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O TEMA | Textos de orientação

O ser, é o desejo
*
Jacques-Alain Miller

A metafísica da
ação analítica.
Do
reconhecimento
à causa do
desejo.
O gozo, causa da
realidade
psíquica.

Fui formado pelo ensino de Lacan para


conceber o sujeito como uma falta-a-ser, não
substancial, o que tem uma incidência radical
na prática da análise. No último ensino de
Lacan – em suas indicações cada vez mais
parcelares, enigmáticas, requerendo que se
ponha nelas muito de si -, a visada do sujeito
como falta-a-ser desvanece. No lugar dessa
categoria ontológica – para falar com
propriedade, já que se trata de ser – vem a do
furo, que não é sem relação com a falta-a-ser,
embora seja de um outro registro que não o
ontológico.

Isso me obriga a pensar a relação, a filiação e,


no entanto, a diferença entre a falta-a-ser e o
furo, por meio do qual Lacan queria, em seu
último ensino, definir o próprio simbólico. A
recorrência ao nó não fez senão tornar essa
categoria mais insistente, uma vez que cada
um dos aros de barbante dos quais ele se valia
foi tecido em torno de um furo. A renúncia à
ontologia o levou da falta-a-ser ao furo. E isso
resta a ser pensado.

Minha primeira prática foi pautada pelo


desejo, entendido como o que se trata de
interpretar, sem por isso desconhecer que se
trata também de fazê-lo ser. Nesse sentido, a
interpretação é criacionista. Ela institui uma
certa potência da fala que, sem dúvida, é
preciso aprender a adquirir, tal como se
ensina nas supervisões.

Nesse ensino, o essencial não é a arte do


diagnóstico, mesmo que seja essa a
preocupação do debutante que quer saber
com qual tipo de sujeito ele terá de lidar. O
que se visa a transmitir-lhe é o método que
permita à sua fala adquirir potência. Esse
método se resume a isto: é preciso aprender a
calar-se. A fala só atrai e só retém a atenção
do paciente com a condição de ser escassa,
mesmo que ela o conduza ao lado das
formações do inconsciente. Como o diz Lacan
em seu último texto publicado nos Outros
Escritos, página 567: “ [...] basta prestar
atenção para que se saia disso [do
inconsciente]”. No entanto, isso é o que se
trata de obter por meio da interpretação. Há
um termo do qual vocês não podem se
prevalecer de fazer ser : trata-se do termo
gozo. Aqui, vocês devem desistir de toda
intenção criacionista e tornar-se mais
humildes.

1
Interpretar, palavra que, aqui, desfalece e seria
preciso substituí-la por uma outra como
cingir, constatar. Não estou satisfeito com
esse vocabulário e gostaria de encontrar um
que dissesse melhor o de que se trata para o
analista, no que concerne ao que ultrapassa a
ontologia. “ [...] tenho minha ontologia”, diz
Lacan, e acrescenta “ — por que não ? — como
todo mundo tem uma, ingênua ou elaborada.”
Cito aqui o Seminário: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, página 73. O
ensino de Lacan se mantinha no nível da
ontologia e, quando ele desistiu dela,
perdemos as estribeiras ! Por essa razão,
quero alongar-me sobre esse ponto antes de
tentar avançar.

Lacan inscreveu sua ontologia na tentativa de


Freud de dar corpo à realidade psíquica sem
substantivá-la. Não substantivar a realidade
psíquica é, precisamente, não psicologizá-la.
Nenhum dos esquemas propostos por Freud
para articular a realidade psíquica – inclusive
o esquema em ovo que ilustra sua segunda
tópica – deve se prestar a uma diferenciação
de aparelho. A ideia de que aqui não se trata
de substância, ou seja, de aparelho
diferenciado no organismo, nos leva a recusar
as tentativas de assentar a teoria freudiana
em uma investigação do funcionamento do
cérebro. Hoje, não faltam pesquisadores para
tentar validar as intuições de Freud buscando
situar as instâncias distinguidas por ele,
graças à imagética à qual têm acesso por meio
da tecnologia desenvolvida nesses dez
últimos anos. Trata-se de uma tentativa de dar
corpo à realidade psíquica substantivando-a.

