Você está na página 1de 5

A MATÉRIA ESCURA

Carlos Machado

Olho pela janela do coletivo. Na faixa a menina atravessa apressada, mexe no cabelo e
desaparece esquina adentro. Na próxima paragem eu desço. Caminho alguns metros até
o bar que sempre me faz parar, puxo uma cadeira e sento sozinho como de costume.
Saco um livro e começo a folheá-lo anonimamente. Houve um tempo no qual uma das
coisas de que eu mais gostava era passar horas em livrarias a folhear livros. Aos poucos
o hábito se mudou para as mesas de bar, onde era comum folhear livros sem que as
palavras alguma coisa importasse. O prazer de ter as páginas correndo por entre os
dedos era maior do que qualquer um a ser proporcionado pela sintaxe, gramática ou
ortografia. Simulava a leitura enquanto meus sentidos eram absorvidos por objetos não
discursivos a ocupar a extensão do recinto. Sentia como se eles estivessem prestes a se
transformar em palavras. Antes, contudo, haveria de passar pelo conhecido ritual de
cultivá-los em sua idealidade. Eram de todos os tipos e estavam por toda a parte. Vivos
ou inanimados, não importando se estranhos ou velhos conhecidos, cresciam em
detalhes a mercê da atenção que eu a eles despendia. As mesas vazias, arrumadas
caprichosamente e como que numa espera ansiosa, pareciam sorrir quando eram
ocupadas. Ao fim de uma farta refeição, regada por um bom vinho, podia notar o tom de
satisfação no desalinho de sua superfície a misturar talheres, taças e guardanapos, antes
impecavelmente dispostos. Porém, quando seus ocupantes levantavam e partiam, elas
permaneciam ali como uma amante que depois de desfrutada era deixada estendida e
imóvel em sua solidão, até que outro cliente qualquer viesse a solicitar seus serviços.
Havia mesas onde costumavam sentar-se gente solitária. Sempre num canto da parede
ou junto a alguma pilastra, elas revelavam sua introversão, mesmo quando vazias. Era
nítida a diferença de temperamento entre as tímidas mesas de canto e as esfuziantes
mesas no centro do salão.

Corro os olhos através das mesas, e no fundo do bar, numa mesa solitária como a
minha, dou de olhos com uma jovem. Ela tem diante de si um copo que leva a boca
lentamente, deixa escorrer parte do líquido, repousa-o em seguida sobre a mesa, mexe
no cabelo e desvia o olhar em direção a porta. Lembrei-me já de ter ouvido que toda
mulher quando percebe que está sendo observada, tem o reflexo de mexer no cabelo. A
moça da mesa em frente bem poderia ser a menina que vi dobrando a esquina há pouco.
Deveria estar atrasada para um encontro, por isso corria tanto. Pelo menos chegou a
tempo, mas agora ela é que deveria esperar. Não parecia ansiosa, pelo contrário.
Saboreava sua bebida calmamente sem o mínimo sinal de impaciência. Volto a minha
leitura e sem que tivesse conseguido avançar muitas linhas, sou logo interrompido pela
presença de alguém que já tinha se aproximado sem que eu me desse conta e em pé ao
meu lado aguardava atenção. Por algumas frações de segundos pensei que a moça
pudesse ter levantado e se dirigido até mim, possibilidade que é logo barrada pela figura
do garçom que começa a encher novamente minha taça. Agradeço meio decepcionado e
ele volta para dentro da cozinha. Desvio meu olhar, novamente, para a moça e ela mexe
no cabelo mais uma vez. Dessa vez sinto o impulso de levantar e me dirigir até sua
mesa, mas logo o bom senso assume as ações e me mantém preso a cadeira. Decerto não
seria uma boa ideia e eu poderia me arrepender desse rompante. Decido então continuar
a observá-la a distância entre uma página e outra do livro cujo conteúdo, se já não tinha
muita importância, perdera por completo qualquer relevância. Gostava de alternar o ato
de ler palavras esparsas do texto com sentimentos que surgiam à medida que brincava
de auscultar os pensamentos de quem caía no meu campo de visão. Por vezes imaginava
que alguma comunicação pudesse se estabelecer entre nós através de gestos e olhares
em silêncio. Uma diferente forma de linguagem, onde os códigos eram subentendidos
através do movimento dos corpos, um diante do outro. Pequenos movimentos, quase
imperceptíveis, porém estudados com afinco a partir do que se supunha despertar
significados através da reação de quem se escolhera para essa conversa imaginária.
Bastava descobrir a frequência onde vibrava os gestos de cada uma das pessoas que
tinham ao meu redor para conseguir sintonizar e começar a emitir sinais carregados de
mensagens. Por isso, na maioria das vezes, preferia simular à distância uma intimidade
que ia aumentando conforme a combinação dos meus movimentos com os do meu
interlocutor silencioso ia ganhando eficácia.

