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BENEDETTI, Jean. Stanislavski – An Introduction.

Nova York: Theatre


Arts Books, 1982. Tradução de Laédio José Martins. Esta edição
eletrônica foi publicada na e-Livraria Taylor e Francis, 2005. Disponível
para download em:
84theater.com/main/download/18/

Stanislávski
Uma Introdução

Jean Benedetti

Um Livro Theatre Arts


Routledge
Nova York

1
Jean Benedetti nasceu em 1930 e estudou na Inglaterra e na
França. Formou-se [He trained] como ator e professor no Colégio Rose
Bruford de Oratória e Teatro [Rose Bruford College of Speech and
Drama], retornando em 1970 como diretor do Colégio até 1987.
Ele é autor de uma série de peças televisivas de
semidocumentário. Suas traduções publicadas incluem Eduardo II
[Edward II] e Um Casamento Respeitável [A Respectable Wedding], de
Brecht e Um Passeio de Domingo [A Sunday Walk], de Georges Michel.
Seu primeiro livro foi uma biografia de Gilles de Rais. Em 1982, ele
publicou a primeira edição de Stanislávski: Uma introdução [Stanislavski:
An Introduction], que foi reeditado várias vezes. Stanislávski: Uma
Biografia [Stanislavski: A Biography] foi publicado pela primeira vez em
1988 e então, revisado e expandido. Subsequentemente ele publicou As
Cartas do Teatro de Arte de Moscou [The Moscow Art Theatre Letters],
em 1991 e Querido Escritor... Querida Atriz, as cartas de amor de Anton
Tchekhov e Olga Knipper [Dear Writer… Dear Actress, the love letters of
Anton Chekhov and Olga Knipper], em 1997. Stanislávski e o Ator
[Stanislavski and the Actor], um relato dos ensinamentos de Stanislávski
nos últimos três anos de sua vida, em seguida, em 1998.
De 1979 a 1987 ele foi presidente da Comissão de Ensino do
Teatro do Instituto Internacional de Teatro [Theatre Education Committee
of the International Theatre Institute] (UNESCO). Atualmente é professor
honorário no Colégio Rose Bruford [Rose Bruford College] e no Colégio
Edimburgo da Universidade Rainha Margaret [Queen Margaret University
College Edinburgh].


Faleceu em 27/03/2012. N.T.

2
Livros de Stanislávski

A PREPARAÇÃO DO ATOR
O MANUAL DO ATOR
A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM
A CRIAÇÃO DO PAPEL
MINHA VIDA NA ARTE
STANISLÁVSKI NOS ENSAIOS
O LEGADO DE STANISLÁVSKI
STANISLÁVSKI NA ÓPERA

Livros de Jean Benedetti

STANISLÁVSKI: VIDA E ARTE


STANISLÁVSKI E O ATOR
AS CARTAS DO TEATRO DE ARTE DE MOSCOU
QUERIDO ESCRITOR, QUERIDA ATRIZ: AS CARTAS DE AMOR DE
ANTON TCHEKHOV E OLGA KNIPPER

3
Stanislávski
Uma Introdução

Jean Benedetti

Um Livro Theatre Arts


Routledge
Nova York

4
Um Livro Theatre Arts
Publicado nos EUA e no Canadá em 2004 pela
Routledge
Rua 35, 29 Oeste
Nova York, NY 10001
www.routledge-ny.com
Routledge é uma gráfica do Grupo Taylor & Francis.

Esta edição foi publicada na e-Livraria Taylor e Francis, 2005

“Para adquirir sua própria cópia deste ou de quaisquer dos milhares de


livros da Taylor & Francis ou das coleções da Routledge acesse
www.eBookstore.tandf.co.uk”.

Por acordo com a Methuen Publishing Limited.


© 1982, 1989, 2000 de Jean Benedetti

O direito de Jean Benedetti ser identificado como o autor deste trabalho


foi afirmado por ele em conformidade com [as Leis] dos Direitos Autorais,
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Biblioteca do Congresso Dados de Catalogação da Publicação

Benedetti, Jean.
Stanislávski : uma introdução / Jean Benedetti.
Originalmente publicado: Nova York : Theatre Arts Books, 1982.
Inclui referências bibliográficas e índice.
ISBN 0-87830-183-6
1. Método (Atuação) 2. Stanislávski, Constantin, 1863-1938. I. Título.
PN2062.B46 2004
792.02'8--dc22
2004002061

ISBN 0-203-99818-9 Master e-book ISBN

ISBN 0-87830-183-6 (Edição Impressa)

5
[v] Conteúdo

Lista de Abreviaturas...................................................................................7

Uma Breve Cronologia................................................................................8

Introdução..................................................................................................10

1. Fundamentos.........................................................................................14

2. O Desenvolvimento do ‘Sistema’..........................................................37

3. Escrevendo o ‘Sistema’.........................................................................77

4. O Método de Ação Física......................................................................90

5. A Progressão de uma Ideia.................................................................100

Apêndice 1...............................................................................................104

Apêndice 2...............................................................................................110

Índice de Tópicos....................................................................................111

6
[vi] Lista de Abreviaturas

As obras regularmente referidas estão indicadas pelas abreviaturas


a seguir. Todas as outras obras são indicadas por seu título integral.

De Stanislávski

SS Obras Completas [Sobranie Sochinenii (Collected Works)]; 8


vols. Moscou, 1951–1964; 9 vols. Moscou 1988–

KSA Arquivos Stanislávski [Stanislavski Archives], Museu do


TAM, Moscou.

De outros

SD Stanislávski Dirige [Stanislavski Directs], Nikolai M.


Gorchakov, Editora Minerva, Nova York, 1954.

MVTR Minha Vida no Teatro Russo [My Life in the Russian


Theatre], Vladimir Nemirovitch-Dantchenko, Theatre Art
Books, Nova York, 1968.

7
[vii] Uma Breve Cronologia

Os eventos biográficos a seguir estão referidos no texto. As datas


das montagens indicam a noite de estreia, e não o início dos ensaios.

1863 Nasce Constantin Sergueiêvitch Alexeiêv (Stanislávski).


1877 Forma-se o Círculo Alexeiêv.
1883 Stanislávski passa um breve período numa escola de teatro.
Encontra Glikeria Fedotova pela primeira vez.
1888 É dirigido por Fedotov em Os Litigantes [Les Plaideurs], de
Racine e Os Jogadores [The Gamblers], de Gogol.
Fundação da Sociedade de Arte e Literatura.
É dirigido por Fedotov em Georges Dandin, de Molière.
1890 Segunda turnê Russa da Companhia de Meiningen.
1896 Interpreta Otelo [Othello].
1897 Encontro com Nemirovitch-Dantchenko. Fundação do Teatro de
Arte de Moscou (TAM).
1898 Estreia do TAM (14 de Outubro) com a montagem de
Stanislávski de Tsar Fiodor Ivanovitch [Tsar Fyodor Ioannovich],
de Tolstoi.
1898 Dirige Hedda Gabler, interpreta Lövborg (Fevereiro).
Dirige a estreia de Tio Vânia [Uncle Vanya],* interpreta Astrov
(Outubro).
1900 Dirige Um Inimigo do Povo [An Enemy of the People], interpreta
Dr. Stockman (Outubro).
1901 Dirige a estreia de As Três Irmãs [Three Sisters],* interpreta
Vershinin (Janeiro).
[viii] Dirige O Pato Selvagem [The Wild Duck] (Setembro).
1902 Dirige a estreia de Pequenos Burgueses [Small People]
(Outubro) e a estreia de Ralé (No fundo) [The Lower Depths, no
Brasil, também conhecida por O Submundo],* de Gorki,
interpreta Satin (Dezembro).

8
1903 Interpreta Brutus em Júlio Cesar [Julius Caesar].
1904 Dirige a estreia de O Jardim das Cerejeiras [The Cherry
Orchard],* interpreta Gaev (Janeiro).
1905 Dirige Os Degenerados [Ghosts] * (Março) e estreia Os Filhos
do Sol [Children of the Sun] *, de Gorki (Outubro).
1906 Turnê do TAM pela Alemanha.
Crise de convicção.
Férias de verão na Finlândia. O começo do Sistema.
1907 Dirige O Drama da Vida [The Drama of Life], de Knut Hamsun
(Fevereiro) e A Vida do Homem [The Life of Man], de Andreiev
(Dezembro)
1909 Dirige Um Mês no Campo [A Month in the Country], interpreta
Rakitin (Dezembro).
1910 Interpreta [o General Krutitski] em Mesmo um homem Sábio
Tropeça [Enough Stupidity in Every Wise Man], de Ostrovski.
1911 Hamlet de Craig no TAM (Dezembro).
1915 Dirige e interpreta em Mozart e Salieri [Mozart and Salieri], e O
Cavaleiro Avarento [The Miser Knight] de Pushkin (Março).
1920 Dirige Caim [Cain], de Byron (Abril).
1922-3 Turnê [Norte] Americana.
1924 Edição [Norte] Americana de Minha Vida na Arte [My Life in Art].
1926 Edição Russa (revisada) de Minha Vida na Arte [My Life in Art].
1930 Escreve os planos de direção para Otelo.
1936 Edição [Norte] Americana de A Preparação do Ator [An Actor
Prepares], segunda edição Russa (revisada) de My Life in Art
[Minha Vida na Arte].
1938 Ensaia Tartufo [Tartuffe]. Morre antes da estreia.
Edição Russa de A Preparação do Ator [An Actor Prepares].

* Indica uma colaboração com Nemirovitch-Dantchenko.

9
[ix] Introdução

O Sistema Stanislávski não é uma abstração; é uma atividade e


uma prática. É um método de trabalho para atores a trabalhar. É um
sistema, porque é coerente, lógico – sistemático. Quem imagina que o
Sistema irá produzir resultados através de uma compreensão puramente
intelectual, uma compreensão em separado/destacada [detached
comprehension] de suas ideias básicas ficará desapontado. O Sistema
não é um modelo teórico [theoretical construct], ele é um processo. Os
textos de Stanislávski que possuímos são um guia para esse processo e
um convite para experimentá-lo direta, pessoal e criativamente.
Os textos, no entanto, são mais complicados do que parecem à
primeira [vista]. Stanislávski só viu dois livros impressos, Minha Vida na
Arte [My Life in Art] (publicado primeiramente na América [do Norte],
1924) e A Preparação do Ator [An Actor Prepares] (publicado
primeiramente na América [do Norte], 1936). Os outros textos que
possuímos, A Construção do Personagem [Building A Character] e A
Criação do Papel [Creating A Role], são reconstruções editoriais
baseadas em rascunhos e anotações existentes. Todos os livros, além
disso, com a possível exceção de Minha Vida na Arte [My Life in Art], o
qual foi revisado duas vezes, em 1926 e 1936, foram considerados por
Stanislávski como provisórios. Os Arquivos contêm material novo e
revisões que foram planejadas para edições subsequentes.
O objetivo do presente livro é fornecer um panorama [framework]
no qual os textos disponíveis possam ser lidos, fornecer informações
complementares que farão seu significado mais claro e [x] para colocá-los
no contexto da sequência de livros a qual Stanislávski planejou mas não
viveu para completar.
Em nenhum sentido ele é uma biografia. Uma vez que [Insofar] o
Sistema resulta da análise de Stanislávski de sua própria carreira,
elementos biográficos são usados para demonstrar a origem e a evolução
de suas ideias. Uma imagem pessoal completa, no entanto, não é a

10
tentativa [attempted]. Onde necessário, as linhas de questionamento são
seguidas fora da sequência cronológica. Quando certas posições básicas
às quais Stanislávski aderiu toda a sua vida estão em discussão, os
leitores irão, portanto, encontrar citações tiradas de diferentes períodos.
Sempre que possível, as citações são tiradas das edições em
Língua Inglesa. Há, contudo, diferenças substanciais entre os textos em
Inglês e a edição Soviética em oito volumes das Obras Completas
[Collected Works]. Onde uma escolha foi necessária, a edição Soviética
foi preferida. Um esboço das principais diferenças é dado no Apêndice.
Estou grandemente endividado com as sábias introduções aos volumes
individuais das Obras Completas de G. Kristi e V. H. Prokoviev. Também
fui muito ajudado por dois seminários sobre o Sistema Stanislávski
organizados pela Central Soviética do Instituto Internacional de Teatro
[Soviet Centre of the International Theatre Institute] em Outubro de 1979 e
Abril de 1981, quando foi possível consultar os principais diretores
soviéticos [leading Soviet directors], atores e professores sobre os
desenvolvimentos posteriores e o funcionamento dos métodos de
Stanislávski. Eu gostaria, além disso, de agradecer ao Professor Alexei
Bartoshevich, professor de História do Teatro no GITIS (Instituto Estatal
para as Artes Teatrais [State Institute for Theatre Arts]) por seus
generosos conselhos e orientação. Quaisquer mal-entendidos são, é
claro, inteiramente meus.

J.B.

[xi] Introdução à Segunda Edição


Nos sete anos desde que este livro foi escrito, muito material novo
sobre a vida e o trabalho de Stanislávski foi publicado na União Soviética
e mais material novo é prometido na futura [edição] das Obras Completas
em nove volumes. Algumas dessas informações foram disponibilizadas na
discussão. Minhas recentes pesquisas na preparação de uma nova
biografia de Stanislávski me fizeram modificar a minha interpretação de

11
certos aspectos do seu trabalho e [de sua] personalidade. Assim,
enquanto o principal argumento do livro permanece constante, parece
apropriado fornecer novos fatos significativos para modificar certos pontos
de ênfase.
J.B., Outubro, 1988

Introdução à Terceira Edição


Agora faz 18 anos desde que a primeira [edição] e 11 anos desde
que a segunda edição revisada do livro apareceram. Desde então, tenho
seguido meus próprios estudos e continuado a publicar outras obras
sobre Stanislávski, tirando proveito do novo material o qual se tornou
disponível desde a queda da ex-União Soviética e a abertura dos
arquivos. Enquanto o objeto do livro permanece o mesmo, para fornecer
um guia para as origens e o desenvolvimento do ‘sistema’ Stanislávski,
certo número de [xii] revisões tornaram-se essenciais. Na época em que o
livro foi escrito pela primeira vez, as traduções de Elizabeth Hapgood
eram a única fonte à qual os alunos e professores podiam recorrer. No
entanto, a maioria dos especialistas agora concorda que elas são
insatisfatórias e, por causa do corte e edição, não representam tampouco
o verdadeiro tom de voz de Stanislávski, ou às vezes o seu significado.
Removi, portanto, quase todas as citações e as referências às traduções
de Hapgood. Igualmente removi todas as citações da versão de Minha
Vida na Arte [My Life in Art] de J.J. Robbins, a qual é quase inteiramente
insatisfatória. Retraduzi todas as passagens relevantes dos originais
Russos. Uma nova importante fonte [de informações] têm sido os novos
nove volumes das Obras Completas os quais estão próximos da
finalização.
Há também o problema de terminologia. Aqui, mais uma vez, os
especialistas concordam que os termos que Elizabeth Hapgood inventou
para transmitir as ideias de Stanislávski, embora sejam familiares, não
são satisfatórios, e, ocasionalmente, [são] enganosos quando seu
emprego não é consistente. Os termos foram, portanto, substituídos por

12
aqueles que eu usei em Stanislávski e o Ator [Stanislavski and the Actor]
e na biografia recentemente revisada, Stanislávski: Vida e Arte
[Stanislavski: His Life and Art]. Um novo Apêndice Dois discute o uso
variável dos termos pelo próprio Stanislávski.

J.B. Janeiro, 2000

13
[1]  1
FUNDAMENTOS
[Se não] fosse ‘natural’ de Stanislávski, de seu talento – alguns
diriam [de] sua genialidade [his genius] – como ator encontrar uma saída
espontânea, imediata, não haveria Sistema. Ele levou anos de
persistência, [de] esforço incessante para remover os bloqueios e
barreiras os quais inibiam a livre expressão de seus grandes dons. Sua
busca pelas “leis” da atuação foi o resultado dessa luta.
A carreira de Stanislávski pode ser descrita como a evolução
dolorosa de uma criança apaixonada pelo palco [stage-struck] num
maduro e responsável artista e professor. Ele permaneceu apaixonado
pelo palco [stage-struck] até o fim, adorando o cheiro da goma-espírito
[spirit-gum] e [da] maquiagem [grease-paint]. Seu entusiasmo com o
teatro, com a representação/atuação [play-acting] manteve sua mente
fresca e aberta a novas ideias até o fim. Ao mesmo tempo, o teatro era,
para ele, um assunto da mais alta seriedade, tanto artística quanto moral.
Foi uma atividade disciplinada a qual exigiu dedicação e treinamento. O
que recebemos como o Sistema se originou de sua tentativa de analisar e
monitorar seu próprio progresso como artista e suas tentativas de
alcançar suas ideias como ator e encontrar seus próprios padrões de
desenvolvimento, e é ainda mais valioso por ter nascido de atividade
concreta uma vez que as soluções que ele encontrou foram vividas e não
o resultado de [2] especulação ou teoria abstrata. O Sistema é sua prática
examinada, testada e verificada. Embora ele tenha recebido ajuda de
atores e diretores ao longo do caminho, o Sistema é essencialmente
[uma] criação própria de Stanislávski. Pois, uma vez que os outros
podiam definir para ele os resultados que eram exigidos, eles não
poderiam definir o processo pelo qual aqueles resultados podiam ser
alcançados. Isso ele tinha que fazer por si mesmo. Minha Vida na Arte


A numeração entre colchetes de [1] a [112] é relativa aos números das páginas no
documento original. N. T.

14
[My Life in Art] é a história (nem sempre precisa) de seus fracassos;
falsos começos e sucessos.
Stanislávski nasceu em 1863, o segundo filho de uma família
devotada ao teatro. Ele fez sua primeira aparição no palco aos sete anos

de idade em uma série de tableaux vivants organizados por sua
governanta para celebrar o dia do nome de sua mãe. Quando ele tinha
quatorze anos seu pai transformou uma construção em sua propriedade
rural em Liubimovka em um teatro bem equipado. Mais tarde, um
segundo teatro foi construído na casa da cidade, em Moscou. A
verdadeira estreia de Stanislávski como ator foi em Liubimovka, em
Setembro de 1877, quando quatro peças de um ato, dirigidas por seu
tutor, foram encenadas para inaugurar o novo teatro. Como resultado
daquela noite, um grupo amador, o Círculo Alexeiêv, foi formado,
composto dos irmãos e irmãs de Stanislávski, [seus] primos e um ou dois
amigos.
É nesta data que se pode dizer que começou conscientemente a
carreira artística de Stanislávski. Durante o período de 1877 a 1906, o
qual ele descreve como sua Infância e Adolescência,  ele encontrou os
problemas fundamentais de atuação e direção os quais ele resolveu tão
bem quanto pode.
Ele passou o dia daquele 05 de Setembro, de acordo com sua
própria narrativa [account], em um estado de excitação extrema,
tremendo todo em sua ânsia de subir no palco [to get on stage]. Na
ocasião [In the event] a [3] performance produziu mais perplexidade do
que satisfação. Ele apareceu em duas das peças, Uma Xícara de Chá [A
Cup of Tea] e O Velho Matemático [The Old Mathematician]. Na primeira,
ele se sentiu completamente à vontade. Ele foi capaz de copiar a
performance de um ator famoso que ele tinha visto, até o último detalhe.
Quando a cortina caiu ele estava convencido de que havia dado uma
esplêndida performance. Ele foi logo desiludido. Ele tinha sido inaudível.


Quadros vivos. Em Francês, no original. N. T.

Alexeiêv era o nome de família. Stanislávski era um nome artístico.

SS. Vol. 1, pp. 53-153.

15
Ele balbuciou e suas mãos estavam num tal estado de constante
movimento que ninguém podia acompanhar o que ele estava dizendo. Na
segunda peça, a qual lhe tinha dado muito mais problemas nos ensaios,
ele foi, em comparação, muito melhor. Ele estava sem saber [He was at a
loss] [como] resolver a contradição entre o que ele sentia e o que o
público tinha experimentado. Como ele podia sentir-se tão bem e atuar
tão mal? Sentir-se tão desconfortável e ser tão eficaz?
Sua resposta ao problema foi crucial. Ele começou a manter um
caderno de anotações [notebook], no qual ele registrou suas impressões,
analisou suas dificuldades e esboçou soluções. Ele continuou esta prática
ao longo de sua vida, de modo que os Cadernos de Anotações
[Notebooks] abrangem cerca de sessenta e um anos de atividade.  É
característico de Stanislávski que ele nunca tenha se esquivado de
contradições ou recusado o paradoxal. Ele trabalhou através deles.
Suas frequentes visitas ao teatro lhe proporcionaram modelos e
exemplos. No Teatro Maly – sua ‘universidade’ – como ele o chamou –
ainda havia os sobreviventes de uma outrora grande companhia. Ele
também foi capaz de ver os artistas estrangeiros tais como Salvini e
Duse, que apareceram em Moscou durante a Quaresma, quando os
atores russos eram proibidos pela igreja de representar. O contraste entre
a facilidade, a naturalidade e o fluxo do ator de gênio e seus próprios
esforços desesperados, ou tagarelando [4] inaudivelmente ou gritando, ou
rígido de tensão ou com os braços de todo agitados, fez um profundo
efeito sobre ele. Eles criavam, ele podia somente imitar mais ou menos
bem o que os outros tinham feito antes. A tentativa de descobrir em que
consistia a ‘naturalidade’ do grande ator é a semente da qual o Sistema
germinou.


Extratos dos Cadernos de Anotações estão publicados em Atores em Atuação [Actors
on Acting], de Cole e Chinoy (ed.) pp. 485-90.

16
Escola de Teatro
Em 1885, aos vinte e dois anos de idade Stanislávski entrou numa
escola de teatro. A experiência durou três semanas. Sua rápida partida foi
causada em parte pelo fato de que ele não podia comparecer em tempo
integral. Ele terminou cedo seus estudos e foi para o negócio [business]
têxtil da família. Ele nem sempre podia ficar longe do escritório. Mais
importante, porém, foi seu rápido reconhecimento do fato de que a escola
não podia lhe dar o que ele estava procurando – um método de trabalho
devidamente pensado, um meio de aparelhar sua própria criatividade
natural. Não só a escola falhou em fornecer tal método, ela não podia
sequer conceber que tal método existisse. Tudo que seus professores
podiam fazer era indicar os resultados que eles queriam, não os meios
para alcançá-los. Na melhor das hipóteses, eles podiam passar os
truques técnicos que eles mesmos haviam adquirido.
O jovem Stanislávski precisava de orientação e disciplina severas.
A maior barreira para o seu desenvolvimento como um artista era sua
imagem de si mesmo como ator. Ele via a si mesmo continuamente em
arrojados papéis ‘românticos’. Foi o que ele mesmo definiu como seu
problema das ‘botas Espanholas’. Botas Coxa/de cano alto [Thigh boots],
uma espada e um manto eram fatais para ele. Qualquer progresso que
ele pudesse ter feito rumo à verdade e à naturalidade eram
imediatamente eliminados. Ele tornava-se um estereótipo da comédia-
musical – todo arrogante e bombástico. A única professora na escola de
teatro que poderia ter sido de alguma ajuda para ele, Glikeria Fedotova,
deixou-a aproximadamente ao mesmo tempo em que ele o fez. Ele foi
afortunado o suficiente para encontrá-la [5] novamente mais tarde, assim
como ao seu marido, num momento crítico em sua carreira.

Um Teatro em declínio
O Teatro Russo no último quarto do século XIX estava em mau
estado [poor state]. Havia as grandes estrelas do Teatro Maly a quem
Stanislávski descreve em termos de tamanha admiração e afeição, mas

17
eles eram principalmente da geração mais velha e estavam cercados de
mediocridade. O monopólio dos teatros imperiais tinha sido abolido em
1882. Posteriormente gerências comerciais investiram nas peças para
obter lucros rápidos. Como Stanislávski observou, o teatro foi controlado
por atendentes de bar [barmen] de um lado e por burocratas do outro.
Alguns poucos indivíduos brilhantes reluziam aqui e ali.
De um modo geral, a observação da prática profissional só poderia
mostrar a Stanislávski o que evitar. Em um manuscrito não publicado ele
descreve um típico período de ensaio. Primeiro vinha a leitura e a seleção
dos vários papéis. Alguma discussão do significado da peça era
supostamente para acontecer, mas geralmente não havia tempo
suficiente. Aos atores era deixado que encontrassem o seu próprio
caminho. Então vinha o primeiro ensaio.

Aconteceu no palco com algumas velhas mesas e cadeiras


como um cenário [a set]. O diretor explicou a ambientação [the
decor]: uma porta central, duas portas de cada lado etc.
No primeiro ensaio os atores leram suas falas com o livro na
mão e o ponto ficou em silêncio. O diretor sentou-se no proscênio e
deu suas instruções ao elenco. ‘O que devo fazer aqui?’, perguntou
um ator. ‘Sente-se no sofá’, o diretor respondeu. ‘E o que eu
deveria estar fazendo?’ pede outro. ‘Você está nervoso, retorce as
mãos e anda para cima e para baixo’, ordena o diretor. ‘Não posso
me sentar?’ O ator persiste. ‘Como você pode [6] possivelmente
sentar-se quando você está nervoso?’ replica o aturdido diretor.
Assim o primeiro e o segundo atos são definidos. No dia seguinte,
que quer dizer o segundo ensaio, o trabalho continua da mesma
maneira com o terceiro e o quarto atos. O terceiro e, às vezes, o
quarto ensaio consistem em passar pela coisa toda outra vez; os
atores se movem pelo palco, memorizando as instruções do diretor,
lendo suas falas à meia voz por exemplo, um sussurro,
gesticulando fortemente na tentativa de despertar algum
sentimento.
No próximo ensaio as falas devem estar decoradas. Nos teatros
com dinheiro isso pode durar um ou dois dias, e outro ensaio é
organizado no qual os atores representam sem o texto [script], mas
ainda à meia voz. O ponto, contudo, trabalha a plena voz.

18
No próximo ensaio espera-se que os atores representem a plena
voz. Então começam ensaios gerais com maquiagem, figurino e o
cenário. Finalmente, há a apresentação [performance].

