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Ana M.

Nunes

MECÂNICA
1996/97 — 1.o semestre

Departamento de Fı́sica da Faculdade de Ciências de Lisboa


Copyright (C) 1996,2003 Ana Maria Nunes and Jo~ ao Batista
Departamento de Fisica da Faculdade de Ciencias da Universidade de Lisboa,
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Tı́tulo: Mecânica
Autor: Prof.a Dr.a Ana Maria Nunes
e-mail: anunes@lmc.fc.ul.pt
Data: Ano lectivo 1996/97 — 1.o semestre

Departamento de Fı́sica da Faculdade de Ciências de Lisboa


Texto composto em LATEX 2ε (Agosto de 1999) por João Batista (e-mail: jmnbpt@yahoo.com)
Revisto em 28 de Abril de 2003
Conteúdo

Bibliografia ii

1 Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 1


1.1 Espaço de fases. Soluções de equilı́brio e soluções periódicas. Estabilidade . 1
1.2 Integrais do movimento e sistemas conservativos com 1 grau de liberdade . 7
1.3 Comportamento local na vizinhança de pontos singulares . . . . . . . . . . 10
1.4 Osciladores: oscilações forçadas e ciclos limite . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
1.5 Problemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

2 O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 28


2.1 Revisão de mecânica newtoniana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
2.2 Movimento sob uma força central. Problemas de Kepler e de dois corpos . . 40
2.3 Dinâmica do corpo rı́gido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
2.4 Problemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

3 As equações de Lagrange e de Hamilton 63


3.1 Introdução. Sistemas com ligações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
3.2 As equações de Lagrange . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
3.3 As equações de Hamilton . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
3.4 Teorema de Noether . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
3.5 Parêntesis de Poisson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
3.6 Oscilações na vizinhança de um ponto de equilı́brio. Modos normais . . . . 93
3.7 Teorema de Liouville. Teorema do retorno de Poincaré . . . . . . . . . . . . 96
3.8 Problemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

4 Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 104


4.1 Os princı́pios variacionais da Mecânica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
4.2 As transformações canónicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
4.3 A equação de Hamilton-Jacobi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
4.4 Problemas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

GNU Free Documentation License 128


PREAMBLE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
1 APPLICABILITY AND DEFINITIONS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
2 VERBATIM COPYING . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
3 COPYING IN QUANTITY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

i
ii Conteúdo

4 MODIFICATIONS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
5 COMBINING DOCUMENTS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
6 COLLECTIONS OF DOCUMENTS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
7 AGGREGATION WITH INDEPENDENT WORKS . . . . . . . . . . . . . 133
8 TRANSLATION . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
9 TERMINATION . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
10 FUTURE REVISIONS OF THIS LICENSE . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
ADDENDUM: How to use this License for your documents . . . . . . . . . . . . 134
Bibliografia

[1] Percival, Richards — Introduction to Dynamics. Cambridge.

[2] Benettin, Galgani, Giorgı́lli — Appunti di Meccanica Razionale. U. Padora.

[3] Matzner, Shepley — Classical Mechanics. Prentice-Hall.

[4] Goldstein — Classical Mechanics

[5] V. I. Arnold — Méthodes Mathematiques de la Mécanique Classique. MIR.

[6] Hawkins, Jones — Classical Mechanics Simulations: Consortium for Upper-Level


Physics Software (C.U.P.S.). Ehrlich, MacDonald, Dworzecka eds.

[7] Danby, Konzes, Whitney — Astrophysics Simulations.

iii
iv Bibliografia
Capı́tulo 1

Introdução à teoria qualitativa de


E.D.O.s

1.1 Espaço de fases. Soluções de equilı́brio e soluções periódicas.


Estabilidade
A equação básica da Mecânica, F~ = m~a, pode escrever-se, na notação de e.d.o.s,1

m~r¨ = F~ (~r, ~r˙, t) ou ~r¨ = f (~r, ~r˙, t) (1.1)

onde ~r = ~r(t) denota a posição da partı́cula (em geral, portanto, ~r ∈ R3 ), ~r˙ (t) = ~v (t) = d~
r
dt (t)
2
é a sua velocidade, ~r¨(t) = ddt2~r (t) = d~
v
dt (t) é a sua aceleração e f é a força por unidade de
massa. Ou seja, F~ = m~a corresponde, em termos matemáticos, a um sistema de 3 e.d.o.s de
segunda ordem. No caso do movimento de um sistema de N partı́culas em R3 , a equação
de Newton é um sistema de 3N e.d.o.s de segunda ordem.
Suponhamos que queremos estudar o movimento de apenas uma partı́cula, e que esta
se move sobre uma linha. Nesse caso, a equação de Newton escreve-se na forma (1.1) com
~r ∈ R. Uma e.d.o. de segunda ordem pode escrever-se na forma normal de um sistema de
duas equações de primeira ordem tomando a velocidade como segunda variável, i.e.,
(
ẋ1 = x2
r̈ = f (r, ṙ, t) ⇔ onde x1 = r, x2 = ṙ = v ,
ẋ2 = f (x1 , x2 , t)

ou seja, o problema pode formular-se em termos de e.d.o.s de primeira ordem na forma

~x˙ = f~(~x, t) , (1.2)

com ~x, f~ ∈ R2 , ~x = (r, ṙ), f~ = (ṙ, f (r, ṙ, t)).


Portanto, um problema de uma partı́cula em dimensão 1 (problema com um grau de
liberdade) pode formular-se como uma e.d.o. de segunda ordem ou como um sistema de
duas e.d.o.s de primeira ordem. Neste caso, a primeira componente da função f~ é uma
velocidade, e a segunda uma força fı́sica.
1
Equações diferenciais ordinárias.

1
2 1.1. Espaço de fases. Soluções de equilı́brio e soluções periódicas. Estabilidade

Em geral, para sistemas de N partı́culas livres num espaço de dimensão n, o número


de graus de liberdade é N × n (por exemplo, o movimento de duas partı́culas em R3 é
um problema a 6 variáveis independentes, 3 coordenadas por cada partı́cula); o problema
matemático associado é o de um sistema de N × n e.d.o.s de segunda ordem (da forma (1.1)
com ~r = (~r1 , ~r2 , . . . , ~rN ), ~ri ∈ Rn , i = 1, . . . , N ), ou o de um sistema 2 × N × n e.d.o.s de
primeira ordem (da forma (1.2) com ~x = (~r1 , . . . , ~rN , ~v1 , . . . , ~vN ), ~ri , ~vi ∈ Rn , i = 1, . . . , N ).
No caso de partı́culas que estão sujeitas a ligações o número de graus de liberdade asso-
ciado a cada partı́cula é menor que a dimensão do seu espaço ambiente. Adiante veremos
estes casos com pormenor, mas está claro que o número de graus de liberdade significa o
número de variáveis independentes necessárias para descrever a posição da partı́cula: por
exemplo, uma partı́cula que se move sobre uma esfera em R3 tem associados dois graus de
liberdade.
Em qualquer caso, um problema mecânico correspondente ao problema matemático
associado a uma equação da forma (1.2), onde ~x vive num espaço de dimensão igual ao
dobro do número de graus de liberdade do problema. A formulação (1.2), em alternativa a
(1.1), é ‘standard’ porque apresenta o problema na forma normal em teoria de e.d.o.s, isto
é, na forma mais adequada para aplicar os resultados disponı́veis.
Alguns exemplos de sistemas com 1 grau de liberdade:

• Oscilador harmónico (
ẋ = y
ẍ + ω 2 x = 0
ẏ = −ω 2 x

• Pêndulo (
2
ẋ = y
ẍ + ω sin x = 0
ẏ = −ω 2 sin x

• Oscilador amortecido
(
ẋ = y
ẍ + 2µẋ + ω 2 x = 0
ẏ = −ω 2 x − 2µy

• Oscilador de Van der Pol


(
ẍ + β(x2 − 1)ẋ + x = 0 ẋ = y
(β > 0) ẏ = −x − β(x2 − 1)y

• Pêndulo forçado
(
ẋ = y
ẍ + ω 2 sin x = c cos ωt
ẏ = −ω 2 sin x + c cos ωt

Vejamos alguns resultados fundamentais de teoria de e.d.o.s..


Seja uma e.d.o. na forma normal,

ẋ = f (x, t) , x ∈ Rn , f : Rn+1 → Rn de classe C 1 . (1.3)


Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 3

Uma solução da equação (1.3) é uma função ϕ(t) definida num certo intervalo I e
com valores em Rn e tal que dt d
ϕ(t) = f (ϕ(t), t) ∀t ∈ I. Chamamos condição inicial ao
valor ϕ(0). O teorema de existência e unicidade diz-nos que dada qualquer condição inicial
x(0) = x0 existe uma única solução de (1.3), definida num certo intervalo (−T, T ), que a
verifica. Denotaremos essa solução por x(t; x0 ). Em muitos casos, o intervalo de definição
das soluções é toda a recta real. Outro resultado importante é o que nos diz que as soluções
de (1.3) dependem contı́nuamente das condições iniciais, i.e., x(t; x0 ) é contı́nua na variável
x0 .
Um caso particular muito importante das equações da forma (1.3) é o caso autónomo,
em que o segundo membro não depende de t:
ẋ = f (x) , x ∈ Rn , f : Rn → Rn de classe C 1 . (1.4)
Neste caso, o segundo membro é um campo de vectores, e verificam-se algumas propriedades
adicionais interessantes:
1. Se x(t) é solução de (1.4), então x0 (t) = x(t − t0 ) é também solução, e se a condição
inicial de x(t) é x0 , então x0 (t) verifica x0 (t0 ) = x0 . O número real t0 é arbitrário.
Esta propriedade significa que a escolha do instante inicial é arbitrária.
2. Fixado um ponto de Rn como condição inicial, o teorema de existência e unicidade im-
plica que a solução que passa por esse ponto fica completamente determinada, a menos
da arbitrariedade de escolha do instante inicial referida em 1.. Então tem sentido pen-
sar em soluções de (1.4) como equações paramétricas de linhas em Rn . Chamamos
trajectórias às soluções de (1.4), e órbitas a estas linhas, que contêm toda a informação
sobre o comportamento das soluções de (1.4) excepto a sua dependência explı́cita
no tempo. O espaço ambiente Rn recebe neste contexto o nome de espaço de fases.
O teorema de existência e unicidade implica portanto que por cada
ponto do espaço de fases passa uma e uma só órbita, ou, dito de outra
maneira, que órbitas diferentes no espaço de fases não se intersectam.
Exemplo: oscilador harmónico (ver figura ao lado), n = 2. As órbitas
são elipses, tangentes em cada ponto ao campo de vectores f .
3. A aplicação fluxo definida no espaço de fases
Φt : Rn −→ Rn
x0 7−→ x(t; x0 )
está bem definida no caso autónomo. Com a suposição adicional de as soluções de (1.4)
estarem definidas para qualquer t ∈ R, Φt está também definida para qualquer t ∈ R.
Dizemos então que o fluxo associado a (1.4) é a famı́lia uniparamétrica Φt , t ∈ R, de
aplicações do espaço de fases. Esta famı́lia é um grupo a um parâmetro em relação à
composição, dado que se tem
Φ0 = id, Φt ◦ Φs = Φt+s .
A analogia hidrodinâmica é óbvia: Φt , t ∈ R representa o fluxo (estacionário) de um
meio contı́nuo cujo campo de velocidades é dado por f .
O fluxo contém a informação global sobre o comportamento das soluções de (1.4).
4 1.1. Espaço de fases. Soluções de equilı́brio e soluções periódicas. Estabilidade

Os sistema autónomos, graças a estas propriedades, são mais fáceis de estudar. Por
outro lado, qualquer sistema não autónomo se pode escrever como um sistema autónomo
num espaço de fases aumentado: dado ~x˙ = f~(~x, t), podemos escrevê-lo na forma

~x˙ = f~(~x, t)
(
, ou seja, ~y˙ = g(~y ) ,
ṫ = 1

onde ~y = (~x, t). O preço a pagar é o aumento de dimensão do espaço de fases. Vejamos por
exemplo o caso do pêndulo forçado. Trata-se de um sistema não autónomo com um grau
de liberdade. O seu espaço de fases, no caso autónomo, é bidimensional. O espaço de fases
aumentado é tridimensional (por isso se diz também que é um sistema com 1 + 21 graus de
liberdade).

Aumentar a dimensão do espaço de fases de 2 para 3 complica o problema mais do


que pode parecer à primeira vista. Voltemos aos exemplos de osciladores que vimos antes.
Podemos agrupá-los em duas classes: lineares (oscilador harmónico, oscilador harmónico
amortecido) e não lineares (pêndulo, Van der Pol, pêndulo perturbado). Os sistemas linea-
res podem sempre resolver-se analı́ticamente, isto é, é sempre possı́vel (e fácil) encontrar
a solução geral, ou, o que é equivalente, conhecer o fluxo associado. Além disso, como
veremos, os diferentes tipos de comportamento que as soluções podem exibir são poucos, e
é possı́vel fazer uma classificação completa destes sistemas. Os sistemas não lineares, pelo
contrário, não podem em geral ser resolvidos analı́ticamente, embora o caso do pêndulo
seja precisamente uma excepção. Os métodos adequados para tratar os sistemas não linea-
res são os da teoria qualitativa de e.d.o.s e/ou os métodos numéricos. Deste outro ponto
de vista, podemos também agrupar os exemplos que vimos em duas classes: autónomos
(osciladores harmónico e amortecido, pêndulo e Van der Pol), e não autónomos (pêndulo
perturbado). Os primeiros têm um espaço de fases bidimensional, mas o espaço de fases do
pêndulo perturbado tem dimensão três.
Não-linearidade e espaço de fases de dimensão n ≥ 3 são os dois ingredientes do caos:
genericamente, famı́lias de sistemas nestas condições vão exibir, para valores dos parâmetros
em certas regiões, soluções extremamente complexas cujo comportamento se designa, infor-
malmente, por caótico.
Os exemplos de sistemas tratados pelo programa anharm do CUPS Classical Mechanics
[6] são a melhor ilustração do que se acaba de expôr, e recomenda-se a sua utilização neste
ponto.

Voltemos ainda aos exemplos que apresentámos, para ilustrar o facto de a topologia do
espaço de fases associado a um sistema poder não ser a de Rn . Consideremos o oscilador
harmónico e o pêndulo, por exemplo. Ambos são sistemas autónomos com espaços de fases
bidimensionais. O espaço de fases é como vimos o espaço das variáveis que caracterizam
o comportamento do sistema escrito na forma normal. Para o oscilador harmónico, essas
variáveis são (x, y) = (posição sobre uma recta, velocidade). Ambas tomam valores em
R, de modo que o espaço de fases é o plano R2 . Para o pêndulo, essas variáveis são
(x, y) = (deslocamento angular, velocidade angular). A segunda toma valores em R, mas a
primeira é uma coordenada angular que toma valores sobre o cı́rculo S1 . Portanto, o espaço
de fases do pêndulo é o cilindro S1 × R.
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 5

As soluções mais simples que um sistema pode eventualmente ter são as soluções de
equilı́brio ~x(t; ~x00 ) = ~x00 ∀t ∈ R. Para um sistema autónomo ~x˙ = f~(~x) essas soluções são
todos os pontos ~x00 tais que f~(~x00 ) = 0, e apenas esses pontos. Raramente se conhecem
explı́citamente outras soluções para além dos pontos de equilı́brio, também chamados pon-
tos singulares. Por isso, o estudo de qualquer sistema deve sempre começar pela identi-
ficação e caracterização destes pontos, para depois tentar obter consequências em termos
do comportamento global das soluções.
No caso de sistemas autónomos que provêm de equações autónomas de segunda ordem
associadas a problemas mecânicos, vimos já que a forma normal é do tipo
(
ẋ = y
,
ẏ = f (x, y)

ou seja f~(~x) = (y, f (x, y)), de modo que todos os pontos de equilı́brio estão sobre o eixo
dos xx, e são as raı́zes de f (x, 0) = 0.
No caso particular dos sistemas lineares, o único ponto singular é a origem.

Voltemos uma vez mais aos exemplos que apresentámos para procurar os pontos de
equilı́brio desses sistemas.

• Osciladores harmónico e harmónico amortecido (são lineares): (0, 0).

• Pêndulo: sin x = 0 ⇔ x = 0, x = π (0, 0) e (π, 0).

• Van der Pol: (0,0).

• Pêndulo com forçamento periódico: não há pontos de equilı́brio.



 ẋ = y

ẏ = −ω 2 sin x + c cos ωt


ṫ = 1

Pensemos nos dois pontos de equilı́brio do pêndulo. É óbvio que são essencialmente
diferentes do ponto de vista da sua estabilidade. O conceito de estabilidade é extremamente
importante para caracterizar o comportamento das soluções na vizinhança de um ponto de
equilı́brio (ou de uma órbita periódica), e para levar a cabo o programa de estender a nossa
informação local a informação qualitativa global. Vale a pena precisá-lo com rigor.

Definição 1.1. Um ponto singular ~x0 de ~x˙ = f~(~x), ou seja, um ponto ~x0 tal que f~(~x0 ) = 0
diz-se estável se dada qualquer vizinhança U de ~x0 existe uma outra vizinhança V de ~x0 tal
que qualquer movimento com condições iniciais em V permanece em U para todo t ∈ R:

~x0 estável ⇐⇒ ∀U 3 ~x0 ∃V 3 ~x0 : ∀~x00 ∈ V, ~x(t; ~x00 ) ∈ U ∀t ∈ R .

Pontos singulares estáveis no futuro ou estáveis no passado definem-se de maneira


análoga, restringindo t a valores positivos ou negativos, respectivamente.
Um ponto singular diz-se instável se não for estável.
6 1.1. Espaço de fases. Soluções de equilı́brio e soluções periódicas. Estabilidade

a. b. c. d.

Figura 1.1: Retratos de fases de alguns sistemas simples na vizinhança dos respectivos
pontos de equilı́brio (vide texto). a: oscilador harmónico em (0, 0); b: pêndulo em (0, 0);
c: pêndulo em (π, 0); e d: oscilador amortecido em (0, 0).

Podemos definir um tipo de estabilidade mais forte que a anterior, se exigirmos não
apenas que as soluções não se afastem do ponto de equilı́brio em questão, mas ainda que
tendam para esse ponto no futuro ou no passado. Este outro tipo de estabilidade chama-
-se estabilidade assimptótica, enquanto que o primeiro tipo se designa por estabilidade à
Liapounov.
Definição 1.2. Um ponto singular ~x0 diz-se assintoticamente estável para tempos positivos
(e respectivamente para tempos negativos) se fôr estável no futuro (respectivamente estável
no passado) e além disso existe uma vizinhança W de ~x0 tal que todos os movimentos com
condição inicial em W tendem para ~x0 quando t → ∞ (respectivamente quando t → ∞).
Adiante veremos que o estudo da aproximação linear na vizinhança de um ponto singular
é suficiente em geral para determinar o seu tipo de estabilidade; por agora, vamos voltar
a alguns dos casos que temos vindo a considerar como exemplos para classificar os pontos
de equilı́brio que encontramos do ponto de vista da sua estabilidade, recorrendo apenas ao
que já sabemos sobre as soluções:
• Oscilador harmónico: (0, 0) é estável, mas não assimptóticamente estável (figura 1.1a).

• Pêndulo: (0, 0) é estável mas não assimptóticamente estável (figura 1.1b); (π, 0) é
instável (figura 1.1c).

• Oscilador amortecido: (0, 0) é estável no futuro e assimptóticamente estável para


tempos positivos (figura 1.1d).
A estabilidade (à Liapounov, assimptótica) de uma órbita periódica define-se de maneira
semelhante: uma órbita periódica é estável à Liapounov se dada qualquer vizinhança U
dessa órbita periódica no espaço de fases existe uma outra vizinhança V da órbita periódica
tal que todos os movimentos com condição inicial em V não abandonam nunca U. Por
exemplo, no oscilador harmónico, todas as órbitas periódicas são estáveis à Liapounov (com
V = U). Um órbita periódica é assimptóticamente estável para tempos positivos (e respec-
tivamente para tempos negativos) se existe uma vizinhança V dessa órbita periódica tal que
todos os movimentos com condição inicial em V tendem para essa órbita periódica quando
t → +∞ (respectivamente quando t → −∞). Uma órbita periódica assimptóticamente
estável num espaço de fases de dimensão 2 chama-se ciclo limite. Como veremos, o os-
cilador de Van der Pol tem um ciclo limite estável.
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 7

1.2 Integrais do movimento e sistemas conservativos com 1


grau de liberdade
A existência de funções em fase invariantes para o movimento, chamadas integrais primeiras
ou constantes do movimento, é extremamente importante tanto do ponto de vista fı́sico
como do ponto de vista do tratamento matemático de um sistema dinâmico.

Definição 1.3. Dado um sistema ẋ = f (x), x ∈ Rn , uma função I : Rn → R diz-se


uma constante do movimento ou uma integral primeira para o fluxo associado se se tem
I(x(t; x0 )) = I(x0 ) para todo o t e para qualquer solução x(t; x0 ).

Portanto, o valor de uma integral primeira mantém-se constante ao longo do movimento,


embora dependa, como é óbvio, da condição inicial escolhida. Dito de outra maneira, as
superfı́cie de nı́vel definidas por I(x) = constante, que são hipersuperfı́cies n − 1 em Rn ,
são invariantes para o movimento, e portanto estão formadas por órbitas do sistema.
Em geral, dada uma função em fase ou variável dinâmica G : Rn → R, a sua variação
temporal ao longo de uma trajectória x(t) vem dada por
n n
d X ∂G dxi X ∂G
G (x(t)) = = fi (x(t)) ,
dt ∂xi dt ∂xi
i=1 i=1

onde utilizámos a regra de derivação da função composta. Dada uma variável dinâmica
G : Rn → R e um campo de vectores f : Rn → Rn , podemos associar-lhe uma nova
variável dinâmica, Lf G : Rn → R, dada por
n
X ∂G
Lf G(x) = fi (x) (x) ,
∂xi
i=1

chamada derivada de Lie de G em relação ao campo f , cujo significado é o de associar a cada


ponto do espaço de fases a derivada direccional de G nesse ponto segundo o vector tangente
à órbita que passa por esse ponto. Em termos desta nomenclatura, podemos dizer que uma
variável dinâmica I é uma integral primeira do campo f se e só se a derivada de Lie Lf I ≡ 0.