Em seu primeiro ensino Lacan, pelo contrário,


tentou elaborar um ser sem substância. O que
quero dizer com essa expressão ? Designo um
ser que não postula nenhuma existência.
Como não é seguro que o termo existência
seja mais claro que o termo substância,
precisemos que se trata de um ser sem real,
aquele do sujeito que só se inscreve
diferenciando-se do real e se pondo no nível
do sentido. É nesse nível que se mantém a
ontologia de Lacan, que é uma ontologia
semântica. Lacan foi buscar em Freud como
sustentar o termo ser. Ele teve de pesquisar a
obra de Freud, pouco pródiga nessas
referências, e a encontrou na Tramdeutung,
capítulo sete - quando Freud trata, na parte E,
do processo primário, do processo secundário
e do recalque -, sob a forma da expressão Kern
unseres Wesen, o núcleo de nosso ser. Lacan se
apossou desse hápax - que, até onde eu saiba,
só foi dito uma única vez por Freud -, para
dizer que a ação do analista vai ao coração do
ser e, por isso, ele próprio está nela implicado.

Reportemo-nos à passagem de Freud, que


vocês encontrarão na página 631 da última
tradução publicada da Tramdeutung, realizada
por Jean-Pierre Lefebvre, que acho
eminentemente recomendável. Onde se
inscreve exatamente essa expressão ? Ela está
inscrita na diferença entre os dois processos
psíquicos distinguidos por Freud, a saber :
primário e secundário. Ele reconhece o
caráter fictício de sua construção, indicando
que um aparelho psíquico que só possuísse o
processo primário não existiria. Esse caráter
de ficção não impede pensar que os processos
secundários – se diz no plural – se
desenvolvem posteriormente. Há a ideia de
uma orientação temporal : há um primeiro e
um seguinte. Entre os dois há uma lacuna, uma
distância. Os processos secundários inibem,
corrigem, dominam os processos primários.
Guardemos a ideia de que há o primário e que,
em seguida, vem implantar-se um aparelho
que opera sobre ele. Isso explica que o
inconsciente não é um livro aberto.

Nesse momento, Freud introduz a expressão o


núcleo de nosso ser e o situa no nível primário,
ou seja, antes da intervenção de um aparelho
ou de uma configuração suscetível de reter
esses processos, desviá-los, orientá-los.
Segundo Freud, esse núcleo deve ser situado
no nível primário, no sentido em que este
seria constituído de movimentos desejantes
inconscientes – seguindo a tradução de
Lefebvre -, sobre os quais Freud especificará
que eles surgiram do infantil. Podemos situar
uma ontologia freudiana nestes termos : o
núcleo de nosso ser é da ordem do desejo, de
um desejo impossível de se apreender e de
conter, apesar do secundário. A realidade
psíquica é, portanto, obrigada a se dobrar
diante do desejo inconsciente.

Há ali uma espécie de mestria impossível, que


Lacan repercutirá inclusive em seus quatro
discursos, onde ele inscreverá o significante-
mestre como impotente para dominar o saber
inconsciente. Mestria impossível, só é
permitido ao processo secundário desviar os
processos primários para o que Freud chama
de objetivos mais elevados, o que mais tarde
ele designará como sublimação. Mantenho
apenas isto: para Freud, o núcleo de nosso ser
está no nível do desejo inconsciente, desejo
que nunca pode ser dominado, nem anulado,
mas apenas dirigido. Era ao que Lacan visava
quando pensou sua prática sob o título “A
direção do tratamento...”.

O primeiro ensino de Lacan - o que marcou as


mentes com “Função e campo da fala e da
linguagem...” - culmina com o desejo
constituindo o ser do sujeito. Como tento
precisamente abalar essa ontologia lacaniana
- tal como o próprio Lacan foi levado a
ultrapassá-la -, extrairei dessas considerações
uma definição ontológica segundo a qual o ser,
é o desejo.