Este parece ter sido um caso comparativamente disciplinado. Na


maioria das vezes os atores simplesmente assumiam [took over],
ignorando o diretor, se contentando com o que eles sabiam melhor. Uma
atriz iria se deslocar para a janela ou para a lareira sem nenhuma razão
melhor de que aquilo era o que ela sempre fez. O texto [script] significava
menos do que nada. Às vezes, o elenco nem mesmo se preocupava em
decorar/aprender [to learn] as suas falas. Os atores principais
simplesmente se plantavam ao centro na frente do palco, perto da caixa
do ponto, esperando para serem alimentados com as falas e, em seguida,
entregá-las diretamente para o público com uma voz sonora [ringing
voice], dando uma bela aparência [fine display] de paixão e
‘temperamento’. Todos, na verdade, davam suas falas na frente. A
comunicação [7] direta com outros atores era mínima. A mobília era então
organizada de modo a permitir que os atores se colocassem de frente.
Os cenários eram tão estereotipados quanto a atuação:
coxias/biombos [wings], painéis de fundo tirados do depósito [back-drops
taken from stock], portas convencionalmente colocadas, ficando [standing]
isoladas no espaço sem nenhuma parede circundante. Os figurinos
também eram ‘típicos’. Quando Stanislávski tentou ter figurinos feitos para
projetos [designs] específicos foi-lhe dito, com alguma aspereza, que
havia desenhos [designs] padrão para tipos de personagens e [assim]
continuaria a ser. Não havia nenhuma sensação de necessidade por
mudança ou renovação. O teatro amador refletia a prática do profissional,
só que pior.
Se Stanislávski quisesse modelos ou orientação ele teria que olhar
para trás uma geração ou até mais, para os grandes dias do Teatro Maly,
quando os padrões artísticos tinham sido estabelecidos e a disciplina


KSA. nº. 1353 pp. 1-7. O ponto aqui fala o texto continuamente, como na ópera. A caixa
é colocada ao centro na frente do palco em nível com a ribalta.

MVTR. pp. 96-8.

19
imposta por dois homens de gênio, o ator Mikhail Shchepkin e o escritor
Nikolai Gogol. Os atores que Stanislávski tanto admirava eram
impressionantes não somente porque eles tinham talento, mas porque
eles tinham sido treinados/formados [trained] na escola, onde foram
dados os primeiros passos na direção de um teatro genuinamente Russo
e na criação de um estilo genuinamente Russo – o Realismo.

Shchepkin
Mikhail Shchepkin (1788-1863) nasceu um servo na propriedade do
Conde Wolkenstein. Era prática comum entre os membros da aristocracia
Russa no século XVIII criar companhias de atores compostas por seus
servos mais talentosos. Esses servos não raramente recebiam uma
educação ao mesmo nível dos filhos de seus senhores.
O estilo de atuação predominante era ainda mais
convencionalizado do que durante a juventude de Stanislávski. Os atores
entoavam suas [8] falas num tom altamente declamatório [high
declamatory tone]. De acordo com as Memórias de Shchepkin
[Shchepkin’s Memoirs],

O jogo dos atores era considerado bom quando nenhum deles


falava em sua voz natural, mas num tom totalmente artificial,
quando as palavras eram proferidas numa voz alta e quando cada
uma delas era acompanhada por um gesto. As palavras ‘amor’,
‘paixão’, ‘traição’ eram gritadas tão alto quanto possível, mas a
expressão facial não contribuía para o efeito, uma vez que se
mantinha invariavelmente tensa e pouco natural.

Ao fazer uma saída, era obrigatório levantar a mão direita. Além


disso, era considerado falta de educação um ator virar as costas para o
público, de modo que todas as saídas tinham que ser feitas [com os
atores] voltados para frente. Os membros do elenco despendiam uma
grande quantidade de tempo, esforço e engenho/criatividade [ingenuity]
na elaboração de métodos de sair do palco sem infringir esta regra.


Shchepkin, Mikhail, Vida e Criatividade [Zhizn í Tvorchestvo] Vol. 1, p. 104 (Moscow
1984).

20
As convenções da encenação eram igualmente rígidas. A área de
atuação era dividida em duas partes, fundo do palco e frente do palco,
uma móvel, a outra imóvel. A área imóvel, onde os atores posavam
impressionantemente, era reservada para os personagens aristocráticos,
cuja casa era representada naquele lado do palco. A área móvel era o
domínio dos personagens vindos do mundo exterior, das ordens
inferiores, cujos modos de sair eram mais agitados, ou seja, menos
dignos. Alternativamente, o palco podia ser dividido horizontalmente, da
esquerda para a direita; os papéis principais à frente do palco, os papéis
de apoio ao centro, os papéis menores ao fundo do palco.
Estas eram as convenções nas quais Shchepkin, que apresentou
talento precoce, foi educado. Em 1810, no entanto, ele viu [9] o príncipe
Meshcherski numa comédia de Soumarov, O Dote Suposto [The
Supposed Dowry]. O estilo de atuação do príncipe era muito diferente do
restante do elenco. Havia uma quase total ausência de gestos e sua
saída era natural. Shchepkin registrou em suas Memórias [Memoirs] que
ele não ficou, a princípio, impressionado. Isso não era ‘atuar’. Era muito
parecido com a vida real. E ainda assim, houve momentos
impressionantes.

É curioso, mas apesar da simplicidade de sua atuação, que eu


considerava uma incapacidade de atuar corretamente, quando,
conforme sua parte progrediu, havia qualquer questão de dinheiro
e você podia ver como a sua alma era assolada e, naquele
momento, esquecemos todos os outros atores. O medo da morte, o
medo de perder o seu dinheiro foi surpreendente e apavorante na
atuação do príncipe e não foi de nenhum modo diminuído pelo
estilo simples no qual ele falava.

Até o final da apresentação, Shchepkin estava se perguntando se o


príncipe não estava certo e ele errado.
Algum tempo depois, ele encontrou-se interpretando o mesmo
papel e sem sucesso. Ele não podia falar naturalmente no palco; seus
hábitos declamatórios estavam muito arraigados. Não era bom tentar


Shchepkin, op. cit, pp. 102–3.

21
imitar o príncipe se não pudesse criar o processo interior pelo qual
Meshcherski tinha alcançado seus resultados.
Um acidente veio para o [seu] resgate. Um dia ele estava
ensaiando Sganarelle de Escola de Maridos [School for Husbands], de
Molière. Ele estava cansado e esgotado de energia e começou a ‘só dizer’
as falas. O resultado foi uma revelação.

[10] Eu percebi que eu tinha dito algumas palavras de um jeito


perfeitamente simples, tão simples que [se] eu as tivesse dito na vida e
não numa peça, eu não as teria dito de outra forma.

O caminho estava aberto para um novo estilo de atuação – o


Realismo. Foi o gênio de Shchepkin que pegou o que ele inicialmente, em
comum com seus colegas atores, considerava incompetência e
transformou-a em um novo e positivo método de trabalho.
A reputação de Shchepkin cresceu. Seus admiradores planejavam
comprar sua liberdade e, depois de algumas dificuldades, a conseguiram
em 1822. No ano seguinte, ele se juntou ao Teatro Imperial em Moscou e
em 1824 apareceu na apresentação de inauguração, em 14 de outubro,
do Teatro Maly.
Ele atuou continuamente no Maly por quarenta anos, de modo que
o teatro, com o tempo, passou a ser conhecido como a Casa de
Shchepkin, tanto quanto a Comédie Française é conhecida como La
Maison de Molière. Pushkin, Gogol, Lermontov e Griboiedov estavam
entre seus admiradores.
Shchepkin proveu Stanislávski com um modelo, em suas ideias e
em sua abordagem para a atuação. Ele definiu o que viria a ser o
problema central para Stanislávski: um ator sente o seu papel ou ele imita
sua [aparência] exterior? O público pode dizer a diferença? Shchepkin
não minimiza as dificuldades ou contorna as contradições das
experiências de cada ator na abordagem de um papel com algum grau de


Ibid., p. 104.

Maly (Pequeno), em oposição à Bolshoi (Grande), onde eram apresentados Ópera e
Ballet.

22
seriedade. Ele aponta a diferença entre o que Stanislávski veio a chamar
a personalidade ator, que é sempre e somente ele mesmo, e o
personagem ator, que tenta entrar na pele do personagem. Ele também
estabelece a ligação [11] essencial entre o social e o pessoal, entre a
capacidade do ator de estar aberto para o mundo à sua volta e o criar
seres humanos em particular. Ele esboçou seus pontos [de vista] em uma
carta para a atriz Aleksandra Schubert, em Março de 1848:

...Um ator não chora no palco, mas dá, por assim dizer, uma
aparência de lágrimas, [e] faz o público chorar, outro ator se banha
em lágrimas amargas, mas o público não compartilha seus
sentimentos. Pode-se então concluir que os sentimentos reais não
são necessários no teatro, um artifício meramente frio, o ofício do
ator? Posso estar errado, mas não! Como posso expressar meus
pensamentos mais claramente? Por exemplo, uma pessoa que foi
dotada pela natureza com uma alma que tem uma afinidade natural
com tudo o que é belo e bom; tudo o que é humano é caro a ele,
ele não se distingue. Não importa com quem ele esteja, qualquer
que seja sua posição na vida, ele sente suas alegrias e aflições, ele
é apaixonado em sua compreensão como se ele mesmo estivesse
preocupado e por isso ele irá chorar e rir com eles. Outro homem,
muito mais ligado a si mesmo, mais autocentrado, vive no mundo
encontrando a tristeza e o riso a cada passo mas só vai participar
de um ou outro na medida em que ele estiver ligado socialmente às
pessoas envolvidas, ou porque é útil expressar sua simpatia [...];ele
irá lamentar com alguém de quem tenha sido roubado mil rublos
mas nunca entraria em sua cabeça o quanto é custoso para um
mendigo perder seu último rublo; ele irá lamentar com algum nobre
cuja esposa foi seduzida mas ele não levantará uma sobrancelha,
se ele for informado de que este nobre tenha cruzado seu caminho
com a mulher de seu cocheiro. Essas pessoas julgam tudo
friamente mas de modo a não se revelarem como os egoístas que
são, eles dão uma mostra de preocupação, como se fosse uma
preocupação real, e uma vez que estão sempre calmos e serenos
se expressam com [12] grande clareza. É o mesmo no teatro: é
muito mais fácil transmitir tudo mecanicamente, por que tudo que
você precisa é de razão e, pouco a pouco, sua razão irá se
aproximar da alegria e da tristeza na medida em que uma imitação
pode aproximar-se do item/artigo [article] genuíno. Mas [com] um
ator de coração aberto, é outra questão; tarefas indescritíveis se
esperam dele: ele deve primeiro começar por anular a si mesmo
[blotting himself], sua própria personalidade, sua própria
individualidade, e se tornar o personagem que o autor tenha dado a
ele; ele deve andar, falar, pensar, sentir, chorar, rir do jeito que o

23
autor quer dele – e você não consegue fazer isso se não tiver se
anulado [blotted yourself out]. Você vê o quão mais significativo é
este tipo de ator! O primeiro tipo meramente finge, o segundo é a
coisa real.

Shchepkin também identificou um problema que esteve


preocupando Stanislávski ao longo de sua carreira: por que é que o ator
que finge pode ganhar a simpatia de um público enquanto um ator que
trabalhou duro e é ‘sincero’ os deixam frios? O problema pode muito bem
ser que quando ele ri ou chora ele esteja fazendo isso como ele mesmo, e
não como o personagem.

[...] Você pode dizer que a perfeição que eu procuro é


impossível; Não, é apenas difícil! Você me pergunta por que
devemos nos esforçar por algum tipo de perfeição quando há
maneiras mais fáceis de agradar um público? Poderíamos
igualmente bem perguntar: por que temos a arte? Então, meu caro
amigo, estude-a como algo preciso e exato, não como uma farsa.

Shchepkin impôs uma disciplina rigorosa sobre si mesmo. Numa


carreira de 50 anos, ele nunca perdeu um ensaio e nunca se atrasou. Ele
não esperava menos dedicação dos outros.

[13] Nós ainda não alcançamos uma ideia adequada da verdadeira


aplicação ao trabalho, por isso devemos prestar atenção a nós
mesmos, de outro modo vamos cair na típica atitude Russa do
porventura [perhaps] e talvez [maybe], os quais em arte, não
produzem nada.

Para Shchepkin, a individualidade do ator, seu jeito particular de


fazer e dizer as coisas, era de suma importância. Ao mesmo tempo todos
os dons e talentos do ator tem que estar subordinados ao tema central da
peça.

Gogol
Ele encontrou um aliado natural em Gogol (1809-1852). Na
verdade era tal [a] afinidade de seus pontos de vista que é uma questão


Shchepkin, op. cit., pp. 199-200.

24
de disputa acadêmica sobre quem mais influenciou quem. O próprio
Gogol era um ator extremamente talentoso. Significativamente, ele
fracassou num teste [audition] para o Teatro Imperial porque seu
desempenho foi muito simples, muito ‘real’.
Ator e autor, fez causa comum contra o repertório corrente [current]
que consistia principalmente de imitações do teatro Francês. Eles
conseguiram através de seu trabalho no Maly criar um teatro o qual tinha
algo a dizer sobre a sociedade Russa contemporânea e um estilo de
atuação que se baseou na verdadeira observação e não na convenção.
Gogol expressou suas ideias no Observações de [São]
Petersburgo [Petersburg Notes] de 1836, [no] seu Conselho Àqueles que
Querem Representar ‘O Inspetor Geral’ Como Ele Deveria Ser
Representado [Advice to Those Who Would Play ‘The Government
Inspector’ as It Ought to be Played] (c. 1846) e em suas cartas.
Ele disse do repertório contemporâneo:

O estranho tornou-se o assunto do teatro [drama]


contemporâneo... assassinatos, incêndios, as paixões mais
selvagens as quais não têm lugar na sociedade contemporânea!...
Carrascos, venenos – um esforço constante pelo efeito; nenhum
único personagem inspira qualquer simpatia que seja! Nenhum [14]
espectador nunca deixa o teatro tocado, em lágrimas; pelo
contrário, ele sobe às pressas em sua carruagem, num estado de
ansiedade e é incapaz de reunir seus pensamentos por um longo
tempo.

Do efeito sobre o ator:

A situação do ator Russo é lamentável. Em torno dele toda uma


nação jovem pulsa e ferve e lhes dão personagens que ele nunca
viu. O que ele pode fazer com esses heróis estranhos, que não são
nem franceses, nem alemães, mas pessoas bizarras, totalmente
desprovidas de paixões definidas e características distintas? Onde
ele poderá exibir sua arte? Sobre o que ele poderá desenvolver o
seu talento? Pelo amor de Deus nos deem personagens Russos,
deem-nos nós mesmos – nossos malandros, nossos excêntricos. ...
Na verdade está mais do que na hora de aprendermos que


O Teatro de Nikolai Gogol, pp. 166-7.

25
somente uma caracterização/representação fiel [faithful rendering]
dos personagens – não características em geral estereotipadas,
mas em formas nacionais tão marcantes em sua vitalidade que
somos compelidos a exclamar: ‘Sim, essa pessoa parece-me
familiar’ – somente tal caracterização/representação [only such a
rendering] pode ser de verdadeira utilidade [can be of genuine
service]. ... Nós transformamos o teatro num brinquedo
[plaything]... algo como um chocalho/guizo [rattle] usado para atrair
as crianças, esquecendo-se de que ele é uma tribuna a partir da
qual uma lição viva é dita para uma multidão inteira...

Mais especificamente, ele aconselha os atores:

Acima de tudo, cuidado de [não] cair na caricatura. Nada deveria


ser exagerado ou banalizado, nem mesmo os papéis menores. ...
Quanto menos um ator pensar sobre ser engraçado ou fazer o
público rir, mais os elementos cômicos de sua parte irão surgir. O
[15] ridículo irá emergir espontaneamente através da própria
seriedade com que cada personagem está ocupado com seus
próprios assuntos/negócios [affairs]. Todos eles são apanhados em
seus próprios interesses, ansiosos e excitados, mesmo fervorosos
[bustling and fussing, even fervent], como se defrontados com a
tarefa mais importante de suas vidas. Somente o público, da sua
posição de destaque [detached position], pode perceber a vaidade
de suas preocupações. Mas eles mesmos não brincam de todo, e
não têm nenhuma suspeita de que alguém está rindo deles. O ator
inteligente, antes de apoderar-se das esquisitices mesquinhas e
peculiaridades superficiais de sua parte, deve se esforçar para
capturar aqueles aspectos que são comuns a toda humanidade.
Ele deve considerar a finalidade do seu papel, a principal e
predominante preocupação de cada personagem, o que é que
consome sua vida e que constitui o objeto permanente de seus
pensamentos, sua ideia fixa [idée fixe]. Tendo apreendido esta
preocupação principal, o ator deve assimilá-la tão completamente
que os pensamentos e anseios de seu personagem parecem ser
seus próprios e permanecem constantemente em sua mente ao
longo da performance. ... Portanto, deve-se primeiro atingir [grasp]
a alma de um papel [the soul of a part], não a sua roupa.

Escrevendo para Shchepkin em 16 de Dezembro de 1846, ele


disse:


Ibid.

Nikolai Gogol, pp. 169-70.

26
É essencial que você repasse [replay] cada papel, mesmo que
apenas mentalmente; que você sinta a unidade da peça e a leia
aos atores várias vezes, para que eles possam involuntariamente
assimilar o verdadeiro significado de cada frase..., apresente... os
atores à própria essência de seus papéis, para um compasso
respeitável e correto em seu discurso/sua fala [to a dignified and
correct measure in their speech] – você entende? – uma nota falsa
não deve ser ouvida. ... Extirpe a caricatura completamente e leve-
os a compreender que um ator não deve apresentar, [16] mas
transmitir. Ele deve, antes de tudo, transmitir as ideias,
esquecendo-se as esquisitices e peculiaridades da pessoa.

Stanislávski veio a considerar-se como o sucessor natural de


Shchepkin. Simbolicamente, quiçá [perhaps], ele tenha nascido no dia em
que Shchepkin morreu, 18 de Janeiro de 1863.

Realismo
Stanislávski não fornece qualquer explicação ordenada do modo
pelo qual ele tornou-se familiarizado com os ensinamentos de Shchepkin.
Shchepkin está em Minha Vida na Arte [My Life in Art] como uma
presença que a tudo permeia. Nas páginas 85-6 há uma citação
substancial de uma carta ao ator Shumsky em que Stanislávski descreve
como sendo de ‘enorme, importância prática’. Nos Arquivos Stanislávski
uma edição copiosamente anotada das Cartas de Shchepkin está
[disponível] para ser pesquisada/encontrada [is to be found]. Em 1908, no
décimo aniversário do Teatro de Arte de Moscou, Stanislávski reafirmou
publicamente a sua intenção de continuar no caminho trilhado por
Shchepkin. Ao fazê-lo ele colocou-se lado a lado com Gogol, Ostrovski e
a tradição Realista.
A atividade madura de Stanislávski somente pode ser entendida se
ela for vista como enraizada na convicção de que o teatro é um
instrumento moral, cuja função é civilizar, incrementar a sensibilidade,
elevar a percepção e, em termos agora possivelmente fora de moda para
nós, enobrecer a mente e elevar o espírito. O melhor método de atingir
esse fim foi a adesão aos princípios do Realismo. Foi mais do que uma


Shchepkin op. Cit., p. 177.

27
questão de preferência estética ou uma predileção por um ‘estilo’ acima
dos outros ‘estilos’. Foi uma questão de afirmar a primazia do conteúdo
humano do teatro acima de outras considerações, do [17] conteúdo sobre
a forma. Stanislávski foi implacavelmente contrário às convenções sem
sentido, ao ‘Teatro’ no teatro, o que ele odiava. Ele não se opôs menos,
mais tarde na vida, aos experimentos de vanguarda [avant-garde], os
quais ele considerava terem reduzido o ator a um objeto mecânico. Atores
desumanizados levam a percepções desumanas.
É importante definir o que Stanislávski entendia pelo termo
Realismo e distingui-lo do Naturalismo, uma palavra que ele normalmente
empregava num sentido puramente pejorativo. O Naturalismo, para ele,
implicava a reprodução indiscriminada da superfície da vida. O Realismo,
por outro lado, ao passo que obtém seu material do mundo real e da
observação direta, seleciona apenas aqueles elementos que revelam as
relações e tendências que se encontram sob a superfície. O restante é
descartado. Falando ao elenco de A Desgraça de ter Espírito [ou Ai de
Mim, Woe from Wit] em 1924, em termos que ecoam de perto Gogol,
Stanislávski disse:

Muitas vezes fomos e ainda somos acusados de cair numa


expressão Naturalista de detalhes em nossa busca do Realismo da
vida e da verdade em nossas ações no palco. Onde quer que
tenhamos feito isso estávamos errados. ... O Realismo na arte é o
método que ajuda a selecionar apenas o típico da vida. Se às
vezes somos Naturalistas em nosso trabalho de palco, isso só
mostra que nós ainda não sabemos o suficiente para sermos
capazes de penetrar na essência histórica e social dos eventos e
personagens. Nós não sabemos como separar o principal do
secundário e, portanto, enterramos a ideia com detalhes dos
maneirismos da vida. Esse é o meu entendimento do Naturalismo.

Falando à Nikolai M. Gorchakov, então um jovem diretor em 1926,


ele disse:


SD. p. 143.

28
[18] Eu quero que você se lembre desta regra teatral fundamental:
estabeleça verdadeiramente e com precisão os detalhes que são
típicos e o público terá uma noção do todo, por causa de sua
habilidade especial para imaginar e completar na imaginação o que
você sugeriu.
Mas o detalhe deve ser característico e típico de tudo o que você
quer que o público veja. É por isso que o Naturalismo é venenoso
para o teatro. O Naturalismo distrai/ilude [cheats] o público de seu
principal prazer e de sua satisfação mais importante, aquela de
criar com o ator e completar na sua imaginação o que o ator, o
diretor e o cenógrafo [designer] sugerem com suas técnicas.

Ao insistir sobre a função social do teatro, Stanislávski colocou a si


mesmo dentro de uma tradição que remonta muito além de Gogol. Pedro,
o Grande criou teatros expressamente para continuar a sua campanha
pela ocidentalização de seu reino. Sua sucessora, Catarina, a Grande, foi
um passo além, escrevendo peças, as quais foram apresentadas,
anonimamente, com a intenção evidente de educar seu povo.

O teatro é a escola do povo e deve estar sob meu controle. Eu


sou a principal professora e devo responder a Deus pela
conduta de meu povo.

Perto do fim de sua vida Stanislávski contou uma história para


Vasili Toporkov, a qual ilustra a força de sua convicção. Ele estava em
turnê em São Petersburgo. Os ensaios tinham ido até as primeiras horas
da manhã. Saindo do teatro, ele viu uma multidão de pessoas. Era uma
noite fria e fogueiras tinham sido acesas na praça:

[19] Alguns se aqueciam nas fogueiras, esfregando as mãos, as


pernas, as orelhas; outros estavam de pé em grupos, discutindo
animadamente. A fumaça das fogueiras subia, a multidão
murmurava a mil vozes. O que era isso? ‘Essas pessoas estão à
espera de bilhetes para sua montagem’, pensei. ‘Meu Deus, que
responsabilidade temos para satisfazer as necessidades espirituais
dessas pessoas que ficaram paradas aqui congelando a noite toda;
que grandes ideias e pensamentos devemos trazer a eles’.


SD. p. 333.

Evreinov, História do Teatro Russo [Istorija Russkogo Teatra] (Bradda Books), p. 172.

29
Então, considere bem, se temos o direito de acertar as contas
com eles contando-lhes apenas uma anedota engraçada. ... Eu
senti que as pessoas a quem eu tinha visto na praça mereciam
muito mais do que tínhamos preparado para elas.

Stanislávski permaneceu, no entanto, consistentemente contrário


ao teatro ‘político’. Se o teatro era, nas palavras de Gogol um ‘púlpito do
qual é dever educar o público’, não era para o ator pregar diretamente.
Não era sua função dizer ao espectador o que pensar. A mensagem da
peça deve ser implícita; ela deve tornar-se evidente através do cuidadoso
processo de seleção que ocorre durante os ensaios e a apresentação
verdadeira do material estipulado/acordado [agreed upon]. Não era o
suficiente persuadir o intelecto ou convencer a inteligência; o teatro tinha
que dar uma experiência humana total a qual o público podia sentir com
todo seu ser. Essa experiência teria maiores e mais profundas
ressonâncias do que o mero reconhecimento da verdade de um conceito.
A experiência de Stanislávski, tanto antes quanto depois da Revolução o
convenceu disso. Em 1901, ele estava representando o Dr. Stockmann
em Um Inimigo do Povo [An Enemy of the People], de Ibsen, em [São]
Petersburgo. Em 4 de Março aconteceu uma [20] manifestação [a
demonstration] na Praça Kazan [Kazan Square]. Uma série de pessoas
foram mortas. Quando Stanislávski, no Ato Cinco deu a fala: ‘Você nunca
deve vestir um par de calças novo quando for sair para lutar pela
liberdade e pela verdade’, o público entrou em erupção.

Espontaneamente o público associou a fala com o massacre na


Praça Kazan [Kazan Square], onde, sem dúvida, muitos ternos
novos tinham sido rasgados em nome da liberdade e da verdade.
Estas palavras provocaram tal tempestade de aplausos que
tivemos que parar a apresentação. O público levantou-se e correu
para a ribalta, estendendo seus braços para mim. Naquele dia,
aprendi através da minha própria experiência pessoal, o grande
poder que o verdadeiro, o autêntico teatro pode ter sobre as
pessoas.


SNE. pp. 200-1.

SS. Vol. 1, p. 250.

30
E ainda na mente de Stanislávski e na mente do restante do elenco
não havia nenhuma conexão consciente entre os eventos da peça e da
situação política atual.

Possivelmente [perhaps] ao escolher esta peça em particular e


interpretar os papéis daquele modo particular estivéssemos
respondendo de forma intuitiva ao estado de espírito que
prevalecia na sociedade e às condições de vida em nosso país,
onde as pessoas estavam esperando apaixonadamente por um
herói que destemidamente proclamasse a verdade que o governo e
a censura reprimiam. Mas, quando estávamos no palco
interpretamos a peça sem pensamento de políticos. ... Quanto à
‘mensagem’ da peça, eu não a descobri, ela se revelou para mim. 

Ele conclui com uma pergunta:

[21] Para uma peça social e política ter um efeito sobre o público, o
segredo para o ator não é pensar o mínimo possível das intenções
sociais e políticas da peça, de modo a ser perfeitamente sincero e
perfeitamente honesto?

Quando, quatro anos depois, ele veio a dirigir Ralé (No fundo) [The
Lower Depths, também conhecida por O Submundo], de Gorki ele adotou
a abordagem oposta. O resultado foi, em sua opinião, um fracasso. Ele
estava muito consciente da importância política e social da peça e nada
[disso] ia para a ribalta/o palco [and nothing got over the footlights]. Assim
ele concluiu que a tarefa do ator era apresentar um personagem
totalmente bem acabado/arredondado [fully rounded]; que era trabalho do
público encontrar o significado político. Isso eles irão inferir da totalidade
da montagem [This they would derive from the total production]. Conforme
amadureceu e se desenvolveu, Stanislávski se convenceu da
necessidade de uma análise ideológica do texto [script] e por uma
consciência do público para o qual a performance era concebida, mas, em
termos de montagem, esta análise tinha que expressar a si nas condições


Ibid.