O exemplo mais simples de sistema que possui uma integral primeira é o de uma
partı́cula em movimento unidimensional sob a acção de uma força que não depende da
velocidade nem do tempo. Nesse caso, a equação de Newton é da forma ẍ = f (x), x ∈ R,
com f (x) = − dV dx para uma certa função V . Multiplicando ambos os membros por ẋ e
integrando vem

ẋ2
 
dV d 1 2
ẋẍ + ẋ =0 ⇔ ẋ + V (x) = 0 ⇔ + V (x) = constante .
dx dt 2 2

Neste caso portanto, como em qualquer caso de partı́culas sujeitas a forças puramente
posicionais que derivam de um potencial, a energia é uma integral primária. Em termos
2
da derivada de Lie teremos f (x, y) = (y, −V 0 (x)), E(x, y) = y2 + V (x) e

∂E ∂E
Lf E(x, y) = y − V 0 (x) = yV 0 (x) − V 0 (x)y ≡ 0 .
∂x ∂y
8 1.2. Integrais do movimento e sistemas conservativos com 1 grau de liberdade

Estes sistemas para os quais a energia é uma integral primeira chamam-se conservativos
e constituem uma classe muito particular. O oscilador harmónico e o pêndulo são dois
exemplos desta classe. Mas a existência de uma integral primeira é uma propriedade muito
restritiva. Consideremos por exemplo o oscilador amortecido. Vimos já qual era o aspecto
qualitativo do retrato de fase deste sistema. Suponhamos que tinha uma integral primeira
I. Então, I seria constante sobre cada órbita. Uma órbita dada, qualquer, tende para
a origem (0, 0). Então, por continuidade, I teria que assumir sobre a órbita escolhida o
valor I(0, 0) que toma na origem. Mas como a órbita em questão é arbitrária, concluimos
que I terá que ser constante em todo o plano. Portanto, a única integral primeira para
o oscilador amortecido é a função constante em todo o plano, que é trivialmente integral
primeira de qualquer órbita. Este exemplo mostra que a existência de pontos de equilı́brio ou
órbitas periódicas assimptóticamente estáveis é incompatı́vel com a existência de integrais
primeiras não triviais. Portanto, a existência de constantes do movimento, tenham elas ou
não o significado fı́sico de uma energia, é uma propriedade muito restritiva.
Uma constante do movimento é um caso particular de uma função de Liapounov, con-
ceito introduzido na tentativa de formular critérios de estabilidade de pontos de equilı́brio.

Teorema 1.1 (Liapounov). Seja x0 um ponto singular do sistema ẋ = f (x), x ∈ Rn .


Suponhamos que existe uma variável dinâmica W : Rn → R, a que chamamos função de
Liapounov, definida numa vizinhança U de x0 e tal que:

1. W (x) > W (x0 ), x ∈ U\{x0 }, i.e., W tem um mı́nimo em x0 .

2. Ẇ (x) = Lf W (x) ≤ 0 em U, i.e., W é não crescente ao longo das trajectórias em U.

Então o ponto x0 é estável para tempos positivos. Se, além disso, a derivada de Lie de W
fôr estritamente negativa em U\{x0 }, então x0 é assimptóticamente estável para tempos
positivos.

É desnecessária uma demonstração muito formal. De facto, o resultado é imediato


se considerarmos as curvas de nı́vel de W numa vizinhança de x0 . A condição sobre a
derivada de Lie implica que o movimento com uma certa condição inicial fica confinado à
bola fechada cuja fronteira é a curva de nı́vel que passa por esse ponto. Caso a derivada
de Lie seja estritamente negativa, as órbitas são sempre transversais às curvas de nı́vel, e
portanto as soluções tendem para x0 .
No caso do oscilador harmónico e do pêndulo, a energia é uma integral primeira e
portanto uma função de Liapounov para o sistema (verifica as hipóteses do teorema no
caso fraco). Vejamos que no caso do oscilador amortecido,
(
ẋ = y
,
ẏ = −ω 2 x − 2µy
2 2
a energia E(x, y) = y2 + ω 2 x2 também é uma função de Liapounov para o ponto (0, 0)
(verifica as hipóteses do teorema no caso forte). De facto,

∂E ∂E
Ė = Lf E = y + (−ω 2 x − 2µy) = y · ω 2 x − ω 2 x · y − 2µy · y = −2µy 2 < 0 ,
∂x ∂y
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 9

a. b. c. d. e.

Figura 1.2: Retratos de fase e gráficos da função potencial V (x) para alguns sistemas
simples (vide texto). a: retrato de fases da partı́cula livre; b: retrato de fases do oscilador
harmónico; c: forma da função potencial V (x) do oscilador harmónico; d: retrato de fases
do repulsor harmónico; e: forma da função potencial V (x) do repulsor harmónico.

onde a desigualdade vale numa vizinhança do ponto singular excepto sobre o eixo dos xx.
Não é portanto uma boa função de Liapounov em sentido estrito, uma vez que não se tem
Ẇ < 0 em U \{x0 }. No entanto, a versão forte do teorema de Liapounov admite uma
formulação mais geral, que permite que se dê a igualdade no ponto de equilı́brio e num
conjunto que não contenha nenhuma órbita. A energia é uma função de Liapounov para
o oscilador amortecido neste sentido, e é verdade que é estritamente decrescente ao longo
das trajectórias, excepto num conjunto discreto de instantes do tempo em que tem pontos
de inflexão.

Como corolário do teorema de Liapounov temos o seguinte resultado:


Corolário 1.2. Dado um sistema mecânico com forças puramente posicionais,

~x˙ = ~v , ~v˙ = f~(x) = −grad V, (~x, ~v ) ∈ Rn × Rn ,

se a energia potencial tem um mı́nimo isolado em ~x0 ∈ Rn , então o ponto singular (~x0 , 0)
é estável (no futuro e no passado).
A este último resultado chama-se habitualmente teorema de Lagrange-Dirichlet, e é
bastante anterior ao teorema de Liapounov, do qual se obtém como consequência tomando
2
para função de Liapounov a energia total E = v2 + V (~x).

A partir de agora e até ao fim desta secção vamos falar apenas de sistemas conservativos
e com 1 grau de liberdade, i.e., sistemas da forma
(
ẋ = y
ẍ = f (x) ou
ẏ = f (x)

y2
que possuem a integral primeira da energia, E = 2 + V (x). Vejamos primeiro alguns
exemplos simples:
1. Partı́cula livre: as curvas de nı́vel de E são rectas (figura 1.2a).
(
ẋ = y y2
ẍ = 0, E= .
ẏ = 0 2
10 1.3. Comportamento local na vizinhança de pontos singulares

2. Oscilador harmónico: a origem é um centro (figura 1.2b); as curvas de nı́vel de E são


elipses (figura 1.2c).
(
2
ẋ = y y2 2x
2
ẍ = −ω x E = + ω .
ẏ = −ω 2 x 2 2

3. Repulsor harmónico: a origem é uma sela (figura 1.2d); as curvas de nı́vel de E são
hipérboles (figura 1.2e).
(
2
ẋ = y y2 2x
2
ẍ = +ω x E = − ω .
ẏ = +ω 2 x 2 2

Estes três exemplos são casos em que os sistemas se podem integrar explı́citamente
e a equação das órbitas se pode obter por eliminação do tempo a partir das equações
das trajectórias. Mas sobretudo a análise destes casos faz-nos entender qual é o aspecto
qualitativo do retrato de fases na vizinhança de um mı́nimo ou de máximo local do potencial,
e qual é o processo que nos permite obter o retrato de fases a partir do gráfico do potencial.
Assim, é óbvio do que vimos até agora que o retrato de fase associado a um sistema
não linear com um potencial da forma indicada na figura 1.3a é do tipo esboçado na figura
1.3b.
Análogamente, para o potencial corrigido associado à coordenada radial do problema
de Kepler em coordenadas polares, ver a figura 1.4.

1.3 Comportamento local na vizinhança de pontos singulares


Consideremos um sistema autónomo no plano, ẋ = f (x), x = (x1 , x2 ) ∈ R2 , e seja x0 um
ponto singular, i.e., f (x0 ) = (0, 0). Desenvolvendo f em série de Taylor em torno do ponto
x0 temos
f (x0 + ξ) = f (x0 ) + Df (x0 ) · ξ + ◦(|ξ|2 ) = Aξ + ◦(|ξ|2 ) ,
∂fi
onde A é a matriz jacobiana de f em x0 , de elementos Aij = ∂x j
(x0 ), i, j = 1, 2, e
˙
ξ = (ξ1 , ξ2 ) = x − x0 . Como é ẋ = ξ, a equação do sistema escreve-se, na vizinhança de x0 ,

ξ˙ = Aξ + ◦(|ξ|2 ) ,

e o sistema truncado, ξ˙ = Aξ chama-se aproximação linear ou equação variacional associ-


ada a ẋ = f (x) no ponto singular x0 .
No que se segue vamos fazer um estudo detalhado dos sistemas lineares ẋ = Ax em R2 ,
após o que veremos que, na maioria dos casos, o comportamento das soluções da aprox-
imação linear determina o comportamento das soluções do sistema não linear na vizinhança
do ponto considerado.

Consideremos então o sistema ~x˙ = A~x, x ∈ R2 , seja λ um valor próprio de A e ~u um


vector próprio associado a λ. É imediato verificar que ~x(t) = ceλt ~u é solução da equação
diferencial:  
~x˙ (t) = λceλt ~u = ceλt λ~u = ceλt A~u = A ceλt ~u = A~x(t) .
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 11

Figura 1.3: Esboço do retrato de fases (em baixo) a partir de um potencial com a forma
indicada na figura por cima. Todos estes retratos de fase são simétricos em relação ao eixo
dos xx. O perı́odo varia com a energia e tende para infinito quando E → E2 (voltaremos a
esta questão num exercı́cio das séries).

a. b.

Figura 1.4: Esboço do potencial corrigido do problema de Kepler e do respectivo retrato de


fases.
12 1.3. Comportamento local na vizinhança de pontos singulares

a. b. c.

Figura 1.5: Esboço dos retratos de fases para o caso de λ1 , λ2 reais (ver texto). a: nodo
instável (λ1 > λ2 > 0); b: nodo estável (λ1 < λ2 < 0); c: sela (λ1 < 0 < λ2 ).

Suponhamos então que estamos no caso genérico em que A tem dois valores próprios não
nulos e diferentes, λ1 6= λ2 . Então, A é diagonalizável e ~u1 e ~u2 , vectores próprios associados
a λ1 e λ2 , respectivamente, formam uma base de R2 . Por outro lado, como o sitema é linear,
qualquer combinação linear de soluções do tipo da solução particular encontrada acima é
ainda solução. Estes dois factos em conjunto implicam que a solução geral de ~x˙ = A~x seja
da forma
~x(t) = c1 eλ1 t ~u1 + c2 eλ2 t ~u2 (1.5)

onde c1 e c2 são constantes escalares eventualmente complexas, dado que λi , ~ui , i = 1, 2


são em geral também complexos.
Consideremos agora os dois casos possı́veis para os valores próprios de uma matriz 2 × 2
real: λ1 , λ2 ∈ R e λ1 = λ2 ∈ C.

1. λ1 , λ2 reais.
Nas coordenadas ~y associadas à base formada por ~u1 , ~u2 , a solução geral escreve-se
! !
y1 (t) c1 eA1 t
~y (t) = = .
y2 (t) c2 eA2 t

Nas coordenadas originais, o retrato de fase do sistema é então de uma das seguintes
três formas possı́veis, conforme o sinal de λ1 , λ2 : nodo instável (λ1 > λ2 > 0, ver
figura 1.5a); nodo estável (λ1 < λ2 < 0, figura 1.5b); sela (λ1 < 0 < λ2 , figura 1.5c).

2. λ1 , λ2 complexos conjugados.
Neste caso, λ1 = α+iβ, λ2 = α−iβ, α, β ∈ R e, como a matriz λA é real, ~u1 = ~v1 +i~v2 ,
~u2 = ~v1 − i~v2 . Uma solução da forma (1.5) é real se e só se c1 e c2 forem complexos
conjugados, pelo que podemos tomar c1 = keiγ , c2 = ke−iγ .
Substituindo em (1.5) e operando vem, para a solução geral real do sistema,

~x(t) = η1 (t)~v1 + η2 (t)~v2 ,

com η1 (t) = 2keαt cos(βt + γ), η2 (t) = −2keαt sin(βt + γ), e onde os vectores reais
~v1 , ~v2 também formam base de R2 , dado que ~u1 e ~u2 são linearmente independentes
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 13

a. b. c.

Figura 1.6: Esboço dos retratos de fases para o caso de λ1 , λ2 reais (ver texto). a: foco
estável (α = Re λ < 0); b: foco instável (α = Re λ > 0); c: centro (α = Re λ = 0).

nos complexos. Nas coordenadas ~y associadas à base formada por ~v1 , ~v2 , a solução
geral escreve-se ! !
y1 (t) ceαt cos(βt + γ)
~y (t) = = .
y2 (t) −ceαt sin(βt + γ)

Nas coordenadas originais, o retrato de fase do sistema é então de uma das seguintes
três formas possı́veis, conforme o sinal de α: foco estável (α = Re λ < 0, figura 1.6a);
foco instável (α = Re λ > 0, figura 1.6b); centro (α = Re λ = 0, figura 1.6c).

Isto conclui o estudo do sistema linear ~x˙ = A~x, ~x ∈ R2 , nos diferentes casos genéricos.
Podemos resumir as conclusões num diagrama em que se tomam como parâmetros para o
sistema µ1 = Tr A, µ2 det A. Dado que o polinómio caracterı́stico de A é λ2 − Tr Aλ +
det A = 0, os valores próprios são dados por
p q
2λi = Tr A ± (Tr A) − 4 det A = µ1 ± µ21 − 4µ2 .
2

Em face do que vimos antes temos então o chamado diagrama de bifurcação para o
sistema linear em dimensão 2, na figura 1.7.
Nota. Para os sistema mecânicos,
 
0 1
A= , Tr A, det A = −α .
α β

Os sistemas conservativos estão sobre a linha Tr A = 0.


Note-se que, do ponto de vista da estabilidade, a natureza da origem, único ponto
singular do sistema linear, depende apenas do sinal (da parte real) dos valores próprios.
Assim, temos:

• Re λ1 , Re λ2 < 0 ⇒ origem assimptóticamente estável (para tempos positivos):


sumidouro.

• Re λ1 , Re λ2 > 0 ⇒ origem assimptóticamente estável (para tempos negativos):


fonte.

• λ1 · λ2 < 0 ⇒ origem instável.

• Re λ1 = Re λ2 = 0 ⇒ origem estável (no futuro e no passado).


14 1.3. Comportamento local na vizinhança de pontos singulares

Figura 1.7: O diagrama de bifurcação resume o essencial dos retratos de fases na vizinhança
de pontos de equilı́brio do sistema para os diferentes valores próprios que a matriz A do
sistema pode tomar (ver texto).

O caso de sistemas lineares em Rn , ~x˙ = A~x, x ∈ Rn , reduz-se tal como o caso bidimen-
sional a um problema algébrico, que se resolve de maneira análoga com a única diferença
de a caracterı́stica ser mais complicada. A estabilidade da origem fica determinada pelos
sinais das partes reais dos n valores próprios de A.

Dissemos antes que a classificação dos sistemas lineares é interessante também do ponto
de vista do estado dos sistemas não-lineares. Vimos já que a cada ponto singular de um
sistema não-linear está associado um sistema linear, que é a equação variacional ou aprox-
imação linear do campo de vectores na vizinhança desse ponto. Um teorema importante
(teorema de Hartman) é o que nos diz que o comportamento local de um fluxo não linear
na vizinhança de um ponto singular ~x0 é idêntico ao da sua aproximação linear, desde
que os valores próprios da aproximação linear tenham todos parte real diferente de zero
(condição de hiperbolicidade). Mais precisamente, este resultado afirma que o retrato de
fase local na vizinhança de um ponto hiperbólico é, a menos de uma mudança de variáveis
regular, o mesmo da aproximação linear. Em particular, a estabilidade do ponto singular
fica determinada pelo sinal das partes reais dos valores próprios da aproximação linear.
Como consequência deste resultado temos, voltando a dimensão 2, o seguinte:

Corolário 1.3. Um nodo, foco ou sela linear é ainda um nodo, foco ou sela do mesmo tipo
para o sistema não truncado.

Note-se no entanto que um centro linear pode ser um ponto singular de outra natureza
para o sistema não-linear completo, dado que um centro não é hiperbólico.
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 15

1.4 Osciladores: oscilações forçadas e ciclos limite


Entendemos por oscilações forçadas as soluções de uma equação da forma
ẍ + f (x)ẋ + g(x) = F (t) , (1.6)
onde F (t) é regular e periódica e a equação homogénea é tal que possui uma ou mais
soluções periódicas (exemplos: Van der Pol e oscilador harmónico), ou admite soluções que
executam oscilações amortecidas (oscilador harmónico amortecido, ou sistema que tenha
um foco estável).
Os sistemas da forma (1.6) têm um espaço de fases de dimensão 3 — são chamados
por isso sistemas com 1 12 graus de liberdade. Vimos já que não linearidade juntamente
com dimensão 3 ou superior para o espaço de fases são os ingredientes básicos do compor-
tamento caótico, de modo que o estudo dos sistemas da forma (1.6) é em geral bastante
complicado (veja-se o comportamento das simulações do programa anharm [6]). O nosso
objectivo neste ponto é tratar com algum detalhe cada um destes aspectos separadamente:
vamos considerar a equação linear da forma (1.6), i.e., o oscilador harmónico e o oscilador
harmónico amortecido forçados, e, como modelo de equação não linear com F (t) ≡ 0, o
oscilador de Van der Pol, e um modelo de relógio mecânico, para os quais provaremos a
existência de um único ciclo limite estável.
Consideremos primeiro (1.6) para o caso do oscilador harmónico com forçamento sinu-
soidal,
ẍ + ω 2 x = C cos Ωt , (1.7)
C
e suponhamos primeiro que se tem Ω2 6= ω 2 . É imediato verificar que xp (t) = ω2 −Ω 2 cos Ωt
é uma solução particular de (1.7). De facto, esta solução particular pode ser obtida ‘cons-
trutivamente’ procurando os valores que devem satisfazer as constantes de amplitude e fase
de uma solução particular com a mesma frequência do forçamento. Portanto, a solução
geral de (1.7) é
C
x(t) = 2 cos Ωt + c1 cos ωt + c2 sin ωt .
ω − Ω2
Exprimindo as constantes c1 e c2 em termos das condições iniciais x(0) = x0 , ẋ(0) = v0 ,
C v0
vem c1 = x0 − ω2 −Ω 2 , c2 = ω , de modo que a solução geral se pode escrever

C v0
x(t) = (cos Ωt − cos ωt) + x0 cos ωt + sin ωt , (1.8)
ω2 −Ω 2
| {z ω }
xh (t)

onde o segundo termo, xh (t), é a solução do oscilador harmónico não perturbado com as
mesmas condições iniciais.
A expressão (1.8) é interessante por dois motivos: por um lado, mostra a solução como
a sobreposição de dois batimentos periódicos de frequências diferentes, ou também a so-
breposição da oscilação livre xh (t) e a oscilação forçada de amplitude c, em geral não
periódica (ver figura 1.8); por outro, porque nos dá uma maneira de encontrar a solução no
caso ressonante Ω2 = ω 2 . De facto, calculando o limΩ→ω na expressão (1.8) temos
 
C
lim x(t) = lim (cos Ωt − cos ωt) + xρ (t) = (regra de l’Hôpital)
Ω→ω Ω→ω (ω − Ω)(ω + Ω)
 
C −t sin Ωt C
= lim + xρ (t) = t sin ωt + xρ (t) .
Ω→ω ω + Ω −1 2ω
16 1.4. Osciladores: oscilações forçadas e ciclos limite

Figura 1.8: Sobreposição de dois batimentos periódicos de frequências diferentes (curvas a


tracejado), como por exemplo a do oscilador livre com uma oscilação forçada.

O primeiro termo do segundo membro não é limitado no tempo, chama-se termo secular
associado à ressonância Ω = ω. O fenómeno da ressonância é portanto o crescimento
(fı́sicamente) ilimitado das amplitudes de oscilação quando a frequência da perturbação
coincide com a frequência própria do sistema perturbado.
Voltemos à equação (1.8) para analisar a aproximação à ressonância, i.e., o compor-
tamento do sistema quando Ω ' ω, Ω 6= ω. Consideremos para simplificar a solução
particular que corresponde às condições iniciais x0 = v0 = 0, que vamos escrever na forma
2C (Ω + ω) (Ω − ω)
x(t) = − sin t sin t,
ω 2 − Ω2 2 2
usando cos α − cos β = −2 sin α+β α−β
2 sin 2 . Introduzindo as variáveis ω̃ =
ω+Ω
2 , = Ω−ω
2 , a
proximidade da ressonância caracteriza-se por ω̃ ' ω,   ω̃, e a solução
C 1
x(t) = A(t) sin ω̃t , A(t) = sin t
2ω̃ 
aparece como uma oscilação modulada, uma oscilação cuja amplitude varia lentamente em
relação ao perı́odo (ver figura 1.9).
No caso das oscilações forçadas de um oscilador amortecido, o fenómeno da ressonância
já não apresenta o aspecto de divergência das amplitudes que caracteriza o caso não dissi-
pativo. Consideremos então a equação da forma (1.6)

ẍ + 2µẋ + ω 2 x = C cos Ωt , µ>0 (1.9)

e procuremos como no caso anterior uma solução particular da forma A cos(Ωt + ϕ). Subs-
tituindo em (1.9), o problema reduz-se à solução do seguinte sistema de equações em A e
ϕ,

(ω 2 − Ω2 )A cos ϕ − 2µΩA sin ϕ = C


(ω 2 − Ω2 )A sin ϕ + 2µΩA cos ϕ = 0 .