Por essa razão, ao pontuar a expressão de


Freud o núcleo de nosso ser, Lacan pôde dizer,
como num inciso, que ninguém se inquiete
“com o pensamento de que aqui me ofereço
ainda a adversários sempre felizes de me
remeterem à minha metafísica”.

2
Lacan enfrenta esses adversários
pavoneando-se com sua metafísica.
Reencontro a mesma expressão, mostrando
que ele a assume, no discurso por meio do
qual ele apresentava seu “Relatório de Roma”.
Ele, então, evocava o analista iniciante cuja
“análise pessoal [ele empregava essa
expressão] não o facilita, mais do que a
qualquer outro, a fazer a metafísica de sua
própria ação […]”. É preciso ouvir, aqui, o
enunciado de sua ambição, a saber: fazer a
metafísica da ação analítica, ou seja, designar
o ser sobre o qual incide essa ação. Diria até
que, aqui, o termo ação implica o de causa. A
partir do que faço como analista, como posso
ser causa de uma transformação que toque no
núcleo do ser? E, de saída, ele prevenia de que
se abster de fazer a metafísica da ação
analítica seria escabroso, pois isso equivaleria
fazê-la, apesar de tudo, sem o saber. Isso
evoca o argumento segundo o qual é preciso
filosofar, pois, caso contrário, é ainda preciso
filosofar para mostrar que não se deve
filosofar. Assim, no começo mesmo de seu
ensino, Lacan concebia que não se pode não
fazer a metafísica da psicanálise. Como
entendê-lo ? Qual é o ser sobre o qual
pretendemos agir por meio da análise ? É no
fio dessa interrogação que encontramos a
função da fala, meio da psicanálise. A
intensidade com a qual Lacan promoveu a
função da fala e o campo da linguagem se deve
ao fato de que, para ele, essa atribuição da
linguística estava inscrita no âmbito da
metafísica da psicanálise.

Quiseram reduzi-la a uma exploração da


linguística, ao passo que a questão que
animava Lacan era metafísica: qual é o ser
sobre o qual essa operação pretende agir?

Ele então aplica um axioma segundo o qual


não pode haver ação de um termo sobre um
outro se não forem homogêneos. Deve haver
homogeneidade entre a ação do analista e o
ser ao qual ela se aplica, a realidade deles é da
mesma ordem ontológica.

Qual é essa ação? Lacan a centra e até mesmo


a reduz à interpretação, ou seja, a dar um
outro sentido ao que é dito. Se isolarmos a
interpretação como o núcleo da ação
analítica, devemos então considerar que ela
opera na ordem do sentido. A metafísica
analítica implica o fato de que o ser é sentido.
Em outras palavras, a psicanálise implica uma
ontologia semântica. O que Lacan chama de
sujeito é precisamente este correlato da
interpretação: um sujeito que só tem ser por
meio dela, um ser variável em função do
sentido. Não há nada aqui que seja da ordem
da substância, nada que tenha sua
permanência.

Como pensar a ordem do sentido senão como


distinta da ordem do real ? Falarei em termos
de intuição, tal como ele o formula nos Outros
escritos, página 142: há “uma distância entre o
real e o sentido que lhe é dado”. É a distância
que reside entre duas ordens: a ordem do real
e a do sentido, que Lacan comentará
incessantemente. Para utilizar um termo de
Saussure, há aqui uma maneira arbitrária na
qual Lacan quererá, por vezes, ver uma
liberdade do sujeito. De todo modo, o real não
decide sobre o sentido, nem o sentido sobre o
real, essas duas dimensões não se comunicam
entre si. Se Descartes distinguia a alma e o
corpo e formulava sua união, Lacan separava
o real e o sentido, mas sem nunca uni-los.

