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Interpretação da Constituição
Professor Me. Amarildo Lourenço
Teoria do Estado e da Constituição

I – O que é interpretar?

Chegamos a uma unidade extremamente importante dentro da Teoria do


Estado e da Constituição, que é a interpretação da Constituição ou interpretação
das normas constitucionais. Nosso objetivo, ao abordar o tema, é fazer com que
todos percebam que há métodos e princípios de interpretação especificamente
aplicáveis às normas constitucionais, os quais são distintos, em alguma medida,
de métodos e princípios aplicáveis a outras espécies de normas jurídicas, como
as leis ordinárias, por exemplo.

Para iniciarmos o assunto e entendermos bem a sua importância, é


preciso, todavia, estar atento a uma pergunta essencial: o que é interpretar?
Parece uma pergunta simples ou de resposta simples, mas, conforme veremos, é
preciso ter cuidado ao respondê-la.

Poderíamos afirmar, num primeiro momento, que interpretar é o esforço


para descobrir o significado de alguma coisa. Quando nos deparamos com uma

placa de trânsito como esta , e chegamos à conclusão de que, no local onde


ela está colocada, é proibido estacionar, essa “leitura” da placa que fizemos é um
trabalho de interpretação. Há um sinal ou símbolo, e é necessário, então, que o
decifremos para saber, exatamente, qual a ordem ou qual a proibição que nos
estão sendo dadas.

Mesmo sendo apenas uma placa, trata-se, na verdade, de uma norma


jurídica não escrita, de tal maneira que interpretar essa placa é realizar, em
última análise, um exercício de interpretação jurídica.

Numa perspectiva preliminar, podemos dizer que, quando se trata de


normas jurídicas, interpretar é investigar seu conteúdo semântico, isto é, o
sentido das palavras que as compõem, a sua significação. É, por essa
perspectiva, um trabalho de descoberta do sentido do texto normativo.
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Mesmo os textos legais aparentemente mais simples dependem de um


esforço de interpretação. Por exemplo: o art. 3º do Código Civil enuncia que
“são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os
menores de 16 (dezesseis) anos”. É clara essa disposição legal, não é? Na
verdade, nem tanto. Para entendê-la adequadamente, vamos precisar saber,
dentre outras coisas, o que são esses “atos da vida civil”, ou, num trabalho ainda
maior de aprofundamento, quais serão as consequências jurídicas em caso de
alguém absolutamente incapaz praticar tais atos.

Para a interpretação de normas jurídicas, existem alguns critérios, os


quais podem ser adotados isoladamente ou em conjunto, tais como:

(a) Critério gramatical ou literal – Baseado na literalidade, sintaxe e


morfologia das palavras. Normalmente, é insuficiente para,
isoladamente, assegurar uma adequada interpretação do texto
jurídico.

(b) Critério teleológico (finalístico) – Leva em consideração a


finalidade a que a norma se dirige. O intérprete, diante de eventuais
discussões sobre o texto, deve indagar qual a finalidade que motivou a
criação daquela norma. É o que diz, aliás, o art. 5º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo o qual “Na
aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências do bem comum”.

(c) Critério histórico – O intérprete, ao usar esse critério, procura


reconstruir as condições históricas que antecederam a criação da lei, o
ambiente social em que ela nasceu. Por exemplo, o inciso IX do art. 5º
da Constituição Federal, que trata da liberdade de expressão, será
mais bem interpretado se o intérprete levar em consideração o
momento histórico que o antecedeu, no qual expressões artísticas e de
comunicações eram rigorosamente controladas e até proibidas por
órgãos governamentais no Brasil.

(d) Critério sistemático – Esse critério considera o texto interpretado


como parte de um sistema mais amplo que o envolve. Assim, um
artigo do Código Civil deve ser interpretado considerando toda a
sistemática do Direito Civil, inclusive a constitucionalização dos
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institutos fundamentais de Direito Civil, e até mesmo, se for o caso, o


Direito comparado, que leva em conta normas de outros países.

2 Os Atributos das Normas Constitucionais

Conforme dissemos acima, há métodos e princípios de interpretação que


são específicos para as normas constitucionais. Isso, em razão de algumas
peculiaridades que essas normas possuem.

Efetivamente, as normas constitucionais são dotadas de atributos


(características peculiares) específicos em razão dos quais se impõe que sejam
interpretadas a partir de princípios e métodos diferenciados.

Dentre tais atributos, destacam-se a sua posição hierárquica


superior (visto que posicionadas, tais normas, no ápice do sistema normativo),
seu conteúdo notadamente político (considerando que é papel da
Constituição funcionar como estatuto político da nação, dando-lhe coesão e
sentido), sua linguagem marcadamente sintética (sobretudo com a
presença de princípios jurídicos, direitos e garantias fundamentais) e seu
caráter normativo estrutural (tendo em vista que estabelece as normas
básicas da estrutura sociopolítica do país, como a divisão de Poderes e a
existência de vários entes federados).

Em razão desses atributos, o trabalho de interpretação das normas


constitucionais deve levar em consideração, além dos critérios acima
mencionados, os princípios que passamos a descrever.