Da segunda equação vem imediatamente


 
2µΩ
ϕ = − arctan , (1.10)
ω − Ω2
2
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 17

Figura 1.9: Oscilação modulada por uma frequência  = Ω−ω


2 , próximo da ressonância
(acima) e oscilação modulada pelo termo secular, também para um forçamento com
frequência próxima da de ressonância (abaixo).

e quadrando e somando ambas as equações vem


C
A= p . (1.11)
(ω 2 − Ω2 )2 + 4µ2 Ω2
Portanto, a solução geral da equação (1.9) é
x(t) = A cos(Ωt + ϕ) + xa (t) , (1.12)
onde xa (t) é a solução geral do oscilador amortecido livre. Note-se no entanto que ambos
os termos de xa (t) tendem para zero quando t → ∞, de modo que, à parte transientes,
a resposta do sistema vem dada essencialmente pelo primeiro termo de (1.12). Note-se
também que neste caso a solução obtida está definida para todos os valores de Ω, inclusive
|Ω| = |ω|. O fenómeno da ressonância traduz-se agora pelo facto de a amplitude A(Ω) ter
um máximo para |Ω| = |ω|.
Este fenómeno está na base do funcionamento dos sintonizadores de rádio. Suponhamos
que o termo de forçamento F (t) é a soma F1 (t) + · · · + Fn (t) de n perturbações sinusoidais,
cada uma com uma frequência Ωk , k = 1, . . . , n:
n
X
F (t) = Fk cos(Ωk t + ψk ) . (1.13)
k=1

Como o sistema é linear, a solução geral vai ser a soma da solução geral da equação ho-
mogénea, xa (t), que como já vimos tende para zero exponencialmente com o tempo, com
18 1.4. Osciladores: oscilações forçadas e ciclos limite

Figura 1.10: Modelos para o funcionamento de um sistema relógio mecânico. As figuras


correspondem ao respectivo retrato de fase, nas variáveis (x, v) (ver texto).

n termos da forma A cos(Ωt + ϕ), cada um dos quais é solução particular da equação (1.9)
com termo de forçamento Fk (t). Portanto, a solução geral será da forma

n
X
x(t) = Ak cos(Ωk t + ϕk ) + xa (t) ,
k=1

onde Ak é dado em função de Ωk e Fk pela equação (1.11), e ϕk − ψk é dado em função


de Ωk por (1.10). Como A(Ω) tem um máximo em Ω = ω, o oscilador vai funcionar como
um filtro, seguindo apenas as perturbações de frequência Ωk próxima de ω. Num aparelho
n
P
de sintonia, F (t) = Fk (t) corresponde aos sinais de diferentes frequências captados pela
k=1
antena, e o botão de sintonia faz variar a frequência própria ω do oscilador, permitindo
seleccionar diferentes frequências.
O caso genérico de um termo de forçamento periódico mas não necessariamente sinu-
soidal pode tratar-se com argumentos análogos ao que acabámos de utilizar, partindo da
expansão em série de Fourier do termo de forçamento e usando a linearidade do sistema.

Vamos agora, para acabar este ponto e este capı́tulo, estudar dois exemplos de equações
da forma (1.6) homogéneas e não-lineares que possuem ciclos limite.
O primeiro é um modelo muito simples de relógio mecânico. Essencialmente, um
relógio mecânico é um oscilador débilmente amortecido, juntamente com um mecanismo
que fornece ao sistema a energia perdida por dissipação (pequenas oscilações de um pêndulo
débilmente amortecido pelo atrito do ar e outros efeitos mecânicos, mais corda do relógio).
Um modelo para o funcionamento deste sistema é então o que corresponde à figura 1.10,
desenhada no espaço de fases enquadrado pelas variáveis (x, v). O parâmetro d, aumento
da velocidade do pêndulo em cada pulsação ao passar com velocidade positiva pela posição
de equilı́brio, depende do impulso da força associada ao mecanismo da corda, e o seu valor
depende portanto dos detalhes do mecanismo. Quanto ao parâmetro a, pode ser calculado
a partir das caracterı́sticas do oscilador. Suponhamos com efeito que as pequenas oscilações
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 19

do nosso pêndulo são bem modeladas por uma equação da forma


(
ẋ = v
ẍ + 2µẋ + ω 2 x = 0 ou
v̇ = −2µv − ω 2 x
Como já vimos, a solução geral neste caso é da forma
x(t) = e−µt A cos(Ωt + ϕ) ,
v(t) = e−µt (−µ cos(Ωt + ϕ) − Ω sin(Ωt + ϕ)) ,
dado que os valores próprios da matriz
 
0 1
A=
−ω 2 −2µ
p
são da forma α ± iβ, com α = −µ, β = ω 2 − µ2 = Ω. Portanto, o tempo que o ponto
representativo do sistema demora a dar uma volta completa em torno da origem no espaço
de fases é T = 2π
Ω . Logo, o factor a, redução do módulo da velocidade entre duas passagens
consecutivas pela posição de equilı́brio (com velocidade positiva) vem dado por
!
2πµ
a = exp(−µT ) = exp − p .
ω 2 − µ2

Embora o sistema em causa tenha um espaço de fases de dimensão 2 apenas2 é cómodo


analisá-lo através do estudo da aplicação de Poincaré associada a tomar como secção o
semieixo positivo do eixo dos xx. Claramente, a aplicação de Poincaré correspondente vem
dada por
f (v) = av + d ,
onde 0 < a < 1 e d > 0 são os parâmetros discutidos acima. Órbitas periódicas do sistema
original corresponderão a pontos fixos da aplicação de Poincaré f (v), ou seja, pontos tais
que f (v) = v. Então, a existência, unicidade e estabilidade de um ciclo limite para o nosso
modelo de relógio pode fazer-se simples a partir da análise do gráfico de f (v) (figura 1.11).

Note-se que este modelo simples apresenta as propriedades de um bom relógio: inde-
pendentemente das condições iniciais, tende rápidamente para uma oscilação de perı́odo
fixo.
A órbita periódica que encontrámos é assimptóticamente estável, e portanto é um exem-
plo de um ciclo limite.

Como último exemplo deste capı́tulo vamos estudar o comportamento das soluções da
equação de Van der Pol,
ẍ + β(x2 − 1)ẋ + x = 0 . (1.14)
Faremos um estudo heurı́stico e muito rápido do caso fortemente ‘amortecido’, β  1, com
o propósito de introduzir o conceito de oscilações de relaxação, e analisaremos com menos
detalhe, usando métodos perturbativos, o caso débilmente amortecido β  1.
2
Em rigor, este sistema sai do âmbito da teoria que temos vindo a falar, devido à descontinuidade
associada ao impulso (não pode de facto ser modelado por um campo de vectores em dimensão 2).
20 1.4. Osciladores: oscilações forçadas e ciclos limite

a. b.

Figura 1.11: Função de Poincaré f (v) para o sistema


p em causa (ver texto). a: existência e
unicidade de um ciclo limite de perı́odo T = 2π/ ω 2 − µ2 ; b: a estabilidade do ciclo limite
depende do parâmetro a, sendo sempre estável para 0 < a < 1.

Caso β  1. É conveniente neste caso passar a equação (1.14) à forma normal de um


sistema de duas equações de primeira ordem de uma maneira diferente da habitual. Come-
cemos por notar que (1.14) se pode escrever na forma
  3 
d x
ẋ + β −x = −x
dt 3
 3 
x
e tomemos βy = ẋ + β 3 − x . Então, um sistema equivalente é
(
ẋ = β (y − f (x))
, (1.15)
ẏ = −β −1 x
3
onde f (x) = x3 − x. Trabalharemos no espaço de fases enquadrado pelas variáveis x, y,
embora neste caso y não seja simplesmente a velocidade ẋ. Convém representar no espaço
de fases a cúbica y = f (x), que joga um papel especial na nossa descrição. De facto, sobre
esta linha, ẋ = 0 e o campo de vectores é vertical, dirigido para baixo (respectivamente para
cima) no semiplano x > 0 (respectivamente em x < 0) como se vê pela equação (1.15). Por
outro lado, acima (respectivamente abaixo) da cúbica y = f (x) a componente horizontal ẋ
da velocidade de fase é positiva (respectivamente negativa).
Usemos agora a hipótese de ser β  1. Das equações (1.15) vem

dy x
= −β −2 · ,
dx y − f (x)

ou seja, o declive da tangente às órbitas é muito pequeno, da ordem de β12 , excepto numa
vizinhança de largura β12 da cúbita, que é a única região do espaço de fases onde as órbitas
se afastam significativamente de linhas horizontais. Nessa vizinhança, tanto ẋ como ẏ são
da ordem de β1 , de modo que o movimento nessa região é muito lento. Pelo contrário, fora
duma dessas vizinhanças, ẋ é da ordem de β, e portanto o movimento, aproximadamente
horizontal, é rápido. Diz-se então que o sistema tem uma ‘foliação rápida’ e uma ‘foliação
lenta’, que correspondem respectivamente às linhas horizontais e à cúbica, e que se repre-
senta como na figura 1.12b. As duplas setas indicam movimento rápido no tempo. Note-se
que as linhas da figura 1.12b não são invariantes, ou seja, a figura não é um retrato de fase;
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 21

destina-se simplesmente a dar um ideia da ordem de grandeza das velocidades no espaço


de fases ẋ e ẏ nas diferentes regiões.
Para ter uma ideia acerca do comportamento das soluções, voltemos à figura da 1.12a,
e vamos seguir a órbita com condição inicial no ponto P0 sobre o eixo dos yy. Esta órbita
será práticamente horizontal até atingir uma vizinhança γ da cúbica, que vai atravessar com
velocidade dirigida segundo a vertical em P1 . Abaixo da cúbica, a órbita será ‘apanhada’
pela foliação rápida logo que abandone a vizinhança de γ. Mas como não é possı́vel cruzar a
cúbica da direita para a esquerda no semiplano x > 0, isso só vai acontecer quando a órbita
passa próximo de A, e segue então a foliação rápida a partir de P2 , até atingir novamente
a vizinhança γ, agora no semiplano x < 0, no ponto P3 , e atravessar a cúbica em P4 com
velocidade de fase vertical e dirigida para cima. O seguimento da órbita até que torna a
intersectar o eixo dos yy faz-se de maneira análoga.
Seja então f (y0 ) o valor da coordenada y da primeira intersecção da órbita do ponto
P0 , de coordenadas (x = 0, y = y0 ), com o semieixo positivo do eixo dos yy. A análise da
aproximação linear na vizinhança do ponto de equilı́brio (0, 0) mostra que a origem é um
foco instável para este sistema. Portanto, para y0 suficientemente pequeno, f (y0 ) > y0 . Por
outro lado, é intuitivo que se tomarmos y0 suficientemente acima do valor correspondente
ao máximo da cúbica, como fizémos na análise qualitativa precedente, então será f (y0 ) <
y0 . É possı́vel demonstrar com rigor que f (y) − y tem exactamente uma única raiz, que
corresponde portanto a um ciclo limite estável, que é a única órbita periódica do oscilador
de Van der Pol na aproximação β  1, e é um atractor global.
Sobre esse ciclo limite, ou numa sua pequena vizinhaça, o comportamento das soluções é
periódico, ou aproximadamente periódico, e do tipo representado na figura 1.13. Os troços
aproximadamente horizontais correspondem à passagem do ponto representativo do sistema
ao longo da foliação lenta, e os troços aproximadamente verticais correspondem à passagem
ao longo da foliação rápida. Fica como exercı́cio para o Leitor esboçar o gráfico de y em
função de t.
A este tipo de batimentos com “duas velocidades”, uma lenta e uma rápida, chama-se
oscilações de relaxação.

Caso β  1. O estudo que vamos fazer neste caso transcende o interesse que possa ter o
oscilador de Van der Pol ou em geral os osciladores não lineares. Quando o parâmetro β é
muito pequeno, podemos fazer um tratamento perturbativo do problema. É o que vamos
fazer, utilizando um método da teoria das perturbações que se chama ‘averaging’, e ao qual
voltaremos no fim do curso.
A base do método de ‘averaging’ é a existência no sistema perturbado de duas variáveis
cujos ritmos de variação temporal são muito diferentes, a variável lenta e a variável rápida.
Procura-se descrever o comportamento da variável lenta à custa de tomar médias sobre a
rápida, cujo ‘tempo caracterı́stico’ é menor. As candidatas a variáveis lenta e rápida vão
aparecer naturalmente em cada exemplo no qual este tipo de método se possa aplicar.
Consideremos então o oscilador de Van der Pol, β  1, como uma perturbação do os-
2 2
cilador harmónico. Para o sistema não perturbado, a energia E = y2 + x2 é uma variável
‘infinitamente lenta’, é uma constante. Tomando no plano de fases, em vez das coordenadas
polares habituais (r, θ) as coordenadas (E, θ), o sistema tem as equações
22 1.4. Osciladores: oscilações forçadas e ciclos limite

a. b.

Figura 1.12: a: esboço da trajectória de um ponto do espaço de fases do sistema oscilador


de Van der Pol para um ponto que parta da posição P0 sobre o eixo dos yy. A linha γ é
3
a cúbica y = f (x) = x3 − x. A linha a tracejado é um ciclo limite estável, como se verá
adiante. b: esquema do sentido da velocidade ẋ de acordo com a posição x no oscilador de
Van der Pol. As setas duplas indicam movimento rápido (horizontal). NB: esta figura não
é um retrato de fase (ver texto).

Figura 1.13: Esboço de uma solução tı́pica para o oscilador de Van der Pol.
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 23


Ė = 0
.
θ̇ = −1

Escrevendo também nestas coordenadas o oscilador de Van der Pol, obtemos


(
Ė = βf (E, θ)
θ̇ = −1 + βg(E, θ)

onde f (E, θ) = −2E sin2 θ(2E cos2 θ − 1) e g(E, θ) = − sin θ cos θ(2E cos2 θ − 1). Vejamos
que este sistema tem um único ciclo limite estável. Para isso, consideremos a aplicação de
Poincaré que envia o valor Ei da energia na i-ésima passagem pelo eixo θ = 0 ao valor Ei+1
da energia na (i + 1)-ésima passagem pelo mesmo eixo. Isto corresponde a tomar como
superfı́cie de secção o semieixo positivo do eixo dos xx, e como variável a energia.
Temos então
ZT Z2π
Ei+1 − Ei = β f (E(t, β), θ(t, β)) dt = β f (Ei , θ0 − t)dt + ◦(β 2 ) ,
0 0

uma vez que E(t, β) = Ei + ◦(β), e θ(t, β) = θ0 − t + ◦(β). Este integral corresponde a fazer
a média da perturbação na variável rápida (averaging). Substituindo f pela sua expressão
explı́cita, vem
Z2π
Ei+1 − Ei = −2βEi sin2 t(2Ei cos2 t − 1)dt + ◦(β 2 )
0
e, portanto,

Ei+1 = Ei − 2πβEi (Ei − 1) + ◦(β 2 ) .

A expressão da aplicação de Poincaré, a menos de termos de segunda ordem em β é então

f (E) = E − 2πβE(E − 1) .

A existência e unicidade de um ciclo limite estável para β suficientemente pequeno é então


dada a partir da representação gráfica da aplicação f (E), acima.

1.5 Problemas
Série I
1. Resolva explı́citamente a equação do oscilador harmónico débilmente amortecido, ẍ +
2µẋ + ω 2 x = 0, com 0 < µ  |ω|. Mostre que, para t fixo, as soluções com uma certa
condição inicial tendem para as do oscilador harmónico quando µ → 0. O que é que
acontece quando fazemos primeiro t → ∞ e depois µ → 0?
24 1.5. Problemas

2. Mostre que, como consequência do teorema de existência e unicidade de solução de


uma e.d.o., órbitas diferentes no espaço de fases não se intersectam.
3. Esboce os retratos de fase dos sistemas autónomos associados aos seguintes campos
de vectores no plano:
(a) f~(x, y) = (a, b), b > a > 0.
(b) f~(x, y) = (a, 0), a > 0.
(c) f~(x, y) = (x2 , y).
f~(x, y) = (x − y − x2 + y 2 x, x + y − x2 + y 2 y).
p p
(d)
(e) f~(x, y) = (2xy, y 2 − x2 ).
Caracterize os pontos singulares destes campos do ponto de vista da sua estabilidade.
4. Utilize o programa gm1dgrav do genmot para comparar a ordem de convergencia dos
métodos de Euler e de Runge-Kutta de ordem 2, conforme se indica no exercı́cio 2.1
do cups-cm.
5. Considere um sistema conservativo com 1 grau de liberdade, de equação ẍ = f (x),
com f (x) = −V 0 (x) e V (x) com um gráfico do tipo do representado na figura.
(a) Ache uma integral primeira para o sistema.

(b) Esboce o retrato de fases e caracterize os pontos singulares


do ponto de vista da sua estabilidade.

(c) Quantas órbitas formam o nı́vel de energia E1 ? E qual


a duração do movimento ao longo de cada uma dessas
órbitas?
(d) Mostre que o tempo necessário para que a partı́cula se desloque da posição x1
Rx2
para a posição x2 é dado por ∆t = √ dx , onde E é a energia da partı́cula.
x1 2(E−V (x))

(e) Seja A(E) a área limitada por uma órbita fechada de energia E. Mostre que o
dA
perı́odo T (E) em função da energia é dado por T (E) = dE .
6. Descreva qualitativamente as órbitas de uma partı́cula de massa unitária que se move
sobre uma recta sujeita aos pontenciais:
(a) V (x) = x−4 − 2x−2 , x > 0.
2
(b) V (x) = Ax2 e−x , A > 0.
Esboce o ratrato de fases em cada caso e obtenha as equações das separatrizes quando
estas existirem.
7. Considere um sistema da forma
( ∂H
ẋ = ∂y
.
ẏ = − ∂H
∂x
Mostre que as curvas de nı́vel de H(x, y) são formadas por órbitas, e que portanto H
é uma integral do movimento.
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 25

Nota. Os sistemas desta forma chamam-se hamiltonianos, e a função H é o hamilto-


niano; os sistemas conservativos são um caso particular desta classe de sistemas, com
2
H(x, y) = E(x, y) = y2 + V (x).
8. Considere o sistema de Lottea-Volterra

ẋ = αx − βxy
, α, β, γ, δ > 0 ,
ẏ = −γy + δxy

que é o modelo mais simples em dinâmica de populações para a evolução de um sistema


predador(y)–presa(x) (e é usado também, o que não surpreende, em economia).

(a) Determine os pontos de equilı́brio.


(b) Mostre que a mudança de variável x = eq , y = ep transforma este sistema num
sistema hamiltoniano nas variáveis q, p.
(c) Esboce o retrato de fase do sistema e caracterize os pontos de equilı́brio do ponto
de vista da sua estabilidade.

9. Esboce o retrato de fases do pêndulo ẍ = − sin x e do pêndulo ‘com rotação’ ẍ =


− sin x + M .

10. Nos anos 60, Hénon e Heiles estudaram órbitas de estralas numa galáxia usando o
seguinte modelo em dimensão 2:


 ẋ1 = y1
ẋ2 = y2

ẏ = −x1 − 2x1 x2
 1


ẏ2 = −x2 − x21 + x22

Mostre que este sistema com 2 graus de liberdade é conservativo e ache uma integral
primeira do movimento.

11. Utilize o programa gmpend do genmot para verificar que o pêndulo forçado exibe
dependência sensı́vel nas condições iniciais, seguindo os passos indicados no exercı́cio
2.5 do cups-cm.

12. Considere o sistema hamiltoniano com dois graus de liberdade dado por um oscilador
no plano (ou dois osciladores harmónicos lineares não acoplados) de equações ẍ1 =
−x1 , ẍ2 = −ω 2 x2 , ou 

 ẋ1 = y1
ẋ2 = y2

.
 ẏ1 = −x1

ẏ2 = −ω 2 x2

y12 y22 x21 x22


(a) Mostre que o hamiltoniano é H(x1 , x2 , y1 , y2 ) = 2 + 2 + 2 + ω2 2 .
(b) Encontre duas outras integrais primeiras para o sistema. Quantas integrais
primeiras independentes tem então o sistema?
(c) A projecção da órbita no plano (x1 , x2 ) forma as figuras de Lissajous. Mostre
que são elipses para ω = 1, e que são curvas fechadas se e só se ω = p/q ∈ Q.
26 1.5. Problemas

Série II
1. Uma partı́cula de massa m move-se sob a acção do potencial cúbico V (x) = Ax3 +
Bx2 + Cx + D, A > 0. Mostre que, com uma mudança linear de variável para uma
nova variável de posição q, V (x) pode ser substituı́do pelo potencial U (q) = Aq 3 + F q
sem modificar o movimento. Mostre que F = C − B 2 /3A. Ache os pontos fixos do
movimento no potencial U em função do parâmetro F .

2. Esboce o retrato de fase de uma partı́cula de massa m que se move no potencial


V (x) = −ax4 , a > 0. Obtenha a equação da separatriz e a expressão da trajectória
sobre a separatriz. Mostre que esta trajectória não está definida para t ∈ R. Considere
o movimento com condições iniciais x(0) = x0 > 0, v(0) = v0 > 0, obtenha uma
expressão para o tempo necessário para atingir um ponto de coordenada x > x0
arbitrário e conclua que este movimento também termina em tempo finito.

3. Esboce o potencial e o retrato de fase do sistema hamiltoniano associado a H(x, y) =


y2 x4 x2
2 + 4 − 2 . Obtenha a equação da separatriz e um valor aproximado para o perı́odo
das pequenas oscilações em torno de um dos pontos de equilı́brio estável.