SS. Vol. 1, p. 251.

MVA. pp. 406-7.

31
da ação concreta – os movimentos, atitudes, as palavras – não em
comentário ostensivo.≠ O significado dos eventos apresentados no palco
deve ser transparente. O público deve ser capaz de ver e entender o
comportamento dos personagens, as razões para suas ações e decisões
e, ao mesmo tempo participar no processo, vivendo a ação com eles. £
Um teatro concebido não como uma vitrine histriônica [histrionic
showcase], mas como um lugar em que para possibilitar o entendimento,
exige que o ator veja a si mesmo e sua contribuição criativa particular
como parte de um conjunto [ensemble]. Em 1890 Stanislávski viu a
companhia Meiningen da Alemanha em sua segunda turnê pela Rússia.
[22] Inexplicavelmente ele tinha perdido sua primeira turnê em 1885. Lá
ele viu o que uma companhia disciplinada poderia alcançar. Os atores,
em geral, eram medíocres. Ostrovski, ao escrever da primeira turnê foi
altamente crítico. Stanislávski, no entanto, ficou impressionado com a
coerência da montagem de Júlio César [Julius Caesar], que ele viu e, em
especial, pela eficácia das cenas de multidão. Grande parte do sucesso
deve-se à mão de ferro com que o diretor, Chronegk, comandava [ruled]
seus atores. A performance era criada a partir da vontade e da concepção
do diretor, não pela energia criativa dos atores. Foi um exemplo tentador,
mas altamente perigoso. Foi, no entanto, um dos poucos exemplos
disponíveis.
Se fosse esperado muito dos atores em termos de aplicação,
dedicação e disciplina, Stanislávski percebeu que era importante que eles
fossem tratados com respeito e que lhes fossem dadas condições dignas
para trabalhar. Em suas primeiras incursões no teatro profissional ele
ficou estarrecido com o estado imundo do teatro e da natureza primitiva
dos camarins. Esta foi uma situação a qual ele rapidamente colocou
direito/colocou em ordem/endireitou/acertou [put to rights].


SD. pp. 134-8.
£
SD. p. 45.

32
O Teatro de Arte de Moscou (TAM)
Stanislávski chegou à maturidade intelectual e artística nos 14 anos
entre 1883, quando tinha vinte e 1897, quando ele tinha trinta e quatro
anos. Isto foi em grande medida devido ao trabalho que ele realizou com
a Sociedade de Arte e Literatura, a qual ele fundou com um grupo de
amigos em 1888. As ideias que ele desenvolveu durante esse período
foram finalmente consagradas na política do Teatro de Arte de Moscou
(TAM).
[23] Em Junho de 1897 Stanislávski recebeu duas cartas de
Vladimir Nemirovitch-Dantchenko sugerindo uma reunião. Ele respondeu
por telegrama: ‘Seria um prazer encontrá-lo dia 21 de Junho às 14 horas
no Bazar Slavianski [Slavyanski Bazaar]’. A discussão durou 18 horas
terminando na casa de campo [villa] de Stanislávski, às oito horas da
manhã seguinte, tempo no qual a política do TAM tinha sido amplamente
trabalhada.
Nemirovitch-Dantchenko (1858-1943) era um dramaturgo de
sucesso. Em 1896 ele ganhou o prêmio Griboiedov por O Mérito da Vida
[The Worth of Life], embora tenha protestado que o prêmio deveria ter ido
para A Gaivota, de Tchekhov, que tinha acabado de receber sua estreia
desastrosa no Teatro Alexandrinski em [São] Petersburgo. As peças de
Nemirovitch eram regularmente apresentados no Maly. Em 1890 ele foi
convidado a assumir as aulas de atuação na escola Filarmônica
[Philharmonic school]. Entre seus alunos estavam Olga Knipper, [que]
mais tarde seria a esposa de Tchekhov, Meyerhold e Ivan Moskvin.
Nemirovitch compartilhou a insatisfação de Stanislávski com o estado do
Teatro Russo. Os dois homens tinham chegado a conclusões idênticas
sobre as reformas que eram necessárias. Era lógico que eles deveriam se
encontrar. No entanto, inicialmente, Nemirovitch tinha reservas.
Stanislávski era rico, ele parecia interpretar qualquer coisa e tudo, e
também dirigia. E se ele não fosse mais do que um diletante rico, cujo


Veja o Capítulo Dois.

MVTR. p. 75.

33
único desejo era monopolizar todos os papéis principais? Nemirovitch foi
tranquilizado porém pelo fato de que Fedotova, que até então tinha
trabalhado com Stanislávski e em cujo julgamento ele confiava, se referiu
carinhosamente a ele como seu ‘Kostia’.
Nemirovitch deixou uma descrição muito mais detalhada da reunião
de dezoito horas do que o próprio Stanislávski. Nela ele [24] descreve
não só as decisões que tomaram, mas os abusos contra os quais eles
estavam reagindo. O próprio Stanislávski posteriormente comparou o
escopo de suas discussões ao Tratado de Versalhes. Nemirovitch fala de
seu prazer em descobrir que eles compartilhavam um método de trabalho
comum – discussões detalhadas e leitura seguida de ensaio
meticulosamente demorado [slow meticulous], parte por parte.
O TAM era mais do que a culminação das aspirações de dois
homens; ele era a personificação das reformas que Pushkin, Gogol,
Ostrovski e Shchepkin haviam defendido a mais de três quartos de
século. Ele trouxe à fruição os sonhos e ideais do passado e quebrou,
finalmente, com a cansada rotina [tired routine] e os clichês desgastados
que sufocavam qualquer impulso criativo.
A primeira preocupação foi a de criar um verdadeiro conjunto
[ensemble], sem estrelas – ‘Hoje Hamlet, amanhã um extra’. Atores
egocêntricos [selfcentred], falsos e histriônicos foram rigorosamente
excluídos. Todas as produções eram para ser criadas a partir do zero
[from scratch], com seus próprios cenários e figurinos. As condições de
trabalho eram para ser decentes e confortáveis. A disciplina era para ser
rigorosa, tanto para o elenco – sem conversas nos corredores durante
uma apresentação – quanto para o público. Ninguém estava autorizado a
ficar nos bastidores durante a apresentação e os espectadores deveriam
ser encorajados a tomar os seus lugares antes que a cortina subisse.
Com o passar do tempo, se fazia os retardatários esperarem o intervalo
antes de serem admitidos. A orquestra, que era uma característica regular
na maioria dos teatros, foi abolida como uma distração desnecessária.


MVTR. pp. 79-113.

34
Quando o teatro original foi construído, o auditório foi despojado de
toda a decoração para que a máxima concentração do público pudesse
ser direcionada para o palco. Tudo, [25] incluindo a administração, era
subordinado ao processo de criação. Nemirovitch tinha muitas
lembranças desagradáveis da burocracia dos teatros imperiais.
Foi acordado que a responsabilidade pela política artística deveria
ser dividida entre os dois homens. Stanislávski teria a última palavra em
todas as questões relacionadas com a montagem, Nemirovitch em todas
as questões relativas ao repertório e aos textos [scripts]. Como
Nemirovitch colocou, eles dividiram entre eles a forma e o conteúdo.
Por fim, havia a questão do tipo de público que eles queriam atrair.
Nenhum deles tinha muito tempo para o público da moda de Moscou
[fashionable Moscow audiences]. Ambos queriam um teatro popular que
iria cumprir a sua missão de esclarecer e educar as pessoas.
Originalmente eles planejaram chamar o seu novo teatro de Teatro de
Arte de Moscou Aberto a Todos [Moscow Art Theatre Open to All]. Eles
esperavam evitar problemas com a censura ao não usarem a palavra
‘popular’. Mas seus sonhos de oferecer apresentações gratuitas ao
público da classe trabalhadora logo fracassou. Havia um censor
específico para todas as peças apresentadas aos trabalhadores. Isso
significava que os textos eram censurados [clearing scripts] por não
menos do que quatro censores diferentes. Nemirovitch foi quem de fato
alertou que se eles persistissem na sua ideia de apresentar sessões
especiais aos trabalhadores ele estaria suscetível de ser preso. O plano
[scheme] foi abandonado e o nome abreviado simplesmente para Teatro
de Arte de Moscou.
A importância da política do novo teatro não estava na
originalidade de qualquer dos seus membros [elements], mas na sua
unidade orgânica. A Companhia Meiningen havia mostrado que a atuação
em conjunto [ensemble playing] podia ser alcançada. Em suas viagens à
França em nome da empresa da família, Stanislávski tinha visto o


MVTR. pp. 181-2.

35
trabalho de Antoine e seu Théâtre Libre. Strindberg tinha publicado seus
[pontos de] vista sobre [26] o teatro íntimo [intimate theatre]. Pesquisas
cuidadosas de cenários e figurinos não eram desconhecidas na Europa
Ocidental. A conquista do TAM foi integrá-los, consciente e
deliberadamente, e em última instância criar um estilo de atuação no qual
o elemento dominante era a verdade humana.

36
[27] 2
O DESENVOLVIMENTO DO ‘SISTEMA’
Até o momento em que veio a fundar o TAM, Stanislávski tinha se
tornado um destacado [outstanding] ator e diretor de seu tempo. Seu
próprio relato do início de sua carreira em Minha Vida na Arte [My Life in
Art] deve ser lido com cautela. Mais do que uma autobiografia, ele é uma
justificação do Sistema. Suas realizações anteriores ao nascimento do
Sistema em 1906 foram, portanto, minoradas e é difícil obter propriamente
qualquer sentido da grande [very great] eminência que ele tinha
alcançado até ao final do século. Por mais de uma vez ele foi convidado a
participar do Maly e recusou, mas, no entanto, fez aparições como
convidado com os membros mais destacados da companhia. Muitos de
seus contemporâneos viam nele um homem com o talento e a visão para
levar adiante a grande tradição de Shchepkin, Gogol e Pushkin e
revitalizar o Teatro Russo.
Ele tinha trabalhado duro durante os 14 anos que separam o seu
curto período na escola de teatro e seu encontro histórico com
Nemirovitch. Em seu relato deste primeiro encontro, Nemirovitch
descreve-o como dando uma impressão de elegância [graceful] e
ociosidade [careless ease]. [Não] havia, além disso, nada de ‘ator’ [28]
nele, nem a voz empostada [overpitched voice] nem a extravagância dos
modos. Ele se comportou como um ser humano normal.
Este destensionamento/relaxamento [relaxation] foi conseguido
com dificuldade. Stanislávski era muito alto e, em sua juventude, inábil e
desajeitado. Ele criou uma técnica externa para si mesmo, analisando
continuamente suas próprias falhas, localizando os seus problemas – a
tensão física, a falta de resistência vocal, a falta de controle em geral
sobre suas ações – e trabalhou sobre elas. Os exercícios vocais, as horas
gastas na frente de um espelho são descritas quase dolorosamente em
Minha Vida na Arte [My Life in Art].


MVTR. pp. 80-1.

37
Houve, no entanto, problemas mais fundamentais relativos à sua
abordagem geral da arte da atuação sobre os quais ele recebeu ajuda de
outras pessoas: primeiro [com] sua falta de método, qualquer método, na
sua interpretação [playing] de um papel; [e em] segundo sua
suscetibilidade ao cliché teatral tão logo ele começasse a ensaiar.
Qualquer que fosse sua percepção intelectual da necessidade por
realismo, por verdade, por honestidade, por observação, inúmeras vezes
ele recairia em fórmulas padrão [time and time again he would fall back on
standard formulae]. No entanto ele foi muito ajudado na resolução destes
problemas por Glikeria Fedotova, a quem ele tinha encontrado
rapidamente na escola de teatro, e por seu marido, um renomado ator e
diretor.
Foi de Fedotova que Stanislávski aprendeu algo em primeira mão
de Shchepkin. Ela tinha sido uma das alunas de Shchepkin e Stanislávski
relata algumas das experiências dela em Minha Vida na Arte [My Life in
Art]. Ele a encontrou novamente em 1888 quando participou de uma
montagem beneficente juntamente com diversos atores do Maly. Este foi
seu primeiro encontro com profissionais e ele o achou desconcertante.
Ele não podia igualar [match] sua energia, preparação e disciplina. Sentia
fora de seu alcance. Ele confidenciou suas dificuldades para Fedotova e
ela respondeu, sem [29] maldade no entanto que, como ator, ele era uma
bagunça. Ela sugeriu que trabalhar mais frequentemente com ela e seus
colegas iria ajudá-lo a aprender.
Ele teve a sorte de encontrá-la novamente mais tarde no mesmo
ano. Seu marido, Fedotov, tinha recentemente retornado de Paris, onde
esteve ativo por alguns anos, e agora estava ansioso para reestabelecer-
se com o público Russo. Ele decidiu dirigir duas peças, Os Litigantes [Les
Plaideurs], de Racine, em sua própria tradução, e Os Jogadores [The
Gamblers], de Gogol. Uma série de atores amadores, incluindo
Stanislávski, foram convidados a participar. A experiência foi decisiva.
Stanislávski sentiu que não podia mais continuar a trabalhar com grupos
amadores. Fedotov conduziu-o pela mão, demonstrou a ele os elementos

38
de seu papel, e obrigou-o a entrar em contato mais próximo com a
realidade.
Da reunião de um grupo de atores e artistas fora dessa
oportunidade veio a Sociedade de Arte e Literatura [Out of this chance
coming together of a group of actors and artists came the Society of Art
and Literature]. A companhia queria ficar junto. O próprio Stanislávski
estava em uma ponta solta [at a loose end]. O grupo familiar, o Círculo
Alêxeiev, tinha chegado a um fim natural. Casamento, filhos e
responsabilidades familiares deixaram pouco tempo para o teatro amador
[for amateur theatricals]. A experiência de Stanislávski com outros grupos
amadores tinha sido desastrosa. Por uma feliz coincidência o negócio da
família teve um ano particularmente bom e Stanislávski recebeu um extra
de $25-30.000 Rublos. Isso ele usou para adquirir e redecorar as
instalações para a Sociedade.
Durante os dez anos de existência da Sociedade, Stanislávski foi
confrontado com um repertório de muito maior substância do que ele
havia encontrado até aí – Pushkin, Molière, Ostrovski, Shakespeare. Até
então sua experiência tinha sido principalmente nas formas mais leves.
Ele esteve sucessivamente [30] fascinado pelo circo, [pela] farsa
Francesa, [pela] opereta, [pelo] vaudeville e [pelo] ballet. O novo material
revelou sua falta de método e [de] técnica ainda mais claramente.
A montagem de Fedotov de Georges Dandin para a Sociedade em
1888 foi de importância crucial para o seu desenvolvimento artístico. Ele
tinha visto muitas montagens de Molière em Paris. Ele chegou, fiel à
forma, para o ensaio com cada cliché conhecido, com cada estereótipo
disponível, toda a ‘orquestração’ como colocou Fedotov. Ele foi
ridicularizado/zombado [He was laughed to scorn]. Fedotov [não] teria
nada disso [Fedotov would have none of it]. Ele pegou o jovem ator em
separado. O próprio Stanislávski descreveu como uma operação cirúrgica
como o homem mais velho cortou todo o disparate [nonsense]. O fato de
que ele foi finalmente capaz de executar uma boa performance deveu-se
ao fato de que Fedotov demonstrou cada movimento, cada gesto.

39
Stanislávski tinha um modelo que não era somente acabado na forma,
mas original e verdadeiro na concepção. Mas ele não conseguia entender
o processo pelo qual a performance começava a existir/a ser [had come
into being], [e] nem Fedotov poderia explicar isso a ele. Ninguém, na
verdade, parecia capaz de explicar isso a ele.
O que Stanislávski recebeu de seu diretor foi uma demonstração
prática do que Gogol pretendia ao visar pelo essencial, de manter o
significado da peça perpetuamente em mente, de construir personagens
em torno das ideias. Fedotov

interpretou a história da peça, mas a história estava completamente


conectada com a psicologia e a psicologia com a imagem e o
poeta.

Os efeitos de longo alcance desta experiência são evidentes [a partir] de


uma carta que ele escreveu para o crítico francês Lucien Besnard, [31]
cerca de nove anos depois, em 1897, depois de ter interpretado Otelo
[Othello]. Stanislávski estava bem ciente das deficiências de sua
performance – particularmente a vocal –, mas ele não estava preparado
para aceitar as críticas de seu ser [of its being] muito ‘moderno’ e
insuficientemente ‘Shakespeariano’. Aonde, dez anos antes, ele tinha sido
um escravo do estilo predominante, agora ele atacou a chamada
‘tradição’ e defendeu a abordagem da peça em termos contemporâneos:

A genialidade é inspirada pela verdade, pela beleza, enquanto


que as pessoas pouco dotadas precisam de um anteparo/um
biombo [screen] para esconder a pobreza de seu talento e
imaginação, e por isso elas inventam a tradição. Elas já inventaram
tantas tradições, tantas regras diferentes, que o público em geral
não pode mais entender Shakespeare e Molière deixaram de ser
engraçados [has ceased to be funny]...
...é a tarefa de nossa geração banir da arte a tradição
ultrapassada e a rotina e dar mais escopo à fantasia e à criação.
Esse é o único jeito de salvar a arte.


SS. Vol. 1, p. 166.

Carta a Lucien Besnard, 20 de Julho de 1897, trad. em Stanislávski, Progresso, 1963,
pp. 231-5.

40
Se a tradição morta deveria ser banida, assim também seu
companheiro inevitável, o clichê:

O ator que não é capaz do criativo na arte naturalmente está


ansioso por estabelecer, de uma vez por todas, os modos da
interpretação teatral – clichês. Um ator representa (played) certo
papel excelentemente; um segundo ator vê a performance e não
entende o genuíno processo de sua criação, mas relembra a forma
dela. Um terceiro toma a forma como um exemplo. Um quarto toma
a forma pela tradição teatral e a copia como lei. Com essa cadeia
de clichês não se pode alcançar a profundidade da [32] alma
humana. Essa cadeia nos impede de sermos guiados pelo diretor
mais importante do teatro – a vida.

Stanislávski tinha aprendido a imitar a vida ao invés de outros


atores, mas ele ainda não entendia a natureza do ato criativo ou a vida
interior do ator.
Mas ele estava ciente de quanto trabalho ele ainda tinha para
fazer. A luta ainda era a mesma: como definir o verdadeiramente teatral
do ‘teatral’, que não era mais do que um rotineiro conjunto de gestos,
movimentos e padrões de fala que diferenciava o ator das pessoas
comuns e era desprovido da genuína verdade humana. Todavia você não
pode simplesmente transferir o comportamento no dia-a-dia para o palco
e esperar que o público ache isso significativo. O palco não é a vida e por
sua própria natureza exige certo modo de comportamento. Um ator deve
ser visto e ouvido, suas ações devem ser claras, ‘legíveis’ para um
público e ainda assim elas devem, ao mesmo tempo, serem humanas.
Stanislávski batalhou com este problema. Em Abril de 1889, ele escreveu:

...não se deve confundir o ‘teatral’ com o que é verdadeiramente


teatral. O teatro indubitavelmente exige algo especial que não é
encontrado na vida. Assim, a tarefa é: trazer vida para o palco,


SD. p. 399. Nota pessoal da tradutora, Miriam Goldina, registrada em 1920, durante um
ensaio.

41
evitando o ‘teatral’ (que destrói a vida), mas ao mesmo tempo
respeitando a natureza do próprio palco. [...] 

A solução para o problema era uma ‘gramática’ da atuação.

[33] Para ser capaz de atuar, além de talento e outros dons


essenciais [essential gifts] e sentir-se em casa no palco com o
público, é preciso adquirir uma medida de controle sobre os nervos
e uma boa dose de autoconfiança. Este abc, esta gramática é
relativamente simples, todavia na maioria dos casos leva anos para
adquirir. Se você não domina esses pré-requisitos essenciais, você
não pode viver no palco, você não pode esquecer-se de si mesmo,
você não pode se render ao seu papel e trazer vida para as tábuas
[do palco]. [bring life onto the boards] . Eu estava certo de chamar
esta competência uma gramática do ator, suas regras básicas.
Você não pode ler fluentemente, ou experimentar o que você está
lendo se você está preocupado com as letras e as sílabas em
separado.

Tendo atingido um nível aceitável de competência, sua tarefa era


agora encontrar o que ele chamou de ‘o amplo trajeto para o caminho
verdadeiro’. Ecoando Shchepkin ele continuou:

É claro, o caminho mais verdadeiro é aquele que conduz o mais


próximo da verdade e da vida. Para encontrar esse caminho você
tem que saber o que são a verdade e a vida. Esta é a minha tarefa:
conhecer ambas mais e mais/repetidamente [all over again].

Crise
Stanislávski tinha desenvolvido uma técnica que era puramente
externa. Ele teve que trabalhar [a partir] do exterior na esperança de que,
ao estabelecer, verdadeiramente, as características externas do papel ele
pudesse provocar alguma resposta intuitiva em si mesmo a qual o
conduziria aos aspectos psicológicos da parte/do papel [of the part].
Sua abordagem como diretor era idêntica. Ele tentou induzir um
estado criativo [creative mood] em seus atores cercando-os [34] com


SS. Vol. 1, p. 115.

Ibid.

Ibid., p. 116.

42
objetos reais, som e efeitos de iluminação. Ele impôs sua interpretação
sobre cada papel, trabalhando sem parar, e às vezes impiedosamente,
para obter cada detalhe exato. Não havia alternativa. Os membros da
companhia eram, no geral, jovens e inexperientes. O único caminho para
alcançar a unidade artística e orgânica a qual o TAM exigia era o de que
todos levassem a cabo a montagem [to carry out to the letter the
production] tal como concebida com antecedência por Stanislávski, ou
Nemirovitch.
Em geral, foi este [o] método trabalhado. Nemirovitch podia
justificadamente afirmar que o novo teatro em breve estabeleceria o
padrão pelo qual as outras companhias seriam julgadas; que [para] onde
eles conduziram outros seguiram. Uma turnê triunfante para Berlim em
1905 deu ao TAM uma reputação internacional.
Quanto ao próprio Stanislávski, sua realização nos primeiros oito
anos de existência do teatro tinha sido verdadeiramente notável. Ele
dirigiu, seja individualmente ou em colaboração com Nemirovitch, de
Tchekhov A Gaivota [Seagull] (1898), Tio Vânia [Uncle Vanya] (1899), As
Três Irmãs [Three Sisters] (1901), O Jardim das Cerejeiras [Cherry
Orchard] (1904). De Ibsen Hedda Gabler (1899), Um Inimigo do Povo [An
Enemy of the People] (1900), O Pato Selvagem [The Wild Duck] (1901),
Espectros [Ghosts] (1905). De Gorki, Pequenos Burgueses [Small People]
(1902), Ralé [ou Submundo] [The Lower Depths] (1902) e Filhos do Sol
[Children of Sun] (1905). Ele interpretou Trigorin (A Gaivota [Seagull]).
Lövborg (Hedda Gabler), Astrov (Tio Vânia [Uncle Vanya]), Stockmann
(Um Inimigo do Povo [An Enemy of the People]), Vershinin (As Três Irmãs
[An Enemy of the People]), Satin (Ralé [ou Submundo] [The Lower
Depths]) e Gaev (O Jardim das Cerejeiras [Cherry Orchard]). Não havia
nenhuma razão aparente para ele não continuar seguindo as linhas que
ele tinha tão firmemente estabelecido. Contudo quando ele saiu para suas
férias de verão na Finlândia em Junho de 1906, ele estava num estado de


Carta a Stanislávski, 07 de Agosto de 1902 ou 1903. In Arquivo Nº. 2, 1962.

43
crise, desnorteado e [35] deprimido, sem saber qual direção tomar. Ele
tinha perdido toda a fé em si mesmo. Ele se sentiu morto no palco. 
Este sentimento de esterilidade o tinha atingido em Março daquele
ano, durante uma apresentação – muito provavelmente de Um Inimigo do
Povo [An Enemy of the People]. Seus músculos criavam
automaticamente a imagem externa do personagem, seu corpo repetia
mecanicamente as ações que ele tinha criado mas [não] havia nenhum
impulso interior, nenhum sentimento, nenhuma sensação de recriação,
nenhuma vida.
Esta foi uma experiência particularmente amarga para ele visto que
Stockmann lhe deu um de seus raros momentos de completa satisfação
artística quando o talento criativo e a razão/ o juízo [judgement] haviam
chegado juntos e sua ‘intuição’ funcionado.
A caracterização, as características físicas tinham brotado [sprung]
de seu inconsciente. Mais tarde ele foi capaz de identificar a origem dos
elementos particulares, mas a convergência [the coming together] da
performance tinha sido espontânea e trouxe com ela um imenso prazer.
Esse prazer tinha agora ido embora.
Houveram outros problemas fundamentais a serem resolvidos. Que
direção o próprio TAM tomaria? A morte de Tchekhov, em 1904, a qual
afetou profundamente Stanislávski, parecia marcar o fim de uma era. As
relações com Nemirovitch foram arrefecendo. Outrora colaboradores
inseparáveis, eles estavam planejando em separado [drawing apart],
incapazes de chegar a um acordo sobre as questões de política artística.
A montagem de Nemirovitch, em 1903, de Júlio César [Julius
Caesar] evidenciou [brought home] para Stanislávski as limitações de seu
método de trabalho como ator e de toda a abordagem para a
interpretação de um texto [script] a qual ele e Nemirovitch tinham
defendido. A montagem de Nemirovitch era uma obra-prima de
reconstrução histórica e arqueológica. A autenticidade dos figurinos, [36]


MVA. p. 458.

Entrevista, 29 de Abril de 1912, para a revista Estúdio [Studya].

44
adereços e decoração [decor] era incontestável [was beyond doubt]; eles
tinham sido exaustivamente pesquisados. Na verdade, as crianças eram
trazidas para ver a peça, não tanto por Shakespeare, mas para se [lhes]
dar alguma ideia de como era a vida na Roma antiga.
A abordagem histórico-arqueológica de Nemirovitch não era
essencialmente diferente da do próprio Stanislávski em suas montagens
de Czar Fiodor Ivanovitch [Tsar Fyodor Ioannovich] e A Morte de Ivan, o
Terrível [The Death of Ivan the Terrible], de Alexei Tolstoi. Desta vez, no
entanto, Stanislávski estava na ponta receptora [was on the receiving end]
como ator. Ao ser submetido ao seu próprio método ele [não]
experimentou nada além de frustração. Enquanto ele estava preocupado
em trazer à tona o dilema humano do personagem Brutus, Nemirovitch
subordinou tudo ao seu ponto de vista histórico [historical overview].
Quando a companhia se reuniu, como era o costume, para uma
leitura final antes da noite de estreia todos de repente sentiram a
realidade interior de seus papéis, como tinha [acontecido] com [as obras
de] Tchekhov. Mas para Stanislávski isso não durou. Todo o aparato
‘operístico’ da montagem [production] tornou-se opressivo para ele:

Cada detalhe da encenação [staging], cada pedacinho do cenário


parecia-me encharcado de suor; tudo relembrava longos dias de
trabalho duro; em suma, ao invés de me ajudar a encontrar o
estado de espírito acertado [the right frame of mind], todos esses
detalhes destruíram totalmente quaisquer sentimentos verdadeiros
que eu pudesse experimentar.