3 Princípios de Interpretação Constitucional

3.1 Princípio da UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO

Ao interpretar algum dispositivo1 constitucional, devo buscar a sua


harmonização com todo o texto da Constituição. Esse princípio favorece a
compreensão da unidade da Constituição, em razão da qual todas as normas
constitucionais têm igual dignidade e as contradições entre elas são
apenas aparentes. Deve-se buscar, pelo esforço de interpretação, a coesão

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Usa-se o vocábulo “dispositivo” para significar artigos, parágrafos, incisos, alíneas e itens
isoladamente considerados.
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entre dispositivos que, num primeiro momento, podem parecer contraditórios e


inconciliáveis.

Por exemplo: o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação de


Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 2, que trata da
antecipação terapêutica do parto no caso de feto anencefálico, teve que manejar,
dentre outros, o princípio da unidade da Constituição, considerando que pelo
menos duas normas constitucionais estavam jogo naquele processo: a
inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput) e a dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III).

3.2 Princípio do EFEITO INTEGRADOR

Por esse princípio, devemos, ao interpretar a Constituição, dar primazia a


critérios que favoreçam a integração política e social do país; a interpretação
constitucional deve, assim, favorecer o reforço e a conservação da unidade
política nacional.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus nº 82.424 3, cujo


paciente era o autor de um livro antissemita (que se opõe aos judeus), concluiu
que “O crime de racismo constitui um atentado contra os princípios nos quais
se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e
dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência”.

Observem que, mesmo em face da liberdade de expressão intelectual, o


STF entendeu que um livro contra judeus era um ato de racismo e que atos de
racismo atentam contra a organização da sociedade e contra a pacífica
convivência entre as pessoas. Logo, ao que se vê, o STF usou, nesse modo de
interpretar, o princípio do efeito integrador, ao adotar uma decisão que buscou
proteger a convivência social sadia e, assim, manter a unidade política.

3.3 Princípio da MÁXIMA EFETIVIDADE

Por esse princípio, deve-se, ao interpretar a Constituição, buscar a sua


mais ampla efetividade social. Noutras palavras, a Constituição precisa ser

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Para compreender melhor o que foi a ADPF 54 e como o STF manejou, nessa ação, princípios
de interpretação constitucional, acesso a decisão proferida pela Corte Suprema em
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334.
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http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?
sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&idConteudo=185077&modo=cms
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efetivamente aplicada e nenhuma das suas palavras, conceitos, alíneas, incisos,


etc., pode ser desprezada.

Aplica-se esse princípio, sobretudo, quando se trata dos direitos


fundamentais. A título de exemplo, o direito fundamental à saúde (art. 196 da
Constituição Federal) não poderá ser considerado efetivo se o paciente que
buscar a rede pública de saúde com uma síndrome respiratória aguda grave não
encontrar, para seu socorro, unidades de tratamento que disponham de
aparelhos respiradores.

Uma interpretação que leve em conta o princípio da máxima efetividade


concluirá, inevitavelmente, que assiste esse direito ao paciente, mesmo
considerando crises pandêmicas, restrições financeiras e outros embaraços.

3.4 Princípio da JUSTEZA

Por esse princípio instrumental de interpretação, ao se interpretar a


Constituição, deve-se respeitar o esquema organizatório-funcional do país, tais
como a tripartição dos Poderes (Legislativo, Executivo, Judiciário) e a
repartição das competências entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios.

Em recentíssima e polêmica decisão, o STF, na Ação Direta de


Inconstitucionalidade (ADI) nº 63414, determinou que cabe aos Estados e aos
Municípios, e não ao Presidente da República, estabelecer regras, tais como o
fechamento do comércio, para enfrentamento da pandemia do coronavírus.

A decisão em questão considerou a estrutura organizatória federativa do


país, em que cada ente federado, dentre eles os Estados e Municípios, possui
autonomia para gerir seus próprios interesses.

3.5 Princípio da CONCORDÂNCIA PRÁTICA (HARMONIZAÇÃO)

Por esse princípio de interpretação, não há predomínio, em abstrato,


entre os bens constitucionalmente protegidos. Dizendo de outro modo: não é
correto estabelecer, previamente (a priori), que determinado direito protegido
pela Constituição é superior a outro direito que também seja protegido pela
Constituição. Em cada caso concreto, tais bens ou direitos terão que ser

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https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5880765
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sopesados e, naquela situação específica analisada, deve-se buscar uma solução


que traga, tanto quanto possível, uma eficácia ótima a todos eles.

Para exemplificar: nessa crise sanitária decorrente da pandemia da


Covid-19, o que é mais importante: assegurar a vida mediante isolamento ou
manter a atividade econômica para garantir empregos que são indispensáveis
para assegurar a vida?

Qualquer que seja a solução a que se chegar, ela terá que passar pelo
princípio da concordância prática, que visa a harmonizar direitos e bens que são
igualmente protegidos pela Constituição.

3.6 Princípio da FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO

Ao se interpretar a Constituição, deve-se dar prevalência a pontos de


vista que contribuam para que ela tenha mais normatividade, mais
aplicabilidade, mais eficácia, evitando interpretações que considerem as
disposições constitucionais como normas fracas ou de aplicabilidade diminuída.

Para ilustrar, não tem sido aceito o argumento, feito por Municípios, por
exemplo, de que não são obrigados a atender certos direitos da pessoa (como os
referentes à educação e à saúde), sob o argumento de que a despesa
correspondente não está prevista no seu orçamento ou de que não há recursos
financeiros.

BIBLIOGRAFIA INDICADA

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil:


promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm#adct

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. Editora Saraiva.

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