4. Mostre que a equação ẍ + f (x)ẋ2 + g(x) = 0 se pode


 levar à forma hamiltoneana
Rx

como coordenadas x e y = F (x)ẋ, com F (x) = exp 2 f (u)du . Verifique que o

y2 Rx
hamiltoniano é H(x, y) = 2F (x) + V (x), V (x) = g(u)F (u)du.

5. Classifique os pontos fixos e discuta a sua estabilidade para os seguintes sistemas


lineares:

(a) ẋ = x + 3y, ẏ = −6x + 5y.


(b) ẋ = x + 3y + 4, ẏ = −6x + 5y − 1.
(c) ẋ = x + 3y + 1, ẏ = −6x + 5y.
(d) ẋ = 3x + y + 1, ẏ = −x + y − 6.

6. Encontre e classifique os pontos fixos isolados dos seguintes sistemas não-lineares:

(a) ẋ = −4y + 2xy − 8, ẏ = 4y 2 − x2 .


(b) ẋ = y − x2 + 2, ẏ = 2(x2 − y 2 ).
(c) ẍ − ẋ + x2 − 2x = 0.
(d) ẍ − ẋ3 + x + 5 = 0.

7. Encontre os ciclos limite do sistema ẋ = y + x(1 − x2 − y 2 ), ẏ = −x + y(1 − x2 − y 2 ).

8. Mostre que, no caso dos nodos, as trajectórias genéricas são tangentes na origem ao
vector próprio correspondente ao valor próprio menor em módulo.

9. Considere a equação ẍ+2µx2 ẋ+ω 2 x = 0, µ > 0. Utilizando o teorema de Liapounov,


mostre que a origem, apesar de ser um centro linear, é assimptóticamente estável para
tempos positivos.
Capı́tulo 1. Introdução à teoria qualitativa de E.D.O.s 27

10. Para o oscilador forçado e débilmente amortecido, com frequência própria ω fixa,
estude a variação da amplitude A da solução com a frequência de forçamento Ω.

11. Ache a solução particular que verifica as condições iniciais x(0) = ẋ(0) = 0 para
o oscilador harmónico e para o oscilador harmónico débilmente amortecido com os
seguintes termos de forçamento:

(a) F (t) = Ce−λt , λ > 0.


(b) F (t) = Ce−λt cos Ωt.
(c) F (t) = Ct.

12. Ache a foliação rápida e a variedade lenta para o oscilador fortemente amortecido
ẍ + 2µẋ + ω 2 x = 0, µ  ω > 0.

13. Use o programa anharm para explorar a dinâmica do oscilador de Van der Pol nos
casos β  1 e β  1. Faça estimativas do tempo de relaxação do sistema.

14. Use o programa anharm para verificar o comportamento das soluções do oscilador
harmónico com forçamento sinusoidal longe e perto da ressonância.
Capı́tulo 2

O problema de Kepler e a
dinâmica do corpo rı́gido

O objectivo deste capı́tulo é o de expôr duas das mais importantes realizações da mecânica
newtoniana, que são a formulação e a solução do problema gravı́tico de dois corpos e a
formulação e a solução em alguns casos partı́culares das equações do movimento de um
corpo rı́gido com um ponto fixo. Antes porém, e seguindo nesse aspecto a tradição, vamos
muito resumidamente apresentar o formalismo básico da mecânica na versão newtoniana.

2.1 Revisão de mecânica newtoniana: dinâmica de uma par-


tı́cula, dinâmica de um sistema de partı́culas e movi-
mento relativo
Consideremos primeiro uma partı́cula de massa m no espaço fı́sico R3 . Grandezas funda-
mentais para a descrição do seu movimento são o momento linear p~ = m~v , onde ~v = ~r˙
é a velocidade da partı́cula e ~r denota o seu vector de posição em relação à origem O do
referencial inercial escolhido; e o momento angular em relação a um ponto arbitrário P ,
~ = ~r ∧ m~v , onde ~r é o vector de posição da partı́cula em relação a esse ponto pré-
L P P P
estabelecido P (quando P coincidir com a origem O do nosso referencial escrevemos apenas
~ = ~r ∧ m~v ).
L
Seja F~ (~r, ~v , t) a força que actua a partı́cula em questão. Define-se o momento N ~ da
P
~ ~ ~
força F em relação a um ponto arbitrário P como NP = ~rP ∧ F (também neste caso, quando
P coincidir com a origem O do referencial escrevemos apenas N ~ = ~r ∧ F~ ). Da segunda lei de
Newton m~a = F~ (~r, ~v , t), onde ~a = ~v˙ denota a aceleração da partı́cula, deduz-se facilmente
o seguinte:
Teorema 2.1. O momento linear e o momento angular verificam as equações

p~˙ = F~ , ~˙ = N
L ~ − ~v ∧ p~ , (2.1)
P P P

onde ~vP denota a velocidade do ponto P em relação ao qual se calcula o nosso momento
angular. Em particular, se P é fixo ou se ~vP é paralelo a ~v , temos

~˙ = N
L ~ . (2.2)
P P

28
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 29

Demonstração. A primeira das equações (2.1) é simplesmente uma reformulação da lei de


Newton. Quanto à segunda, da definição de L~ temos
P

~˙ = (~r ∧˙ m~vL
L
˙~
) = (~r − P ~ − ~v ∧ m~v .
) ∧ m~v + ~rP ∧ m~a = N
L
P P P P

Do resultado anterior deduzem-se imediatamente algumas leis de conservação: se uma


componente da força F~ segundo uma determinada direcção é nula, então a componente do
momento linear segundo essa direcção conserva-se, isto é, é uma constante do movimento.
Da mesma maneira, se uma componente do momento da força F~ em relação a um ponto
fixo é nula, então a componente do momento angular segundo essa direcção conserva-se.
Define-se também a energia cinética T = 21 mv 2 = 12 m~v · ~v da partı́cula e a potência Π
da força F~ , Π = F~ · ~v . Temos então o seguinte:
Teorema 2.2 (da energia cinética). Para qualquer movimento que verifique a equação
de Newton F~ = m~a tem-se
Ṫ = Π . (2.3)
Demonstração. É imediata, dado que Π = F~ · ~v = m~a · ~v = 1 m(~v ˙· ~v )= Ṫ .
2

Como consequência do resultado anterior, a variação da energia cinética entre dois


instantes t1 e t2 é dada por, integrando (2.3),
Zt2
T (t2 ) − T (t1 ) = F~ (~r(t), ~v (t), t) · ~v (t)dt (2.4)
t1

e ao segundo membro chama-se o trabalho realizado pela força F~ ao longo do movimento


considerado. No caso de forças puramente posicionais F~ = F~ (~r), podemos considerar o
integral do segundo membro de (2.4) como um integral de linha do campo de vectores F~ (~r)
ao longo da trajectória da partı́cula entre os pontos ~r(t1 ) e ~r(t0 ) e escrever
Z
T (t2 ) − T (t1 ) = F~ · d~r . (2.5)
r (t\
~ 1)~
r (t0)

Nestas circunstâncias, tem sentido definir o trabalho elementar δW da força F~ como a


forma diferencial
δW = F~ · d~r = Fx (x, y, z)dx + Fy (x, y, z)dy + Fz (x, y, z)dz .
A notação clássica δW pretende chamar a atenção para o facto de esta forma diferencial
não ser necessariamente uma forma diferencial exacta, isto é, a diferencial de uma função.
No caso em que isso acontece, isto é, quando se tem
F~ · d~r = −dV
para uma certa função V : R3 → R, então o campo de forças F~ diz-se conservativo e,
claramente, vale a relação
F~ = −grad V .
A razão de ser da denominação de ‘conservativo’ é óbvia à luz do seguinte:
30 2.1. Revisão de mecânica newtoniana

Teorema 2.3 (da conservação da energia). Para um movimento que se dá num campo
de forças conservativo, a energia total E = T + V é uma constante do movimento.
Demonstração.
d~v d~r
Ṫ = Π = F~ · = −grad V · = −V̇ .
dt dt

Um exemplo importante de forças conservativas é o de campo de forças centrais e com


simetria esférica. Um campo de forças F~ diz-se central se a força que se exerce em cada
ponto é paralela ao vector de posição desse ponto, i.e., se se tem F~ ∧~r ≡ 0. Em coordenadas
esféricas, a expressão geral de uma força central é pois F~ (~r) = f (r, θ, ϕ)ẽr , onde ẽr é o versor
radial. Diz-se que um campo central tem simetria esférica se, além disso, a intensidade da
força em cada ponto depende apenas da coordenada radial r, i.e., se F~ é da forma
~r
F~ (~r) = f (r)ẽr = f (r) . (2.6)
r
Vejamos que um campo de forças desta forma é sempre conservativo. Em geral, a forma
diferencial do trabalho elementar em coordenadas esféricas será

F~ · d~r = Qr dr + Qθ dθ + Qϕ dϕ .
f (r)
Para forças da forma (2.6), F~ · d~r = r ~ r · d~r. Mas

d(r2 ) = d(~r · ~r) = 2r dr = 2~r · d~r

de modo que fica


F~ · d~r = f (r)d~r .
Portanto a forma diferencial δW = F~ · d~r neste caso é exacta com potencial esféricamente
simétrico V = V (r) e tal que V 0 (r) = −f (r).
Dois exemplos importantes e conhecidos de forças centrais e com simetria esférica são
a força gravı́tica, de potencial V (r) = −k/r, e a força elástica, de potencial V (r) = kr2 /2.

Como se verifica facilmente a partir da relação F~ = −grad V , é condição necessária para


que uma força F~ seja conservativa que se tenha

rot F~ ≡ 0 . (2.7)

De uma maneira mais geral, se estivermos em dimensão arbitrária n, a condição equivalente


a (2.7) escreve-se
∂Fi ∂Fj
− ≡ 0 , 1 ≤ i, j ≤ n .
∂xj ∂xi
Esta condição necessária é também suficiente num domı́nio aberto e simplesmente conexo.

Vejamos agora os análogos destas grandezas e destes resultados para sistemas de n


partı́culas. Neste caso, a equação de Newton para partı́culas em R3 corresponderá a 3n
equações escalares, ou n equações vectoriais da forma

mi~ai = F~i (~r1 , . . . , ~rn , ~v1 , . . . , ~vn , t) , i = 1, . . . , n .


Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 31

As grandezas massa, energia cinética, quantidade de movimento ou momento linear, mo-


mento angular, força, momento da força, trabalho elementar e potência correspondem agora,
dado que estas quantidades são aditivas, às seguintes definições:
Xn
• Massa total do sistema: m= mi .
i=1
n n 
X X mi 
• Energia cinética total do sistema: T = Ti = vi2
2
i=1 i=1
n
X n
X
• Momento linear total do sistema: p~ = p~i = (mi~vi )
i=1 i=1

Momento angular total do sistema em relação n n


• ~ =
L
X
~ i=
L
X
(~rP i ∧ mi~vi )
ao ponto P : P P
i=1 i=1
n
X
• Resultante das forças aplicadas: ~ =
R F~i
i=1

Momento total das forças aplicadas em n n 


• X X 
relação ao ponto P : ~ =
N ~ i=
N ~rP i ∧ F~i
P P
i=1 i=1

n n 
• Trabalho elementar das forças aplicadas: X X 
δW = δWi = F~i · d~ri
i=1 i=1
n
X n 
X 
• Potência das forças aplicadas: Π= Πi = F~i · ~vi
i=1 i=1
Outro conceito importante para sistemas de n partı́culas é o de centro de massa, que se
define como o ponto de vector de posição ~rcm tal que
Pn
mi~ri
i=1
~rcm = . (2.8)
m
Desta definição resulta imediatamente o seguinte resultado:
Proposição 2.4. O momento linear total p~ de um sistema de n partı́culas é igual ao de
uma partı́cula com a massa igual à massa total do sistema e que se move com o centro de
massa do sistema, i.e.,
p~ = m~vcm ,
˙
onde ~vcm = ~rcm .
32 2.1. Revisão de mecânica newtoniana

As grandezas momento angular total em relação a um ponto e energia cinética total


também se podem relacionar com as grandezas equivalentes para uma partı́cula de massa
m movendo-se com o centro de massa do sistema, embora não de uma maneira tão simples
como no caso do momento linear.

Proposição 2.5. O momento angular total de um sistema de n partı́culas em relação a


um ponto P é igual à soma do momento angular total do sistema em relação ao centro de
~ termo de spin) com o momento angular em relação a P de uma partı́cula de
massa (S,
massa m movendo-se com o centro de massa do sistema, i.e.,

L ~0 + L
~ =L ~ cm
P

onde
n
X
~0 =
L ((~ri − ~rcm ) ∧ mi (~vi − ~vcm ))
i=1
é independente de P e
~ cm = (~rcm − P~ ) ∧ m~vcm .
L

Demonstração. Da definição temos


n
X n
X
~
L = (~ri − P~ ) ∧ (mi~vi ) = ((~ri − ~rcm ) + (~rcm )) ∧ (mi~vi ) =
P
i=1 i=1
Xn n
X
= (~ri − ~rcm ) ∧ (mi~vi ) + (~rcm − P~ ) ∧ (mi~vi ) .
i=1 i=1

~ cm . Para verificar que o primeiro termo coincide com


Claramente, o segundo membro é L
~ basta comprovar que
L0

n
X n
X
((~ri − ~rcm ) ∧ mi~vcm ) = (mi (~ri − ~rcm )) ∧ ~vcm =
i=1 i=1
n n
! !
X X
= mi~ri − mi ~rcm ∧ ~vcm = 0 .
i=1 i=1

Para a energia cinética vale um resultado análogo:

Proposição 2.6 (teorema de König). A energia cinética de um sistema de n partı́culas


é igual à soma da energia cinética do movimento em relação ao centro de massa com a
energia cinética de uma partı́cula de massa m movendo-se com o centro de massa, i.e.,
1
T = T 0 + mvcm
2
,
2
onde
n
0 1X
T = mi k~vi − ~vcm k2 .
2
i=1
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 33

Demonstração. Seja ~vi0 = ~vi − ~vcm . Então


n n n
1X 1X X 1
T = mi k~vi0 + ~vcm k2 = mi k~vi k2 + ~vcm · (mi~vi0 ) + mvcm
2
.
2 2 2
i=1 i=1 i=1
| {z }
=0

Proposição 2.7. A quantidade de movimento, o momento angular em relação a um ponto


P e a energia cinética de um sistema de n partı́culas variam no tempo de acordo com as
equações seguintes:
p~˙ = R ~˙ = N
~ , L ~ − ~v ∧ p~ , Ṫ = Π .
P P P

Demonstração. Resulta imediatamente das definições.

Os resultados que vimos até agora são os que são válidos em geral para sistemas de n
partı́culas. Para podermos prosseguir, vamos ter que impôr condições, ainda que bastante
gerais, às forças F~i , i = 1, . . . , n, que actuam cada uma das partı́culas. Suponhamos então
que podemos escrever
F~i = F~ int + F~ ext ,
i i

onde F~iext são os termos correspondentes a forças exteriores, que suporemos que dependem
apenas de ~ri , ~vi e t, e F~iint são termos que correspondem à acção de todas as outras massas
do sistema a que chamamos forças internas ou de interacção. Vamos supor ainda que as
forças internas dependem só das posições relativas das partı́culas, e que são soma sobre
interacção de pares, isto é,
X
F~iint (~r1 , . . . , ~rn ) = F~ijint (~ri , ~rj ) .
1≤j≤n
j6=i

Claramente, o princı́pio de igualdade entre acção e a reacção implica que se tenha

F~ijint = −F~jiint , 1 ≤ i, j ≤ n .

Finalmente, no âmbito do modelo mecanicista clássico supõe-se ainda que as forças internas
têm a direcção do vector que une os pares de partı́culas e dependem apenas da distância
entre elas, i.e., que se tem
~rij
F~ijint = fij (rij ) ,
rij
onde ~rij = ~ri − ~rj e rij = k~rij k.
No quadro destas hipóteses, tem sentido, como veremos, considerar separadamente a
contribuição das forças externas para a resultante e para a resultante do momento em
relação a um ponto,
n
X n
X
~ ext =
R F~iext , ~ ext =
N (~ri − P~ ) ∧ F~iext .
P
i=1 i=1
34 2.1. Revisão de mecânica newtoniana

Proposição 2.8. Dado um sistema de n partı́culas com forças internas de interacção de


~ em relação a um ponto
tipo clássico o momento linear total p~ e o momento angular total LP
P verificam as equações

p~˙ = R
~ ext ~˙ = N
L ~ ext − ~v ∧ p~ .
P P P

~˙ = N
Em particular, se o ponto P é fixo, L ~ ext , e se além disso o sistema estiver isolado,
P P
~ = constante. Análogamente, se o sistema estiver isolado, p~ = constante.
LP

Demonstração. Para demonstrar a primeira relação, basta verificar que a contribuição das
forças internas para a resultante é nula:
X X 
~ int =
R F~ijint = F~ijint + F~jiint = 0 .
i,j i<j
i6=j

Vejamos agora que a contribuição das forças internas para a resultante do momento em
relação a um ponto P é também nula:
Xn   X n   X n 
~
NP int
= ~ ~
~ri − P ∧ Fi =int ~
~ri − P ∧ ~
Fijint
=
i=1 i=1 j=1
j6=i
n 
X  X     
= ~ri − P~ ∧ F~ijint = ~ri − P~ ∧ F~ijint + ~rj − P~ ∧ F~jiint =
i,j=1 1≤i<j≤n
i6=j
X     X
= ~ri − P~ − ~rj − P~ ∧ F~ijint = (~ri − ~rj ) ∧ F~ijint = 0 .
1≤i<j≤n 1≤i<j≤n

Tal como fizemos para a resultante e para a resultante do momento vamos também
separar as contribuições das forças externas e das forças internas para o trabalho elementar,
n
X n
X
δW = δW ext + δW int , δW ext = F~iext · d~ri , δW int = F~iint · d~ri .
i=1 i=1

Proposição 2.9. Para forças internas de tipo clássico, o trabalho elementar das forças
internas δW int é sempre uma diferencial exacta e tem-se
n
int int int 1 X
δW = −dV , V (~r1 , . . . , ~rn ) = Vij (rij )
2 i,j=1
i6=j

onde fij (rij ) = −Vij0 (rij ).

Demonstração. Podemos considerar δW int como a soma sobre as contribuições de cada par
de partı́culas,
X
δW int = δWijint , δWijint = F~ijint · d~ri + F~jiint · d~rj .
1≤i<j≤n
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 35

Como F~ijint = −F~jiint vem

X X ~rij
δW int = F~ijint · d (~ri − ~rj ) = fij (rij ) (rij )drij =
rij
1≤i<j≤n 1≤i<j≤n
X X
= fij (rij )drij = −Vij0 (rij )drij = −dV int .
1≤i<j≤n 1≤i<jn

Em consequência das proposições 2.7 e 2.9 temos o seguinte resultado:

Proposição 2.10. A energia interna T + V int de um sistema de n partı́culas com forças


internas de tipo clássico verifica a equação

d
T + V int = Πint ,

dt

onde Πint denota a potência das forças exteriores F~iext , i = 1, . . . , n.

Um caso particular importante é aquele em que as forças exteriores F~iext são puramente
posicionais e além disso conservativas, i.e., tais que se tenha

δWiext = F~iext · d~ri = −dViext , i = 1, . . . , n ,

ou, equivalentemente, F~iext = −grad Vi (~ri ) , i = 1, . . . , n. Nesse caso, tem sentido in-
n ext
troduzir um potencial exterior, V ext (~r1 , . . . , ~rn ) = Viext (~ri ), e tem-se Πext = − dVdt ,
P
i=1
F~iext = gradi V ext . Neste caso, vale o seguinte:

Teorema 2.11 (da conservação da energia para sistemas de partı́culas). Em sis-


temas de n partı́culas com forças internas de tipo clássico e forças externas puramente
posicionais e conservativas, a energia total E = T + V int + V ext é uma constante do movi-
mento.
ext
Demonstração. É uma consequência imediata de Πext = − dVdt , juntamente com a proposi-
ção 2.10.

Vejamos alguns exemplos de sistemas desta classe.

1. Sistema planetário: sol fixo na origem de coordenadas, de massa M , e n planetas de


massas mi , i = 1, . . . , n. Neste caso,

M mi ~ri mi mj ~rij
F~iext = −G 2 · , F~ijint = −G 2 · ,
ri ri rij rij

n
1 X mi mj X M mi
V (~r1 , . . . , ~rn ) = V int (~r1 , . . . , ~rn ) +V ext (~r1 , . . . , ~rn ) = − G − G .
2 rij ri
1≤i,j≤n i=1
36 2.1. Revisão de mecânica newtoniana

2. “Átomo de hélio” clássico: núcleo fixo com carga +2e, e dois electrões. Neste caso,

2e2 2e2 e2
V (~r1 , ~r2 ) = − − + .
r1 r2 r12

3. Corpo rı́gido (sistema rı́gido de n partı́culas) no campo gravı́tico terrestre (aprox-


imação local). Neste caso, o trabalho elementar δW int das forças internas é sempre
nulo, porque independentemente das forças de ligação entre as partı́culas, as distâncias
entre elas estão fixas (a estrutura é rı́gida), de modo que drij = 0, 1 ≤ i, j ≤ n. Por-
tanto podemos tomar V int ≡ 0. Quanto às forças externas, temos F~iext = −mi gẽ3 , e
portanto
n n n
!
X X X
ext
δW =− mi gẽ3 · d~ri = − mi gdzi = −d mi gzi = −dV ext
i=1 i=1 i=1

com
n
X
ext
V = mi gzi = mgzcm .
i=1

Analisemos agora brevemente a relação entre simetrias do potencial e quantidades con-


servadas. Suponhamos então que temos um sistema conservativo de n partı́culas, com um
potencial total V (~r1 , . . . , ~rn ). O potencial terá simetria de translacção segundo a direcção
do versor ẽ se
d
V (~r1 + ẽ, ~r2 + ẽ, . . . ~rn + ẽ) ≡0. (2.9)

d =0
Mas (2.9) é equivalente a
n
X
grad V · ẽ = (gradi V ) · ẽ ≡ 0
i=1

ou ainda a
~ · ẽ = 0
R
e, pela proposição 2.7, isto implica que se tenha

p~ · ẽ = constante

Análogamente, diz-se que o potencial tem simetria de rotação em torno do eixo de versor
ẽ se V fôr invariante para a transformação

~ri 7−→ ~ri + ẽ ∧ ~ri i = 1, . . . , n

ou seja se
d
V (~r1 + ẽ ∧ ~r1 , . . . , ~rn +  ∧ ~rn ) ≡0,

d =0
ou ainda se
n
X
(gradi V ) · (ẽ ∧ ~ri ) ≡ 0 . (2.10)
i=1
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 37

Pela invariância do produto misto para permutações cı́clicas de factores, (2.10) é equivalente
a
n
X
ẽ · (~ri ∧ (gradi V )) ≡ 0 ,
i=1
ou seja, a
~ ≡0,
ẽ · N
onde o momento das forças é calculado em relação à origem do referencial. Pela proposição
2.7, (2.10) implica então que se tenha
~ = constante ,
ẽ · L

isto é, a componente do momento angular segundo o eixo de simetria conserva-se.