Somente quando a companhia foi em turnê para São Petersburgo,


quando de repente tudo parecia estranho outra vez ele recuperou algum
senso da verdade. Ainda assim, tal era o senso de disciplina de
Stanislávski que ele nunca questionou as decisões de Nemirovitch e fez o
seu melhor para fornecer o que era exigido dele. A montagem foi [37] um
grande sucesso. Sua própria performance, apesar da enérgica e leal
defesa de seus amigos, foi, em geral, considerada um fracasso.


SS. Vol. 1, pp. 425-6.

45
A encenação de Tchekhov e a luta para chegar a termos com sua
escrita também levantaram dúvidas na mente de Stanislávski. Custou [it
took] todos os poderes de persuasão de Nemirovitch, todo o brilhantismo
de sua análise literária para convencer seu colega a incluir A Gaivota [The
Seagull] no repertório. Como muitos outros, Stanislávski ficou inicialmente
desconcertado com a falta de ‘ação’, a ausência de oportunidades para
efeitos de montagem. De fato, como ele mesmo admitiu, ele planejou a
montagem sem realmente entender a peça. Ele penetrou abaixo da
superfície da obra de Tchekhov apenas ligeiramente e com dificuldade.
Ainda assim, quando Nemirovitch recebeu a cópia [do plano] de
montagem, ele reconheceu o alcance da realização de Stanislávski e sua
originalidade.
Foi precisamente porque ele teve que cavar, sondar abaixo da
superfície, que os textos [scripts] de Tchekhov foram tão cruciais para o
desenvolvimento de Stanislávski. Tchekhov tampouco podia ou não iria
explicar ou ampliar o que ele havia escrito. Ele insistiu que todo o
necessário estava contido no texto. No máximo ele iria acrescentar um
comentário enigmático, prenhe de nuances [pregnant with nuances].
Típico é seu comentário para Stanislávski sobre sua atuação como
Trigorin em A Gaivota [The Seagull]. Depois de cumprimentá-lo, ele disse:
‘Foi maravilhoso. Você só precisa de sapatos furados e rever/verificar as
calças [check trousers].’ Stanislávski ficou desconcertado. Ele tinha
interpretado [played] Trigorin como um dândi num belo terno branco. Um
ano depois, ele percebeu [realised] a verdade do comentário de
Tchekhov. Ele optou pela imagem convencional de um bem-sucedido,
senão, grande escritor. Mas ele não entendeu a questão. Isso foi
fundamental para a personagem Nina, [38] que deveria se apaixonar por
um autor de segunda categoria, decadente, a quem ela transformou na
imaginação em uma figura glamorosa. Duas fotografias adjacentes no
Museu do TAM mostram a transformação que a performance de
Stanislávski sofreu.


SS. Vol. 1, p. 298.

46
Todavia onde no texto [script] ele poderia encontrar, em termos
precisos, a imagem de Trigorin de Tchekhov? Não só ele, mas também
Nemirovitch, que reivindicou uma compreensão muito mais profunda de
Tchekhov, tinha falhado em detectá-lo. Como se pode abordar um autor
que espera que se infira que Tio Vânia [Uncle Vanya] esteja vestido não
com grandes botas e em roupas desarrumadas como um fazendeiro do
interior, mas num terno elegante se embasando em uma única referência
a suas gravatas de fina seda?
Experiências como essas trouxeram toda a natureza do texto
[script] para o questionamento. Qual era o significado das palavras na
página? Se elas não continham o significado total, onde jazia o
significado? Como haveria o ator de penetrá-lo? A resposta a este
problema resultou no conceito de subtexto.

Experimento
Stanislávski sentia uma necessidade constante por seguir adiante.
Seu medo era a estagnação. No momento em que o que tinha sido fresco
e novo tornava-se rotineiro e mecânico ele atacava em uma nova direção.
Ele sentia que o TAM estava em perigo de desenvolver um estilo rígido.
Certas características de suas montagens, especialmente as pausas,
tinham-se tornado suficientemente conhecidas para serem satirizadas em
cabarés de Moscou. Havia o perigo de ficar aferrado a um naturalismo
morto. Tinha chegado a hora de expandir o repertório e defrontar-se
[grapple] com novos problemas.
[39] Em 1905 ele fundou um estúdio em que jovens atores
poderiam experimentar novas ideias e novos métodos.  Ele colocou o
jovem Meyerhold no comando. Meyerhold tinha deixado o TAM em 1902,
depois de representar Konstantin em A Gaivota [The Seagull]. Ao reunir-
se com ele novamente Stanislávski o encontrou cheio de ideias, confiante
e articulado de um modo que ele próprio não era. O Realismo, os


O Estúdio na [Rua] Povarskaia, não deve ser confundido com o Primeiro Estúdio [First
Studio] de 1912.

47
detalhes autênticos estavam mortos; tinha chegado a hora para o irreal,
para os sonhos e visões. Stanislávski foi simpatizante. Ele já tinha se
aventurado pelo Simbolismo, tentando montagens de Maeterlinck.
Depois de reunir um grupo de jovens atores, ele deu a Meyerhold
sua liderança. A companhia passou o verão ensaiando em Pushkino onde
a companhia original do TAM tinha trabalhado. No outono foram
mostrados a Stanislávski alguns pequenos trechos do repertório que
havia sido escolhido: A Morte de Tintagiles [The Death of Tintagiles], de
Maeterlinck, Schluck e Jau [Schluck und Jau], de Hauptmann e uma série
de peças de um ato [a number of one-acters]. Ele ficou suficientemente
impressionado com a exibição [a ponto] de alugar [to take] um grande
teatro de 700 lugares na Rua Povarskaia, que estava temporariamente
desativado [temporarily dark]. A apresentação foi uma amarga decepção.
A Stanislávski, na época o mestre em manipular o ator, em
esconder as deficiências de uma companhia sob uma engenhosa riqueza
de detalhes, tinha sido mostrado o lado negativo de sua prática.

Tudo ficou claro. Com a ajuda de um diretor talentoso, estes


jovens atores inexperientes conseguiram mostrar suas novas
descobertas em pequenos excertos, mas quando eles tiveram que
apresentar peças de grande significado com personagens sutis e,
ainda mais, [40] escritas em uma forma teatral convencionalizada,
tudo o que puderam fazer foi revelar sua imaturidade. O diretor
tinha feito o seu melhor para escondê-los; eles não eram mais do
que argila em suas mãos que ele podia modelar em belos
conjuntos [groups] e padrões, de modo a concretizar suas ideias,
as quais eram sem dúvida interessantes. Mas, uma vez que seus
atores não tinham técnica, tudo o que ele podia fazer era
demonstrar suas ideias, princípios e descobertas; não havia
ninguém nem nada para trazê-las à vida; e assim, todas as
estimulantes intenções do estúdio se transformaram em teoria
abstrata e formulações acadêmicas.
Eu estava mais uma vez convencido de que há um abismo entre
os sonhos do diretor e sua realização. Uma nova arte necessita de
novos atores, com uma técnica completamente nova. Mas
enquanto o estúdio não tivesse atores desse tipo eu sabia qual
seria seu triste destino. Eu podia, é claro, criar um estúdio de
diretores onde eles pudessem desenvolver o seu trabalho. Mas
naquela época eu só estava interessado em diretores que
pudessem ajudar os atores a serem criativos, não diretores que

48
conseguiam esconder seus defeitos. Um estúdio de diretores, por
mais grandioso [splendid] que fosse, não era o que eu queria. [...]
Todas as minhas esperanças estavam concentradas sobre o ator,
em proporcionar-lhe uma base sólida para suas capacidades
criativas e uma técnica sonora [sound technique].

O ator que pode libertar-se da tirania do diretor é o ator:

que está mais em contato com o papel que o autor, [que] o


analisou melhor do que o crítico, [que] estudou a peça melhor do
que o diretor, que conhece melhor do que ninguém suas próprias
habilidades, seus meios mentais e expressivos, que desenvolveu
uma técnica virtuosa, [que] treinou seu corpo, [sua] voz, [suas]
expressões faciais, [que] entendeu a [41] teoria da arte, [da]
pintura, [da] literatura e qualquer outra coisa de que um ator
necessita. Em uma palavra, o ator que levou seu treinamento e
suas competências criativas à perfeição.

Em outras palavras, a responsabilidade final pelo desenvolvimento


artístico de um ator não está com seus professores, nem com os seus
diretores, mas com ele mesmo.

O começo do ‘sistema’
Tendo chegado a um beco sem saída, pelo menos naquele
momento, em sua própria atuação, ao ver suas tentativas de ampliar o
repertório e promover novas técnicas de atuação falharem, ele partiu para
a Finlândia com duas perguntas ainda apenas vagamente formuladas em
sua mente: como poderia a criatividade de um ator ser estimulada e
mantida viva; como poderia a montagem estar centrada nessa energia
criativa? Ele percebeu que em algum lugar na confusão de sua
experiência residiam as respostas, verdades as quais ele conhecia há
muito tempo.

Eu adquiri através da minha experiência como ator uma colcha de


retalhos [rag-bag] de material sobre técnica teatral. Tudo tinha sido
jogado [thrown in], de qualquer jeito [willy-nilly], sem sistema...


SS. Vol. 1, p. 362.

SS. Vol. 4, p. 25.

49
Havia uma necessidade de criar alguma ordem, de separar o
material, examiná-lo, avaliá-lo e, por assim dizer, colocá-lo nas
prateleiras mentais. Questões inacabadas [Rough matter] tinham
que ser trabalhadas e polidas e assentadas [lain] como as pedras
fundamentais de nossa arte.

Sentado numa pedra ele começou a fazer um balanço. Ele refletiu


sobre o que havia de errado com sua performance como Stockmann. A
partir daí ele passou a rever toda sua carreira, cada papel [part] [42] que
ele já tinha interpretado. Para ajudá-lo, ele tinha seus Cadernos de
Anotações [Notebooks], todas as impressões e reflexões que ele tinha
reunido por mais de 25 anos.
Ele retornou à sua primeira pergunta, que ele tinha levantado
[posed] quando tinha apenas quatorze anos: o que era que grandes
atores, intuitivos, como Salvini, Chaliapin e Duse, possuíam, que
qualidade especial? Era um presente dos deuses e não está disponível
sob encomenda [on demand]. Estes momentos de ‘intuição’ ou
‘inspiração’ eram uma ocorrência diária para os atores de gênio. Para os
menos favorecidos eles aconteciam, por assim dizer, aos domingos e
para os de segunda classe apenas em dias de festa e feriados.
Qual é o estado do ator? Um [estado] não natural e impossível.
Defrontado com a ribalta resplandecente e um público de mil [pessoas]
tudo que o ator pode fazer é macaquear, imitar, fingir, nunca realmente
viver ou experimentar a emoção. Isso ele sabia há muito tempo mas sua
percepção tinha sido puramente intelectual. Agora ele o sentia com todo o
seu ser e desse total, [essa] experiência vivida de uma ideia era, como ele
muitas vezes repetiu, o único conhecimento de algum valor para o ator.

Imagine que você tenha sido colocado em exposição em um lugar


muito alto, na Praça Vermelha, em frente a centenas de milhares
de pessoas. Ao seu lado eles colocaram uma mulher, talvez
alguém que você nunca encontrou antes. Você foi ordenado a se
apaixonar por ela, publicamente, tão profundamente, na verdade,
que você perde a razão [go out of your mind] e comete suicídio.


SS. Vol. 1, p. 285.

O ‘banco’ da edição [Norte] Americana virou uma ‘pedra’ na edição Russa.

50
Mas há muito pouco de amante em você. Você está envergonhado.
Cem mil pares de olhos estão fixados em você, esperando para
que você os faça chorar, cem mil corações estão à espera para
serem movidos por seu ideal, apaixonados, o amor desinteressado,
porque é para isso que eles pagaram e isso é o que eles têm o
direito de esperar. É claro que eles querem ouvir tudo que você diz
[43] e você tem que gritar suas palavras de amor, palavras que, na
vida, você sussurraria a uma mulher. Todos devem ver você, todos
devem entender você e por isso você deve orientar seus gestos e
seus movimentos para as pessoas mais distantes de você. Você
pode, em tais condições, pensar sobre o amor? Você pode, de fato,
experimentar o amor e os sentimentos que amor implica? Tudo o
que você pode fazer é forçar e tensionar [stretch and strain], usar
todos os seus esforços numa tentativa inútil de alcançar um fim
impossível.

O ator é um ser dividido ao meio. De um lado, uma mente cheia de


inquietações diárias, preocupações e irritações, com a vida por ganhar;
por outro [lado] um corpo que é chamado a expressar grandes paixões,
sentimentos heroicos e a evocar todo o reino do inconsciente. Essa
dicotomia é uma experiência diária; a vida do ator não tem nada a ver
com a sua profissão. Mas porque ele deve, de algum modo, produzir um
efeito sobre o público ele recai sobre os truques da profissão [tricks of the
trade], os gestos em estoque [the stock gestures], as já testadas
entonações, toda a bateria de signos e sinais os quais fornecem uma
representação convencional da emoção sem na verdade corporificá-la
[embodying it]. Deste modo o amante apaixonado revira os olhos e aperta
sua mão no coração, mantendo um fluxo contínuo de som e movimento,
sem um momento de pensamento ou reflexão.
Como pode este dilema ser resolvido? Como pode este ‘estado do
ator’ ser substituído pelo ‘estado criativo’ o qual os atores de gênio
possuem? Se este estado vem naturalmente para os grandes atores,
então ele deve repousar no interior [lie within] da natureza de alguns
atores para que o alcancem em alguma medida.


SS. Vol. 1, p. 298.

SS. Vol. 1, p. 299.

51
[44] A partir do momento em que é dado aos homens de gênio
conhecer o estado criativo por natureza, é possível que as pessoas
comuns possam chegar a algum lugar próximo dele depois de
muito trabalho sobre si, mesmo se não o alcançarem em sua
plenitude, na mais alta medida, mas apenas parcialmente. Claro,
isso não vai transformar um homem medianamente talentoso em
um gênio, mas vai ajudá-lo a se aproximar de algo parecido.

Todo ator tem alguns momentos de criação genuína. Como se


pode fazer esses momentos acontecerem com mais frequência? Haveria
meios técnicos de produção do estado criativo? Poderia a ‘inspiração’ ser
encorajada ou induzida? Poderia o elemento do acaso na criação de uma
performance [in building a performance] ser reduzido? Haveria, de fato,
uma gramática da atuação a qual pudesse ser aprendida?
Já em 1889, em seus Cadernos de Anotações, Stanislávski tinha
falado de uma ‘gramática’ da atuação, um ABC que todos pudessem
dominar. Se gramática é amplamente entendida como um sistema o qual
define as diferentes funções e estabelece as regras pelas quais essas
funções combinam e operam, não conseguiria algo análogo aplicado à
atuação?
Nenhuma linguagem pode, é claro, ser aprendida de uma vez.

Se [o estado criativo] não pode ser dominado todo de uma vez, ele
não pode ser alcançado pouco a pouco, isto é, pela construção do
todo a partir de suas partes?

Cada uma das partes pode ser tomada separadamente e


trabalhada por meio de uma série de exercícios. A primeira tarefa era,
portanto, definir as partes.
[45] Apesar da imagem um tanto romântica que Stanislávski dá de
si mesmo, sentado numa pedra com vista para o mar, meditando sobre
sua carreira, ele trabalhou arduamente durante todo o mês de Junho e
Julho. De acordo com sua esposa Lilina:


SS. Vol. 1, p. 130.

SS. Vol. 1, p. 300.

52
Ele está feliz em constatar que o clima e o ar do norte harmonizam
[agree] com ele. Mas, entre nós, nosso tempo tem sido gasto muito
estranhamente. Ele não sai para caminhar, ainda menos para
tomar ar fresco. Ele se senta em uma sala meio escura, escreve e
fuma o dia inteiro. Ele parece estar escrevendo coisas muito
interessantes, o título, Um Rascunho/Projeto de um Manual da Arte
Dramática [A Draft Manual on Dramatic Art].

Uma mudança fundamental tinha ocorrido no pensamento de


Stanislávski durante esses dois meses. A atuação não era mais pensada
como imitação, mas como processo. Não era mais uma questão de
controle puramente externo, de técnica, de habilidade [de] reproduzir uma
cópia [facsimile] de [uma] experiência, mas de criar e transmitir a vida
interior, uma noção de ser, novo/fresco [fresh] a cada vez.
Stanislávski reconheceu a natureza inconsciente do momento
criativo. Mas o inconsciente não é suscetível de comando; os sonhos não
podem ser feitos sob medida. Só a natureza pode criar. A tarefa então era
encontrar modos para o ator trabalhar com e através da natureza. Pela
criação de vínculos orgânicos entre a própria personalidade do ator e do
personagem que ele estava interpretando, a danosa lacuna [damaging rift]
entre o ator como ser humano e como performer poderia ser sanada
[healed].
A atividade consciente na preparação e ao ensaiar um papel
precisa ser coerente e organizada de tal modo a criar as condições nas
quais a criação intuitiva, espontânea, possa ocorrer. Esse é o único
propósito do Sistema.

[46] Estudo
Stanislávski começou um período de estudo. [Não] havia, no
entanto, nenhum corpo de conhecimento existente sobre o qual ele
pudesse se embasar [draw]. O processo criativo não era um objeto de
estudo científico no início do século [XIX]. A Psicologia como uma
disciplina estava ainda na sua infância, assim como a linguística e a


Carta a Olga Knipper-Tchekova, citada em A Vida e a Criatividade de K. S. Stanislávski
[Zhizn i Tvorchestvo K. S. Stanislavskvo], Vol. 2, Moscou, 1971, pp. 32-3.

53
natureza dos atos da fala [nature of speech acts]. Ele teve que fiar-se,
portanto, na análise de sua própria atividade do dia-a-dia para obter a
comprovação de suas descobertas, [e] sempre que possível, em
quaisquer estudos científicos relevantes que estivessem disponíveis. Ele
podia, então, tentar esboçar [to draw] conclusões gerais. Ele adotou duas
estratégias, primeiro, a observação atenta de si mesmo e de seus colegas
no ensaio e dos grandes artistas, Russos e estrangeiros, em
performance: segundo, leituras de psicologia contemporânea. Foi de
grande importância em sua leitura Problemas da Psicologia Afetiva
[Problèmes de Psychologie Affective], de Ribot, a partir do qual ele
aprendeu a noção de memória afetiva, posteriormente desenvolvido em
Memória Emotiva. Outras obras de Ribot encontradas em sua biblioteca
foram As Doenças da Vontade [Les Maladies de la Volonté], Psicologia da
Atenção [Psychologie de l'Attention], As Doenças da Memória [Les
Maladies de la Mémoire], A Evolução das Ideias Gerais [L'Évolution des
Idées Générales], e A Lógica dos Sentimentos [La Logique des
Sentiments].
Ribot muniu Stanislávski com uma chave para destrancar o
inconsciente do ator. De acordo com suas teorias, o sistema nervoso
comporta [bears] os traços de todas as experiências anteriores. Elas são
gravadas na mente, embora nem sempre [estejam] disponíveis. Um
estímulo imediato – um toque, um som, um cheiro – pode
desencadear/disparar [trigger off] a memória. É possível recriar eventos
passados, reviver emoções passadas, vividamente. Não só isso;
experiências semelhantes tendem a se fundir. A memória de um incidente
específico pode evocar lembranças de incidentes semelhantes,
sentimentos semelhantes. Experiências de amor, ódio, inveja, medo veem
juntas, elas são destiladas para que [47] o indivíduo possa experimentar
uma emoção esmagadora aparentemente não relacionada a qualquer
evento particular.


SS. II, O Trabalho do Ator [Sobre si Mesmo] Parte Um Cap. IX.

54
Stanislávski percebeu que esta faculdade de uma lembrança vívida
– que na vida depende do acaso – pode ser aproveitada para a criação da
performance. Se o ator pudesse definir/determinar [define] a emoção que
fosse exigida dele a qualquer momento e então estimular um sentimento
análogo de sua própria experiência, então sua interpretação poderia
atingir um novo nível de realidade e as lacunas entre o ator como
indivíduo e o ator como performer poderiam ser preenchidas [bridged]. O
ator e o personagem se tornariam um.

Crença [Fé Cênica] e o mágico ‘se’


Lado a lado com sua leitura Stanislávski continuou suas
observações práticas. Conforme ele observava artistas como Salvini,
Chaliapin, Duse e Ermolova ele foi atingido [struck] mais uma vez pelo
grau de relaxamento que eles alcançavam, o fluxo e a resposta do corpo
aos impulsos interiores. Sua experiência como diretor permitiu-lhe
entender e identificar-se com eles, de sentir o que eles sentiam.
Ele tentou alcançar um estado semelhante de relaxamento durante
suas próprias performances e quando conseguiu ele sentiu-se liberto,
como um prisioneiro que tinha sido libertado de suas correntes. Mas o
sentimento era de segunda mão, não [fora] diretamente experimentado
como ator mas mediado por intermédio de sua experiência como diretor.
E mais, nenhum de seus colegas atores notou nenhuma diferença na sua
performance. Ele chegou à conclusão de que o importante não eram as
mudanças físicas em si, mas a atitude mental que [se] produzia nele.
Enquanto ele estava [48] monitorando seu estado físico durante uma
performance sua concentração estava sobre ele mesmo e no que ele
estava fazendo, e não sobre o público ou no buraco negro assustador à
sua frente. Além disso, o ator que se concentra inteiramente na ação do
palco está mais susceptível de produzir uma participação ativa na plateia.


SS. Vol. 1, p. 301.

SS. Vol. 1, p. 301.

55
Eles já não se sentam em seus lugares esperando para serem
‘entretidos’; eles são atraídos para assistir mais de perto e a entender.
Com o passar do tempo esta capacidade [faculty] de concentração
foi dividida em elementos menores – a solidão pública, o círculo de
atenção, orientação – para os quais foram desenvolvidos exercícios
específicos. Estes foram finalmente incorporados em O Trabalho do Ator
Sobre Si Mesmo [An Actor’s Work on Himself].
A segunda principal qualidade que ele observou nos grandes
atores foi a capacidade de crença/fé cênica [belief], para habitar o
universo criado pelo palco. Sua experiência em Júlio César [Julius
Caesar] tinha mostrado o quão difícil, às vezes, pode ser. O que acontece
no teatro não é real no [mesmo] sentido que a vida diária como
experienciada é real. Como, então, pode-se acreditar? Por um lado, há a
obrigação [injunction] para ser ‘verdadeiro’, para obter o material a partir
de modelos vivos e não de estereótipos teatrais; por outro lado, há a
irrealidade patente de tudo ao seu redor.

O ator, antes de qualquer coisa deve acreditar em tudo o que


acontece ao seu redor, e mais do que tudo ele deve acreditar no
que ele está fazendo. E ele só pode acreditar que seja verdade. E
assim ele deve realmente sentir aquela verdade, procurar por ela e
para isso ele deve desenvolver sua consciência artística da
verdade. Mas ele será informado [But he will be told]: [49] ‘Lixo!
Que tipo de verdade você chama isso, quando tudo no palco é uma
mentira, uma farsa – o cenário, cartolina, cores, maquiagem,
figurino, adereços, cálices de madeira e espadas etc. Que tipo de
verdade é essa?’
Mas eu estou falando de outro tipo de verdade, a verdade dos
meus sentimentos e sensações, a verdade do impulso criativo
interior que está desesperado para encontrar expressão. Eu não
preciso a verdade lá fora, eu preciso da verdade aqui, a verdade da
minha relação com os acontecimentos no palco, [com] os
adereços, [com] o cenário, [com] os atores que interpretam outros
papéis e seus pensamentos e sentimentos... O ator pensa:
‘Tudo - cenários, adereços, maquiagem, figurinos, ser criativo
com as pessoas assistindo você – é só uma grande mentira. Eu
sei de tudo isso, e daí? Os adereços não importam... Mas... se
tudo ao meu redor no palco fosse verdade, isso é o que eu faria,
é assim que eu responderia a este ou aquele evento.’

56
Eu percebi que os atores começam a criar no instante em que o
mágico, o criativo ‘se’ brota [springs] em suas mentes e [na] sua
imaginação. Enquanto não há nada além do mundo real, da
verdade [do] real, que é claro, temos que acreditar, o processo
criativo não terá começado. Mas então o criativo ‘se’ aparece, ou
seja, uma verdade imaginada na qual o ator pode acreditar tão
sinceramente quanto ele faz com a verdade [do] real, só que com
maior urgência. É como uma criança que acredita numa boneca,
em sua vida interior e circunstância. Tão logo o mágico ‘se’
aparece, o ator se desloca [moves out] da vida real para uma vida
imaginária que ele mesmo inventou. Uma vez que ele acredita
naquela vida, ele pode começar a ser criativo.
No teatro, a verdade é aquela que o ator acredita sinceramente;
até mesmo uma mentira descarada deve tornar-se verdade se é
para se tornar arte.

[50] Stanislávski fez uma distinção fundamental entre ser criativo e


ser ‘canastrão’ [‘actorish’], entre a emoção genuína e [a] emoção dos
atores, entre imaginativamente sentir-se no caminho em uma situação e
produzir uma cópia [facsimile] de uma emoção ou da representação de
uma emoção de outro ator.

‘A verdade das emoções, sentimentos que parecem verdadeiros


nas circunstâncias hipotéticas, é o que nossas mentes requerem
de um autor dramático.’
Eu mesmo gostaria de acrescentar que é precisamente o que
nossas mentes requerem de um ator dramático, somente com a
diferença que, enquanto para o autor as circunstâncias são
hipotéticas, para o ator eles são reais [are actual], elas são
definidas/dadas [are set].

O ator, então, aceita a ficção do autor como fato e por essa


capacidade de fazer de conta, usando o mágico ‘se’, ele cria uma
realidade alternativa, a qual é o mundo da peça.

O ator ao centro
O centro de uma montagem tinha mudado decisivamente do diretor
para o ator, de quem já não se esperava que estivesse de acordo com um


SS. Vol. 1, pp. 380– 1.

SS. Vol. 2, pp. 101-2.

57
padrão predeterminado. A performance era para ser criada a partir de
seus próprios recursos. Isso não significa que a produção dependia das
manhas e caprichos emocionais [whim and emotional caprices] do elenco.
Dado o aumento da responsabilidade os atores tiveram que desenvolver
disciplinas – físicas, emocionais, intelectuais – que lhes permitiriam
colocar seus talentos a serviço da peça e [de] seu significado. Na medida
em que o próprio Stanislávski esteve preocupado, isso significa que ele
mudou, como precisamente observou Nemirovitch, de um diretor para um
professor, mentor e guia.