O pivô da ação analítica é dar sentido, o que


requer, em primeiro lugar, estar atento às
modalidades semânticas por meio das quais o
analisante lhes comunica o que vive. A
interpretação também dá sentido, mas para
permitir um advento ao ser, fazer ser o que
não era, o que permite inferir que isso quer
ser, mesmo se o sujeito não o confessa. O
analista seria, de algum modo, o parteiro do
ser não acontecido! Lacan encontrava ali os
poderes poéticos e criacionistas da fala
contrastando com seu valor realista. De saída,
Lacan evocava o ser como preso nas
engrenagens das leis do blábláblá que, em
seguida, ele grafou com o esquematismo da
metáfora e da metonímia, a arborescência de
se grafo do desejo, etc. Mas a doutrina do
inconsciente que ali está subjacente faz dele
um fenômeno de sentido. Em seu discurso
inicial, Lacan emprega o termo fenômeno a
respeito do inconsciente. Acrescento,
semântico. Passei muito tempo articulando,
desarticulando as construções de Lacan
concernentes às suas engrenagens
linguísticas, mas, aqui, viso a um nível mais
elementar daquilo que, na prática, as sustenta
: o inconsciente, assim como o sujeito, deve
ser.

Trata-se, evidentemente, de uma intuição


muito restrita, mas própria para sustentar a
experiência analítica em sua sucessão, na
sequência material das sessões. O desejo
freudiano qualificando o núcleo de nosso ser
toma, assim, um alcance ontológico.

O que pode conferir o ser ao desejo de ser ? A


primeira resposta dada por Lacan é : o
reconhecimento. O desejo como desejo de ser
é um desejo de reconhecimento, pois apenas
este pode conferir o ser. Reconhecimento
significa ser endossado por aquele a quem
alguém se endereça e que o interpreta. Esse
reconhecimento – termo herdado de Hegel –
é a satisfação do desejo. Nesse sentido, uma
vez obtido o reconhecimento, a análise pode
terminar na satisfação do reconhecimento.
Bem mais tarde, em seu último escrito
publicado, Lacan dirá também que o final da
análise é uma questão de satisfação, mas
muito distante daquela que aponto aqui.

3
Já no primeiro ensino de Lacan se produz uma
ultrapassagem para um mais além do
reconhecimento, situável em seu escrito “A
direção do tratamento....”. Ele a faz no
momento em que distingue desejo e demanda.
Ele se dá conta de que reconhecimento é o
que o desejo demanda, mas como o desejo
alcança também mais além da demanda,
nenhuma satisfação da demanda, inclusive a
de reconhecimento, é suscetível de satisfazer
o desejo.

Produziu-se então um deslocamento que vai


do reconhecimento do desejo à sua causa. O
termo causa vem no lugar do termo
reconhecimento. É o momento em que Lacan
já não mais se satisfaz em definir o núcleo de
nosso ser por meio do desejo inconsciente, a
contrapelo do que ele havia pescado num dos
primeiros grandes escritos de Freud, a
Traumdeutung. Para falar com propriedade,
trata-se de um deslocamento ontológico. Ele
advém quando o desejo aparece como não
sendo a ultima ratio do ser, mas sim um efeito
de significante preso na conexão do
significante com o significante, ou seja, preso
nos trilhos da metonímia. O texto “A instância
da letra...”, com sua definição do desejo, põe
em questão a dialética do reconhecimento.

Essa construção inscreve o desejo no nível da


significação com seu valor de reenvio, o que
Lacan transcreveu na seguinte fórmula : S (-) s,
ou, entre significante e significado não há a
emergência de um novo sentido. O
significado, ali, é retido, o que Lacan escreve
por meio de um signo menos entre
parênteses. Nesse efeito metonímico – a ser
distinguido do efeito metafórico que se
escreve do mesmo modo, mas com o sinal
mais indicando a emergência de um sentido S
(+) s -, Lacan reencontra a falta-a-ser por meio
da qual ele definia o desejo. Mas, aqui, trata-se
de um desejo incompatível com a fala pelo
fato de ele correr sob todos os ditos, o qual
nenhum reconhecimento poderá apagar. É um
desejo que não se pode interromper
confessando-o, é um fantasma (fantôme) da
fala.