Existe portanto uma relação directa entre simetrias do potencial e leis de conservação
de quantidades dinâmicas, de acordo com a correspondência
translacção no espaço → momento linear
,
rotação no espaço → momento angular
à qual podemos juntar ainda
translacção no tempo → energia ,
dado que um potencial que apresenta simetria de translacção no tempo é um potencial
que não depende explı́citamente do tempo, e para o qual vale portanto o teorema 2.11 da
conservação da energia.

Por fim, e para acabar esta secção, vamos rever o estudo do movimento relativo, ou
melhor, do movimento estudado desde dois referenciais diferentes, um referencial inercial
S ∗ definido pela sua origem O∗ e versores ortonormados ẽ∗1 , ẽ∗2 , ẽ∗3 , e um referencial móvel
S ≡ (O, ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 ). O movimento de S em relação a S ∗ fica definido pelo conhecimento das
−−−−−−−→
quatro funções vectoriais (doze escalares) do tempo, ~rO (t) = O(t) − O∗ , ẽ1 (t), ẽ2 (t), ẽ3 (t),
ou, em termos das componentes,

xOi (t) = ~rO (t) · ẽ∗i , i = 1, 2, 3 , Rij (t) = ẽj (t) · ẽ∗i , i, j = 1, 2, 3 .

Note-se que a matriz R, de elementos Rij , é uma matriz de rotação em R3 e portanto um


elemento de grupo SO(3) da matrizes ortogonais (a transposta coincide com a inversa) de
determinante +1.
Um mesmo movimento ~r(t) em R3 terá associadas coordenadas x∗i , i = 1, 2, 3 no refe-
rencial S ∗ , e coordenadas xri , i = 1, 2, 3 no referencial em movimento S, ou seja,
3
X 3
X
~r(t) = x∗i ẽ∗i = xri ẽi + ~rO (t) = ~rr (t) + ~rO (t) . (2.11)
i=1 i=1

Portanto, um mesmo movimento tem associadas, para um observador no referencial S ∗ , a


velocidade e a aceleração absolutas
3
X 3
X
~v (t) = ẋ∗i ẽ∗i , ~a(t) = ẍ∗i ẽ∗i , (2.12)
i=1 i=1
38 2.1. Revisão de mecânica newtoniana

e para um observador no referencial S, a velocidade e aceleração relativas


3
X 3
X
r
~v (t) = ẋri ẽi , r
~a (t) = ẍri ẽi . (2.13)
i=1 i=1
r r 2 r
Note-se que ~v r (t) 6= d~
r
ar (t) 6= d~
dt , ~
v
ar (t) 6= ddt~r2 . Os vectores ~v r (t) e ~ar (t) representam
dt , ~
apenas a velocidade e a aceleração das partı́culas em movimento medidas por um observador
em movimento, solidário com o referencial S.
O problema do movimento relativo é o de achar a relação entre os vectores ~v (t) e ~a(t)
de (2.12) e os vectores ~v r (t) e ~ar (t) de (2.13).
Antes de abordar este problema, vamos considerar uma classe particular de movimento
de sistemas de pontos. Dizemos que um conjunto de pontos segue um movimento rı́gido
se a distância entre dois pontos arbitrários se mantém constante ao longo do movimento.
Claramente, qualquer conjunto de pontos que tenha coordenadas constantes no referencial
em movimento S é um conjunto de pontos que segue um movimento rı́gido. Reciprocamente,
a qualquer conjunto de pontos em movimento rı́gido posso associar um referencial em
movimento S no qual esses pontos têm coordenadas constantes. Portanto, o estudo do
movimento rı́gido é um caso particular do movimento relativo com ~v r (t) = ~ar (t) ≡ 0, ou,
por outras palavras, é o estudo do movimento do próprio referencial móvel S do ponto de
vista de S ∗ . No que se segue chamaremos vector solidário a um vectore cujas componentes
em relação ao referencial móvel S se mantém constantes.
Lema 2.12 (fórmula de Poisson). Consideremos um movimento rı́gido. Para cada
instante t, existe um único vector ω ~ (t) chamado velocidade angular instantânea, tal que
para qualquer vector solidário ~u se tem
~u˙ = ω ∧ ~u . (2.14)
Em particular, para os versores ẽi do referencial móvel S valem as fórmulas
ẽ˙ i = ω ∧ ẽi , i = 1, 2, 3 , (2.15)
e o vector ω
~ é dado por
3
1X
ω
~ = ẽi ∧ ẽ˙ i . (2.16)
2
i=1
Demonstração. Claramente, (2.14) e (2.15) são equivalentes: (2.15) é um caso particular
de (2.14), e (2.14) deduz-se de (2.15) decompondo ~u na base ẽ1 , ẽ2 , e3 . Vejamos que se ω ~
verifica (2.15) então é da forma (2.16): multiplicando (∧) à esquerda (2.15) e somando em
i vem1
X 3 3
X 3
X
ẽi ∧ ẽ˙ i = ẽi ∧ (~
ω ∧ ẽi ) = ω (ẽi · ẽi − ẽi (~
(~ ω · ẽi )) = 3~
ω−ω
~ = 2~
ω.
i=1 i=1 i=1
Vejamos agora que ω ~ dado por (2.16) é efectivamente solução de (2.15). Introduzindo a
expressão de ω
~ no segundo membro de (2.15) vem
3 3
1X ˙ 1 ˙ ˙
 1X
δij ẽ˙ j + (ẽ˙ i · ẽj )ẽj = ẽ˙ i .

~ ∧ ẽi =
ω (~ej ∧ ẽj ) ∧ ẽi = ẽj (ẽj · ẽi ) − ẽj (ẽj · ẽi ) =
2 2 | {z } | {z } 2
j=1 j=1
δij −ẽ˙ i ·ẽj

1
(~a ∧ ~b) ∧ ~c = (~a · ~c) · ~b − (~b · ~c)~a.
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 39

Este resultado permitir-nos-á resolver o problema do movimento relativo.

Proposição 2.13 (fórmula de Galileu). A relação entre a velocidade absoluta ~v e a


velocidade relativa ~v r é dada por

~v = ~v r + ω
~ ∧ ~rr + ~vO ,
d~
rO
onde ~vO = dt eω
~ é a velocidade angular instantânea de S.

Demonstração. Da equação (2.11) temos

3 ˙
X  3
X 3
X
~v = ~r˙ = r ˙
xi ˜ei + ~rO = r
ẋi ẽi + xri ẽ˙ i + ~vO =
i=1 i=1 i=1
3
X
= ~v r + xri (~
ω ∧ ẽi ) + ~vO = ~v r + ω
~ ∧ ~rr + ~vO .
i=1

Da mesma maneira, podemos obter a relação entre as acelerações absoluta e relativa a


partir da fórmula de Galileu e da fórmula de Poisson.

Proposição 2.14 (teorema de Coriolis). A relação entre aceleração absoluta ~a e relativa


~ar é dada por
~a = ~ar + 2~ ~˙ ∧ ~rr + ω
ω ∧ ~v r + ω ω ∧ ~rr ) + ~aO
~ ∧ (~ (2.17)
d~vO d2 ~
rO
onde ~aO = dt = dt2

~ é a velocidade angular instantânea de S.

Demonstração. Da proposição 2.13 temos

3 ˙
X  3
X 
ω ∧˙ ~rr v) + ~aO =
~a = ~v˙ = ~v˙ r + (~ r ˙ r
~ ∧ ~r + ω
vi ˜ei + ω ~∧ r
ẋi ẽi + ~aO =
i=1 i=1
3
X  3
X 
= ~ar + r ˙
ω ∧ ẽi ) + ω
vi (~ r
~ ∧ ~r + ω r
~ ∧ ~v + r
ω ∧ ẽi ) + ~aO =
xi (~
i=1 i=1
r
~˙ ∧ ~r + ω
ω ∧ ~v + ω
= ~a + 2~ r
~ ∧ (~ r
ω ∧ ~r ) + ~aO . r

De acordo com o resultado anterior, a lei de Newton F~ = m~a continua a ser formalmente
válida num referencial não inercial desde que se considerem como forças aplicadas as forças
de inércia proporcionais à massa correspondentes aos quatro termos no segundo membro
da fórmula da proposição 2.14. O facto de as forças gravı́ticas serem também proporcionais
à massa, ou a equivalência entre massa inercial e massa gravı́tica, estão na base das con-
siderações que conduziram à formulação da teoria da relatividade geral, no âmbito da qual
todos os sistema de referência, inerciais ou não inerciais, são equivalentes.
Uma aplicação interessante do teorema de Coriolis é a verificação experimental da
rotação da Terra em torno do seu eixo, feita pela primeira vez por Foucault em 1851, a
40 2.2. Movimento sob uma força central. Problemas de Kepler e de dois corpos

partir da observação da rotação aparente do plano de oscilação de um pêndulo. As equações


do movimento de um pêndulo esférico de comprimento l são, num referencial inercial e na
aproximação das pequenas oscilações,
g
~r¨ + ~r = 0 , (2.18)
l
onde ~r denota a projecção do vector de posição do pêndulo no plano horizontal. Se quisermos
ter em conta aogra que a Terra não é inercial dado que, em particular, gira em torno do
seu eixo com velocidade angular constante ω ~ , temos que considerar também como forças
aplicadas a força de Coriolis e a força centrı́fuga, forças de inércia correspondentes ao
segundo e quarto termo, respectivamente, do segundo membro da equação (2.17). Ora a
força centrı́fuga já intervém na definição da direcção e valor de ~g no local onde se realiza
a experiência, e portanto já foi tida em conta ao escrever a equação (2.18). Apenas falta
considerar o termo de Coriolis, ou melhor, na nossa aproximação, a projecção −2(~ ω ∧ ~r˙ )h
do termo de Coriolis segudo o plano horizontal do lugar. Portanto, tendo em conta que ~r˙
também é horizontal, as equações do movimento ficam
g
~r¨ = − ~r − 2(~ ωv ∧ ~r˙ ) , (2.19)
l
onde ω~ v denota a projecção de ω
~ segundo a vertical do lugar. É fácil resolver analı́ticamente
as equações (2.19), visto tratarem-se de equações lineares. No entanto, a maneira mais fácil
de as resolver é passar a um outro referencial não inercial, que gira com velocidade angular
constante −~ ωr em torno da vertical do lugar. Aplicando novamente a proposição 2.14,
vemos que as equações do movimento nesse referencial serão
g 
~r¨ = − − ωv2 ~r = −ω 2~r ,
l
ou seja, neste referencial as soluções são as do pêndulo inicial com uma pequena correcção
na frequência de oscilação devida ao termo centrı́fugo. Em conclusão, o plano de oscilação
do pêndulo no referencial da Terra gira com velocidade angular ωv em torno do eixo da
vertical do lugar.

2.2 Movimento sob a acção de uma força central. Problema


de Kepler e problema de dois corpos
Nesta secção vamos considerar o movimento de uma partı́cula sob a acção de um campo
de forças que suporemos, primeiro, ser apenas central, juntando depois as hipóteses de ter
simetria esférica e, finalmente, de ser de tipo gravitacional. Como aplicação, consideraremos
o problema de dois corpos em interacção gravı́tica.
Proposição 2.15. Em qualquer movimento sob a acção de uma força central, o momento
~ conserva-se. Além disso, de L
angular (em relação à origem do referencial) L ~ 6= 0, o
movimento tem lugar sobre o plano Π perpendicular a L ~ que passa pela origem; e se L
~ =0
o movimento dá-se sobre uma linha recta que passa pela origem.
Demonstração. Por hipótese, a força é central, de modo que N ~ = ~r ∧ F~ = 0 e portanto L ~
~ ~
é constante. Se L 6= 0, então por definição ~r está contido em Π; se L = 0, então ~r e ~v são
sempre colineares e portanto o movimento é rectilı́neo.
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 41

O caso de momento angular nulo reduz-se portanto a um problema unidimensional que


~ 6= 0. Para um movimento deste tipo,
é facilmente integrável. Consideremos então o caso L
temos sempre ~r 6= 0, de modo que a passagem a coordenadas polares no plano Π está bem
definida em qualquer instante do movimento. Façamos então

x = r cos θ , y = r sin θ

e consideremos em cada ponto os versores ẽr , ẽθ ,

ẽr = cos θẽ1 + sin θẽ2 , ẽθ = − sin θẽ1 + cos θẽ2 , (2.20)

tangentes em cada ponto às linhas coordenadas r = constante, θ = constante, e que formam
~ um triedro ẽr , ẽθ , ẽ3 directo. Da equação (2.20) é imediato que
com o versor ẽ3 de L

ẽ˙ r = θ̇ẽθ , ẽ˙ θ = −θ̇ẽr . (2.21)

Vejamos como se escrevem as grandezas caracterı́sticas do movimento nestas coorde-


nadas e na base associada ẽr , ẽθ , ẽ3 :

Proposição 2.16. Para um movimento plano arbitrário temos

~v = ṙẽr + rθ̇ẽθ , ~a = (r̈ − rθ̇2 )ẽr + (rθ̈ + 2ṙθ̇)ẽθ ,


1
T = m(ṙ2 + r2 θ̇2 ) , Lz = mr2 θ̇ .
2
Demonstração. De ~r = rẽr temos, usando (2.21) e a definição de velocidade, a primeira
relação. Para obter a segunda, partamos da primeira e derivemos em ordem ao tempo,
usando outra vez as equações (2.21):

˙ ˙
~a = ~r˙ = (ṙẽ˙ rr) + (rθ̇ẽθ r) = r̈ẽr + ṙθ̇ẽθ + ṙθ̇ẽθ + r(θ̇ẽθ )= r̈ẽr + 2ṙθ̇ẽθ + rθ̈ẽθ − rθ̇2 ẽr .

A equação da energia cinética deduz-se da definição e da equação da velocidade. Quanto


ao momento angular, temos
~ = m~r ∧ ~v = m rẽr ∧ (ṙẽr + rθ̇ẽθ ) = mr2 θ̇ẽ3 .
L

Note-se que para um movimento central a componente aθ = rθ̈ + 2ṙθ̇ da aceleração


segundo ẽθ se anula, como seria de esperar, dado que
1d 2 1 dLz
aθ = (r θ̇) = =0.
r dt rm dt
Note-se também que, no caso de um movimento central, a última equação da proposição
2.16 exprime a segunda lei de Kepler ou lei das áreas. De facto, para um movimento central,
temos
mr2 θ̇ = Lz = constante .
Por outro lado, e como é óbvio a partir da figura, a área varrida por unidade de tempo
42 2.2. Movimento sob uma força central. Problemas de Kepler e de dois corpos

 
Z Zθ(t) Zr(θ)

A(t) = rdrdθ = rdr dθ =


 

A θO 0

Zθ(t)
1
= r2 (θ)dθ .
2
θO

Figura 2.1: Área varrida pelo vector ~r no tempo t, A(t).

pelo vector de posição da partı́cula é dada por

dA 1 Lz
= r2 θ̇ = = c (velocidade aureolar)
dt 2 2m
de modo que para qualquer movimento central o vector de posição da partı́cula em relação
ao centro de forças “varre áreas iguais em tempos iguais”.

Suponhamos a partir de agora que o campo, para além de ser central, tem simetria
esférica, i.e., F~ = f (r)ẽr .

Proposição 2.17. Num movimento central com simetria esférica a variável radial r(t)
verifica a equação de um problema unidimensional fictı́cio

dVe
mr̈ = − ,
dr
onde o potencial Ve (r), chamado potencial eficaz, é dado por

l2
Ve (r) = V (r) +
2mr2
e o parâmetro l é o valor da constante do movimento Lz . A variável angular θ(t) verifica
a equação
l
θ̇ = .
mr2

Demonstração. Da equação mr2 θ̇ = Lz = constante obtém-se imediatamente a equação do


movimento para a variável θ. Quanto à variável radia, de ~a = (r̈ − rθ̇2 )ẽr e F~ = f (r)ẽr vem
2
l2

2 l
m(r̈ − rθ̇ ) = f (r) ⇔ mr̈ = f (r) + mr = f (r) + =
mr2 mr3
 2 
d l d
= f (r) − = − Ve .
dr 2mr2 dr
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 43

Figura 2.2: Esboço da forma do potencial efectivo Ve (r) como função da coordenada radial.

O resultado anterior permite-nos reduzir a integração do problema ao cálculo de primi-


tivas (i.e., a ‘quadraturas’). Da facto, para além da integral primeira do momento angular,
vemos que

ṙ2 ṙ2 l2 1
E=m + Ve (r) = m + 2
+ V (r) = m(ṙ2 + r2 θ̇2 ) + V (r)
2 2 2mr 2
é também uma integral primeira, que é imediato identificar com a energia do sistema.
Portanto, r
2
ṙ = ± (E − Ve (r)) (2.22)
m
e, tal como no caso unidimensional, ficamos a conhecer a função r(t) se calcularmos a pri-
mitiva do segundo membro de (2.22). Uma vez conhecido r(t), obter θ(t) reduz-se também
a uma quadratura dado que θ̇ = mrl 2 .

Antes de passarmos à integração analı́tica no caso do potencial gravitacional, vamos


usar o resultado anterior para discutir aspectos qualitativos das órbitas no caso geral de
um potencial V (r) tal que limr→0 Ve (r) = +∞, l 6= 0, e limr→∞ Ve (r) = limr→∞ V (r) =
constante. Para simplificar a notação tomemos como 0 o valor assimptótico do potencial.
2
A equação E = m ṙ2 + Ve (r) = constante permite fazer uma análise nos mesmos moldes da
que foi feita para sistemas conservativos em dimensão 1. O valor crı́tico da energia é zero.
Para valores negativos da energia, as órbitas são limitadas e a coordenada r varia entre
um valor mı́nimo rmin , chamado pericentro, e um valor máximo, rmax , chamado apocentro.
Portanto, no plano rθ, as órbitas de energia negativa estão contidas num anel de raio interior
igual ao pericentro e raio exterior igual ao apocentro. Para valores positivos da energia,
limitadas e a velocidade da partı́cula tende, quando t → ±∞, para o
as órbitas não são p
valor assimptótico 2E/m caracterı́stico da partı́cula livre. Estas órbitas, para as quais
r → +∞ quando t → ±∞ e que atingem no pericentro o mı́nimo rmin da distância ao
centro de forças chamam-se órbitas de escape ou de scattering.
Uma pergunta que é natural pôr em relação às órbitas de scattering é a seguinte: quanto
valoe o ângulo de scattering, i.e., a diferença entre o ângulo que define a direcção de saı́da
e o ângulo que defina a direcção de entrada?
De r
l 2
θ̇ = , ṙ = (E − Ve (r))
mr2 m
44 2.2. Movimento sob uma força central. Problemas de Kepler e de dois corpos

Figura 2.3: Traçados de duas órbitas de energia negativa — estados ligados (ver texto).

vem
dθ l 1
=√ p (2.23)
dr 2
2m r E − Ve (r)
de modo que
Z∞
l dr
∆θscat = 2√ p .
2m r2 E − Ve (r)
rmin

l 2
Dado que Ve (r) é sempre da forma V (r) + 2mr 2 , o ângulo de scattering dá-nos informação
sobre a forma de um potencial desconhecido V (r).
Voltando às órbitas de energia negativa, chamadas estados ligados, podemos também
usar a equação (2.23) para obter a equação que nos dá a variação da coordenada θ entre
duas passagens consecutivas pelo pericentro e pelo apocentro:
rZmax
2l dr
∆θ = √ p .
2m r2 E − Ve (r)
rmin

Se Tr fôr o perı́odo do movimento radial, o movimento angular corresponde a um perı́odo


2πTr
Tθ = 2π ω = ∆θ . Portanto, a menos que ∆θ seja da forma p/q · 2π, o que em geral
não acontece, os perı́odos radial e angular não são comensuráveis e as órbitas no anel
rmin ≤ r ≤ rmax não são fechadas. De facto, é possı́vel mostrar que os únicos casos em que
as órbitas são fechadas são o caso kepleriano, V (r) = −k/r, e harmónico V (r) = kr2 /2.
Antes ainda de passarmos à integração analı́tica do problema no caso kepleriano vejamos
um lema prévio, que é válido para qualquer movimento central.