[51] Tentando novos métodos


Esta transformação, no entanto, não aconteceu da noite para o dia.
Ele estava [por] aprender o quão difícil a aplicação de suas ideias poderia
ser. Em seu retorno da Finlândia ele começou a trabalhar na montagem
de O Drama da Vida [Drama of Life], de Knut Hamsun. A peça era
abstrata, simbólica, irreal. Stanislávski apropriou-se [seized] do que
parecia ser uma oportunidade ideal para despojar-se [to strip away] de
todos os gestos, toda a ação física e concentrar-se no ‘estado interior’ dos
atores. Todo o resto, ele acreditava, seguiria – quase que por mágica.
O resultado foi o oposto do que ele pretendia; não a liberação da
energia criativa, o relaxamento, a liberdade que ele tinha imaginado, mas
a tensão, tensão e frustração. Ao ir a um ensaio de um de seus
assistentes ele encontrou:

Um trágico, banhado em suor, rolando no chão e rugindo com


toda a aparência de paixão que ele pode extrair para fora de si
mesmo, com meu assistente montado em suas costas, gritando do
alto de sua voz e empurrando-o com toda sua força: ‘Mais! Mais!
Continue! Mais alto!’ ... E pensar que não muito tempo antes eu
tinha acusado um assistente de direção de tratar um ator como um
cavalo que não pode mudar a sua carga.
– ‘Mais, mais, mais alto,’ continuava o assistente, estimulando o
trágico ‘Vida, sentimento! Sentimento!’


SS. Vol. 1, p. 310. Esta passagem aparece somente na edição [Norte] Americana de
Minha Vida na Arte [My Life in Art], de 1924.

58
Todo o elenco passou pelo mesmo:

Cada ator espremeu para fora de si a paixão que ele era obrigado
a criar...

Como resultado a peça foi esquecida. Os atores trabalharam


separadamente. Não houve comunicação orgânica entre eles. [52] A
montagem em si foi um sucesso, provocando forte reação do público a
favor e contra, apesar de parecer politicamente dividido ao invés de
[dividido] nas linhas artísticas. Na visão de Stanislávski, contudo, os
atores tinham ido para trás não para frente. Mais uma vez eles tinham
sido peões a serviço de uma ideia, um conceito.
Sua montagem seguinte, A Vida do Homem [Life of Man], de
Andreyev, não foi melhor. Seu sucesso não surgiu da arte dos atores mas
dos valores de suas montagens. Os insights os quais alcançara na
Finlândia não renderam frutos. O ‘estado criativo’ permanecia tão evasivo
como sempre.

Treinamento/Formação [Training]
Parece evidente que inicialmente Stanislávski viu sua nova
abordagem essencialmente [como] uma mudança de método de ensaio.
O que ele subestimou foi a dificuldade para os atores para seguir sua
liderança. Se muito na sua vida o tinha preparado para este novo [ponto
de] partida as outras pessoas não tinham compartilhado sua experiência,
ou, se o fizeram, não tinham atingido o seu nível de consciência.
Stanislávski foi assim levado, inevitavelmente, à noção de
treinamento/formação contínuo [/a] [continuous training].

Depois de O Drama da Vida [The Drama of Life] eu estava num


estado de total desespero. Parecia que todo o trabalho de
laboratório que eu tinha empreendido, o qual poderia ter me
colocado no caminho para uma nova arte, tinha chegado a nada;
Eu estava mais uma vez num beco sem saída, incapaz de ver
qualquer saída. Eu tive que viver muitos dias e até meses

59
perturbados pela dúvida antes de entender uma verdade que eu
tinha de fato conhecido há muito tempo, nomeadamente que na
nossa profissão tudo deve tornar-se habitual, de modo que o novo
seja transformado em algo organicamente nosso, numa segunda
natureza. Somente quando isso tiver acontecido é que poderemos
usar o que é novo sem pensar na sua mecânica. A mesma coisa
[53] se aplica ao estado criativo, o qual só irá salvar o ator uma vez
que se tenha tornado seu estado normal, natural e único. Caso
contrário o ator só copiará a aparência exterior de um conceito
radical de arte avançada [the outward forms of radical forward-
thinking art], sem justificação interior, e ele não vai nem mesmo
entender o que ele está fazendo.

Para que o estado criativo se tornasse uma segunda natureza o


ator deveria condicionar-se. Isso significava exercícios diários. Não
menos do que o dançarino ou o atleta o ator deve manter-se em forma.
Por alguns anos, as circunstâncias não permitiram a Stanislávski
desenvolver seus métodos que não fosse durante os ensaios, de um
modo um tanto ad hoc. Não obstante a necessidade de uma abordagem
coerente e sistemática para o trabalho, em uma base diária, tornou-se
cada vez mais evidente, principalmente no treinamento/na formação
[when training] de jovens atores.

Primeiros esboços/rascunhos [drafts]


Nesse meio tempo continuou o trabalho, escrevendo o que ainda
era chamado de ‘gramática’. Para além da dificuldade de isolar e definir
os elementos dessa gramática, havia o problema de encontrar um
vocabulário. Não havia concordância de terminologia. Stanislávski tinha
recebido uma formação musical bastante avançada e ele lamentava o fato
de que o ator, ao contrário do músico, não tinha um sistema preciso de
notação, nenhuma concordância de linguagem na qual discutir seus
problemas e intenções.

Que sorte se ter a disposição hastes/barras (bars), pausas, um


metrônomo, um diapasão, harmonia, contraponto, exercícios
devidamente elaborados para desenvolver a técnica, um [54]


SS. Vol. 1, pp. 310-11.

60
vocabulário no qual descrever conceitos artísticos, para entender
os problemas criativos e experiências. A música já há muito
reconheceu a importância deste tipo de vocabulário. A música pode
contar com regras básicas reconhecidas, e não como nós, com a
sorte.

Os Arquivos Stanislávski contém uma série de rascunhos, datados


de 1907: Livro de Referência para o Ator Dramático [Reference Book for
the Dramatic Actor]; Informações Práticas e Bons Conselhos para
Iniciantes e Alunos de Arte Dramática [Practical Information and Good
Advice for Beginners and Students of Dramatic Art]; Rascunho de um
Manual Popular de Arte Dramática [Draft of a Popular Manual of Dramatic
Art], etc. Uma terminologia começara a surgir, embora não fosse de forma
estável. Mudanças foram introduzidas ao longo dos próximos quatro anos.
No entanto, se o vocabulário estava ainda flutuando, os elementos que
passaram a conformar [went to make up] o estado criativo foram ficando
mais claros.
Os Cadernos de Anotações de 1908 contém uma série de
registros, agrupados sob cabeçalhos específicos – relaxamento muscular,
círculo de atenção, crença/[fé cênica] [belief], inventividade/criatividade
dramática [dramatic inventiveness], sentimentos. Seu trabalho estava
suficientemente avançado para que ele fosse capaz de anunciar em seu
discurso celebrando o décimo aniversário do TAM que, doravante o
trabalho da companhia, seguindo a tradição de Shchepkin, seria baseado
em leis psicológicas e fisiológicas claras e simples.
Dois documentos de 1909 indicam o estágio [a que] suas ideias
tinham chegado. No dia 8 de Março ele entregou um artigo numa
conferência teatral. Nele ele afirma que a arte do ator consiste de seis
processos principais:

No primeiro processo preparatório da ‘vontade’ [‘will’] o ator


prepara a si mesmo para a criação futura. Ele começa a conhecer
[55] a obra do autor, ele se entusiasma ou faz-se entusiasmar por


SS. Vol.1, pp. 369-70.
 s
KSA. Nº . 264, 271.

61
ela e assim desperta seus dons criativos, ou seja, estimula o
desejo para criar;
No segundo processo, ‘busca/procura/pesquisa’ [‘searching’], ele
procura dentro e fora de si mesmo pelo material psicológico
necessário para a criação;
No terceiro processo, ‘experiência/vivência’ [‘experience’], o ator
cria invisivelmente, para si mesmo. Ele cria em seus sonhos a
imagem interior e exterior do personagem que está por retratar
[portray]... ele deve adaptar a si mesmo a esta vida alienígena e
senti-la como se fosse sua própria [vida]...,
No quarto processo, ‘fiscalização/encarnação’ [‘physicalizing’], o
ator cria visivelmente para si mesmo;
No quinto processo, ‘síntese’, o ator deve reunir a um ponto de
síntese total o processo de ‘experiência/vivência’ [‘experience’] e o
processo de ‘fiscalização/encarnação’ [‘physicalizing’]. Esses dois
processos devem prosseguir simultaneamente, começar juntos,
ajudar e desenvolver um ao outro;
O sexto processo é aquele do efeito sobre o público.

De Junho do mesmo ano vem um esboço para um artigo sobre o


novo sistema. [O artigo] enumera os vários elementos que vão conformar
o estado criativo, como o relaxamento, a ‘experiência/vivência’
[‘experience’] e a memória emotiva, embora a terminologia nem sempre
seja definitiva [final].
No verão de 1910 Stanislávski estava tão cheio de ideias que ele
mal conseguia colocá-las no papel rápido o suficiente. Escrevendo para
Olga Sulerzhitska em Agosto, ele lhe disse:

Esta é minha época de colheita. Por dois meses, em minha mente,


eu plantei as sementes de ideias e problemas relativos ao sistema.
Elas cresceram com dificuldade e [56] não me deixavam dormir,
mas agora, os primeiros brotos aparecem – e eu não consigo
colocar no papel tudo o que está brotando e requer uma definição
verbal, mesmo aproximada. Se eu não conseguir gerir a escrita
[manage to get it down], terei de começar tudo de novo no próximo
ano, porque tudo isto é tão sem clareza/indefinido [unclear], tão
rapidamente esquecido e no próximo ano, assim como aqui, agora,
no Cáucaso, não serei capaz de escrever tudo o que veio a ser
concretizado...


KSA. Nº. 257.

KSA. Nº. 625.

SS. Vol. 7, p. 470, Carta Nº. 353.

62
Agora Stanislávski estava trabalhando com maior profundidade e
detalhamento. Os dois manuscritos de 1909 contêm em essência os
conceitos que seriam trabalhados durante o resto de sua carreira.

O primeiro sucesso do novo sistema


A nova energia e confiança encontradas por Stanislávski foram, em
grande medida devidas ao fato de que ele tinha finalmente conseguido
provar a si mesmo e a seus colegas que suas novas ideias funcionavam
teatralmente. Sua preocupação era ainda a criatividade do ator e o
‘estado interior’, mas ele tinha conseguido ir muito além em seus
experimentos em O Drama da Vida [The Drama of Life]. Um Mês no
Campo [A Month in the Country], de Turgueniev, que ele dirigiu em 1908,
foi o texto [script] ideal sobre o qual trabalhar. Nenhuma peça é mais
dependente do instante [on minute], [das] mudanças internas de humor e
sentimento. Não há praticamente nenhuma ação externa e nenhuma
oportunidade para os efeitos do diretor. Stanislávski respondeu a esta
oportunidade. Ele pediu cenários simples e permitiu o mínimo de gestos e
movimentos:

Um banco ou um sofá para o qual as pessoas vão para sentar e


conversar – sem sons, sem detalhes, sem minúcias. Tudo depende
da experiência viva e [das] vozes. A peça toda entrelaça as
emoções e os sentimentos de autor e ator. Como se pode escrever
os meios indescritíveis [57] pelos quais um diretor trabalha com os
atores? É uma espécie de hipnose baseada no estado psicológico
dos atores trabalhando, no conhecimento de seu personagem,
suas falhas. Nesta peça, como em todas as outras, este trabalho e
somente este é essencial e digno de atenção.

Isso está muito longe dos planos de montagem prescritivos de A


Gaivota [The Seagull], mas assinala a posição definitiva de Stanislávski.
Escrevendo para Sergei Balukhaty em Fevereiro de 1925, ele enfatizou a
importância da mudança:


SS. Vol. 7, p. 451, Carta Nº. 337.

63
Tenha em mente que as mises en scène da Gaivota [Seagull]
foram feitas pelos antigos, agora completamente rejeitados
métodos de impor as emoções pessoais sobre o ator, e não pelo
novo método de estudar o ator de antemão – suas capacidades, o
material da sua parte/do seu papel [of his part], antes de criar a
mise en scène adequada. Em outras palavras, o método das
antigas mises en scène pertence ao diretor despótico, contra quem
agora eu luto, enquanto que as novas mises en scène são feitas
por diretores que dependem do ator.

Ele estava tão preocupado com Um Mês no Campo [A Month in the


Country], que afirmou muito claramente: ‘Não há mise en scène de
qualquer espécie.’≠
Além de dirigir ele assumiu o exigente papel de Rakitin. Ele
procedeu da seguinte maneira. Primeiro a peça foi dividida, como de
costume, em segmentos. Cada segmento foi então descrito em termos da
psicologia dos personagens e do estado particular em que eles estavam
em um dado momento. Em cada segmento, portanto, o ator tinha um
objetivo psicológico específico para alcançar. [58] Para cada ação que foi
planejada havia uma justificação interior, brotando da totalidade da vida
do personagem. A vida de um personagem não é, naturalmente,
mostrada na sua totalidade no decurso de uma peça, a qual é
necessariamente seletiva. O ator deve, portanto, complementar o texto
[script] com sua própria imaginação, criar os momentos entre as cenas, o
fluxo e a continuidade da vida do personagem. Nenhum momento de
ação no palco é estático. Ele é parte de um processo dinâmico. A
sequência de estados psicológicos revela a totalidade do personagem
que é, por sua vez, determinado pela concepção geral da peça.
Como os ensaios o estavam preocupando, Stanislávski adotou sua
prática usual de um longo período de leituras em torno da mesa durante o
qual a peça foi analisada. Esta fase inicial levou dois meses. As leituras
foram, pela primeira vez, intercaladas com exercícios para desenvolver a


SS. Vol. 8, p. 102, Carta Nº. 74. Tradução em Stanislávski, Progresso, 1963, p. 251.

SS. Vol. 7, Carta Nº. 337.

64
concentração, o círculo de atenção, e os estados psicológicos
apropriados. A teoria da memória emotiva foi testada. Os atores foram
obrigados a explorar a sua própria experiência de vida, a fim de encontrar
equivalentes para os sentimentos vivenciados pelos personagens. A
completude do plano psicológico foi então percebida [realised],
fisicamente.
Stanislávski rompeu com o costume estabelecido, dizendo aos
membros da companhia que não seria necessário, como era normal, que
participassem de todos os ensaios. Ele isolou seu elenco por mais de
quatro meses. Ele estava tão preocupado com a intimidade, [com] a
natureza interior da peça que ele trabalhou na pequena sala de ensaio
[the small rehearsal theatre] e não no palco principal, subdividindo-a ainda
mais em espaços ainda menores [still further into even smaller spaces]. A
ação exterior, o movimento, o gestual foram reduzidos a quase nada. Os
atores foram obrigados a ‘irradiar’ seus sentimentos, fazer tudo através
dos olhos, por pequenas mudanças de tom e [59] inflexão, a ‘comungar’
[commune] uns com os outros. Aqui Stanislávski usou noções extraídas
do Yoga. O texto raramente era falado em voz alta. Era sussurrado,
contido [held back]. Cortes foram feitos nos discursos mais longos e as
seções omitidas foram usadas como sub subtexto.

Como desnudar a alma do ator para que se torne visível e


compreensível para o público? ... O que precisamos é um tipo de
radiação invisível do sentimento e da vontade criativa – os olhos, a
expressão facial, fugazes, indescritíveis tons de voz, pausas
psicológicas... Temos mais uma vez que voltar à imobilidade, [à]
ausência de gestos, temos que abolir todo o movimento supérfluo;
temos que cortar, não, cortar inteiramente todos os movimentos do
diretor e deixar os atores imóveis em suas cadeiras; deixá-los falar,
pensar e comunicar seu sofrimento para as milhares de pessoas na
plateia.

Stanislávski passou a acreditar que quanto mais intensa a


comunicação entre os atores no palco, mais clara seria a ação e mais


SS. Vol. 1, p. 326.

65
envolvido o público poderia se tornar. O elenco, como Gogol tinha
recomendado, transmitiu seus sentimentos, não os apresentou.
A montagem foi um sucesso, e Stanislávski conseguiu um triunfo
pessoal com sua interpretação de Rakitin.
Ao mesmo tempo em que estava trabalhando em Um Mês no
Campo [A Month in the Country] Stanislávski estava preparando uma
montagem de Hamlet. Paradoxalmente, ele se aproximou desta mais
reflexiva e ‘psicológica’ das peças de Shakespeare não através do estado
de espírito [mood] e da atmosfera, mas através de uma análise da ação.
Os movimentos dos atores foram motivados por um querer, uma
necessidade, a qual o ator teve que [60] experimentar/vivenciar [to
experience]. Em uma conversa improvisada durante um ensaio, ele
definiu as duas abordagens contrastantes ao confrontar seus colegas com
duas perguntas. Começando como de costume com um ‘se’, ele
perguntou:

‘E se fosse 31 de Maio?’
Então ele colocou mais duas perguntas. Primeiro:
‘Se fosse 31 de Maio, o que você sentiria?’
Então:
‘Se fosse 31 de Maio, o que você faria?’

É a segunda questão que é crucial para o ator, uma vez que


conduz à ação dinâmica. Stanislávski, no entanto, não percebeu todas as
suas implicações e para o momento continuou a utilizar ambas as
abordagens, definindo as situações dramáticas e as emoções que elas
continham.
A resposta do próprio Stanislávski para Um Mês no Campo [A
Month in the Country] foi imediata: era um mundo que lhe era familiar.
Outros membros da companhia experimentaram muito maior dificuldade e
ele percebeu que lhes faltava uma técnica, ou método de leitura.


Veja acima.

66
Ler a peça
A leitura do ator é de um tipo particular. Ela não é a leitura da
crítica literária. Ela não é objetivamente analítica. É uma forma de leitura
que se destina a estimular o entusiasmo, a evocar o compromisso e a
avivar a imaginação. Ela é a primeira tentativa de ativar o inconsciente.
Ela se torna portanto um intercâmbio disciplinado entre os elementos do
texto [script] e as respostas pessoais e imagens que o ator traz a ele. A
investigação do texto [script], o claro entendimento de sua natureza e sua
relação com a própria experiência/vivência [experience] do ator é o
processo primário no ensaio a partir do qual todos os outros seguem.
[61]Assim como o estado criativo pode ser decomposto em seus
elementos assim [também] pode o processo de leitura. Para aqueles que
não têm uma resposta imediata, instintiva e apropriada ao texto [script]
existe um procedimento passo-a-passo. Stanislávski comparou o
processo a uma viagem de trem. Há aqueles, os gênios, que aceleram de
terminal a terminal; outros que têm de parar em estações intermediárias e
explorar a paisagem circundante [surrounding countryside]: outros ainda
param em paradas solicitadas [no meio do caminho] [whistle-stops].
Todos tem a mesma jornada a seguir, a diferença é o número de etapas
que a jornada demora [takes].
Stanislávski começou a estudar os problemas específicos de leitura
do texto [script] analisando sua própria prática. Os Arquivos contêm um
manuscrito do período de 1909-1911, um rascunho de capítulo e outro
datado de 1915, intitulado A História de um Personagem [The History of a
Character]. Grande ênfase é colocada sobre o uso da ‘Memória Emotiva’
para trazer o texto [script] à vida e motivar seus elementos. Stanislávski
descreve três estágios pelos quais um ator se apropria de um papel [gets
into a part]. Primeiro, ele deve reconstruir claramente em sua mente todas
as experiências delineadas no texto e aquelas que ele completou com sua
própria imaginação, até ao mais ínfimo detalhe. [Em] segundo [lugar], ele


Cadernos de Anotações 1927-8. Citado por Maria Knebel em ‘K. A Questão do Método
da Análise Ativa’ [‘K. Voprosou o Metodye Deistvennovo Analiza’], em ‘Questões da
Nova Arte Teatral’ [‘Voprosi Teatralnovo Iskousstva’], Moscou, 1978.

67
deve identificar-se com o personagem e com o cenário que o rodeia. [Em]
terceiro [lugar] vem a criação de objetivos específicos que lhe permitirão
desempenhar a linha transversal [de ação] [through-line] da obra e do
personagem. Em suas notas para os ensaios de A Aldeia de
Stepántchikovo [The Village of Stepántchikovo] (1916) ele ressalta a
importância da primeira abordagem da obra, em particular a primeira
leitura. O que ele entende por leitura preliminar é descrito [62] num artigo
que ele elaborou entre 1916 e 1920. Ela acontece em vários níveis.
1. O nível dos fatos; o que acontece, os eventos, incidentes que
constituem a ação externa e dão vida às emoções dos personagens e os
estados de sentimento.
2. O nível social: como a ação externa é determinada pela circunstância
social e histórica.
3. O nível literário: as características específicas [distinctive features] do
estilo do autor.
4. O nível estético: como o material no texto [script] se conecta com as
outras artes (visual, musical).
A leitura deste tipo pressupõe um alto nível de educação e cultura.
Stanislávski nunca fingiu que poderia ser de outra forma. Escrevendo a
um jovem aspirante a ator em 1901, ele não fez segredo da quantidade
de leitura e estudo que o menino teria de realizar antes de ser aceito para
treinamento ou poderia começar pela abordagem das grandes obras do
repertório contemporâneo. O estudo do texto [script] conduz a novas
pesquisas, visitas a museus, galerias de arte, etc., para trazer à vida o
mundo da peça.
Stanislávski concentrou muito de sua atenção no ensaio e no
treinamento sobre o primeiro nível da análise (ver Tabela 2.1). Ele
esboçou um processo lógico passo-a-passo e deu um nome específico
para cada estágio para [uma] referência rápida conveniente [for quick
convenient reference].


SS. Vol. 4 (1991), pp. 48-144.

68
Um novo status para o texto
Na prossecução de suas indagações Stanislávski chegou a
conclusões que, embora sejam senso comum [common currency] agora,
foram, na época, [63]

TABELA 2.1 NÍVEL 1


Estágios Terminologia Técnica

Decide provisoriamente sobre o que é a Supertarefa


peça

Divide a peça em suas partes Pedaços/parcelas/partículas


componentes

Decide o que cada ator tem que fazer em Tarefas


cada uma das partes componentes, o que
ele quer ou precisa

Decide sobre o que ele faz para atender Ações


essa necessidade

Verifica se a sequência das necessidades [Linha] Transversal de Ação


e de ações é lógica e coerente e se
relaciona com o sentido/significado [the
meaning] da peça
a. Stanislávski usou termos diferentes em diferentes momentos de sua
vida. Os termos usados aqui são aqueles que ele empregou em suas
obras publicadas. Eles foram traduzidos por Elizabeth Hapgood como
Superobjetivo [Supertask], Unidades [Bits], Objetivos [Tasks], Linha Direta
de Ação [Through-ação]. Para uma discussão completa sobre o problema
da terminologia veja o Apêndice Dois e Stanislávski e o Ator [Stanislavski
and the Actor].

originais. Primeiro foi a constatação de que o diálogo é situacional. O


significado das palavras ditas não depende apenas do seu conteúdo
informativo, mas da situação na qual elas ocorrem; dependem das
atitudes pessoais do emissor [speaker], da posição pessoal do receptor
[recipiente], do relacionamento entre os dois e do contexto no qual o

69
intercâmbio/a troca [Exchange] acontece. O intercâmbio/a troca
[Exchange] no teatro além disso tem um duplo contexto, uma vez que se
destina a ser entendido não somente pelos participantes, mas por
terceiros, o público.
Esta noção redefine o status do texto. As palavras impressas não
contêm o significado pleno, como nas formas puramente literárias. Elas
dependem do que jaz abaixo delas, no subtexto. O texto [script] deixa de
ser uma forma de arte baseada na organização verbal, como um poema
ou um romance, e torna-se o pretexto e o contexto para uma atividade.
Atuação já não é imitação. A tarefa não é encontrar entonações e
gestos que estejam em conformidade com as características do texto
[script], ou combinar convenções de atuação com convenções [64]
literárias. O texto [script] perde seu status como um objeto ‘lá fora’ a ser
copiado. Ele é retirado/extraído [drawn into the] do processo criativo e é
transformado por ele. O ator criativo preenche o texto [script] com sua
própria experiência/vivência [experience]. A reestruturação artística da
matéria-prima [raw material] de sua vida é controlada pela escrita. A
performance final é uma síntese de ambas. Sem esse processo de
interação e transformação só há teatro literário, teatro morto.
Por um curto período Stanislávski mesmo considerou um novo
status para o escritor. Em 1911 ele e Gorki estavam convalescendo em
Capri. Ele mostrou a Gorki seus rascunhos [draft notes] sobre o sistema.
Então os dois homens seguiram para discussões mais amplas. Eles
exploraram a ideia de um escritor trabalhando com a companhia e criando
uma peça [a partir] da improvisação do grupo. Não é certo de quem foi
esta ideia inicialmente. Stanislávski certamente discutiu isso em seu
retorno a Moscou e Gorki voltou ao assunto numa carta no ano seguinte.
Não deu em nada, mas em última análise a sua experiência conjunta
rendeu frutos no trabalho do Primeiro Estúdio [First Studio], fundado em


S. L. ‘O Teatro no qual o Dramaturgo é Soberano’ [‘The Theatre in which the Playwright
is Paramount’], pp. 171-4.

70
1914, onde a improvisação tornou-se uma característica essencial de seu
treinamento.
O contínuo sucesso pessoal como ator muniu Stanislávski com a
confirmação adicional da validade de suas ideias. Em 1910, ele
interpretou o Velho General em Mesmo um Homem Sábio Tropeça [Even
a Wise Man Stumbles], de Ostrovski. Tão completa foi a fusão entre sua
própria personalidade e a do personagem que um amigo próximo, vendo-
o das frisas [wings], não pôde reconhecê-lo. O que tinha sido um
acidente em Um Inimigo do Povo [An Enemy of the People] agora havia
se tornado prática recomendada [ordered practice] graças ao Sistema.
[65] Em 1911 o Sistema existia em uma forma primitiva, quase
exclusivamente como uma psicotécnica. Nemirovitch anunciou que o
[Sistema] seria [it was to be] adotado oficialmente pelo TAM como um
método de trabalho e em 1912 o Primeiro Estúdio [First Studio] foi
fundado com o objetivo de treinar/formar (training) jovens atores. O
próprio Stanislávski não teve tempo para encarregar-se/tomar conta [take
charge] do Studio. Ele foi, portanto colocado nas mãos de seu amigo e
colaborador Sulerjitski. Isto parece implicar que o ‘sistema’ foi
suficientemente bem formulado para alguém mais estar capacitado/ser
capaz [to be able] de ensiná-lo.