Passando do reconhecimento para a causa,


Lacan desloca também o ponto de aplicação
da prática analítica do desejo ao gozo.

O primeiro ensino se assentava sobre o desejo


de ser e prescrevia um certo regime da
interpretação: a interpretação de
MENU
reconhecimento. É a interpretação que
reconhece o desejo subentendido e o exibe:
cada vez que nos esforçamos para interpretar
um sonho praticamos a interpretação de
reconhecimento. Mas há um outro regime da
interpretação que incide não sobre o desejo,
mas sobre a causa do desejo. É uma
interpretação que trata o desejo como defesa,
trata a falta-a-ser como uma defesa contra o
que existe. E o que existe, ao contrário do
desejo que é falta-a-ser, é o que Freud
abordou por meio das pulsões e que Lacan
nomeou de gozo.

Freud atribuiu às pulsões uma existência


problemática qualificando-as de míticas,
termo traduzido abusivamente como irreal,
mas que Lacan desmente ao interpretar
Freud. Dizer que as pulsões são míticas é,
antes, considerar que elas são um mito do
real. Há real sob o mito e esse real é o gozo.
Lacan deu a essa ruptura a seguinte fórmula: o
desejo vem do Outro, o gozo está do lado da
Coisa. O desejo está ligado à linguagem e faz
apelo ao Outro. A Coisa não é a verdade
freudiana tagarela, mas o real ao qual se dá
sentido. Mais além de seu primeiro ensino,
Lacan chegou ao seguinte : o primeiro real
sobre o qual se exerce a doação de sentido é o
gozo. Essa vertente da Coisa, onde se inscreve
o gozo, é o sintoma, ou seja, o que resta
quando a análise termina, no sentido de
Freud. É também o que resta no passe, de
Lacan, isto é, depois do desenodamento do
sentido.

A metafísica da ação do analista, ou seja, sua


ontologia semântica, visa ao desejo como
núcleo do ser, isto é, um sentido. Esse núcleo,
alcançado pelo passe, é essencialmente
designado pela aparição de uma falta-a-ser,
chamada por Lacan de castração. Mesmo
quando Lacan indicava que esse núcleo era
suscetível de uma notação positiva, pequeno
a, esta só tomava para ele sua função a partir
da falta-a-ser, como um obturador da falta-a-
ser. Aqui, o passe é ainda dominado pela
questão da falta-a-ser, mas separado da
visada ao reconhecimento, uma vez que com o
desejo concebido como uma metonímia seu
reconhecimento se desvaloriza.

No lugar do reconhecimento de um desejo


vindo a ser, Lacan instalava, com o passe, o
reconhecimento da falta-a-ser e, em especial,
o reconhecimento da falta-a-ser do desejo.
Por essa razão, ele notava, no passe, uma
deflação do desejo, na qual acabamos por
cingir esse menos entre parênteses (-) e por
lhe dar valor de castração. Cingimos também
o que permitiu fazer a solda entre significante
e significado, a saber : o objeto a.

O que Lacan chamava de passe permanece


aprisionado em sua ontologia. Somente em
seu último ensino é que haverá uma renúncia
a essa metafísica. Lacan ultrapassará os
limites dessa ontologia no momento em que
ele diz: Yad’lun, que não é da ordem da falta-a-
ser nem do ser. Ele buscará suas referências
bem aquém de Descartes e da metafísica
moderna, em Platão e nos neoplatônicos. Ele
se abstém de dizer o Um é (l ‘Un est), tal como
eles mesmos o fazem. Ele diz y’a (há) fazendo a
apócope do ele (il). Essa jaculatória designa
uma posição de existência e, se quisermos, um
redizer a função da fala e do campo da
linguagem reduzidos à sua raiz, ao fato puro
do significante pensado fora dos efeitos de
significado e do sentido do ser.