Lema 2.18 (fórmula de Binet). Consideremos um movimento central, que verifica a lei
dA
das áreas dE = 12 r2 θ̇ = 2m
l
= c, e seja r(θ) a equação da órbita. Então, a aceleração radial
ar é dada por
4c2 d2 1
   
1
ar = − 2 + .
r dθ2 r r
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 45

Demonstração. Consideremos a função composta r(t) = r (θ(t)). Então,


dr 2c dr d 1
ṙ = θ̇ = 2 = −2c
dθ r dθ dθ r
e, derivando mais uma vez,

d2 4c2 d2 1
   
dṙ 1
r̈ = θ̇ = −2cθ̇ 2 =− 2 .
dθ dθ r r dθ2 r
Por outro lado, da proposição 2.17 temos

4c2 d2 1 4c2 4c2 d2 1 1


 
2
ar = r̈ − rθ̇ = − 2 − r = − + .
r dθ2 r r4 r2 dθ2 r r

Vamos usar este lema para demonstrar o seguinte resultado, que nos dá a equação das
órbitas para o potencial kepleriano e contém como caso particular a primeira lei de Kepler:

Proposição 2.19. Para o movimento central com energia potencial de tipo kepleriano
V (r) = −k/r, k > 0, as órbitas são cónicas com um foco na origem, que é o centro de
forças, de equação
p
r(θ) = ,
1 + e cos(θ − θ0 )
com parâmetro p e excentricidade e dados por
r
l2 2El2
p= , e= 1+ ,
mk mk 2
onde l é o momento angular e E a energia da órbita. Portanto, as órbitas são elipses
(respectivamente parábolas, e hipérboles) quando E < 0 (respectivamente E = 0, e E > 0).

Demonstração. Neste caso, a lei de Newton escreve-se mar = − rk2 onde ar é a componente
radial da aceleração (que coincide neste caso com a aceleração dado que aθ = 0). Usando
a fórmula de Binet, temos

d2 1 4mc2 4m l2 l2
 
1 1
+ = , p = = · = ,
dθ2 r r p k k 4m2 km

ou, introduzindo a variável u = 1/r,


1
u00 + u = ,
p

onde 0 denota dθ d
, que é a equação do oscilador harmónico com forçamento constante. A
solução geral é então
1 1 + Ap cos(θ − θ0 )
u(θ) = + A cos(θ − θ0 ) = .
p p

Voltando à variável r = u1 , obtemos a equação da cónica de parâmetro p e excentricidade


e = Ap. Para concluir a demonstração basta comprovar a expressão de e em termos das
46 2.2. Movimento sob uma força central. Problemas de Kepler e de dois corpos

constantes l e E. Para isso, basta ver que o pericentro rmin , correspondente simultaneamente
p
ao valor 1+e é a solução da equação E = Ve (r). Esta última equação escreve-se

l2 k
2
− −E =0
2mr r
e, vista como equação em 1/r, tem uma única solução positiva
q
2
1 1 + 1 + 2El
mk2
= l2
.
r
km

1 1+e l2
O resultado segue comparando esta expressão com r = p , tendo em conta que p = mk .

O resultado anterior reduz-se, no caso de energias negativas, isto é, de excentricidades


e ∈ [0, 1] à primeira lei de Kepler, de acordo com a qual as órbitas são elipses com um dos
focos no centro de forças. O problema da integração analı́tica fica resolvido, a menos da
questão da dependência explı́cita da posição no tempo. A solução analı́tica completa desta
segunda questão é mais complicada, e as funções de Bessel foram introduzidas precisamente
para a resolver. No entanto, não é difı́cil mostrar, introduzindo uma variável auxiliar
chamada anomalia excêntrica, que o problema de determinar a posição sobre a órbita em
função do tempo decorrido desde a passagem pelo pericentro se reduz à solução de uma
equação transcendente, que se pode resolver numericamente.
Vejamos agora como obter a terceira lei de Kepler a partir dos resultados de que já
dispomos, ou seja mostrar que, para as órbitas de energia negativa, os quadrados dos
perı́odos são proporcionais aos cubos dos semieixos maiores. Para começar recordemos que,
para o caso das elipses, o parâmetro da cónica p e a excentricidade e estão relacionados com
b2
p
os semieixos maior a e menor b da elipse através das fórmulas p = a e e = 1 − b /a2 . 2
l
Como a velocidade aureolar c = 2m é constante, o perı́odo T de uma órbita é dado por
πab πab ab
T = = · 2m = 2πm √ .
c l mkp
Portanto,
4π 2 m a2 b2 4π 2 m 3
T2 = = a .
k p k
Antes de terminar esta secção, vamos ainda ver duas questões relacionadas com este
problema. Primeiro, vamos ver que a lei da gravitação de Newton se deduz do conjunto
das leis de Kepler. Finalmente, veremos que o problema que acabámos de resolver é equiv-
alente ao problema de dois corpos em interacção gravı́tica (ou electrostática, desprezando
a radiação e supondo que a força é negativa).
Comecemos por considerar as consequências das leis de Kepler no caso particular em
que a órbita é um cı́rculo. Nesse caso, a segunda lei diz-nos que a velocidade angular θ̇ = ω
é constante, e, portanto, a aceleração é radial e centrı́peta e dada em módulo por
 2
2 2π 4π 2 r3 1
ω r= ·r = 2 ∝ 2 .
T r T2 r

É possı́vel generalizar este raciocı́nio para um caso de órbitas limitadas arbitrárias.


Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 47

Proposição 2.20. Em virtude das leis de Kepler, a aceleração de qualquer planeta está
sempre dirigida para o Sol, e é inversamente proporcional ao quadrado da distância do
planeta ao Sol. Mais precisamente,
Γ
~a = ar ẽr = − ẽr ,
r2
onde Γ > 0 não depende do planeta e é dada por

a3
Γ = 4π 2 ,
T2
onde a é o semieixo maior da órbita, e T é o perı́odo.

Demonstração. Como já vimos, a primeira e a segunda leis de Kepler implicam que o
momento angular é constante em direcção e módulo, e portanto o campo de forças é central.
Para determinar a intensidade da força que se exerce em cada ponto, vamos recorrer outra
vez à fórmula de Binet
4c2 d2 1
   
1
ar = − 2 +
r dθ2 r r
usando também o facto de, de acordo com a primeira lei de Kepler, a equação da órbita ser
p
da forma r(θ) = 1+e cos(θ−θ0)
, ou seja,

d2
 
1 1 + e cos(θ − θ0 ) 1 e 1 1
(θ) = =⇒ = − cos(θ − θ0 ) = − (θ) + .
r p dθ2 r p r p

Substituindo na fórmula de Binet, vem

4c2 1
ar = − ,
p r2
ou seja, o módulo da aceleração de cada planeta é inversamente proporcional ao quadrado
da distância ao Sol. Falta apenas verificar que a constante de proporcionalidade, 4c2 /p, é
a mesma para todos os planetas. Pela segunda lei, a velocidade aureolar c = πab T de modo
que
4c2 4π 2 a2 b2 2a
3
= = 4π =Γ,
p T 2p T2
onda a última igualdade decorre da terceira lei de Kepler.

A lei da gravitação tal como a enunciamos na proposição 2.20 resulta pois das leis de
Kepler, desde que se assuma que a relação F~ = m~a vale também para o movimento dos
planetas. O último passo é o de dizer que Γ é proporcional à massa do Sol. Por um
lado, é natural atribuir ao Sol a ‘causa’ do campo de forças em que se movem os planetas.
Nessa óptica, o movimento dos corpos à superfı́cie terrestre é uma manifestação do campo
gravı́tico terrestre, como o é, também, o movimento da Lua em torno da Terra. Em con-
sequência do campo gravı́tico terrestre, o Sol será actuado por uma força f~S = −γ M
r2
, onde
γ é caracterı́stico desse campo como Γ o é do campo do Sol, e o princı́pio da igualdade
entre acção e reacção implica γ(m)M = Γ(M )m, e portanto γ(m)M = Γ(M )m = GmM .
48 2.2. Movimento sob uma força central. Problemas de Kepler e de dois corpos

Ao aplicar as leis da dinâmica ao sistema planetário consideramos um referencial cen-


trado no Sol como um referencial inercial. Mesmo pensando em termos de um universo
constituı́do apenas pelo sistema solar, isto é, desprezando a aceleração do Sol devida ao seu
movimento na galáxia, isto envolve uma aproximação, dado que o Sol está sujeito às forças
gravitacionais dos planetas, que são iguais em módulo às forças que actuam os planetas e
cujos efeitos pretendemos estudar. No entanto, como o Sol é muito mais massivo que os
planetas, por exmeplo M m
∼ 10−6 para o par Terra–Sol, a aceleração do Sol é várias ordens
de grandeza menor que a dos planetas, e aquela aproximação é natural. No que se segue
veremos, para acabar esta secção, que, independentemente desta aproximação, o problema
de dois corpos sujeitos a interacções de tipo clássico se pode sempre reduzir ao problema
de um corpo e um centro de forças fixo, que é o que acabámos de estudar.
Seja então um sistema de duas partı́culas, de massas m1 e m2 , sujeitas apenas às forças
~ ~
de interacção mútua, que são de tipo clássico. Então, ~a1 = Fm121 , ~a2 = − Fm122 e a aceleração
relativa de 1 em relação a 2 é
 
1 1
~
~a1 − ~a2 = F12 + = µ−1 F~ ,
m1 m2

onde F~ = F~12 e µ = mm11+m


m2
2
se chama massa reduzida do sistema. Portanto, o problema da
determinação do movimento relativo reduz-se ao problema de força central com simetria
esférica
µ~r¨ = F~ (~r) = f (r)ẽr
onde a força é a força de interacção e a massa a massa reduzida. Por outro lado, como
a resultante das forças que actuam as duas partı́culas deste sistema é nula, a aceleração
do centro de massa do sistema é nula, e o momento linear total constante. Portanto, o
movimento do centro de massa é trivial: está em repouso ou em movimento uniforme e
rectilı́neo, conforme as condições iniciais. Conhecido o movimento do centro de massa e o
movimento relativo ~r(t), o movimento das duas partı́culas ~r1 (t), ~r2 (t) fica determinado. De
facto,
m2
m1~r1 = m~rcm − m2~r2 = m~rcm + m2 (~r1 − ~r2 ) − m2~r1 =⇒ ~r1 (t) = ~rcm (t) + ~r(t)
m
e, análogamente, ~r2 (t) = ~rcm (t) − mm1 ~r(t).
Vejamos finalmente que a equação da decomposição da energia cinética em termo do
centro de massa mais termo do movimento relativo ao centro de massa se escreve neste caso
1 1
2
T = mvcm + µ(~r˙ )2 . (2.24)
2 2
m2 ˙ m1 ˙
De facto, das equações ~v1 (t) = ~vcm (t) + m~r(t) e ~v2 (t) = ~vcm (t) − m~r(t), vem

m22 ˙ 2 m21 ˙ 2 m1 m2 ˙ 2  m2 m1 
m1 (~v10 )2 + m2 (~v20 )2 = m1 ~
r + m2 ~r = ~r + = µ~r˙ 2 ,
m2 m2 m m m
de modo que o segundo termo do segundo membro de (2.24) coincide de facto com a energia
cinética do movimento em relação ao centro de massa.
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 49

Voltando ao problema do sistema solar, de que maneira é que se devem modificar as leis
de Kepler se quisermos remover a suposição, desnecessária, de o Sol se encontrar fixo? As
equações do movimento sem esta aproximação são, como vimos,
m1 m2 (m1 + m2 )
µ~r¨ = F~12 = −G 3 ~r ⇔ ~r¨ = −G ~r ,
r r3
em vez de ~r¨ = −G MS3 ~r . Portanto, devemos substituir a massa do Sol pela massa total
r
MSol + mplaneta . Esta alteração, ainda que não afecte o enunciado da primeira lei e da
segunda lei, introduz uma correcção na terceira lei: a ‘constante’ de proporcionalidade Γ
4π 2 4π 2 1
entre T 2 e a3 não é dada por GM mas sim por GM ( 1+m/M ), de modo que depende de facto,
ainda que ligeiramente, do planeta considerado.

2.3 Dinâmica do corpo rı́gido


Nesta secção vamos falar dos aspectos mais elementares de um dos problemas clássicos da
mecânica, o do movimento de um corpo rı́gido com um ponto fixo. Primeiro, vamos ver a
forma que assumem para este sistema as grandezas dinâmicas relevantes, e o operador de
inércia aparecerá naturalmente neste contexto. Depois falaremos da redução de um sistema
de forças aplicadas a uma força e um binário. Finalmente, deduziremos as equações de
Euler-Poinsot para o movimento por inércia de um corpo rı́gido, e discutiremos algumas
soluções. O caso mais complicado do movimento sob a acção de forças exteriores será
detalhado mais tarde como aplicação do formalismo laplaciano, e por agora limitar-nos-
-emos a introduzir os ângulos de Euler.
Para fixar a notação, consideremos sempre corpos rı́gidos formados por um número
finito de pontos, i.e., distribuições discretas de massa. O caso das distribuições contı́nuas
é análogo, a menos das diferenças no cálculo do operador de inércia, e será trabalhado nas
aulas teórico-práticas.

Dado um sistema de n pontos materiais de massas m1 , . . . , mn , chama-se momento de


inércia do sistema em relação a um eixo e e representa-se por Ie a quantidade
X n
Ie = mi d2i ,
i=1
onde di é a distância da i-ésima massa ao eixo e.
Proposição 2.21. Para um corpo rı́gido com um ponto fixo O tem-se que a energia cinética
é dada por
1
~2 ,
T = Iω~ ω
2
onde ω~ é a velocidade angular instantânea do movimento e Iω~ é o momento de inércia do
sistema em relação a um eixo paralelo a ω~ e que passa por O.
Demonstração. O vector ~ri , posição da i-ésima partı́cula em relação ao ponto O, é um vector
solidário do movimento rı́gido considerado. Portanto, pela fórmula de Poisson, ~vi = ω ~ ∧ ~ri ,
n n n
1X 1X 1 2X
T = mi~vi2 = ~ 2~ri2 sin2 θ = ω
mi ω ~ mi d2i .
2 2 2
i=1 i=1 i=1
50 2.3. Dinâmica do corpo rı́gido

~ de um corpo rı́gido em relação a um ponto fixo


Proposição 2.22. O momento angular L
O é dado por
~ = I~
L ω,
onde ω
~ é a velocidade angular instantânea e I, chamado operador de inércia em relação ao
ponto O, é o operador linear definido por
n
~u ∈ R3 ,
X
I~u = mi~ri ∧ (~u ∧ ~ri ) ,
i=1

e ~ri é o vector de posição da i-ésima partı́cula em relação ao ponto O.

Demonstração.
n
X n
X
~ =
L mi~ri ∧ ~vi = mi~ri ∧ (~
ω ∧ ~ri ) = I~
ω.
i=1 i=1

Note-se que as definições de momento de inércia em relação a um eixo e de operador


de inércia são puramente geométricas: dependem apenas da distribuição das n massas em
relação ao eixo ou ao ponto O escolhido. A definição de operador de inércia e o resultado
anterior dão-nos uma outra maneira de expressar a energia cinética de um corpo rı́gido com
um ponto fixo O.

Proposição 2.23. A energia cinética T de um corpo rı́gido com um ponto fixo O verifica

1~ 1
T = L ·ω ω·ω
~ = I~ ~ ,
2 2

onde ω ~ o momento angular em relação ao ponto O e


~ é a velocidade angular instantânea, L
I o operador de inércia em relação ao ponto O.

Demonstração. Da definição de energia cinética temos


n n
1X 1X
T = mi~vi · ~vi = ω ∧ ~ri ) · (~
mi (~ ω ∧ ~ri ) = (permutação cı́clica)
2 2
i=1 i=1
n
1 X 1 ~ .
= ~ · (~ri ∧ (~
mi ω ω ∧ ~ri )) = ω~ ·L
2 2
i=1

Comparando as duas expressões que obtivemos para a energia cinética é possı́vel rela-
cionar o momento de inércia em relação a um eixo com o operador de inércia. De facto,
das proposições 2.21 e 2.23 temos

~ 2 = Iω · ω
Iω~ ω ⇔ Iω~ = Iẽ · ẽ , (2.25)

onde ẽ é o versor de ω
~.
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 51

Vejamos que o operador de inércia é simétrico (e portanto diagonalizável!) e definido


positivo. De facto,
n
X
I~u · ~u0 = mi (~ri ∧ (~u ∧ ~ri )) · ~u0 = (permutação cı́clica)
i=1
Xn
= mi (~u ∧ ~ri ) · (~u0 ∧ ~ri ) = I~u0 · ~u ,
i=1

e é óbvio por (2.25) que I é definido positivo desde que o corpo tenha pelo menos três pontos
não colineares, dado que nesse caso Iω > 0 qualquer que seja o eixo escolhido. Dadas estas
propriedades do operador I, a superfı́cie em R3 definida por

I~x · ~x = 1

é um elipsóide, que se chama elipsóide de inércia associado ao corpo e ao ponto O escolhido.


O resultado seguinte diz-nos como calcular o operador I quando escolhemos coordenadas
x, y, z associadas a uma certa base ortonormada em O, (O, ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 ):

Proposição 2.24. Numa determinada base ortonormada (O, ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 ) o operador de inér-
cia é representado pela matriz
 
Ixx Ixy Ixz
I = Iyx
 Iyy Iyz  ,
Izx Izy Izz

onde
n
X n
X n
X
Ixx = Iẽ1 = mi (yi2 + zi2 ) , Iyy = Iẽ2 = mi (x2i + zi2 ) , Izz = Iẽ3 = mi (x2i + yi2 )
i=1 i=1 i=1

são os momentos de inércia em relação ao eixo dos xx, dos yy e dos zz, e os termos não
diagonais, chamados produtos de inércia, são dados por
n
X n
X n
X
Ixy = − mi xi yi , Ixz = − mi xi zi , Iyz = − mi yi zi ,
i=1 i=1 i=1

Demonstração. A expressão dos termos da diagonal resulta imediatamente da equação


(2.25) e da definição de momento de inércia em relação a um eixo. Quanto à expressão dos
produtos de inércia, calculemos por exemplo Ixz (os outros casos são similares):
n
X
Ixz = Iẽ3 · ẽ1 = mi~ri ∧ (ẽ3 ∧ ~ri ) · ẽ1 = (permutação cı́clica)
i=1
n
X n
X n
X
= mi (ẽ1 ∧ ~ri ) · (ẽ3 ∧ ~ri ) = mi (−zi ẽ2 ) · (xi ẽ2 ) = − mi xi zi .
i=1 i=1 i=1
52 2.3. Dinâmica do corpo rı́gido

Como o operador de inércia é sempre diagonalizável, existe uma base na qual assume a
forma mais simples  
I1 0 0
I =  0 I2 0  .
0 0 I3
Os elementos de diagonal chamam-se então momentos principais de inércia, e os eixos
coordenados dessa base chamam-se eixos principais de inércia. Nestas coordenadas, o
elipsóide de inércia tem a equação I1 x2 + I2 y 2 + I3 z 2 = 1, que é a forma normal para a
equação geral. Ainda na base principal de inércia, as expressões para o momento angular e
para a energia cinética dadas pelas proposições 2.22 e 2.23 simplificam-se e tem-se apenas
3 3
~ =
X 1X
L Ij ωj ẽj , T = Ij ωj2 .
2
j=1 j=1

Note-se que, em geral, L ~ eω~ não são paralelos. Só o serão se ω~ for vector próprio de
I, i.e., se o eixo de rotação for um eixo principal de inércia. Suponhamos então que um
corpo rı́gido roda com velocidade angular constante em torno de um eixo fixo que não é
eixo principal de inércia. Consideremos um referencial ligado ao corpo com eixo dos zz
coincidente com o eixo de rotação. Neste referencial, ω ~ e I são constantes, e portanto L ~
também é constante. Logo, num referencial fixo, ω ~ é constante mas L ~ não é constante, dado
que à medida que o corpo se move o operador I varia. Portanto, pelo menos no caso em
que o eixo de rotação não é eixo principal de inércia, é necessário um momento de forças
aplicadas não nulo para produzir uma rotação com velocidade angular constante!

Vejamos agora como dependem Iẽ e I do eixo e do ponto escolhidos.


Proposição 2.25 (teorema de Huygens-Steiner). Seja ecm um eixo que passa pelo
centro de massa do sistema, e e um outro eixo paralelo à distância d de ecm . Então,
Ie = Iecm + md2 .
Demonstração. Consideremos um sistema de eixos centrado no centro de massa do sistema
e cujo eixo dos zz coincide com ecm . Orientemos este sistema de maneira que o eixo e fique
contido no plano xz e intersecte o plano xy no ponto de coordenadas (d, 0). Então,
n
X n
X n
X
mi (x2i + yi2 ) , mi (xi − d)2 + yi2 = Iecm + md2 − 2d

Iecm = Ie = mi xi =
i=1 i=1 i=1
2 2
= Iecm + md − 2dxcm = Iecm + md .