Técnica e expressão
Foram outras duas obras do repertório clássico, Mozart e Salieri,
de Pushkin (1914) e Caim [Cain], de Byron (1920), que revelaram as
inadequações no sistema tal como se apresentava [as it stood]. Na peça
de Pushkin Stanislávski foi escalado como Salieri. Ele foi um fracasso.
Sua técnica vocal era inadequada para combinar e expressar a vida
interior do papel. Ele não possuía gama/variação expressiva e
flexibilidade [He lacked epressive range and flexibility]. Ele viveu o papel,
mas o público não tinha jeito de compartilhar a vivência/experiência
[experience]. Em suas tentativas de transmitir o estado interior ele


Gurevich, L., in Sobre Stanislávski [O Stanislavskom] p. 126 (Moscou, 1948).

71
carregou as falas [dragged out the lines] com tal peso nas pausas [such
heavy pauses] que as palavras saíram praticamente uma a uma. Na hora
que ele chegava ao final da frase todos tinham esquecido sobre o que era
o começo. A qualidade de sua voz seguramente deteriorou [steadily
deteriorated]. Numa tentativa de torná-la mais melodiosa, ele recorreu a
um conjunto de truques tradicionais. O verso finamente trabalhado de
Pushkin foi totalmente perdido.
O fracasso de Stanislávski em Otelo [Othello] em 1896 também
tinha sido devido às deficiências vocais. Ele nunca dominou a arte de falar
[em] verso.

Quanto mais eu ouvia minha própria voz e dicção mais eu percebia


que não era a primeira vez que eu tinha [66] falado mal [em] verso.
Eu sempre tinha falado daquele jeito no palco. Corei de vergonha
do passado. Eu adoraria chamá-lo de volta de modo a eliminar os
vestígios daquilo que eu tinha deixado [I would have loved to have
called it back so as to wipe out the trace of what I had left]. Imagine
um cantor que tivesse sido bem sucedido toda a sua vida e que de
repente descobre, conforme ele se aproxima da velhice, que ele
sempre cantou fora do tom. Inicialmente ele não quer acreditar. Ele
vai para o piano a cada minuto para verificar a sua voz, para
verificar uma frase, e aprende com certeza que ele está um quarto
de um tom abaixo ou um semitom acima. Isso foi exatamente o que
aconteceu comigo naquele momento.
Pior de tudo, olhando para o passado [looking back], eu entendi
que muitas das minhas falhas e as formas anteriores de trabalhar a
tensão, a falta de controle, clichés, tiques, truques, maneirismos
vocais, emoção de ator – eram frequentemente atribuídas ao fato
de que eu não [tinha o] domínio da minha própria voz, o que por si
só poderia me dar o que eu precisava para expressar minha
experiência interior...

Mas não era tarefa fácil alcançar uma forma de discurso que fosse
a uma só vez elevada e poética mas [também] simples e nobre. Se ele
agora achava a fala cotidiana vulgar e empobrecida, ele não tinha tempo
para o estilo artificial, bombástico de declamação ao qual a maioria dos
atores, em caso de dúvida, recorria. Ele estava procurando por aquela


SS. Vol. 1, p. 368.

72
entrega poética, desimpedida [that poetic, uncluttered delivery] que
Shchepkin tinha encontrado [stumbled on].

Eu entendi que saber como falar verso simples e elegantemente


era em si uma ciência, com suas próprias leis. Mas eu não as
conhecia.

Stanislávski voltou-se para aqueles trabalhos científicos que


estavam disponíveis, entre eles A Palavra Expressiva [The Expressive
Word] de Volkonski (São Petersburgo, 1913) e Breve Introdução à [67]
Ciência da Linguagem [Brief Introduction to the Science of Language], de
Ushakov (Moscou, 1913). Os Cadernos de Anotações [Notebooks]
contém extensos comentários sobre ambas as obras e elas formaram a
base de seu ensinamento por muitos anos.

Movimento expressivo
A montagem de Caim [Cain] de 1920 revelou outra área que
Stanislávski havia negligenciado na sua insistência sobre a primazia do
estado interior: [o] movimento expressivo. Liberdade de tensão e
relaxamento muscular, embora importantes em si mesmos, não foram
suficientes. Elas foram a base para um trabalho mais desenvolvido. Para
Caim [Cain], Stanislávski exigiu muito maior plasticidade e controle de seu
elenco, tanto mais porque as circunstâncias econômicas colocaram
progressivamente mais responsabilidade sobre seus ombros. Os cenários
elaborados que tinham sido originalmente planejados provaram-se muito
caros. Mesmo os cenários simplificados que foram acordados não
poderiam ser devidamente construídos por causa da falta de materiais. A
peça teve de ser carregada pelos atores. Enquanto que, graças a um
grande volume de trabalho, a pronúncia do verso era nítida, clara e
muscular [was sharp, clear and muscular], ela não foi acompanhada por
igual habilidade no lado físico. As estátuas gigantes e a decoração
arquitetônica, que estavam por trás do elenco, impuseram um cenário de


Ibid.

73
importância visual que colocou a inadequação dos atores em ainda maior
relevo.

Uma montagem baseada nas três dimensões, me obrigando a


concentrar minha atenção sobre os movimentos dos atores, me
mostrou claramente que não só precisávamos de [um] bom
discurso no tempo e no ritmo certo, mas que também
precisávamos ser capazes de nos mover no ritmo. Ela também me
mostrou que há certo número de leis que podem servir como um
guia. Esta descoberta me estimulou a toda uma nova série de
investigações.

[68] Ele teve uma série de discussões com Isadora Duncan em


1908, quando ela visitou Moscou. Ele estava ciente de que qualquer tipo
de treinamento do movimento para atores tinha que ser especialmente
construído para desenvolver força, resistência [stamina] e flexibilidade.
Ele agora se voltara para o trabalho de Emile Jaques-Dalcroze (1865-
1950), cujo sistema da Eurritmia [Eurythmics] tinha alcançado uma
reputação mundial. Stanislávski de modo algum aprovou sem ressalva o
trabalho de Dalcroze, que muitas vezes ele achou mecânico em sua
abordagem. Ele insistiu sobre uma justificação interna e uma consciência
para cada movimento. Não obstante, Dalcroze forneceu uma base, e os
exercícios foram ensinados pelo irmão de Stanislávski, Vladimir.

Tempo-ritmo
Mais e mais Stanislávski tornou-se preocupado com o problema do
tempo-ritmo, tanto interno quanto externo. Dentro da ação dos eventos da
peça, as emoções têm um pulso específico e [um] padrão para elas.
Tempo, como em música, denota a velocidade de uma ação ou um
sentimento – rápido, lento, médio. Ritmo, internamente, indica a
intensidade com a qual uma emoção é experienciada: externamente ele
indica o padrão de movimentação gestual e ações as quais expressam a
emoção. A relação entre o tempo-ritmo interno e externo é extremamente
complexo e no fim das contas exigiram nada menos do que dois capítulos


SS. Vol. 1, pp. 381-2.

74
completos em O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: O Trabalho sobre Si
Mesmo no Processo da Encarnação [An Actor’s Work Part Two].
Para alcançar a unidade orgânica de uma montagem é exigida uma
coerência rítmica tanto nas partes quanto na organização do todo.
A Stanislávski foi dada uma oportunidade de desenvolver suas
ideias sobre o assunto graças a um convite, em 1918, para ensinar [69]
atuação no Estúdio de Ópera [Opera Studio]. A presença da música com
as suas constantes mudanças de velocidade e [de] tom emocional
levaram-no a algumas conclusões:

A ação no palco, como a fala, deve ser musical. O movimento deve


seguir uma linha contínua, como uma nota de um instrumento de
cordas, ou, quando necessário, parar como o staccato no melisma
[coloratura] de uma soprano... Os movimentos têm seu legato,
staccato, andante, allegro, piano e forte, e assim por diante. O
tempo e o ritmo da ação deve corresponder à música. Por que é
que os cantores de ópera não compreendem esta simples
verdade? A maioria deles canta em um ritmo, em um determinado
tempo, anda em outro, move os braços num terceiro e vive suas
emoções num quarto. Pode [a] harmonia, sem a qual não há
música e a qual tem uma necessidade fundamental de ordem, ser
criada a partir dessa disparidade? Para trazer [a] música, [o] canto,
[as] palavras e [a] ação em uníssono, não é um tempo/ritmo
externo, físico (external, physical tempo) que é necessário, mas um
interno, espiritual. Ele deve ser sentido nos sons, nas palavras, na
ação, no gestual, nos movimentos, em toda a montagem. 

***

Enquanto [esteve] no Estúdio Bolshói [Bolshoi Studio] Stanislávski


ministrou sua primeira exposição gravada/registrada [recorded] do
Sistema numa série de palestras nas quais [tanto] os elementos [quanto]
o fundo filosófico são explicados. Essas palestras não foram preparadas.


Capítulos 11 e 12.

Para os cantores líricos, a palavra “coloratura” em português tem uma conotação
diferente do que tem em outras línguas. Em português, significa a execução de diversas
notas em uma única sílaba, geralmente rapidamente e com grande agilidade, podendo
ser legato ou staccato. Em inglês faz-se diferença entre coloratura e melisma, usando
“coloratura” como sinônimo de cadência melódica, e ‘melisma’ para ‘coloratura’. (N.T.)

SS. Vol. 1, p. 387.

75
Elas foram, como acontece com todas as declarações de Stanislávski
neste período, declarações de trabalho para companheiros de profissão.
Não havia intenção de publicá-las. No entanto, um dos cantores que
participaram dessas palestras, Konkordia Antarova, fez anotações
abundantes, [70] [e] a irmã de Stanislávski, Zinaida rastreou-as/coletou-as
[tracked them down] em 1938. Elas foram editadas pela Senhora
Gurevich e publicadas em Moscou em 1939 e posteriormente foram
traduzidas para o Inglês.
Até o início dos anos vinte Stanislávski havia acumulado todo o
material que foi mais tarde incorporado em A Preparação do Ator [An
Actor Prepares], A Construção do Personagem [Building A Character], e A
Criação do Papel [Creating A Role], mas isso foi uma porção [a number]
de anos antes que ele estivesse preparado para entregar o Sistema
formalmente para [ser] impresso.


Stanislávski sobre a Arte do Palco [Stanislavski on the Art of the Stage], trad. [David]
Magarshack, Londres, Faber, 1950.

76
[71] 3
ESCREVENDO O ‘SISTEMA’
O Legado
Por mais de 30 anos Stanislávski fez anotações e rascunhos para
sua ‘gramática’ ou manual sobre atuação. Livros foram projetados, mas,
com exceção de Minha Vida na Arte [My Life in Art], nunca [foram]
escritos.  Houveram muitas razões para isso. Stanislávski estava sempre
indo adiante [moving forward], revendo e modificando seus métodos de
modo que nenhuma única formulação parecia satisfatória por muito
tempo. Ele se rebelou contra a noção de que seu Sistema pudesse ser
codificado uma vez por todas, ou que devesse degenerar em um conjunto
de práticas mecânicas, repetidas sem reflexão [thought] ou sentimento.
Ele experimentou o que o mero boca-a-boca [lip-service] podia fazer
durante o período do Primeiro Estúdio [First Studio] quando muitos atores
adotaram sua terminologia, mas continuaram a atuar essencialmente do
mesmo modo como antes. O vocabulário era suficiente. Ele não queria
que as ‘leis’ que ele tinha descoberto fossem identificadas com as
técnicas e exercícios que eram utilizados para compreender e dominá-las.
Se as leis eram imutáveis as técnicas
[72] eram muitas e mutáveis. Assim, depois de usar métodos de
treinamento vocal baseado sobre o trabalho de Volkonski por muitos anos
ele os abandonou por serem demasiado rígidos e passíveis de repetição
mecânica sem reflexão [thought] ou justificação interior. Ele começou
mesmo a desconfiar da própria palavra Sistema, a qual ele havia adotado
em 1909. Para denotar sua natureza provisória, primeiro veio a ser
‘Sistema’ entre aspas e, em seguida, ‘sistema’ com um ‘s’ minúsculo. Ele
teve que encontrar um jeito de transmitir seus novos métodos que fosse
acessível. Apesar de ter proferido com êxito uma série de palestras sobre
o ‘sistema’, logo após a Revolução ele percebeu que a exposição formal


Primeira[mente] publicado nos E.U. A em 1924. Primeira edição Russa em 1926. Veja
o Apêndice 1.

77
não era o melhor meio de comunicação para os atores que não estão
interessados em conceitos. Atuar é fazer, e tinha de ser encontrado um
modo de descrever o que fazer. Depois de muitas hesitações e
experimentos, ele decidiu escrever seus livros numa forma semi-ficcional.
Mas ele estava, não obstante, preocupado em outro nível, por
encontrar corroboração externa do tipo científica para a sua prática, [que]
fosse somente para ganhar credibilidade numa sociedade obcecada pelo
conhecimento ‘objetivo’. Mesmo em seus últimos anos, ele continuou a
fazer extensas anotações sobre livros tais como Reflexões sobre o Cortex
Cerebral [Reflections on the Cerebral Cortex], de Sechenov. Então, em
1936, o psicólogo comportamental Pavlov, o ícone da nova ciência
Soviética, ouviu [falar] dos experimentos de Stanislávski e contatou-o
sugerindo que eles se encontrassem e comparassem seus resultados.
Stanislávski respondeu que a melhor maneira de estudar/aprender [to
learn] sua abordagem era assistir aos ensaios e ver o ‘sistema’ em ação.
Infelizmente Pavlov estava doente demais para aceitar o convite.
Em 1928, dois ataques cardíacos puseram fim à carreira de
Stanislávski como ator e durante a sua convalescença de três anos ele
mais uma vez empreendeu [set about] a tarefa de formular suas ideias.
Ele estava se aproximando dos setenta [anos] e a tarefa agora era
urgente. Ele tinha dito quando [as a] homem jovem que sua grande
contribuição para [73] a arte do teatro seria levar a tradição do realismo
russo para o novo século. Parecia a hora para cumprir essa missão.
Conforme ele se aproximou dos setenta [anos], ele sentiu a
necessidade de passar [adiante] [to pass on] suas descobertas de alguma
forma mais concreta/permanente [permanent] às gerações mais jovens.
Ele viveu durante [through] um período de extrema agitação/turbulência
[turmoil]; ele testemunhou a Revolução de Outubro e o nascimento de
uma nova sociedade; graças ao apoio pessoal de Lenin, ele sobreviveu
às tentativas da esquerda para fechar o teatro; ele combateu o que
considerava o mecanismo e o intelectualismo da avant-garde, durante os
anos [mil novecentos e] vinte; ele manteve sua posição dentro da tradição

78
do realismo. O propósito dos livros era afirmar aquela posição como um
lembrete para as gerações mais jovens, que estavam se movendo por
novas áreas.

Eu gostaria, nos últimos anos de minha vida, ser o que eu


realmente sou, o homem que não pode deixar de ser de acordo
com estas mesmas leis da natureza pelas quais trabalhei e vivi
toda a minha vida na arte.
Mas quem sou eu? Onde e como posso encontrar um lugar
neste novo teatro que está vindo [is coming into being]? Ainda
posso, como eu fiz uma vez, entender todas as sutis nuances da
vida acontecendo ao meu redor e tudo o que inspira os jovens?
Temo que muitas das aspirações dos jovens de hoje estão além
da minha compreensão – biologicamente. Deve-se ter a coragem
para encarar isso...

No entanto [None the less], quaisquer que sejam as diferenças


históricas entre as gerações:

[74] O processo de criação artística permanece o mesmo em suas


leis fundamentais, naturais [tanto] para o ator da nova geração
como para o ator de gerações passadas.

Deve haver pesquisa, deve haver experimentação, mas deve haver


sempre um retorno às leis básicas:

É útil para um jovem deixar a trilha [track] bem batida por um


tempo, desligar-se da estrada principal [highway] que se estende
na distância com segurança para vagar livremente ao longo das
estradas secundárias [byway], coletando frutos e flores, retornar, os
braços carregados com novas descobertas, à estrada principal
[main road], ignorando seu cansaço. Mas seria perigoso para ele
afastar-se [to go off] da estrada principal [highway] completamente.
A arte vem se movendo ao longo de si desde tempos imemoriais. O
homem que não conhece esta via eterna [eternal road] está
condenado a vagar infinitamente [endlessly] por caminhos que não
levam a lugar nenhum e a se perder no labirinto de matas sem
nunca atingir a luz e o campo aberto.


SS. Vol. 1, p. 407.

SS. Vol. 1, p. 408.

Ibid.

79
Stanislávski viu a si mesmo como um garimpeiro que depois de
anos vagando no meio do mato encontrou um veio de ouro e de uma
massa de areia e pedra extraiu algumas pepitas minúsculas.

Este metal precioso, fruto da pesquisa de uma vida na arte, é o


meu ‘Sistema’ – o que eles chamam meu Sistema.≠

Uma sequência de livros


No final da edição revisada de Minha Vida na Arte [My Life in Art]
de 1936, Stanislávski anunciou a sua intenção de publicar seu ‘sistema’.£
Ele descreveu o esquema geral como segue:

[75] Meu 'Sistema' está dividido em duas partes básicas:


1. O trabalho interior e exterior do ator sobre si mesmo;
2. O trabalho interior e exterior sobre o papel. O trabalho interior de
um ator consiste em aperfeiçoar uma técnica psicológica que irá
capacitá-lo a colocar-se, quando surge a necessidade, no estado
criativo, o qual convida a chegada da inspiração. O trabalho
exterior do ator sobre si mesmo consiste na preparação de seu
aparato corporal para expressar o papel fisicamente e traduzir sua
vida interior nos termos do palco. O trabalho sobre o papel consiste
em estudar a essência espiritual de uma obra dramática, em
compreender a semente original que lhe deu origem e vida, que a
determina como uma totalidade e o significado da individualidade
dos papéis que a irá compor [the meaning of the individual roles
which go to make it up]. *

Stanislávski, de fato, já tinha trabalhado em maiores detalhes [in


greater detail] como ele iria proceder. Numa carta a sua colaboradora
literária Senhora Gurevich, escrita em 23 e 24 de Dezembro de 1930, ele
esboçou uma sequência de sete livros os quais cobririam todos os
aspectos de seu pensamento:


Ibid.
£
SS. Vol. 1, pp. 408-9.
*
Ibid.

80
1. Minha Vida na Arte [My Life in Art], o qual já foi publicado e
destina-se a mostrar o progresso de um artista a partir de uma
abordagem amadora para o conhecimento do Sistema;
2. O Trabalho [do Ator] Sobre Si Mesmo [Work on Oneself], será
dedicado ao treinamento/formação [training] do ator e dividido
em duas partes, a) [O Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo
Criador das] Vivência[s]/Experiência[s] [Experience], b) [O
Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo Criador da]
Encarnação/Caracterização Física [Physical Characterisation];
3. O Trabalho Sobre o Papel [Work on a Role], tratará das
partículas [de ação] [bits], [das] tarefas e [da] ação. A área de
estudo será, não as cenas, extratos ou exercícios, mas a peça
como um todo;
[76] 4. Possivelmente a ser combinado com o 3, continuará a
discussão do trabalho sobre o papel, conduzindo ao estado
criativo no qual o inconsciente se torna ativo;
5. Com base no material dos volumes anteriores este livro será
dedicado a uma discussão mais ampla dos problemas da
atuação/performance;
6. A arte do diretor – cuja tarefa é construir e manter um grupo
unitário/conjunto [ensemble];
7. Os problemas de dirigir e performar/atuar [performing] na
Opera.

A sequência de livros [de] 1-5 denota a sequência da


aprendizagem. A aquisição do Sistema é um processo passo-a-passo,
com os problemas colocados numa ordem específica. Assim, o domínio
do material dos livros iniciais conduz a uma discussão dos problemas
mais amplos da criação das performances.
Os livros estão divididos em dois grupos – a gramática básica
(Livros 2 e 3) e o método de trabalho (Livros 4 e 5). É importante registrar
essa divisão claramente, uma vez que Stanislávski permaneceu constante
em sua definição dos elementos básicos, psicológicos e físicos, da
atuação, [e] seus pontos de vista sobre o uso e aplicação [destes
elementos] [their use and application] foram objeto de revisão radical. Ele
deu aos Livros 2 e 3, a gramática básica, o título geral de O Trabalho do
Ator Sobre Si Mesmo [An Actor’s Work on Himself].
Idealmente ele queria que [he would have liked it] consistissem em
um único volume. Ele estava cada vez mais insatisfeito com a cisão


SS. Vol. 8, pp. 271-2, Carta Nº. 222.

81
corpo-mente que era inerente a suas declarações iniciais. A divisão entre
a elaboração imaginativa de um papel e de sua expressão física era
artificial e constantemente negada por sua própria prática. Ele estava,
portanto, longe de feliz em dividir o Livro Dois em Experiência/Vivência
[Experience] e Caracterização Física/Encarnação [Physical
Characterisation]. [77] Isso só poderia emprestar autoridade às práticas
cada vez mais vistas como equivocadas. Mas, como lhe explicou a
Senhora Gurevich em sua carta de Dezembro de 1930, colocar todo o
material em um [único] livro significaria mais de 1200 páginas impressas.
Ele optou pelas duas partes, mas o fez com relutância conforme
percebeu que isto era potencialmente perigoso. A Parte Um [O Trabalho
Sobre Si Mesmo no Processo Criador das Vivências/Experiências], sobre
os processos internos, poderia ser tomado pelo ‘sistema’ como um todo,
fazendo-o aparecer como uma forma altamente subjetiva, extrema do
naturalismo psicológico. Toda a sequência de livros, como lhe disse a
Senhora Gurevich na mesma carta, precisaria de uma introdução que
apresentasse uma visão geral do ‘sistema’ como um todo integrado. Isso
nunca foi escrito, e a história provou que seus temores estavam bem
fundamentados. Para muitas pessoas mesmo bem informadas, O
Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: O Trabalho Sobre Si Mesmo no
Processo Criador das Vivências/Experiências [An Actor’s Work on Himself
Part One], metade do livro, é o ‘sistema’. Mas ele não teve escolha. Havia
outros fatores a serem considerados. À parte os problemas práticos da
publicação, sua saúde estava falhando. Em qualquer caso, os capítulos
sobre a Vivência/Experiência [Experience] estavam já substancialmente
escritos e suas novas ideias estavam ainda nos estágios iniciais de
desenvolvimento. Ele teve, portanto, de se contentar com entregar [setting
down] sua teoria e prática como se apresentou, na esperança de que ele
pudesse corrigir e revisá-la mais tarde, uma vez que o esquema total
estava completo. No momento ele [estava] ocupado/comprometido
[compromised], inserindo algumas de suas novas ideias – particularmente

82
no que diz respeito à ação física – a qual ele sabia, estritamente falando,
pertencia a um estágio posterior.

A Preparação do Ator
A obra que conhecemos em Inglês como A Preparação do Ator [An
Actor Prepares] é a primeira parte do Livro Dois. Seu título completo na
edição Soviética é [O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo:] O Trabalho
Sobre Si Mesmo no Processo Criador das Vivências/Experiências [An
Actor’s Work on Himself in the Creative Process of Experience].
[78] De um modo geral, ele é um somatório do trabalho de
Stanislávski entre 1906 e 1914, quando a ênfase estava sobre o processo
interior, a psicotécnica. No esquema de desenvolvimento do ator ele
representa o trabalho do primeiro ano.
Esboços do livro estavam prontos desde o início dos anos [19]20.
Os Cadernos de Anotações [Notebooks] contém uma série de títulos
provisórios – Diário de um Estudante [Diary of a Pupil], A Arte e a
Psicotécnica do Ator [The Art and Psychotechnique of the Actor], [A]
Natureza da Criatividade do Ator [Nature of the Actor’s Creativity], Minha
Escola de Teatro [My Theatre School], [O] Sistema de Stanislávski
[Stanislavski’s System]. Diário de um Estudante [Diary of a Pupil] é a
indicação mais precisa da forma final do livro. Stanislávski torna-se
Tortsov, o professor e suas aulas são descritas por um de seus jovens
alunos, Kostia.
Ele não estava de modo algum certo de que tinha tomado a
decisão correta ao abandonar a exposição formal e é verdade que alguns
críticos acham o mascaramento de Stanislávski, finamente disfarçado
[thinly disguised] como Tortsov, um dispositivo desnecessário. A forma
ficcional, no entanto, permitiu a Stanislávski apresentar os problemas da
atuação como experiências vividas e descrever [os] exercícios em ação.
Stanislávski é ambos, o mestre, Tortsov e o aluno, Kostia (O diminutivo de
seu primeiro nome, Constantin). Assim, o Stanislávski idoso se encontra
com o jovem ator que ele já foi. O livro é uma destilação de seu próprio

83
processo de aprendizagem. Kostia e seus companheiros estudantes
seguem o caminho de descoberta que o próprio Stanislávski trilhou [took].
Eles são os primeiros [a serem] confrontados com a noção da atuação
como processo, não imitação, polarizada na oposição entre a escola do
ser e a escola da representação. Posteriormente eles investigam os
elementos básicos da psicotécnica – o Mágico ‘Se’, [as] Circunstâncias
Dadas, [a] Solidão Pública, o Círculo de Atenção, [a] Comunicação, etc.
Ao final do livro eles têm explorado os processos internos do ator.

[79] A Construção do Personagem


Stanislávski entitulou a segunda parte do Livro Dois (que
conhecemos como A Construção do Personagem [Building a Character]
de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si Mesmo] no
Processo Criador da Encarnação/Caracterização Física [An Actor’s Work
on Himself in the Creative Process of Physical Characterisation].  [O livro]
está baseado no trabalho que ele fez sobre as técnicas física e vocal
entre 1914 e 1920. Representa o segundo ano do treinamento/da
formação de um ator [actor’s training].
Stanislávski morreu antes que o trabalho sobre a Parte Dois
estivesse completo. Ele teria sido, portanto, editorialmente
reconstruido/reestruturado [reconstructed]. Os manuscritos que
Stanislávski deixou são fortemente anotados nas margens com
comentários como ‘repetitivo’, ‘pesado e incompreensível’,
‘encurtar,simplificar’. Como sempre há inumeráveis variantes. A forma
geral do livro, no entanto, é clara: uma série de capítulos sobre técnica
física e vocal, seguida por capítulos nos quais os aspectos internos e
externos da atuação são esboçados conjuntamente [drawn together]. Há
uma série de planejamentos rascunhados [outline plans] que datam dos


O termo russo ‘Voploshchenye’ é difícil de traduzir. Literalmente ele significa
‘encarnação’ [incarnation], ‘personificação’ [embodiment]. Ambos os termos no Inglês, no
entanto, têm conotações irrelevantes.