Trata-se de algo enorme, pois aprendemos,


com Lacan, a reconstituir a história do sujeito
a partir das aventuras do sentido de seu ser.
Não estou dizendo, agora, que, na prática,
podemos nos abster disso, mas sim que, mais
além, há um há (y’a). Há o primado do Um, ao
passo que o que acreditamos ter aprendido de
Lacan é o primado do Outro da fala. O desejo
passa para o segundo plano, uma vez que o
desejo é o desejo do Outro. A verdade do
passe dá a chave da deflação do desejo, a
saber: o desejo nunca foi senão o desejo do
Outro. Assim, esse Outro, que nunca foi senão
suposto, se esvazia com a consistência do
desejo.

Vimo-nos forçados a constatar que o sujeito


estava às voltas com o Yad’lun, uma vez que
ele desinvestiu seu desejo. Esse Yad’lun, tal
como o tomo aqui, é precisamente o nome do
que Freud isolou como os restos sintomáticos.
Com o primado do Um, o gozo vem em
primeiro plano, o gozo do corpo que
chamamos de o corpo próprio e que é o corpo
do Um.

Trata-se de um gozo primário no sentido em


que apenas secundariamente ele é objeto de
uma interdição. Lacan chegou até mesmo a
sugerir que a religião projetava sobre o gozo
uma interdição ratificada por Freud. Ele
também chegou a pensar que a filosofia
entrara em pânico diante desse gozo, por falta
de pensar sua permanência, sua existência
rebelde à dialética. Para Lacan, cabia à
psicanálise cingir essa substância gozante.

Lacan escreveu uma frase que só consigo me


explicar agora. Está nos Outros escritos, à
página 506 : “[...] o gozo vem a causar o que se
lê como mundo [...]”. Isso significa que o gozo é
o segredo da ontologia, a causa última da
ordem simbólica da qual a filosofia fez o
mundo.

Há uma oposição entre ontologia e gozo. A


ontologia dá lugar àquilo que quer ser e
implica também o possível, ao passo que o
gozo é do registro do existente. Por essa
razão, Lacan pôde dizer, em seu último ensino,
está nos Outros escritos, página 561,que a
psicanálise contradiz a fantasia da metafísica
– talvez tenha sido eu que acrescentei isso! –,
que consiste em fazer passar o ser antes do
ter, uma vez que o ter é, em primeiro lugar, ter
um corpo.

É possível dizer que o sujeito lacaniano até


então não tinha corpo? Não, mas ele só tinha
um corpo visível, reduzido à pregância de sua
forma. Será que, com a pulsão, com a
castração, com o objeto a, o sujeito
encontrava um corpo? Sim, mas um corpo
sublimado, transcendentalizado pelo
significante.

É completamente diferente a partir da


jaculatória Yad’lun, pois o corpo aparece,
desde então, como o Outro do significante,
uma vez que o significante nele faz
acontecimento. O acontecimento de corpo
que é o gozo aparece como a verdadeira causa
da realidade psíquica. Uso essa expressão não
sem me perguntar desde quando temos uma
realidade psíquica. Não é evidente que
Pitágoras, Platão, Plotino, referências do
Yad’lun, de Lacan, tenham tido uma. Os
escolásticos se interessavam principalmente
no Outro divino e foi apenas a partir de
Descartes e de seu cogito que começaram a
existir.

Isso deixa em suspenso a definição do desejo


do analista. Lacan o invocava para fazer
passar o ser inconsciente, ou seja, recalcado,
ao estado de realizado. O recalcado, como o
que quer ser, fazia apelo ao desejo do analista
para vir a existir. A posição do analista,
quando ele se confronta com o Yad’lun no
ultrapasse, não é mais marcada pelo desejo do
analista, mas por uma outra função que
deveremos elaborar em seguida.

* Lição de 11 de maio de 2011 do curso de Jacques-Alain Miller: O


Ser e o Um (inédito).
Texto estabelecido por Christiane Alberti e Philippe Hellebois
Tradução: Vera Avellar Ribeiro

Secretaria do Congresso
Ancón 5201 • Ciudad de Buenos Aires, Argentina Tel/Fax: +54 11
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