Vale um resultado similar para o operador de inércia:


Proposição 2.26. Sejam IO e Icm os operadores de inércia relativos a um ponto arbitrário
e ao centro de massa. Então, IO = Icm + Icm
O
, onde o termo adicional fica definido por
Icm
O
~u = m~rcm ∧ (~u ∧ ~rcm )
e ~rcm denota a posição do centro de massa em relação ao ponto O.
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 53

Demonstração. Da definição de operador de inércia temos


n
X n
X
IO ~u = mi~ri ∧ (~u ∧ ~ri ) , Icm ~u = mi~ri 0 ∧ (~u ∧ ~ri 0 ) ,
i=1 i=1

onde ~ri (e respectivamente ~ri0 ) denota a posição da i-ésima partı́cula em relação ao ponto O
(respectivamente em relação ao centro de massa). Substituindo ~ri = ~ri 0 + ~rcm na expressão
de IO ~u vem
n
X n
X
0
IO ~u = mi~rcm ∧ (~u ∧ ~ri ) + mi~ri 0 ∧ (~u ∧ ~rcm ) + Icm + Icm
O
=
i=1 i=1
 n
X n
  X 
0
cm
= Icm + IO + ~rcm ∧ ~u ∧ mi~ri + mi~ri 0 ∧ (~u ∧ ~rcm ) = Icm + Icm
O
.
|i=1 {z } |i=1 {z }
=0 =0

Em geral, o problema de achar os eixos principais de inércia, isto é, o sistema de coor-
denadas nas quais a descrição da dinâmica de um corpo rı́gido com um ponto fixo é a mais
simples possı́vel, é equivalente ao problema de diagonalizar uma matriz simétrica 3 × 3.
No caso particular de distribuições de massa simétricas, como por exemplo as de corpos
homogéneos e com certas simetrias, podemos deduzir facilmente certas regras que tornam
o problema ainda mais simples. Em primeiro lugar, um eixo de simetria de ordem 2 ou
superior é eixo principal de inércia; em segundo lugar, um eixo de simetria de ordem 4 ou
superior é eixo principal de inércia e quaisquer dois outros eixos perpendiculares a esse e
perpendiculares entre si formam juntamente com o primeiro um sistema de eixos principais
de inércia. A maneira mais simples de entender estas afirmações é pensar no elipsóide de
inércia, em vez de pensar na descrição de massa que é, em certo sentido, a sua dual. É
óbvio que as únicas rectas que são eixos de simetria de ordem dois para o elipsóide são os
eixos principais de inércia. É também óbvio que se uma recta é o eixo de simetria de ordem
4 ou superior, então o elipsóide é de revolução, e portanto qualquer triedro centrado na
origem que tenha aquela recta como eixo dos zz é um triedo principal de inércia.
Estas considerações de simetria são úteis para encontrar ‘a priori’ um sistema de eixos
principais de inércia centrado no centro de massa, dado que qualquer eixo de simetria de
um corpo homogéneo passa pelo centro de massa. Trabalhando nas coordenadas associadas
a este sistema de eixos, o operador de inércia Icm é diagonal.
No movimento de um corpo rı́gido, as distâncias entre os pontos estão fixas. Vejamos
que isso implica que se trata de um problema com seis graus de liberdade. Claramente,
há três graus de liberdade associados à posição de um ponto do corpo escolhido à partida,
por exemplo o centro de massa. Vejamos que há três graus de liberdade associados ao
movimento de um corpo rı́gido com um ponto fixo. Podemos olhar para este problema
de um ponto de vista algébrico. De facto, conhecer a posição do corpo é equivalente a
conhecer os versores ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 de uma base ortonormada solidária com o corpo, em termos
dos versores ẽ∗1 , ẽ∗2 , ẽ∗3 de uma base ortonormada fixa, onde ambas as bases se consideram
com origem no ponto escolhido (trata-se, por outras palavras, de um movimento rı́gido sem
translacção). Como já vimos, isto é equivalente a conhecer o elemento R ∈ SO(3) que é a
54 2.3. Dinâmica do corpo rı́gido

matriz de rotação que leva a base ẽ∗1 , ẽ∗2 , ẽ∗3 à base ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 . Portanto, a cada R ∈ SO(3)
corresponde uma posição possı́vel, e, reciprocamente, a cada posição corresponde uma
matriz R ∈ SO(3). Por outro lado, uma matriz 3 × 3 tem nove graus de liberdade, mas uma
matriz de rotação está sujeita à condição R> R = 1, que são por sua vez nove condições. No
entanto, apenas seis destas nove condições são independentes, dado que ambos os membros
daquela equação matricial são matrizes simétricas. Logo, o número de graus de liberdade
é 9 − 6 = 3. Podemos também olhar para este problema doutro ponto de vista, que para
alguns pode ser mais intuitivo. Consideremos um segundo ponto do corpo rı́gido. Como
a distância desse ponto ao ponto fixo escolhido à partida está também fixa, este segundo
ponto pode apenas mover-se sobre a superfı́cie de uma esfera, isto é, tem associados dois
graus de liberdade. Uma vez escolhida a posição deste segundo ponto, temos definida a
posição de um eixo do corpo, e apenas resta um grau de liberdade associado às rotações
em torno deste eixo.
Dado que o movimento do corpo rı́gido tem seis graus de liberdade, as equações do
movimento para sistemas de partı́culas dadas pela proposição 2.7,

d~
p ~
dL
~ ,
=R P ~ ,
=N P
dt dt
que são seis equações escalares independentes, determinam completamente o movimento.
Em face disto, tem sentido definir como equivalentes dois sistemas de forças e respectivos
pontos de aplicação

(F~1 , P1 ), . . . , (F~n , Pn ) , (F~10 , P10 ), . . . , (F~m


0 0
, Pm )
~ =R
tais que a resultante seja a mesma, R ~ 0 , e a resultante em relação a um ponto arbitrário
O seja também a mesma, N ~ =N ~ 0 . Para que esta definição faça sentido é necessário no
O O
entanto verificar que é independente do ponto escolhido.
Vejamos então que

R ~0 ,
~ =R ~ =N
N ~0 =⇒ ~ =N
N ~0 ,
O O P P

onde P é um outro ponto arbitrário. Temos


n
X n
X
~
N = (~rPi − ~rP ) ∧ F~i = (~rPi − ~rO + ~rO − ~rP ) ∧ F~i =
P
i=1 i=1
n
X
= (~rPi − ~rO ) ∧ F~i + (~rO − ~rP ) ∧ R
~ =N
~ + (~r − ~r ) ∧ R
O O P
~ .
i=1

Análogamente,
~0 = N
N ~ 0 + (~r − ~r ) ∧ R
~0 ,
P O O P

e o resultado segue.
É agora muito fácil demonstrar o seguinte resultado clássico:

Proposição 2.27 (redução de um sistema de forças). Qualquer sistema de forças


aplicadas a um corpo rı́gido pode ser reduzido a um sistema equivalente formado por uma
força aplicada num certo ponto e um binário.
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 55

Demonstração. Dado um sistema de forças, seja R ~ a sua resultante de N~ o momento


O
~ aplicada
resultante em relação a um certo ponto O. Então, o sistema formado pela força R
em O e um binário de momento N ~ em relação a O é equivalente.
O

Como exemplo de aplicação, vejamos que o sistema formado pelos pesos F~i = −mi gẽ3
das partı́culas que formam um corpo rı́gido é equivalente ao peso total −mgẽ3 (a resultante)
aplicado no centro de massa. Como a resultante é a mesma, basta verificar que o momento
dos dois sistemas em relação a um ponto O arbitrário é o mesmo. Ora
n n
!
X X
N~ = (~ri − ~r ) ∧ (−mi gẽ3 ) = − mi (~ri − ~r ) ∧ (gẽ3 ) =
O O O
i=1 i=1
~0 .
= −(m~rcm − m~rO ) ∧ gẽ3 = (~rcm − ~rO ) ∧ (−mgẽ3 ) = N O

Como é natural esperar, a noção de sistemas equivalentes ou reduzidos também se


pode aplicar ao cálculo do trabalho realizado pelas forças aplicadas. Mais precisamente,
n
F~i · ~vi , exprime-se em função da resultante e do
P
a potência das forças aplicadas, Π =
i=1
momento resultante em relação a um ponto O arbitrário por
~ · ~v + N
Π=R ~ ·ω~ ,
O O

onde ~vO é a velocidade do ponto O e ω


~ é a velocidade angular instantânea em relação ao
ponto O. De facto, temos
n
X n
X n
X
Π = F~i · ~vi = F~i · (~vO + ω ~ · ~v +
~ ∧ (~ri − ~rO )) = R O ~ · (~ri − ~rO ) ∧ F~i =
ω
i=1 i=1 i=1
n
X 
~ · ~v + ω
= R ~· (~ri − ~rO ) ∧ F~i = R
~ · ~v + N
~ ·ω~ .
O O O
i=1

Vamos agora aplicar este formalismo ao estudo dos dois casos mais simples: movimento
de um corpo rı́gido com um eixo fixo, e movimento livre de um corpo rı́gido com um ponto
fixo.
Consideremos então o caso de um corpo rı́gido com um eixo fixo. É evidente, reportando-
nos por exemplo à discussão que se fez antes sobre o número de graus de liberdade de um
corpo rı́gido com um ponto fixo, que este movimento tem apenas um grau de liberdade,
associado a um ângulo no plano perpendicular ao eixo fixo. Seja este eixo o eixo dos xx
do nosso referencial fixo no corpo; então, a velocidade angular instantânea será sempre da
forma ω~ = ωẽ1 . Se o eixo fixo puder ser escolhido como eixo principal de inércia, então
~ = I~
L ω ⇒ ~ = Ie ωẽ1 ,
L

onde Ie é o momento de inércia do corpo em relação ao eixo fixo. Para um corpo livre
~ ~ escreve-se na forma bem conhecida
nestas condições, a equação fundamental ddtL = N

L = Ie ω = constante .

O caso em que o corpo está sujeito à acção do seu próprio peso, chamado problema do
pêndulo composto, é mais interessante. Como já vimos, o peso do corpo pode ser substituı́do
56 2.3. Dinâmica do corpo rı́gido

pelo sistema equivalente formado pelo peso total −mgẽ3 com ponto de aplicação no centro
de massa. Portanto, a resultante do momento segundo o eixo dos xx é
~ = −mglcm sin θẽ1 ,
N

onde ~rcm = lcm sin θẽ2 + lcm cos θẽ3 é a posição do centro de massa do corpo em relação
a um determinado ponto O0 sobre o eixo fixo. Por outras palavras, lcm sin θ é a distância
orientada entre o centro de massa e o eixo, e θ é contado a partir do semieixo negativo do
~ ~ escreve-se como
eixo dos zz. A equação fundamental ddtL = N

I1 ω̇ + mglcm sin θ = 0 ,

ou seja,
mglcm
θ̈ +
sin θ = 0 ,
I1
onde I1 é o momento de inércia em relação ao eixo fixo, que coincide com o eixo dos xx.
Este problema é portanto equivalente ao de um pêndulo de massa igual à massa total e
comprimento mlIcm1
. Chama-se a esta última quantidade o comprimento reduzido do pêndulo
composto.
Note-se que em ambos os casos que acabámos de ver as equações que obtivemos são
independentes, como teriam de ser, do ponto O arbitrário escolhido à partida sobre o eixo
fixo, dado que o elemento I11 = Ie do operador de inércia não depende do ponto escolhido
sobre o eixo para origem do referencial. Note-se também que tomámos como resultante do
momento a componente da resultante segundo o eixo dos xx, uma vez que este eixo está
fixo e portanto a componente do momento do peso segundo o eixo dos yy é equilibrada pelo
momento das forças de ligação.
Consideremos agora o problema mais complicado do movimento de um corpo rı́gido com
um ponto fixo, que tem como já vimos três graus de liberdade, em vez de termos um grau
de liberdade como acontece no caso de haver todo um eixo fixo. Suponhamos escolhida
à partida um sistema de eixos principais de inércia centrados no ponto fixo O, e que se
move solidário com o corpo, de modo que o operador de inércia nestas variáveis é diagonal
e constante. Temos então
X3
~ =
L Ij ωj ẽj
i=1
~ ~ fica, tendo em conta a fórmula de Poisson para as
e a equação fundamental ddtL = N
˙ ~ ∧ ~ei ,
derivadas dos versores, ~ei = ω
3
X 3
X 3
X 3
X
~ =
N Ij ω̇j ẽj + ω ∧ ẽj ) =
Ij ωj (~ Ij ω̇j ẽj + Ij ωj ωi (ẽi ∧ ẽj ) ,
j=1 j=1 j=1 i,j=1

ou seja, 
 I1 ω̇1 − (I2 − I3 )ω2 ω3 = N1
I2 ω̇2 − (I3 − I1 )ω1 ω3 = N2 ,
I3 ω̇3 − (I1 − I2 )ω1 ω2 = N3

equações que se conhecem como as equações de Euler para o movimento do corpo rı́gido.
Consideremos o caso mais simples do movimento do corpo livre, em que as equações tomam
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 57

a forma homogénea ou de Euler-Poinsot. Dentro deste caso, a situação mais simples é a


de um corpo com simetria esférica, para o qual I1 = I2 = I3 = I e qualquer eixo é
eixo principal de inércia. Então, a definição do momento angular a partir de ω ~ e do
~
operador I reduz-se a L = I~ ω , onde I é um escalar. Portanto, para o movimento livre,
~ = constante ⇒ ω
L ~ = constante e temos rotação com velocidade angular constante em
torno de um eixo arbitrário fixo no espaço.
Um outro caso particular interessante é aquele em que o corpo tem estrutura giroscópica,
isto é, simetria de revolução em torno de um eixo, de modo que o elipsóide de inércia é de
revolução e temos, por exemplo, I1 = I2 6= I3 . Nestas hipóteses, vale o seguinte resultado:
Proposição 2.28. No movimento livre de um corpo rı́gido com estrutura giroscópica em
torno do eixo dos zz e com um ponto fixo, verifica-se que:
1. A norma k~
ω k de ω
~ é constante.
~ a velocidade angular ω
2. O momento angular L, ~ e o eixo dos zz são coplanares.

3. Os ângulos entre quaisquer dois destes três vectores são constantes.

4. As componentes de ω ~ são constantes.


~ segundo o eixo dos zz e segundo a direcção de L
Demonstração. A propriedade 4 decorre imediatamente de 1 e 3. Vejamos como mostrar
1, 2 e 3. Para obter a propriedade 2 basta verificar que
~ = ((ω1 ẽ1 + ω2 ẽ2 + ω3 ẽ3 ) ∧ ẽ3 ) · (I1 ω1 ẽ1 + I1 ω2 ẽ2 + I3 ω3 ẽ3 ) =
ω ∧ ẽ3 ) · L
(~
= (−ω1 ẽ2 + ω2 ẽ1 ) · (I1 ω1 ẽ1 + I1 ω2 ẽ2 + I3 ω3 ẽ3 ) = 0 .

Para demonstrar a propriedade 1, usamos as equações de Euler-Poinsot para este caso,



 I1 ω̇1 − (I1 − I3 )ω2 ω3 = 0
I1 ω̇2 − (I3 − I1 )ω1 ω3 = 0 ,
I3 ω̇3 =0

~ · ẽ3 = constante. Das duas primeiras temos


de acordo com as quais é imediato que ω3 = ω
então
d 2 (I1 − I3 ) (I3 − I1 )
(ω1 + ω22 ) = 2ω1 ω̇1 + 2ω2 ω̇2 = 2ω1 ω2 ω3 + 2ω1 ω2 ω3 =0
dt I1 I1
e portanto k~ ω k = constante. Quanto à propriedade 3, sabemos já que o ângulo entre ω
~ e
ẽ3 é constante e o ângulo α entre ω ~ verifica
~ eL

L~ ·ω
~ 2E
cos α = = ,
~
kLk · k~
ωk ~
kLk · k~
ωk
ou seja, pode expressar-se em termos de constantes do movimento, e portanto é constante.
~ e ẽ3 verifica
O ângulo β entre L
~ · ẽ3
L I3 ω3
cos β = =
~
kLk ~
kLk
e também é constante.
58 2.3. Dinâmica do corpo rı́gido

A descrição do movimento pode obter-se a partir do resultado anterior e está resumida


na proposição seguinte:
Proposição 2.29. Consideremos o movimento livre de um corpo rı́gido com estrutura
giroscópica em torno do eixo dos zz e um ponto fixo. O vector ω ~ gira com velocidade
angular uniforme em torno da direcção fixa de L, ~ descrevendo um cone de rotação C 0 ; de
maneira similar, ω ~ gira em relação ao corpo com velocidade angular constante em torno da
direcção fixa do corpo ẽ3 , descrevendo outro cone de rotação C 00 . Os dois cones rodam um
sobre o outro sem deslizar.
Demonstração. A direcção de L~ é constante e, pela proposição 2.28, os três vectores são
coplanares e têm ângulos constantes entre si, de modo que ω
~ roda em torno de L ~ descrevendo
um cone, e roda em torno de ẽ3 descrevendo outro cone. O facto de os dois cones C 0 e C 00
rodarem um sobre o outro sem deslizar deve-se ao facto de a sua intersecção ser em cada
instante a recta definida pela velocidade angular instantânea ω ~ , ou seja, o eixo de rotação
instantâneo, que obviamente é fixo. Falta apenas verificar que a rotação é uniforme. Como
os vectores são coplanares, temos

~ = ω 0 ẽL + ω 00 ẽ3 ,
ω

onde ω 0 e ω 00 são constantes, em consequência da proposição 2.28. Aplicando a fórmula de


Poisson ao versor ẽ3 temos
~ ∧ ẽ3 = ω 0 ẽL~ ∧ ẽ3 ,
ẽ˙ 3 = ω
~
o que mostra que ẽ3 e de facto todo o plano Π definido pelos três vectores roda em torno de L
0
com velocidade angular constante ω , o que implica que ambas as relações são uniformes.

Os cones de rotação C 0 e C 00 chamam-se cones de Poinsot e o movimento de ω ~ sobre


cada um destes cones chama-se precessão.
Passemos agora à descrição do movimento livre de um corpo rı́gido com um ponto fixo
no caso geral em que os três momentos principais de inércia são diferentes, e suponhamos
para fixar ideias que é I1 > I2 > I3 . As constantes do movimento L ~ e E = T geram no
referencial solidário com o corpo dois integrais do movimento escalares independentes,

L21 L22 L23


L21 + L22 + L23 = L2 , + + = 2E , (2.26)
I1 I2 I3
onde Li , i = 1, 2, 3 denotam as componentes do momento angular nesse referencial, onde
I1 , I2 e I3 são constantes (mas L1 , L2 e L3 não). O significado geométrico destas equações
é o seguinte: o momento √ angular √ está sempre
√ sobre a intersecção da esfera de raio L com o
elipsóide de semieixos 2I1 E, 2I2 E e 2I3 E. Esta intersecção é sempre não vazia dado
que 2I3 E ≤ L2 ≤ 2I1 E, como decorre imediatamente das equações (2.26). O caso mais
simples corresponde
√ à situação
√ em que a intersecção degenera em dois pontos apenas
√ e se
tem L = 2I3 E ou L = 2I1 E. Consideremos então por exemplo o caso L = 2I1 E em
que a intersecção é formada por dois pontos sobre o eixo dos xx. Então, L2 = L3 = 0, L1 =
±L = constante, ou seja, as componentes do momento angular são constantes também no
referencial fixo do corpo. Então, ω1 = L1 /I1 = constante, ω2 = ω3 = 0, ou seja, achámos
as soluções de rotação com velocidade angular constante em torno de um eixo principal de
inércia.
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 59

Figura 2.4: Representação da projecção segundo o plano definido por dois eixos principais
de inércia do plano Π e das duas direcções relevantes, a de ω ~ Ver demonstração
~ e a de L.
da proposição 2.30.

O caso geral é mais complicado, e a maneira mais compacta de enunciar um resultado


geral sobre o movimento é fazê-lo em termos do movimento do elipsóide de inércia.

Proposição 2.30. O elipsóide de inércia roda sem deslizar sobre um plano fixo perpendi-
cular ao momento angular L.~

Demonstração. Consideremos a intersecção do eixo por O definido pela velocidade


√ angular
~
instantânea com o elipsóide. Claramente, é dada pelos pontos ξ = ±~ ω / 2E, dado que
ω·ω
I~ ~ = 2E implica Iξ~ · ξ~ = 1. Qualquer destes pontos estão sobre o eixo de rotação e
portanto é um ponto fixo. Vejamos agora que o plano Π tangente ao elipsóide em ξ é
~ Para isso, basta verificar que L
perpendicular a L. ~ e grad (I~x · ~x) calculado em ẋ = ξ~ são
paralelos. De facto,

~
~ = 2I1 ξ1 ẽ1 + 2I2 ξ2 ẽ2 + 2I3 ξ3 ẽ3 = ± √2L .
grad (I~x · ~x)(ξ)
2E
Finalmente, há que ver que a distância de Π ao ponto fixo é constante. Essa distância é
dada por √
~
L ω
~ · ~
L 2E
ξ~ · = ±√ =± = constante .
~
kLk 2EkLk~ ~
kLk

Para o estudo geral do movimento na presença de forças exteriores, nomeadamente o


caso muito interessante do corpo rı́gido pesado com um ponto fixo, temos que nos reportar
novamente à formulação geral, isto é, às equações de Euler. Vamos adiar para o próximo
capı́tulo o estudo destas equações no caso significativo do pião de Lagrange, isto é, de
um corpo rı́gido pesado com estrutura giroscópica. No entanto, uma questão geral que
se põe desde já é a seguinte: as equações de Euler são três equações escalares, que nos
permitem após integração resolver o problema do movimento, dado que este tem associados
três graus de liberdade. Mas para poder levar a cabo este programa, é necessário fazer
uma escolha concreta de coordenadas associadas a esses três graus de liberdade, isto é,
é necessário escolher três coordenadas angulares independentes que determinem em cada
instante a posição do referencial solidário com o corpo em relação ao referencial fixo. Uma
escolha possı́vel e tradicional (ver figura 2.5) é a dos três ângulos de Euler — a nutação θ,
a precessão ϕ, e a rotação própria ψ — que se definem da maneira seguinte: θ, o ângulo de
60 2.3. Dinâmica do corpo rı́gido

Figura 2.5: Os ângulos de Euler ϕ, θ, ψ são usados para descrever a orientação de um


referencial S, de eixos ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 relativamente a um referencial S ∗ , de eixos ẽ∗1 , ẽ∗2 , ẽ∗3 . η é a
linha dos nodos.

nutação, é o ângulo formado pelos eixos de ẽ3 e de ẽ∗3 ; ϕ, o ângulo de precessão, é o ângulo
formado pelo versor ẽ∗1 com a direcção da linha dos nodos, que é a intersecção orientada do
plano por ẽ1 e ẽ2 com o plano gerado por ẽ∗1 e ẽ∗2 ; ψ, o ângulo de rotação própria, é o ângulo
formado pelo versor da linha dos nodos em ~e1 . A escolha da orientação sobre a linha dos
nodos é dada pela seguinte regra: o versor ẽ3 obtém-se a partir de ẽ∗3 rodando em torno
da linha dos nodos de um ângulo θ ∈ [0, π). Uma posição final caracterizada por certos
valores (ϕ, θ, ψ) dos ângulos de Euler pode obter-se a partir da posição inicial fazendo as
seguintes três operações: primeiro, rodar de ϕ em torno de ẽ∗3 até ẽ1 coincidir com o versor
~n da linha dos nodos; depois, rodar de θ em torno da linha dos nodos para levar ẽ3 à sua
posição final; por último, rodar de ψ em torno de ẽ3 para levar e1 da lina dos nodos até à
posição final.
Estas coordenadas, ϕ ∈ [0, 2π), θ ∈ [0, π), ψ ∈ [0, 2π) são as que se tomam habitual-
mente para estudar a dinâmica do corpo rı́gido. Comprovar que são boas coordenadas é
equivalente a mostrar que a estas coordenadas estão associadas Rϕ , Rθ , Rψ , matrizes de
rotação com a propriedade de qualquer elemento de SO(3) se poder escrever sob a forma de
um produto Rϕ Rθ Rψ . Esta questão será abordada nas aulas teórico-práticas. Por agora
vamos tomar a construção que fizemos como prova suficiente.
Uma vez feita a escolha de coordenadas, é necessário exprimir as equações de Euler em
termos dessas coordenadas. Como os momentos de inércia são constantes, e as componentes
da resultante do momento dependem do problema concreto que estivemos a considerar, a
escrita explı́cita das equações de Euler depende apenas de conhecer as componentes da
velocidade angular instantânea em termos dos ângulos de Euler.