Veja o Apêndice I para uma discussão sobre as diferenças editoriais das edições em
Russo e em Inglês.

84
anos 1932-5.≠ Numa carta à Senhora Gurevich datada [de] 17 de
Fevereiro de 1932, ele fala de capítulos sobre o Desenvolvimento da
Expressão Física, Voz e Linguagem, Caracterização, e o Estado Criativo
Sobre o Palco. Em 1935 ele fez uma lista da ordem dos capítulos que ele
imaginava. A fim de enfatizar a continuidade com a Parte Um, a qual
continha catorze capítulos, ele começa enumerando a partir de 15.

15. Rumo à Caracterização Física/Caminho para a Encarnação


[Towards a Physical Characterisation].
16. Cultura Física/Treinamento Físico [Physical Culture].
[80] 17. Dicção e Canto.
18. Linguagem.
19. Tempo-Ritmo.
20. Caracterização.
21. Controle e Domínio.
22. Estado Externo sobre o Palco.
23. Estado Geral sobre o Palco.
24. Fundamentos do Sistema.
25. Como usar o Sistema.

Alguns elementos deste esboço permanecem constantes ao longo


de todos os rascunhos e planos futuros.
Naquele mesmo ano, Stanislávski encarregou G. Kristi com a tarefa
de colocar os manuscritos existentes numa ordem apropriada.  A edição
Soviética de 1957 foi baseada nesse trabalho editorial. Mais trabalho
editorial foi feito para a edição de 1990 e a sequência de capítulos é a
seguinte:

1. Transição para [a] Caracterização Física.


2. O Corpo.
3. Canto e Dicção.
4. [O] Discurso e suas Leis.
5. A Perspectiva do ator Sobre um Papel.
6. Tempo-Ritmo.
7. Lógica e Sequência.
8. Características.
9. Controle e Afinação.


KSA. Nº. 68. 274, 520, 663

KSA. Nºs. 263, 368.

85
10. Presença de Palco.
11. Ética e Disciplina.
12. Estado Teatral Externo.
13. Estado Teatral Geral.
[81] 14. Fundamentos do Sistema.
15. Como Usar o Sistema.

Os apêndices contêm fragmentos sobre o treinamento/a formação


[training] e os exercícios [drill], [a] sequências de exercícios e
improvisações, juntamente com um programa de estudos [syllabus] para
uma escola de teatro.

O Trabalho do Ator Sobre o Papel


Este foi o quarto livro da sequência projetada de Stanislávski e foi
designado a completar o trabalho sobre o treinamento/a formação ator
[actor training] exposto [set out] em O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo:
[O Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo Criador das
Vivências/Experiências] e [O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: O
Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo Criador da Encarnação] [An
Actor’s Work on Himself Parts One and Two]. Tendo dominado os
elementos internos e externos do ‘sistema’, o ator precisava de um
método de ensaio coerente com o qual criar um personagem vivo.
Stanislávski nunca escreveu o volume pretendido. Ele foi
reconstruído depois de sua morte por seus alunos e associados. 
As três seções cobrem os anos de 1916-[19]37. A Parte Um, a qual
gira em torno do clássico de Griboiedov A Desgraça de ter Espírito [ou Ai
de Mim, Woe from Wit] consiste de um manuscrito incompleto, algum dos
que foi provavelmente ditado à filha da Senhora Gurevich entre 1916 e
1920. Escrito antes de Stanislávski ter decidido sobre a forma ficcional,
ele está [em] exposição direta [straightforward exposition]. Ele resume o
método básico de trabalho do TAM na época – estudo textual e pesquisa,
recriação imaginativa da vida interior e da aparência física do
personagem, seguido pela encarnação/caracterização física [physical


Ver Apêndice 1.

86
characterisation]. Ele é um modelo e não a afirmação [statement] de uma
prática invariável. Stanislávski foi, por consenso, o mais inventivo e
estimulante dos diretores, imediatamente sensível [responsive] às
dificuldades dos atores. Confrontado com suas necessidades, embora ele
não vá comprometer os elementos do sistema, as [82] ‘leis’, ele não
permitirá que a aplicação do Sistema na prática seja inibida por qualquer
coisa que ele tenha escrito ou dito em outro lugar. Ele nunca abordou
duas peças da mesma maneira. Quando necessário, os estágios de
preparação, separados para fins de explicação foram encurtados
[telescoped] ou combinados de acordo com a situação real.
A Parte Dois, [que] trata do trabalho sobre Otelo [Othello], foi
elaborada entre 1930 e 1933, e está intimamente relacionado com o plano
de montagem o qual Stanislávski estava trabalhando na época. A Parte
Três, [que] trata do Inspetor Geral [The Government Inspector], de Gogol,
data de 1936-7 e é sua única declaração concernente às suas ideias
posteriores sobre o método de trabalho.

O ‘sistema’: um diagrama
Os arquivos contêm uma série de esboços/rascunhos [sketches]
nos quais Stanislávski fez numa tentativa de apresentar o Sistema de
forma esquemática. Há uma consideração rumo ao fim de O Trabalho do
Ator Sobre Si Mesmo: O Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo Criador
da Encarnação [An Actor’s Work on Himself Part Two] de uma elaborada
‘ajuda visual’ que foi composta [set up]. O livro de Robert Lewis Método
ou Loucura [Method or Madness] também contém um diagrama que ele
obteve [took down] em Moscou no início dos anos [mil novecentos e]
trinta. O diagrama que segue aqui é substancialmente baseado sobre o
qual aparece no Volume 4 da edição Soviética das Obras Completas
[Collected Works], complementado com material de outras fontes (Veja a
Figura 3.1).


SD. p. 393.

87
A espinha [dorsal] do diagrama vai da premissa do Sistema –
Através do Consciente para o Inconsciente [1] para a razão para a
performance, a Supertarefa [Supertask] [15], a qual deve permanecer
provisória até que tenha sido verificada e refinada através do processo de
ensaio. A consecução da Supertarefa [Supertask] [15] depende da
perspectiva do ator [para] o [83] Papel [13] e da Linha Transversal de
Ação [Through-Action] [14]. Em sequência vêm os fundamentos da
performance, [a] Ação Física [2] e as Circunstâncias Dadas do Aforismo
de Pushkin [3].
[84] Para operar dentro dos princípios do Sistema o ator tem três
faculdades naturais básicas, cada uma sujeita ao controle consciente em
graus variados – o Intelecto [6], o qual pode conceituar e fazer
julgamentos e está disponível como um instrumento consciente; a
Vontade [5], que está menos sujeita ao comando; e [o] Sentimento [4],
que está [ainda] menos sujeito a comando.
[A] Vivência/Experiência [Experience] [7], [a]
Encarnação/Caracterização Física [Physical Characterisation] [8] e [a]
Leitura [9] são as estratégias disponíveis durante a preparação e [o]
ensaio da peça. [9] fornece informações sobre as Circunstâncias Dadas.
No lado esquerdo estão os elementos reunidos sob a
Vivência/Experiência [Experience], que conduzem ao Estado Teatral
Interior [10]. No lado direito estão os elementos da
Encarnação/Caracterização Física [Physical Characterisation], que
conduzem ao Estado Teatral Exterior [11]. [10] e [11], se combinam para
formar o Estado Teatral Comum [12].

88
15 SUPEROBJETIVO PROPOSTO

12 ESTADO TEATRAL COMUM

10 ESTADO TEATRAL INTERIOR 11 ESTADO TEATRAL EXTERIOR


Imaginação 13 14 Relaxamento
P L Tempo-Ritmo Externo
Unidades e Objetivos
E I
Atenção e Objetos R R N Voz
u
Ação S H Fala
m
o P A
Sensação de Verdade, Técnica Vocal
crença/fé cênica E
a
o C T [A] Linguagem e suas Leis
Tempo-Ritmo Interno
T R
Memória Emotiva i Movimento
I A
n
Comunhão c V N Dança
o A S
Adaptação n Esgrima
s V
Lógica e Coerência c D E Expressividade Física
i
Caracterização Interna e O R
n S
Atrativos Internos do t
A
P
Palco e
A L
Ética e Disciplina P

Controle e Finalização E D
L E

A
7 VIVÊNCIA/ 8 ENCARNAÇÃO/ 9 LEITURA
Ç
EXPERIÊNCIA CARACTERIZAÇÃO FÍSICA Factual
Ã
O Social
Faculdades Humanas
4 SENTIMENTO 5 VONTADE 6 INTELECTO Literária
– Representação, julgamento
P Estética
a
2 AÇÃO FÍSICA 3 AFORISMO DE PUSHKIN
p Circunstâncias Dadas
e
l
1 ATRAVÉS DO CONSCIENTE PARA O
INCONSCIENTE
89
[83] Figura 3.1. Sistema de Stanislávski
[85] 4
O MÉTODO DE AÇÃO FÍSICA
Insatisfação
Nos últimos cinco anos de sua vida, a prática de Stanislavski passou por
uma mudança quase tão radical quanto a que ele tinha experimentado
nos cinco anos seguintes a suas férias na Finlândia. Desta vez não houve
uma crise imediata para precipitar a mudança. Pelo contrário, o TAM era
muito bem sucedido, com uma reputação internacional. Os métodos
atuais estavam, em geral, produzindo resultados. No entanto, Stanislávski
estava insatisfeito. Parecia-lhe que a integridade do Sistema precisava
ser reestabelecida. Ele passou muitos anos analisando o processo
criativo, dividindo-o em seus componentes. Agora havia uma necessidade
de reenfatizar a sua unidade orgânica. Muitas vezes, no seu ponto de
vista, atores e diretores selecionam aquelas partes do Sistema que lhes
atraem, ou às quais eles acham mais acessíveis, e ignoram o resto.
Havia ainda, apesar do sucesso global, dificuldades básicas, a
mais importante das quais permaneceram [era] a abordagem inicial do
ator ao papel. A insistência de Stanislávski sobre a importância do estágio
primário na criação de uma performance nunca variou e se houve uma
mudança radical na disposição/ordenação do [86] seu processo de ensaio
[in his ordering of the rehearsal process] ela surge da sua percepção de
que a síntese dos elementos do Sistema vêm não ao final, mas é inerente
ao começo, [está] na primeira aproximação ao texto [script].
Os métodos de ensaio que Stanislávski tinha desenvolvido não
estavam sendo geralmente seguidos, ou, pelo menos, eles não estavam
sendo usados adequadamente. Na seção de abertura da Parte Três de O
Trabalho do Ator Sobre o Papel [An Actor’s Work on a Role], Stanislávski
escreve em termos desiludidos, que lembra daqueles sobre os quais ele
descreveu a prática teatral corrente em seus dias de juventude.


Cortado em A Criação do Papel [Creating A Role].

90
O primeiro contato [acquaintance] com um papel, a aproximação
a ele, tem lugar, na maioria dos teatros, da seguinte maneira. O
elenco se reúne para ouvir a peça ser lida para eles. Se a leitura é
feita pelo autor ou alguém que conhece a obra, tanto melhor [so
well and good]. Ele não precisa ser um bom leitor, mas conhecer a
linha interna da peça. Tais pessoas dão uma impressão correta da
obra e a esclarecem. Infelizmente, muito frequentemente, a peça é
lida por alguém que não a conhece. Nestas circunstâncias, uma
visão um tanto distorcida é transmitida aos futuros intérpretes do
texto. Isso é extremamente prejudicial uma vez que as primeiras
impressões são profundamente gravadas na mente do ator. É difícil
corrigir essas más interpretações iniciais [initial misunderstandings]
para os futuros criadores da nova montagem.
Depois da primeira leitura, na maioria dos casos, os ouvintes
têm uma impressão da obra que está longe de ser clara. Para
remediar isso, é organizado um chamado ‘bate-papo’. Quer dizer, o
elenco se reúne novamente e cada membro dá sua opinião sobre a
peça que ele ouviu. [Os pontos de] vista raramente são unânimes
sobre qualquer dado momento [given point]. [87] Na maioria das
vezes eles são bastante contraditórios e pelas razões mais
diversas e inesperadas. A confusão reina nas mentes daqueles
prestes a interpretar o texto [script].
Mesmo aqueles que aparentemente têm algum conceito da obra
perdem seu controle sobre ela. É ruim ser privado de suas
opiniões. Depois dessas conversas os artistas estão tão confusos
sobre seus novos papéis como eles estariam se se deparassem
com um enigma que tivessem de resolver rapidamente. É doloroso
e cômico ver o quão indefesos eles estão. Também é deplorável e
vergonhoso por causa da impotência de nossa psicotécnica. A fim
de penetrar a misteriosa intimidade de um papel, os artistas que
não estão equipados com um sistema tentam forçar uma entrada
de qualquer maneira que podem. Sua única esperança é que
algum acidente feliz irá deixá-los passar. Eles não podem fazer
mais do que agarrar-se a palavras como ‘intuição’, ‘subconsciente’
as quais eles de fato, não entendem. Se eles estão com sorte e [a]
fortuna está com eles, [a] consideram como um ato da Providência,
um presente dos deuses.
Se a sorte não está com eles, passam horas encarando o texto
aberto, tentando todas as maneiras de penetrar no papel [to get
into the part], não só mental, mas fisicamente. Tensos, exaustos
por seus esforços, eles tentam se concentrar murmurando as
palavras do texto, as quais são bastante estranhas para eles. Sua
gesticulação e expressões faciais, que não são motivadas a partir
do interior, não são reais, elas são trejeitos horríveis. Quando
nenhuma outra ajuda está próxima eles vestem trajes e
maquiagem de forma a aproximar-se do papel pela [aparência]
exterior.

91
É difícil entrar em um corpo que não é do seu próprio tamanho.
Onde está a abertura na armadura? O resultado é a tensão.
Mesmo aqueles momentos vitais raros que deram vida interior e
agitaram a alma depois da primeira leitura chegam a um fim
abrupto e o artista está [88] diante de seu papel como ante um
boneco de pelúcia [stuffed dummy]... Que danos isso faz à sua
energia criativa!

Infelizmente, em geral, a cura era quase tão ruim quanto a doença.


Ao criticar o remédio, Stanislávski estava criticando as práticas que ele
mesmo instituiu e que agora desejava revisar.

Para afastá-los [To get them out] [os atores] do problema o


diretor reúne todos os interessados ao redor da mesa e passa
vários meses analisando a peça e os papéis individuais em
detalhe. Eles falam sobre a peça mais uma vez, dizendo o que
quer que seja que lhes vem à cabeça. Eles trocam [pontos de]
vista, discutem uns com os outros, convidam especialistas para
várias conferências [talks], leem documentos, ouvem palestras.
Eles também olham os rascunhos [sketches] ou maquetes dos
cenários e figurinos destinados à montagem. Então decidem, até o
detalhe mais trivial o que cada um dos atores irá fazer, o que cada
um deles deve sentir, quando, afinal, eles sobem no palco e
começam a viver seus papéis.
No fim o coração e a mente do ator estão preenchidos com uma
massa de detalhes, alguns úteis, outros não, como uma galinha
que foi engordada para ser recheada com nozes. Não estando
numa posição de absorver tudo o que tinha sido violentamente
amontoado em seu coração e mente o ator perde o contato
também com aqueles raros momentos em que ele foi capaz de se
identificar com o papel.
E então lhe dizem: ‘Suba no palco, represente/desempenhe
[play] o seu papel e aplique tudo o que aprendeu nos últimos
meses de estudo em grupo.’ Com uma cabeça estufada e coração
vazio, o ator sobe ao palco e simplesmente não consegue fazer
nada. Mais meses são necessários para se livrar de tudo o que é
supérfluo, para selecionar e assimilar o essencial, para ele
descobrir a si mesmo – parte por parte, assim esperamos [bit by
bit, let us hope] – no papel.
[89] A questão [que] surge então é se é certo forçar um papel [a
part] nos estágios iniciais quando é importante mantê-lo fresco
[fresh]? São de algum modo bom ideias impositivas, julgamentos,
percepções sobre o papel [the part] quando a mente do artista
criativo ainda não foi aberta?
Claro [que] algumas coisas de valor resultam de tal trabalho,
entra em sua mente e ajuda o processo criativo. Mas muito mais, o

92
que é supérfluo vem também, informações desnecessárias, ideias
e sentimentos que, inicialmente, apenas confundem [clutter up] a
cabeça e o coração, assustam o ator e inibem a sua própria livre
criação. Assimilar o que é externo e alheio é mais difícil do que
criar com a própria inteligência e o coração.
Mas o pior de tudo, todos esses comentários, vindos de fora,
caem sobre solo sem preparo, não arado [untilled], árido. Não é
possível julgar uma obra ou as experiências que ela contém, se
você não tiver reconhecido uma parte de si mesmo nos escritos do
autor.
Se o ator está num estado preparado para aprender ideias
alheias e sentimentos armados com suas forças internas e seu
aparato externo, os quais tornam a caracterização
física/encarnação [physical caracterisation] possível; se ele sente
chão firme sob seus pés, ele irá aprender o que precisa para
aceitar ou rejeitar entre os conselhos, úteis ou não, o que lhe é
oferecido.

Stanislávski confrontou mais de uma vez o problema do ator


dividido contra si mesmo. Mas enquanto [que] na Praça Vermelha foi o
ator como ser humano que foi separado do ator como performer, agora o
Sistema, que foi projetado para superar essa divisão, foi, por sua vez,
separando a mente do corpo, o conhecimento do sentimento, a análise da
ação. O que [90] Stanislávski teve que procurar foi uma praxis, teoria e
prática em unidade orgânica.

Limitações da Memória Emotiva


Na leitura de uma peça um ator é chamado a preenchê-la com
suas próprias memórias e experiências, para dar-lhe profundidade
humana pelo seu próprio envolvimento pessoal, através da Memória
Emotiva. Muito frequentemente, no entanto, a evocação de experiências
[do] passado produzem resultados negativos – tensão, exaustão, às
vezes histeria. Em outros momentos, a mente bloqueia-se [seized up],
recusando-se a entregar [to yield up] seus segredos. Stanislávski esteve
sempre ciente de quão cuidadosamente a evocação da emoção tinha que
ser manipulada [handled]. O inconsciente não pode ser comandado. Os
sentimentos tem que ser ‘enredados/atraídos’ [lured], ‘aliciados/seduzidos’


SS. Vol. 4, pp. 313-15.

93
[enticed]. Agora lhe parecia que qualquer tipo de tentativa direta para
evocar o sentimento ou a memória do sentimento tinha de ser evitada.
Assim como era errado para o ator ser atacado [assaulted] por uma série
[battery] de fatos e de conhecimento exterior, também era errado atacar
suas próprias emoções.
Se o intelecto pode inibir, e as emoções são volúveis, onde pode o
ator começar em sua exploração de um papel? A resposta é, com o que
está mais imediatamente disponível para ele, com o que responde mais
facilmente aos seus desejos – o seu corpo.

A Lógica da Ação Física


Partindo do corpo Stanislávski desenvolveu um novo método de se
aproximar de um papel e novas prioridades para os estágios iniciais de
ensaio.
Há um aspecto físico para o pensamento e um aspecto mental para
a ação. O trabalho físico pode agir como um poderoso estímulo para a
imaginação e [para] o inconsciente. Stanislávski estava ciente disso e
tinha usado a improvisação, já em 1905, mas apenas como um
complemento [adjunct] e um apoio [support]. No modelo clássico de [91]
ensaios do TAM, a ação física veio por último. Ela era a isca com a qual
se ‘fisgava’ [‘lure’] os sentimentos requeridos.
A transição de uma posição para o seu oposto é
cartografada/traçada [charted] na obra O Trabalho do Ator Sobre o Papel
[An Actor’s Work on a Role] (edição de 1957). Na Parte Um (1916-1920),
a qual descreve o trabalho sobre A Desgraça de ter Espírito, [ou Ai de
Mim, Woe from Wit], de Griboiedov, o estágio da fisicalização
[physicalisation] vem por último, depois de exaustiva análise textual e
psicológica. Na Parte Dois (1930-1933), o trabalho sobre Otelo [Othello]
começa com uma leitura por Stanislávski/Tortsov. O trabalho físico segue
imediatamente depois, agora antecedente a qualquer estudo textual
detalhado. Na Parte Três (1936-7) os alunos são mergulhados

94
imediatamente na exploração física de O Inspetor Geral [The Government
Inspector].
No método da Ação Física, ou mais precisamente, o Método de
Análise Através da Ação Física, o ator começa criando, em sua própria
pessoa, muito frequentemente em detalhes precisos, uma sequência
lógica de ações, baseadas na pergunta ‘O que eu faria se...’, o ‘se’ sendo
suas intenções dentro das circunstâncias dadas da peça. Neste estágio,
ele está usando suas próprias palavras, não as do autor. A totalidade do
ser do ator está, portanto, comprometida desde o começo. As
circunstâncias e as ações prontamente tornam-se [they prompt become],
no processo de exploração, uma realidade pessoal.

Na realidade da vida cotidiana as pessoas se comportam de uma


maneira lógica, coerente em suas ações internas e externas, [as]
conscientes ou [as] por força do hábito. Na maioria dos casos,
somos dirigidos por nossos objetivos de vida, [pela] necessidade
absoluta, a necessidade humana. As pessoas habitualmente
reagem instintivamente, sem pensar. Mas sobre o palco,
desempenhando [playing] um papel, a vida é criada não pela
necessidade autêntica, mas pelos produtos da nossa imaginação.
Sobre o palco, antes do início do trabalho criativo, não há
necessidades humanas, necessidades vitais, na mente do ator, as
quais correspondam [92] aos objetivos do personagem. Essas
necessidades, esses objetivos, não podem ser criados de uma só
vez, mas desenvolvem-se gradualmente, durante o longo período
de trabalho criativo.

A lógica e a coerência das ações físicas, direcionadas para um


determinado fim (O que eu quero e o que eu faço para consegui-lo/obtê-lo
[to get it]?) resulta numa lógica e coerente vida psicológica.

Um ator sobre o palco só precisa sentir um mínimo de verdade


física orgânica em sua ação ou estado geral e, instantaneamente,
suas emoções irão responder à sua fé interior na autenticidade
[genuineness] do que seu corpo está fazendo. No nosso caso, é
incomparavelmente mais fácil suscitar [to call forth] a verdade real
e [a] fé na região de nossa [natureza] física do que de nossa
natureza espiritual. Um ator só precisa acreditar em si mesmo e


SS. Vol. 2, pp. 380-1.

95
sua alma irá abrir-se para receber todos os objetivos interiores e
[as] emoções de seu papel...

Inseparável da noção de ação é a questão do ritmo. [Os] ritmos do


corpo são um gatilho poderoso para as emoções. Portanto a insistência
inicial de Stanislávski sobre a importância do tempo-ritmo adquire ainda
maior importância:

Você não pode dominar o método das ações físicas se você não
dominar o ritmo. Cada ação física está inseparavelmente ligada
com o ritmo que a caracteriza.≠

Emoção como Ação


Emoções complexas e difíceis também são divididas em uma série
de ações. Como, Stanislávski pergunta, se pode atuar/interpretar [act] o
‘amor’? Certamente não pela tentativa de evocar o sentimento
diretamente. A [93] solução é imaginar uma série de acontecimentos, ou
momentos, os quais se somam [add up] à emoção. A emoção se torna
uma história na qual cada momento é representado por uma única ação.
Em outras palavras, fiel a descobertas iniciais, a emoção torna-se um
processo e não uma questão de imitação. Se a sequência de ações é
suficientemente bem trabalhada, o ator pode decolar, como um avião.
O processo analítico, no entanto, seja físico ou intelectual, precisa
ser contrabalançado por um sentido do todo. A experiência vinha
demonstrando que uma excessiva preocupação com as partículas [bits]
individuais e [com as] tarefas levavam os atores a esquecer o significado
geral da peça. Havia muitas tarefas, mas nenhuma supertarefa. A [linha]
transversal de ação estava borrada. Stanislávski propunha agora que a
peça deveria ser dividida em sequências mais longas, o que ele chamou
de ‘eventos/acontecimentos’ [‘events’]. Uma obra só pode conter três ou
quatro episódios principais, cada um dos quais irá necessitar de uma
série de ações, todas tendentes em direção ao mesmo objetivo. O


A Criação do Papel [Creating a Role], p. 150. Veja também a p. 239.

SNE. p. 170.

96
evento/acontecimento [event] pode ser, por exemplo, ‘entrando numa
escola de teatro’. Isso iria exigir do pretendente a realização de uma
série de ações por um período relativamente longo [over a fairly lengthy
period]. Elas, no entanto, só teriam significado em relação umas com as
outras. O ator, em consequência, ao invés de ficar atolado nas minúcias
de seu papel, é obrigado a pensar adiante, isto é, dinamicamente,
projetando para frente o tempo todo.

O Texto
Tendo estabelecido contato sólido [firm contact] com o material da
peça em sua própria pessoa, o ator então está pronto para começar a
assumir as características específicas do papel, quase por osmose. [94]
Não devem ser forçadas, [sem] nenhuma tentativa de atulhar sua
natureza em um molde alheio. Ele também está pronto para o texto do
autor agora que a necessidade para ele [o texto] foi criada e ele pode ser
visto como a expressão inevitável de tudo o que se passou antes. Análise
e estudo tornam-se então funções vitais e criativas.
Ao conter [holding back] o texto para uma fase posterior dos
ensaios Stanislávski não estava de forma alguma desvalorizando-o, ou
sugerindo que fosse de importância secundária para a expressão física,
ou não-verbal. Pelo contrário, ele considerou a ação verbal como a mais
artisticamente satisfatória e expressiva de todas. Ele estava muito
preocupado em manter o texto fresco. Palavras repetidas mecanicamente
durante os ensaios sem significado ou justificação tornam-se meramente
alojadas nos músculos da língua e nada mais.
Isso foi particularmente importante quando se tratou de grandes
dramaturgos como Shakespeare:

Por favor, lembrem-se do que eu disse, e não abram o texto [script]


até eu decidir que devam. Primeiro, deve-se gastar uma grande
quantidade de tempo dando a conhecer o subtexto para o

Maria Knebel em ‘K. A Questão do Método de Análise Ativa’ [‘K. Voprosou o Metodye
Deistvennovo Analiza’] , em Questões da Nova Arte Teatral [‘Voprosi Teatralnovo
Iskousstva’], Moscou, 1978, pp. 110-11.

97
personagem conforme ele se desenvolve, e torná-lo seguro. As
palavras reais devem servir apenas a ação, elas são um dos meios
externos pelos quais se dá a expressão física para a essência
interior de um papel. Esperem até que as palavras sejam
absolutamente essenciais para que vocês possam cumprir suas
tarefas do modo mais positivo. [...]Então o texto [script] torna-se
indispensável e vocês terão prazer nele [you will take joy in it],
como um violinista a quem foi dado um [violino histórico feito por
um grande mestre] para tocar. Com ele pode expressar sua vida
interior, seus sentimentos secretos e agitações melhor do que com
qualquer outra coisa. Uma vez que vocês tenham [se] identificado
com a sequência das tarefas verdadeiras, genuínas de seus
papéis, logo irão entender que vocês não vão encontrar uma
melhor maneira de cumpri-las do que usando as palavras que o
gênio [95] Shakespeare escreveu. Então vocês irão agarrá-las com
as duas mãos e elas virão frescas, em plena floração, não sujas e
desgrenhadas de todo o preliminar trabalho incompleto
[sketchwork] [que] vocês tenham feito.

