz no universo ficcional de seus personagens. Assim, somente uma análise mais profunda
e do conjunto das histórias em quadrinhos de Mortadelo e Salaminho poderá expressar o seu
caráter geral, se é axiológica ou axionômico.

3
Isso pode ser visto em um dos seus primeiros personagens, Kokolo, da década de 1950 (Pérez, 2008).

549
Referências

BANTON, M. A Ideia de Raça. Lisboa, Edições 70, 1988.

FRONDIZI, R. Qué Son Los Valores? 3ª edição, Santiago: FCE, 1993.

IBAÑEZ, Francisco. Quiero que me sobrevivan mortadelo y filemón. Entrevista. El Periodico.


26 de abril de 1998. Disponível em:
http://www.mortadeloyfilemon.com/ibanez/articulos/006.htm Acessado em 21/07/2012.

MARQUES, Edmilson. Super-Heróis: Ficção e Realidade. In: REBLIN, Iuri e VIANA, Nildo
(orgs.). Super-Heróis, Cultura e Sociedade. Aproximações Multidisciplinares sobre o Mundo
dos Quadrinhos. São Paulo: Ideias e Letras, 2011.

PÉREZ, Fernando J. C. Los Comics de Francisco Ibañez. Cuenca, Ediciones de la UCLM,


2008.

VIANA, Nildo. Capitalismo e Racismo. In: SANTOS, Cleito P. e VIANA, Nildo (orgs.).
Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009ª.

VIANA, Nildo. Educação e Valores: Da Axiologia à Axionomia. In: SILVA, Luzia B. O.;
BARCELLOS, Ana C. K.; MARCON, Gilberto B. (OrgS.). Sobre teorias, teóricos e temas
relevantes em Educação. São Carlos: Pedro e João Editores, 2011.

VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé,
2005.

VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.

VIANA, Nildo. Quadrinhos e Crítica Social: O Universo Ficcional de Ferdinando.


Florianópolis: Bookess, 2012.

VIANA, Nildo. Raça e Etnia. In: SANTOS, Cleito P. e VIANA, Nildo (orgs.). Capitalismo e
Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009a.

550

Você também pode gostar