Desenvolvera esse hábito faz tempo e por isso preferia as incursões solitárias ao invés
dos animados encontros entre amigos, recheados de muita conversa a viva voz, cujas
palavras em geral eram familiares a qualquer um que se pusesse a ouvi-las, diferente de
minha linguagem dos sinais codificados, trocados à distância. Não costumo comentar
sobre esse meu hábito com as pessoas. Temo que pareça estranho demais ou
extremamente infantil, assim como aquelas brincadeiras que se fazem quando criança,
onde tentamos seguir uma linha pontilhada, em movimentos coordenados e evitando
pisar fora das marcas que estipulamos como obrigatórias aos nossos pés. Lembro que
certa vez comentei com um amigo sobre essas minhas aventuras silenciosas. Ele ouviu
sem parecer surpreso, mas parece não ter dado muita importância por pensar que se
tratava de alguma metáfora ou hipérbole vinda de minha parte. De qualquer modo sigo a
estabelecer meus contatos em circunstâncias variadas. E foi assim que cada olhar
lançado na direção da menina da mesa solitária começa a ser precedido ou seguido de
um dos códigos de meu vocabulário sem palavras. Tentei explicar como tinha ficado
feliz em reencontrá-la na mesa em frente depois de tê-la avistado de dentro do ônibus a
atravessar a rua apressadamente. Insinuei isso diversas vezes através do movimento do
copo que levava a boca e debruçava em seguida sobre a mesa. Seu olhar perdido na
parede do fundo atrás de minha mesa, combinado com o movimento do copo no qual
bebericava algo, parecia corresponder lisonjeado pela minha gentileza. Aquela altura,
também como de costume, a vontade de me aproximar e de verbalizar alguma coisa era
grande, mas continuei a concentrar meus esforços nos movimentos ritmados de minha
linguagem silenciosa. Muitas vezes, quando acreditara ter estabelecido definitivamente
a conexão que me permitia expressar plenamente meus sentimentos, isso chegava
mesmo a afetar minha respiração. A cada palavra não dita à menina, externando
precisamente o que se passava por dentro de minha cabeça, sentia que a forma como ela
respirava também tinha se alterado, até que ambos começávamos a respirar em
sincronia como se estivéssemos próximos de um clímax. Novamente o garçom se
aproxima de mim e enche o copo sobre a mesa. Agradeço acenando positivamente com
a cabeça, tentando disfarçar a irritação pela sintonia do meu diálogo ter sido
interrompida.