O Terceiro Ser
Ao trazer a personalidade do ator e o personagem do autor juntos
numa relação orgânica, Stanislávski encontrou a solução para um velho
dilema. Shchepkin tinha falado de apagar a própria personalidade para se
tornar o personagem. Mas Stanislávski veio a perceber que a única fonte
verdadeira de material para o ator é ele mesmo e que sem essa base
pessoal era impossível criar um autêntico ser humano. O processo de
criação do personagem não é o da auto anulação, mas o da
autotransformação por meio da qual as próprias experiências de vida
tornam-se a experiência do personagem. Um terceiro ser é criado, uma
fusão do personagem que o autor escreveu e a própria personalidade do
ator, o ator/papel. Seria, como ele colocou, um novo filho, com o autor
como pai, o ator como mãe, e o diretor como a parteira.

O ‘sistema’ reestruturado
No desenvolvimento de um novo método de trabalho, Stanislávski
de modo algum contradisse tudo o que ele havia escrito ou ensinado
sobre a ‘gramática’ da atuação. O Método da Ação Física só pode


SS. Vol. 4 (1957), p. 218.

98
realmente ser praticado por aqueles que dominam a técnica psicofísica
delineado em ambas as partes de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo
[An Actor’s Work on Himself]. O que o novo método faz é trazer todos os
elementos do Sistema numa unidade maior, tornando-a orgânica ao ator e
seu processo.
[96] Em 1938, Stanislávski planejou uma montagem de Tartufo
[Tartuffe], a qual seria para demonstrar seu novo método. A escolha de
uma peça clássica em verso, ao invés de uma peça mais obviamente
‘naturalista’, foi deliberada e concebida para provar a aplicabilidade
universal do Sistema. Ele morreu enquanto a peça ainda estava em
ensaio, embora ele tenha feito trabalho o suficiente para a apresentação
[performance] seguir adiante. Sendo assim, ele não deixou nenhuma
descrição formal do novo método nem foi capaz de completar a tarefa de
revisar e reformular sua sequência de livros à luz de suas novas
descobertas. Restam apenas alguns rascunhos e anotações.  Coube a
seus jovens colegas e colaboradores da época explicar e desenvolver
seus últimos experimentos.


Veja o Apêndice 1.

99
[97] 5
A PROGRESSÃO DE UMA IDEIA
As ideias de Stanislávski não ganharam aceitação imediata, nem
mesmo entre seus colegas mais próximos. A revisão radical de sua
abordagem aos problemas da atuação e [da] direção a qual ele anunciou
em seu retorno da Finlândia em 1906 e novamente sua mudança de
método em 1933, foram resistidas. Mesmo Nemirovitch não estava
totalmente convencido, até mesmo apesar do apoio público que deu, em
uma ocasião, dirigido a toda a companhia a quem ele considerava estava
sendo obstrutiva.
Foi principalmente para os jovens atores que Stanislávski voltou-se
e a quem, com o apoio de alguns amigos fiéis, ele treinou. Ele logo
percebeu que os ensaios não eram o melhor lugar para ensinar o
Sistema. Como resultado quatro Estúdios [Studios] para atores foram
fundados entre 1912 e 1921 para ensinar os alunos, juntamente com um
estúdio de ópera em 1924 para os cantores. Nos anos [mil novecentos e]
trinta, foi com um grupo de amigos e jovens atores que Stanislávski
trabalhou sobre o Método de Ação Física. Isso não quer dizer que o
próprio Stanislávski não fosse respeitado como um artista, mesmo
venerado, mas esse respeito não implica [98] aceitação automática de
suas teorias. Os métodos de trabalho do TAM foram frequentemente alvo
de escárnio e ridicularização mesmo até tão tarde quanto 1930. É talvez
só no período pós-guerra que, na União Soviética, o ‘sistema’ Stanislávski
torna-se a pedra angular do treinamento/da formação [the corner-stone of
training].
Fora da Rússia as ideias de Stanislávski foram frequentemente mal
compreendidas. Há razões históricas para isso. Originalmente elas foram
trazidas para o ocidente por atores que trabalharam tanto no TAM ou em
um dos Estúdios e tiveram a vivência/experiência [experience] do Sistema
em ação. A questão é quando eles foram ensinados e em que estágio do


SD. pp. 192-3.

100
desenvolvimento do sistema. Grotowski expressou o problema de forma
concisa:

Durante os numerosos anos de pesquisa o método [de


Stanislávski] evoluiu, mas não os seus discípulos. Stanislávski teve
discípulos para cada um de seus períodos e cada discípulo está
limitado ao seu período particular; daí vieram discussões como
aquelas da teologia. Ele mesmo foi sempre experimentando e não
sugeriu receitas, mas os meios pelos quais o ator pode descobrir a
si mesmo, respondendo em todas as situações concretas a
questão: ‘Como isso pode ser feito?’

Um caso em questão é Richard Boleslavsky, que tomou parte na


montagem crucial de Um Mês no Campo [A Month in the Country], em
1908 e deixou a companhia para emigrar para os Estados Unidos em
1922. Sua exposição do Sistema é clara e coerente, mas ele era
necessariamente desconhecedor da última fase da atividade de
Stanislávski. Sua influência na atuação na América [do Norte] foi
profunda.
[99] Em 1925, Boleslavsky fundou o Teatro Laboratório Americano
[American Laboratory Theatre] e foi acompanhado por Maria Ouspenskaia
que ficou nos Estados Unidos depois do fim da turnê do TAM. Entre seus
alunos esteve Lee Strasberg. O ensino de Boleslavsky era fortemente
dependente da noção de Memória Emotiva, a qual, sob a influência de
Strasberg, tornou-se a pedra angular do Método, ele mesmo o assunto de
muita discussão e debate na Grã-Bretanha na década de mil novecentos
e cinquenta.
O Método tornou-se popularmente identificado com o Sistema,
embora o próprio Strasberg estivesse bem consciente das diferenças.
Quando Stella Adler, que trabalhou com Stanislávski em Paris, delineou o
novo Método de Ação Física para ele em 1934, ele o rejeitou. Para ele, o


Jerzy Grotowski, Em Busca de Um Teatro Pobre [Towards a Poor Theatre], Londres,
Methuen, 1969, p. 206.

Boleslavsky, A Arte do Ator: As Primeiras Seis Lições [Acting: The First Six Lessons],
Nova York, Theatre Arts Books, 1949. Veja também Cole e Chinoy (ed.), Atores em
Atuação [Actors on Acting], Nova York, Crown, 1970.

101
elemento fundamental na atuação era a recordação/lembrança
[recollection] da emoção. O resultado pode ser uma forma introvertida de
atuação. O Método tende a substituir as circunstâncias dadas pela
biografia do ator, a psicologia do personagem pela personalidade do ator.
O ator não reestrutura elementos de si mesmo para revelar o significado
do texto tanto quanto consegue o texto dentro do âmbito de sua própria
experiência. Nas mãos dos atores estrela [star players] ele pode produzir
resultados carismáticos. Usado por talentos menores os resultados
frequentemente podem ser autoindulgentes e ridicularizantes [self-
indulgent and stultifying]≠. Foi precisamente a esses talentos menores, no
entanto, que o Sistema foi projetado para ajudar.
Outro obstáculo para a compreensão adequada é o modo errático
no qual os livros de Stanislávski apareceram. Isto é devido [100] em
grande parte a problemas editoriais e do acidente da guerra. Minha Vida
na Arte [My Life in Art] foi publicado nos Estados Unidos em 1924. A
Preparação do Ator [An Actor Prepares] apareceu nos Estados Unidos em
1936, mas o volume complementar, A Construção do Personagem
[Building a Character] não foi publicado até 13 anos mais tarde, em 1949.
Houve mais uma lacuna de doze anos antes da publicação de A Criação
do Papel [Creating a Role], em 1961. Sob estas circunstâncias, a
totalidade do esquema de Stanislavski é difícil de captar [to grasp].
Coleções de fragmentos independentes, fora de contexto, como
podem ser encontrados em O Legado de Stanislávski [Stanislavski’s
Legacy] e Manual do Ator [An Actor’s Handbook] não ajudam o estudante
a compreender a coerência do ‘sistema’. Na ausência de uma edição em
Língua Inglesa das Obras Completas [Collected Works] de Stanislávski, a
situação não pode ser retificada.
O ‘Sistema’ Stanislávski não é importante como um conjunto de
exercícios ou preceitos, os quais se seguidos religiosamente irão resultar
numa boa atuação. O conhecimento da gramática não é garantia de ser


A Herança de Stanislávski: Carta de Lee Strasberg para Christine Edwards, p. 261.

Há um Método em Atuação Britânica [British Acting] citado em A Herança de
Stanislávski [The Heritage Stanislavski], pp. 268-9.

102
capaz de escrever imaginativamente; uma capacidade de manipular as
figuras de retórica não irá criar poesia. A gramática fornece uma estrutura
dentro da qual a mente criativa pode operar. O ‘sistema’ é importante
porque chama a atenção para certas questões precisas e sugere métodos
para resolvê-las. As soluções não podem simplesmente ser repetidas, ou
imitadas – que é o retorno ao clichê. As perguntas surgem cada vez que
uma peça vai ser ensaiada. O que Stanislávski oferece é um processo de
tomada de decisão que não violenta ao ator e suas possibilidades
criativas.

O ‘Sistema’ é um guia. Abra-o e leia-o. O ‘Sistema’ é um livro de


referência, não uma filosofia. Onde a filosofia começa o ‘sistema’
acaba. Você não pode atuar/representar [act] [101] o ‘Sistema’:
você pode trabalhar com ele em casa, mas no palco você deve
colocá-lo de lado.
Não há nenhum ‘Sistema’. Há somente a natureza. O objeto de
minha vida tem sido chegar o mais perto que eu puder do assim
chamado ‘Sistema’, ou seja, da natureza da criação.
As leis da arte são as leis da natureza. O nascimento de uma
criança, o crescimento de uma árvore, a criação de um
personagem são manifestações da mesma ordem. O
estabelecimento de um ‘Sistema’, ou seja, as leis do processo
criativo, é essencial porque sobre o palco, pelo fato de ser público,
o trabalho da natureza é violado e suas leis infringidas. O ‘Sistema’
reestabelece estas leis; ele promove a natureza humana como a
norma. Tumulto, medo da multidão, mau gosto, tradições falsas
deformam a natureza.
O primeiro aspecto do método é o de trazer o inconsciente para
trabalhar. O segundo é, uma vez que ele começa, deixá-lo
sozinho.


SS. Vol. 3, p. 309.

103
[103] Apêndice 1
Existem diferenças significativas entre as edições em Língua
Russa das obras de Stanislávski e as traduções disponíveis em Inglês.
Entre 1951 e 1964 uma edição de 8 volume das Obras Completas
[Collected Works] foi impressa na antiga União Soviética. Esta foi
suplantada por uma nova edição de 9 de volumes, a qual começou a ser
publicada em 1988. Ela Consiste de:

1. Minha Vida na Arte [My Life in Art].


2. O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si Mesmo] no
Processo Criador das Vivências/Experiências [An Actor’s Work on Himself
in the Creative Process of Experience].
3. O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si Mesmo] no
Processo Criador da Encarnação/Caracterização Física [An Actor’s Work
on Himself in the Creative Process of Physical Characterisation].
4. O Trabalho do Ator Sobre o Papel [An Actor’s Work on a Role].
5. Ensaios, Artigos, Discursos, etc. 1877-1917 [Essays, Articles,
Speeches, etc. 1877–1917].
6. Ensaios, Artigos, Discursos, etc. 1917-38 [Essays, Articles, Speeches,
etc. 1917–38].
7, 8, 9. Cartas 1886-1938 [Letters 1886–1938].

Além disso, há uma edição de 6 volume dos Planos de Montagem


[Production Plans], uma edição limitada em separado do plano de
montagem para Tio Vânia [Uncle Vanya], e uma edição de 2 volumes de
excertos dos Cadernos de Anotações [Notebooks]. Traduções em Inglês
dos planos de montagem para A Gaivota [The Seagull] e Otelo [Othello]
apareceram, embora [de] Otelo não seja inteiramente satisfatória.
As anotações a seguir indicam as áreas nas quais as edições em
Língua Inglesa diferem das edições Russas.

104
[104] Minha Vida na Arte [My Life in Art] foi encomendado por uma
editora [Norte] Americana para coincidir com a turnê do TAM [pelos] E.U.
Ele foi ditado para O. F. Boshkansakaia durante 1922 e 1923 e traduzido
capítulo por capítulo. O livro foi, na própria admissão de Stanislavski,
apressadamente organizado. A memória de Stanislávski para fatos e
datas não era boa. Ele tem mesmo o momento de seu encontro histórico
com Nemirovitch errado, afirmando que começou às dez da manhã,
enquanto que, na verdade, começou às duas da tarde. Ele decidiu que o
livro deveria ser revisado para a primeira edição Russa e pediu à Sra.
Gurevich para ajudá-lo. A edição [Norte] Americana traduzida por J. J.
Robbins apareceu em 1924, a Russa em 1926. Stanislávski rejeitou
categoricamente a edição [Norte] Americana e insistiu que ele gostaria de
ser lembrado pela edição Russa, de 1926.
O texto foi revisado novamente em 1936, quando Stanislávski o viu
como parte de sua sequência planejada de obras. A versão que forma o
Volume 1 das Obras Completas [Collected Works] é mais completa do
que a disponível em Inglês. Em particular os capítulos finais são mais
longos e mais informativos, especialmente no concernente ao
desenvolvimento/crescimento [growth] do Sistema.
Há também uma mudança da ordem dos capítulos a qual torna o
desenvolvimento de Stanislávski muito mais claro. Embora as discussões
com Gordon Craig concernentes ao Hamlet começam em 1908, a noite de
estreia não aconteceu até janeiro de 1912. A fim de entender a evolução
do pensamento de Stanislávski, é melhor portanto adotar a ordem Russa
e ler o capítulo 57 depois do capítulo 53, de modo que a relação da
montagem de Um Mês no Campo [A Month in the Country] com as
conclusões alcançadas na Finlândia seja mais aparente.
A edição Soviética também publica, num apêndice, passagens as
quais Stanislávski corta a conselho de amigos.

[105] O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si


Mesmo no Processo Criador das Vivências/Experiências] [An Actor’s

105
Work on Himself] também apareceu primeiro nos Estados Unidos como
A Preparação do Ator [An Actor Prepares]. Em 1928, Stanislávski sofreu
um ataque cardíaco. Ele foi para Badenweiler para ser tratado pelo
médico de Tchekhov. Lá ele se juntou a Norman e Elizabeth Hapgood
com quem formou uma estreita amizade em Nova York, em 1923, durante
a turnê [Norte] Americana. Eles agregaram suas vozes aos muitos outros
que estavam pedindo a ele que colocasse seus ensinamentos numa
forma permanente. A família Stanislávski mudou-se para Nice onde
permaneceram por vários meses com os Hapgoods como seus vizinhos.
Stanislávski continuou a trabalhar sobre O Trabalho do Ator [An Actor’s
Work] o qual estava em forma de esboço. A Sra. Hapgood traduziu o
manuscrito para o Inglês, enquanto Norman Hapgood, que era um
experiente editor e crítico de teatro, foi ativo com um lápis vermelho,
sugerindo cortes e mudanças. A Sra. Hapgood traduziu as sugestões de
seu marido de volta para o Russo para aprovação de Stanislávski.
Stanislávski assinou um contrato com a Sra. Hapgood dando-lhe plenos
poderes de procuradora para agir em seu nome no recebimento de
royalties para ele e seus herdeiros e na negociação de contratos. Como
Stanislávski escreveu à Sra. Gurevich, em Dezembro de 1930, o formato
do livro no final de 1930 era em grande parte devido aos conselhos de
Norman Hapgood. Naquele mesmo ano foi assinado um contrato com a
Editora da Universidade de Yale [Yale University Press]. Um texto em
Russo completo foi encaminhado para os Hapgoods em Nova York em
1935 e a Sra. Hapgood devotou os próximos dois anos preparando a
tradução final [para o] Inglês. Ao receber o manuscrito, a E[ditora da]
U[niversidade de] Y[ale] [YUP] o rejeitou como não comercial
principalmente por causa das repetições. Em 1935 a [editora] Livros de
Arte Teatral [Theatre Art Books] aceitou o livro sob a condição de que
cortes adicionais fossem feitos. Stanislávski concordou. Tal como
[aconteceu] com Minha Vida na Arte [My Life in Art], Stanislávski então
produziu uma edição Soviética diferente. Passagens foram reescritas e
alguns materiais transferidos para a Parte Dois. Os dois capítulos finais

106
foram substancialmente retrabalhados, [106] principalmente em resposta
a reações hostis da censura soviética. Um prefácio foi adicionado, de
novo principalmente para apaziguar as autoridades. Mesmo depois que o
livro tinha sido enviado para as impressoras, Stanislávski continuou a
rascunhar passagens para inclusão em edições posteriores. Ele ainda
estava trabalhando neles na sua morte em Agosto de 1938. O Trabalho
do Ator Sobre Si Mesmo: [O Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo
Criador das Vivências/Experiências] [An Actor’s Work on Himself Part
One] apareceu em setembro. Ele foi republicado como Volume 2 das
Obras Completas [Collected Works] em 8 Volumes em 1954 e então
novamente, depois de um pouco menos de trabalho editorial [after further
minor editorial work], como parte da nova edição Russa em 9 volumes, de
1989. Esta versão do livro nunca foi traduzida para o Inglês. Em 1936,
para estabelecer direitos autorais [copyright] nos Estados Unidos, a Sra.
Hapgood registrou a ela e seu marido como coautores. Os direitos
autorais conjuntos desta e de outras obras publicadas de Stanislávski, foi
renovado em 1964. Depois que a primeira edição Russa apareceu em
1938, as excisões da Sra. Hapgood foram severamente criticadas. Para
combater a hostilidade crescente a [editora] Livros de Arte Teatral
[Theatre Arts Books] contratou um especialista para fazer uma
comparação detalhada do original e [d]a tradução. Isto resultou em uma
declaração autenticada declarando que, para além da eliminação das
repetições, os dois textos eram idênticos. Mais tarde, a crítica , no
entanto, colocou a precisão da tradução e a sabedoria dos cortes em
dúvida.

O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo[: O Trabalho Sobre Si Mesmo no


Processo Criador da Encarnação/Caracterização Física [An Actor’s
Work on Himself Part Two]. Este livro também apareceu primeiro nos


Em 2008, o próprio Jean Benedetti lançou uma tradução diretamente do Russo para o
Inglês juntando as duas partes do livro como queria inicialmente Stanislávski, sob o título
O Trabalho do Ator: O Diário de um Estudante [An Actor’s Work: A Student’s Diary]. N.T.

Carnicke, Sharon M., A Preparação do Ator [An Actor Prepares] em Jornal do Teatro
[Theatre Journal], Dezembro de 1984, pp. 481-94.

107
Estados Unidos em 1949, sob o título A Construção do Personagem
[Building A Character]. Existem grandes [wider] diferenças entre as
edições em Inglês e em Russo. Em 1937, a Sra. Hapgood visitou Moscou
e Stanislávski prometeu a ela o manuscrito. Sua morte em 1938 e a
guerra no ano seguinte, atrasaram a entrega até o final dos anos [mil
novecentos e] quarenta. A publicação estava [107] planejada para 1948
mas foi adiada até 1949, visto que a Sra. Hapgood tinha recebido novo
material enviado pelo filho de Stanislávski, Igor, de acordo com a vontade
de seu pai.
A versão Soviética apareceu em 1955. Ela está substancialmente
baseada, como indicado no Capítulo Três, sobre o trabalho editorial
efetuado por G. Kristi, [uma] parte sob a supervisão de Stanislávski. As
notas contêm detalhes do material de arquivo o qual havia sido
selecionado e o modo no qual ele foi reunido. Como [aconteceu] com os
volumes precedentes, material suplementar foi fornecido – revisões,
novas passagens para inserção – na preparação para uma reformulação
do todo. Há também esboços de programas de ensino para ambos,
atores e cantores.
Uma comparação do sumário [the contents page] de A Construção
do Personagem [Building A Character] e a sequência de capítulo[s] de O
Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo [: O Trabalho Sobre Si Mesmo no
Processo Criador da Encarnação/Caracterização Física [An Actor’s Work
on Himself Part Two], revela as principais diferenças. Cada livro contém
material ausente no outro. Onde capítulos cobrem o mesmo tópico,
diferentes variantes, das quais poderia haver muitas, têm sido utilizadas.
Assim, ao passo que conceitualmente os livros são próximos, ao nível do
texto são amplamente/largamente [widely] díspares.
Somos, portanto, defrontados com duas versões da mesma obra,
baseadas em dois conjuntos separados de decisões editoriais. A edição
Soviética de 1955, em comum com outros volumes produzidos como
parte das Obras Completas [Collected Works] na atmosfera Stalinista
opressiva dos [anos] 1950, foi adulterada [doctored] por razões

108
ideológicas, a fim de trazer textos de Stanislávski na linha/em
consonância [into line] com a doutrina oficial do Realismo Socialista. A
nova edição Russa de 1990 é um texto revisado e reeditado, com base
num reexame do material [do] arquivo. Apresenta-se claramente como
‘material para um livro’. Este não foi traduzido para o Inglês. 

[108] O Trabalho do Ator Sobre o Papel [An Actor’s Work on a Role].


Este é novamente apresentado como material para um livro. A edição
Soviética de 1957 consiste de uma coleção de quatro artigos de
Stanislavski sobre o seu método de ensaio, começando em 1916. Este
apareceu nos Estados Unidos em 1961, como A Criação do Papel
[Creating A Role], mas novamente, há cortes significativos e algum
rearranjo do material. Dá a impressão de que este é um livro acabado o
qual Stanislávski realmente escreveu.
A edição Russa de 1991 foi revisada e expandida para incluir todas
as declarações de Stanislávski acerca do trabalho sobre o papel,
extraídas de [drawing on] manuscritos inacabados na forma ficcional e
[de] seus Cadernos de Anotações [Notebooks].

O Legado de Stanislávski [Stanislavski’s Legacy], publicado pela


primeira vez nos E.U.A em 1958, é uma coleção de artigos e fragmentos,
a qual contêm alguns dos materiais a serem encontrados em material
adicional publicado nos Apêndices das Obras Completas [Collected
Works], ou entre os Ensaios. Estes [materiais] não estão, em geral,
relacionados com o plano geral de Stanislávski.

O Manual do Ator [An Actor’s Handbook]. Este [livro] apareceu em


1963 e é uma antologia de extratos dos escritos de Stanislávski,
organizados em ordem alfabética.


Em 2008, o próprio Jean Benedetti lançou uma tradução diretamente do Russo para o
Inglês juntando as duas partes do livro como queria inicialmente Stanislávski, sob o título
O Trabalho do Ator: O Diário de um Estudante [An Actor’s Work: A Student’s Diary]. N.T.

109
[109] Apêndice 2
Comparativo [da] Terminologia
Stanislávski usou vários termos nos diferentes períodos de sua vida. No
[ano de] 1930 ele usou dois conjuntos simultaneamente; um para seus
livros, o outro quando trabalhou no Estúdio de Ópera Dramática [Opera-
Dramatic Studio]. Elizabeth Hapgood produziu equivalentes para a
terminologia em seus livros. Eles são tabelados na página 110. [110]
Análise “O Trabalho do Estúdio de Hapgood
Ator Sobre Si Ópera Dramática
Mesmo”
Decide provisoriamente Supertarefa Supertarefa Superobjetivo
sobre o que é a peça

Divide a peça em suas Principais Episódios/ Unidades (Units)


principais partes Partículas (Major Eventos/Aconte-
componentes Bits) cimentos
(Episodes/Even-
ts)

Decide o que cada ator Tarefa Básica Ação Básica Objetivos


tem que fazer em cada
uma das principais partes
componentes, o que ele
quer ou precisa

Divide as principais partes Médias e Fatos/Eventos/ Unidades (Units)


componentes em partes Pequenas Acontecimentos
médias e pequenas Partículas (Facts/Events)
(Medium-size and
minor Bits)

Decide o que cada ator Tarefa Tarefa Objetivo


tem que fazer em cada
uma das médias e
pequenas partes, o que
ele quer ou precisa

Decide o que ele faz para Ações Ações Ações


cumprir o que ele precisa

Verifica se a sequência de Ação Transversal Ação Transversal Linha


necessidades e ações de (Through-action) (Through-action) Transversal de
ação é lógico e coerente e ação (Through-
se relaciona com o tema line of action)
da peça

110
[111] Índice de Tópicos
A seguir está uma lista dos principais tópicos referidos no texto

Crença/Fé Cênica 55 [47]


Círculo de Atenção 56, 61, 65 [48, 54, 58]
Clichê 34, 38, 39-41 [24, 28, 30-31, 63, 100]
Comunhão 89 [83]
Concentração 55, 65 [48, 58]
Convenções 21, 28, 69-71 [8, 17, 63-64]
Estado Criativo 51,52,59-61,67,81,85 [43,44,52-55,61,76,79]
Edições 104-109 [103-108]
Papel Educativo do Teatro 35 [25]
Memória Emotiva 54,62,65,67,89,93,101 [45,55,58,61,83,90,99]
Movimento Expressivo 73, 74 [67-68]
Circunstâncias Dadas 88-89, 95, 101 [83-84, 91, 99]
Mágico ‘Se’ 55, 57, 84 [47, 49, 50, 78]
Método de Ação Física 90, 94-96,98, 100, 101 [85, 91-92, 95, 97,99]
Naturalismo 28, 29, 82 [17,18, 77]
Teatro Político 30 [19]
Aforismo de Pushkin 89 [83]
Leitura 42, 45, 54, 66-67 [33, 36, 46, 60]
Realismo 20, 22, 27-28 [7, 10, 16-17]
Subtexto 47, 65, 70 [38, 59, 63]
Supertarefa 69 [63]
Tempo-Ritmo 74, 85, 89 [68, 80, 83]
[Linha] Transversal de Ação 69 [63]
[112] Tradição 37, 40 [27, 31]
Atuação Verdadeira 24-25,39-40,55-57, 95-96 [13, 30, 48-50, 92]
Inconsciente 44, 51, 67, 88-89 [35, 43, 60, 82-83]
Voz 18, 20, 49, 65 [6, 8, 40, 59]


Entre colchetes, a página no original.

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