Gosto da alternância de sentimentos provocada por esses estados imaginários, nos quais
se duvida de que lado está, de fato, ou se existe a mesma realidade comum a alguém
além de você. Alternância. Talvez essa seja uma palavra que melhor descreva o estado
de meu espírito desde sempre. Cheguei a pensar em contraste, mas a expressão carrega
certa oposição da qual gostaria de me livrar ao expor o que trago comigo ao longo de
uma existência recheada de idas e vindas, vai e vens, enfim, cheia de alternâncias.
Pensei em dilema, porém mais uma vez a contradição entre as partes me afastou do
vocábulo. Prefiro pensar na diferença ela mesma, ao invés de trabalhar com oposições.
Diferença que independe dos termos de uma comparação, indeterminada e impossível
de ser apreendida na tensão dos opostos. Na literatura, gostava de autores que
conseguissem traduzir o inexprimível. Quando dei de frente com a turma do pincel, logo
fiquei fascinado pelo cubismo e pouco depois elegi o trabalho de Francis Bacon como a
verdadeira expressão do que gostaria de dizer sem palavras. Na música o princípio da
atonalidade sempre me perseguiu. Não foi à toa que quando comecei a produzir
conceitos em filosofia, o problema que nunca se afastou era o de como dizer a absoluta
diferença, fora dos parâmetros ou dos limites que separam aquilo que em algo difere de
alguma outra coisa. Era mais ou menos como que cair num abismo desabando de um
céu a outro, sem que entre eles houvesse alguma separação, mas apenas a absoluta
diferença da duração de numa continuidade sem fim ou, como gostava de dizer, apenas
um rio sem margens, superfície ou fundo. Nunca cansei de passear por essa região
cercada pelo vazio. Muito porque sempre acreditei que o vazio era apenas uma medida
para descrever a ausência do que não se consegue perceber, ausência de formas que
possam preenchê-la. Se pensarmos que tudo o que existe se limita a frequências, ou a
intensidade como uma força que vibra, diria que uma forma nada mais é do que uma
articulação de forças que se relacionam em frequências diversas. Acontece que em
certos casos as forças não se encontram já relacionadas, mas em um estado de absoluta
liberdade, assim como na matéria escura, cuja estrutura formal não pode ser apreendida,
mas sua realidade só pode ser verificada pelo campo magnético a sua volta. Continuo na
dúvida se a moça da mesa em frente é a menina que vi de dentro do coletivo sumir
apressadamente esquina adentro, depois de mexer no cabelo. Afinal todas fazem isso em
algum momento de uma forma ou de outra. O que me permitia juntar as duas por certo
era o meu desejo que fossem a mesma pessoa, que ia aumentando conforme
avançávamos em nossa conversa sem palavras. Concentrei-me então em seus gestos, na
tentativa de compreender o que ela me dizia e qual não foi minha surpresa quando a
ouvi dizer que toda a pressa ao atravessar a rua e virar a esquina foi motivada pelo fato
de que ela tinha descido do táxi exatamente uma parada antes da minha, no momento
exato que o ônibus em que eu estava parou no sinal, em tempo dela perceber que eu
estava dentro dele. Ela correra para chegar antes de mim e escolher cuidadosamente a
mesa que iria sentar. Disse que conhecia meus hábitos e que previra que eu pararia
novamente no bar e sentaria na mesma mesa como de costume. Por isso sua
tranquilidade quando a vi sentada a mesa, contrastante a pressa inicial. Percebendo que
eu compreendera inteiramente suas palavras ela apressou-se em pedir que eu não
cedesse à tentação de me levantar e ir até ela. Disse que ainda não era à hora e não sabia
se essa hora chegaria. Por enquanto bastava o fato dela confirmar que o que eu supunha
ser apenas uma fantasia minha, era de fato uma prática comum entre as pessoas mais
sensíveis a matéria escura. Aquelas que alternam o real e imaginário com uma
tranquilidade de quem atravessa uma rua na faixa de pedestres. A menina, então, pede a
conta, paga, levanta-se, mexe no cabelo e some lentamente porta afora, deixando- me
em companhia de velhos conhecidos saídos do silêncio e de sua invisibilidade e cuja
presença só me é roubada quando tenho minha taça pela última vez reposta pelo
garçom que, sem se fazer notar, se oferece a minha atenção de uma forma involuntária
mais definitiva.

Você também pode gostar