Lema 2.31. As componentes da velocidade angular instantânea ω


~ são dadas em função
dos ângulos de Euler pelas expressões

ω1 = ϕ̇ sin θ sin ψ + θ̇ cos ψ , ω2 = ϕ̇ cos θ cos ψ − θ̇ sin ψ , ω3 = ϕ̇ cos θ + ψ̇ .

~ = ϕ̇ẽ∗3 + θ̇~n + ψ̇ẽ3 , onde ~n é o versor da linha


Demonstração. Por construção, temos que ω
Capı́tulo 2. O problema de Kepler e a dinâmica do corpo rı́gido 61

dos nodos. Por outro lado,

ẽ∗3 = cos θẽ3 + sin θm


~ , ~ = ẽ3 ∧ ~n ,
m
~n = cos ψẽ1 − sin ψẽ2 e m
~ = cos ψẽ2 + sin ψẽ1 .

Substituindo na equação anterior o resultado segue.

Este lema permite, para além de transformar as equações de Euler num sistema de três
equações diferenciais de segunda ordem nas coordenadas ϕ, θ, ψ, passo prévio para qualquer
3
tentativa de integração, obter também uma expressão da energia cinética T = 12
P
Ii ωi
i=1
em termos dos ângulos de Euler e das velocidades associadas. Em particular, no caso
giroscópico, introduzindo as equações do lema 2.31 na expressão da energia cinética vem

I1 2 2 I3
T = (ϕ̇ sin θ + θ̇2 ) + (ϕ̇ cos θ + ψ̇)2 . (2.27)
2 2
Mais adiante utilizaremos estes resultados para o estudo do pião de Lagrange.

2.4 Problemas
Série III
1. (a) Verifique que o momento angular calculado em relação a um ponto O, L ~ O, e o
0
momento angular calculado em relação a um ponto O , L ~ O0 estão relacionados
~ ~
por LO0 = LO + (~rO − ~rO0 ) ∧ p~.
(b) Verifique que os componentes do momento angular de uma partı́cula em relação
à origem são Lx = m(y ż − z ẏ), Ly = m(z ẋ − xż) e Lz = m(xẏ − y ẋ).

2. (a) Mostre que para o movimento de um ponteo material em R3 sob a acção de


uma força arbitrária existem no máximo 5 constantes ou integrais primeiras
independentes, isto é, 5 funções f (~r, ~v ) definidas no espaço de fases que são
integrais primeiras e cujos gradientes são linearmente independentes.
(b) Para o caso de uma partı́cula livre, temos em princı́pio 6 constantes do movi-
mento, as 3 componentes do momento linear e as 3 componentes do momento
angular. Mostre que destas 6 apenas 5 são independentes e deduza que o movi-
mento tem lugar sobre uma recta.
(c) Verifique que, no caso da partı́cula que se move sob a acção do seu peso P~ =
−mgẽ3 , se têm as cinco constantes do movimento independentes vx , vy , Lz ,
vz2 mg 2 2
2 + gz e vy Lx − vx Ly + 2 (x + y ), e deduzir que a trajectória é uma parábola
no plano vertical.

3. A forma diferencial do trabalho de uma força F~ , dW = Fx dx + Fy dy + Fz dz, tem uma


certa expressão em coordenadas esféricas, dW = Qr dr + Qθ dθ + Qϕ dϕ, onde os coefi-
cientes Qr , Qθ , Qϕ se chamam forças generalizadas. Determine as forças generalizadas
em termos das componentes da força F~ .
62 2.4. Problemas

4. Deduza as expressões da velocidade, da aceleração, da energia cinética e da compo-


nente segundo z do momento angular em coordenadas polares,
m 2
~v = ṙẽr + rθ̇ẽθ , ~a = (r̈ − rθ̇2 )ẽr + (rθ̈ + 2ṙθ̇)ẽθ , T = (ṙ + r2 θ̇2 ) , Lz = mr2 θ̇ ,
2
partindo da passagem de coordenadas cartesianas a polares e da definição de ẽr e de
ẽθ .

5. No movimento sob a acção de uma força central e com simetria esférica descrito em
coordenadas polares, a variação da coordenada angular, ∆θ, que ocorre entre dois
extremos sucessivos e da mesma natureza da coordenada radial r, é dada por
rZmax
2l dr
∆θ = √ p ,
2m r2 E − Ve (r)
rmin

onde l é o momento angular da órbita e Ve (r) é o potencial efectivo. Calcule ∆θ para


o potencial kepleriano e para o potencial elástico.

6. Estude o problema do movimento para um potencial coulombiano repulsivo, V (r) =


k
r , k > 0.

7. Estude o movimento de dois pontos materiais sujeitos à acção do seu peso e a forças
de interacção de tipo elástico.

8. Explique porque é que um astronauta numa estação espacial a orbitar em volta da


Terra se encontra em condições de ausência aparente da gravidade. Sugira um método
para criar gravidade aparente nesta estação.

9. O desvio para leste da trajectória dos corpos em queda livre próximo da superfı́cie
terrestre é uma das demonstrações experimentais da rotação da Terra. Utilize um
método perturbativo para achar um valor aproximado para esse desvio, a menos de
termos de segunda ordem na velocidade angular da Terra ω.

10. Use o programa orbiter e o programa colision para obter órbitas keplerianas de
energia negativa e positiva, respectivamente, e observe como a forma da órbita de-
pende dos parâmetros. Use também o programa orbiter para detectar a dependência
sensı́vel nas condições iniciais para problemas gravı́ticos de 3 ou mais corpos, seguindo
as indicações do exercı́cio 4.5 do cupscm e usando a opção ‘reverse time’.

11. Use o programa colision para analisar o movimento sob a acção de um potencial
coulombiano repulsivo, com e sem ‘blindagem’. Compare com as conclusões do exer-
cı́cio 6 desta série.
Capı́tulo 3

As equações de Lagrange e de
Hamilton

3.1 Introdução. Sistemas com ligações


O formalismo lagrangeano e o formalismo hamiltoniano são no essencial o tema deste
capı́tulo, e o objectivo desta primeira secção é o de mostrar que estas formulações al-
ternativas da mecânica clássica surgem espontâneamente quando se tenta, no quadro da
mecânica newtoniana, resolver dois problemas que, como veremos, estão relacionados entre
si e que são o de escrever as equações do movimento num sistema de coordenadas arbitrário,
e o de escrever explı́citamente essas equações quando estão presentes forças de ligação cuja
expressão não é conhecida ‘a priori’, isto é, forças cujo papel é o de forças as coordenadas
das partı́culas a respeitarem certos constrangimentos de natureza geométrica e cujo valor
depende em princı́pio da solução particular a que corresponde o movimento do sistema.
Encontrámos já um exemplo de uma força desse tipo quando estudámos o problema do
corpo rı́gido com um eixo fixo: dada a natureza da ligação, a força de ligação há-de ser em
cada caso tal que a resultante do momento de todas as forças, incluindo a de ligação, esteja
dirigida segundo o eixo de rotação.
O problema de escrever as equações do movimento num sistema de coordenadas diferente
do das coordenadas cartesianas também já foi tratado num caso particular, quando quisémos
descrever o movimento sob a acção de uma força central em termos de coordenadas polares
(r, θ) definidas no plano do movimento. As equações do movimento em coordenadas polares
que deduzimos então foram

m(r̈ − rθ̇2 ) = Fr , m(rθ̈ − 2ṙθ̇) = Fθ ,

onde Fr e Fθ são as componentes da força aplicada segundo os versores ẽr e ẽθ tangentes
em cada ponto às linhas coordenadas.
A generalização deste procedimento a uma mudança de coordenadas arbitrária é ime-
diata. Se tivermos uma mudança de coordenadas m dada por uma função (diferenciável e
com inversa diferenciável)

m : U ∈ R3 −→ V ∈ R3
(q1 , q2 , q3 ) 7−→ (x(q1 , q2 , q3 ), y( q1 , q2 , q3 ), z(q1 , q2 , q3 ))

63
64 3.1. Introdução. Sistemas com ligações

as direcções dos versores tangentes em cada ponto às linhas coordenadas qi = constante, i =
1, 2, 3, são dadas pelos três vectores
∂~r ∂x ∂y ∂z
= ẽ1 + ẽ2 + ẽ3 , i = 1, 2, 3 ,
∂qi ∂qi ∂qi ∂qi
que são em cada ponto linearmente independentes dado que por hipótese a matriz jacobiana
da função m tem determinante diferente de zero. A equação F~ = m~a decompõem-se em
três equações escalares que são, nestas coordenadas,
∂~r
(m~a − F~ ) · =0, i = 1, 2, 3 . (3.1)
∂qi

No caso particular importante de a força aplicada F~ derivar de um potencial, F~ = −grad V


e, como veremos, as equações (3.1) são equivalentes a
 
d ∂L ∂L
− = 0 , i = 1, 2, 3 , (3.2)
dt ∂ q̇i ∂qi
onde L = T − V é uma função das coordenadas qi e das velocidades associadas q̇i . Para
tal, podemos verificar que o movimento sob a acção de uma força conservativa descrito em
coordenadas cartesianas é efectivamente descrito pelas equações (3.2). Neste caso,
m 2
L=T −V = (ẋ + ẏ 2 + ż 2 ) − V (x, y, z)
2
e temos, por exemplo para a coordenada x,
 
d ∂L d ∂L ∂V
= (mẋ) = mẍ , =− = Fx ,
dt ∂ ẋ dt ∂x ∂x
ou seja,
mẍ = Fx .
Abordemos agora o segundo problema, isto é, o da escrita das equações do movimento
para um ponto material sujeito a ligações. Em termos geométricos, a existência de ligações
significa que a partı́cula está confinada a uma certa superfı́cie S em R3 , definida implicita-
mente por uma relação do tipo f (x, y, z) = 0, onde f é diferenciável e tem gradiente não
nulo em qualquer ponto de S. Nestas condições, é possı́vel dar localmente uma descrição
paramétrica da superfı́cie em termos de três funções diferenciáveis

x = x(q1 , q2 ) , y = y(q1 , q2 ) , z = z(q1 , q2 ) , (q1 , q2 ) ∈ U ∈ R2 ,

ou seja, na vizinhança de cada ponto P ∈ S, em que S é dada por

~r = ~r(q1 , q2 ) , (q1 , q2 ) ∈ U ∈ R .

Os vectores
∂~r ∂x ∂y ∂z
= ẽ1 + ẽ2 + ẽ3 , i = 1, 2 ,
∂qi ∂qi ∂qi ∂qi
onde as derivadas que são calculadas no valor de (q1 , q2 ) que correspondem ao ponto P
são dois vectores linearmente independentes que geram o plano tangente a S em P . Para
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 65

comprovar que assim é, basta ter em conta a condição f (x(q1 , q2 ), y(q1 , q2 ), z(q1 , q2 )) ≡ 0
implica  ∂~r
 grad f · ∂q 1
=0
,
 grad f · ∂~r = 0
∂q2
sistema homogéneo de duas equações a três incógnitas que tem que ter por solução um
subespaço de dimensão 1 de R3 , dado que grad f 6= 0 em S e a normal a S está bem
definida em cada ponto.
Definimos então
∂~r
~ui = , i = 1, 2 ,
∂qi
um vector arbitrário do plano tangente a S em P , que denotaremos por TP S, pode escrever-
-se como combinação linear de ~u1 e ~u2 . Usando a notação clássica δ~r para os vectores de
TP S, e δqi , i = 1, 2, para as suas componentes segundo a base formada pelos vectores
~u1 , ~u2 , temos que qualquer vector δ~r se escreve na forma
∂~r ∂~r
δ~r = δq1 ~u1 + δq2 ~u2 = δq1 + δq2 .
∂q1 ∂q2

É tradicional na literatura chamar deslocamentos virtuais aos vectores δ~r ∈ TP S, e coorde-


nadas livres ou generalizadas às coordenadas q1 , q2 .
Claro está que a escolha das coordenadas generalizadas, ou melhor, das famı́lias de
coordenadas generalizadas necessárias para descrever uma dada superfı́cie não é única.
Consideremos por exemplo o caso da esfera S 2 , definida implı́citamente pela equação
f (x, y, z) = x2 + y 2 + z 2 − R2 = 0. Tem-se grad f 6= 0 em qualquer ponto da esfera,
como já se esperava dado saber-se ‘a priori’ que se trata de uma superfı́cie diferenciável
bidimensional. Em toda a semiesfera superior (ou em toda a semiesfera inferior) podemos
tomar como coordenadas generalizadas as próprias coordenadas x, y de cada ponto sobre a
esfera, ou, o que é equivalente, as coordenadas x, y da projecção desse ponto sobre o plano
equatorial da esfera. Na semiesfera superior, as equações paramétricas associadas à escolha
destas coordenadas locais são
p
x = x , y = y , z = R2 − x2 − y 2

que definem nesta região (sem o equador!) uma função diferenciável à qual está associada
a matriz jacobiana
√ −x
 
∂(x, y, z)  1 0
R2 −x2 −y 2 
= −y ,
∂(x, y) 0 1 √
2 2 2
R −x −y

que tem ordem 2. Uma outra escolha possı́vel corresponde às coordenadas esféricas (r, θ, ϕ),
com r = R. Nesse caso,

x = R cos ϕ sin θ, y = R sin ϕ sin θ, z = R cos θ ,

e a matriz jacobiana associada é


 
∂(x, y, z) −R sin θ sin ϕ R sin θ cos ϕ 0
= ,
∂(x, y) R cos ϕ cos θ R sin ϕ cos θ −R sin θ
66 3.1. Introdução. Sistemas com ligações

que tem ordem 2 excepto quando θ = ±π. Esta escolha de coordenadas é geralmente
preferida porque como se vê apenas exclui dois pontos da esfera, enquanto que a escolha
anterior só permite trabalhar num hemisfério.1
O caso de um ponto sujeito a mover-se sobre uma curva regular, isto é, um subconjunto
de R3 definido implı́citamente pelo conjunto das duas condições f (x, y, z) = 0, g(x, y, z) = 0,
onde f e g são funções diferenciáveis cujos gradientes são linearmente independentes, trata-
-se de maneira similar, com a diferença de que neste caso o número de coordenadas gene-
ralizadas é apenas 1.

É evidente que o número de coordenadas generalizadas coı́ncide com o número de graus


de liberdade da partı́cula, tal como definimos graus de liberdade no inı́cio do curso. Fica
claro também depois desta discussão prelimiar que os dois problemas que abordámos aqui,
o da mudança de variáveis e o do movimento de uma partı́cula sujeita a ligações estão
relacionados na medida em que para ambos é necessário começar por escrever as equações
do movimento num conjunto de coordenadas locais arbitrário. No caso da partı́cula livre, o
número de graus de liberdade, e portanto o número de coordenadas generalizadas, é 3. No
caso da partı́cula sujeita a ligações o número de graus de liberdade é inferior à dimensão do
espaço ambiente, e é ainda necessário resolver o problema da existência de forças aplicadas,
as forças de ligação, cuja expressão não é, nem pode ser, conhecida ‘a priori’, na medida
em que estas forças dependem do movimento. No formalismo newtoniano, as equações do
movimento são da forma m~a = F~ + Φ, ~ onde Φ ~ é desconhecida e traduz a acção da estrutura
fı́sica que realiza o vı́nculo geométrico a que a partı́cula está sujeita. Por outro lado, ~a é
um vector de R3 que depende apenas da maneira como evoluem no tempo as coordenadas
generalizadas da partı́cula. O método lagrangeano permite, para certo tipo de ligações,
obter as equações do movimento que verificam as coordenadas generalizadas. Uma vez
integradas, podemos determinar a aceleração ~a, e portanto também as forças de ligação Φ ~
associadas a cada órbita.
Dentro da classe de ligações que o método permite tratar, e que adiante definiremos com
rigor, vamos incluir também ligações dependentes do tempo, que correspondem a situações
de que antes de falou no caso em que a mudança de variáveis, a superfı́cie, ou a curva
que se pretende considerar, variam no tempo. Por outro lado, tal como se fez no capı́tulo
anterior, interessa-nos um formalismo que adapte a estes problemas não apenas as equações
da dinâmica de uma partı́cula, mas o caso geral de um sistema de N partı́culas.
Esta discussão prévia motiva o interesse da seguinte

Definição 3.1. Diz-se que um sistema de N pontos materiais P1 , . . . , PN está sujeito a


r ligações holónomas, 0 < r < 3N , se o conjunto das configurações acessı́veis ao sis-
tema verifica equações da forma F (s) (w, ~ t) = 0, s = 1, . . . , r, onde w
~ = (w1 , . . . , w3N ) =
(x1 , y1 , z1 , . . . , xN , yN , zN ) é o vector formado pelas coordenadas cartesianas das N partı́cu-
las e F (1) ,h. . . , Fi(r) são funções diferenciáveis e independentes, isto é, tais que a matriz
(s)
jacobiana ∂F ∂wj tem ordem r em qualquer configuração acessı́vel.

1
Tratar toda a esfera com coordenadas deste tipo exigiria uma famı́lia de seis conjuntos de coordenadas
locais, e mesmo para ter uma boa parametrização da esfera menos dois pontos seriam necessários pelo menos
quatro conjuntos de coordenadas, enquanto que em coordenadas esféricas isso se consegue com apenas um
conjunto.
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 67

É uma imediata generalização do que se viu nos exemplos precedentes que a existência
de r ligações holónomas tal como se acabam de definir implica as seguintes consequências:
1. O conjunto das configurações acessı́veis forma, para cada t, uma hipersuperfı́cie re-
gular de R3N , que denotaremos por Q e chamaremos espaço das configurações.

2. O espaço das configurações tem dimensão n = 3N − r e é possı́vel, pelo menos


localmente, exprimir as coordenadas cartesianas w1 , . . . , w3N em termos de um con-
junto q1 , . . . , qn de n coordenadas generalizadas através de 3N funções h diferenciáveis
i
∂w
wj = wj (q1 , . . . , qn , t), j = 1, . . . , 3N , e tais que a matriz jacobiana ∂qij tem ordem
n no aberto de Rn × R onde as coordenadas estão definidas.
∂w ~
3. Os vectores ∂q i
, i = 1, . . . , n, são linearmente independentes e formam uma base do
espaço tangente Tw~ Q num ponto arbitrário de Q, com a propriedade de ser formada
por vectores tangentes às linhas coordenadas associada à escolha das coordenadas
locais q1 , . . . , qn .
Em geral, diremos que um sistema de N pontos materiais forma um sistema holónomo
local com n graus de liberdade, n ≤ 3N , se existe localmente uma parametrização wj =
wj (q1 , . . . , qn , t), j = 1, . . . , 3N diferenciável que verifica
 
∂wj
rank =n.
∂qi
Note-se que esta definição inclui tanto sistemas com ligações holónomas como sistemas
livres descritos em coordenadas arbitrárias (n = 3N ). Dado um sistema holónomo local
arbitrário, a posição de cada partı́cula exprime-se na forma

~ri = ~ri (q1 , . . . , qn , t) , i = 1, . . . , N ,

que traduz, para cada partı́cula, a parametrização do vector do sistema w ~ ∈ R3N .


Vamos manter a notação δ w~ para os elementos de Tw~ Q, e δqi , i = 1, . . . , n, para as
∂w
~
suas componentes na base formada pelos vectores ∂q i
, i = 1, . . . , n. E, tal como no caso
de uma partı́cula, chamaremos deslocamento virtual da j-ésima partı́cula a qualquer vector
da forma
n
X ∂~rj
δ~rj = · δqi , j = 1, . . . , N .
∂qi
i=1
Diz-se que um sistema holónomo está sujeito a ligações ideais se as forças de ligação
~ 1, . . . , Φ
Φ ~ N que se exercem sobre cada partı́cula verificam a condição

N
X
~ i · δ~ri = 0
Φ (3.3)
i=1

para uma escolha arbitrária de deslocamentos virtuais δ~r1 , . . . , δ~rN . Por outras palavras,
exige-se que o dispositivo fı́sico que realiza a ligação seja tal que o ‘trabalho virtual’, isto
é, a expressão (3.3), associado a um conjunto de deslocamentos virtuais arbitrários seja
nulo. Em termos fı́sicos, esta condição geométrica corresponde a exigir que as superfı́cies
sobre as quais as partı́culas estão sujeitas a mover-se são completamente lisas — pense-se
68 3.1. Introdução. Sistemas com ligações

por exemplo no caso de uma partı́cula que se move sobre um aro circular, ideal ou rugoso.
Introduzindo em (3.3) a forma geral de um deslocamento virtural temos
 
N n n N
!
X
~i ·
X ∂~
r i
X X
~i · ∂~
r i
Φ δqj  = Φ δqj = 0
∂qj ∂qj
i=1 j=1 j=1 i=1

o que implica, como os δqj são independentes,

N
~ i · ∂~ri = 0 ,
X
Φ j = 1, . . . , n . (3.4)
∂qj
i=1

Portanto, da definição de ligação holónoma ideal resultam as n equações independentes


(3.4), que, juntamente com a equação de Newton, vão permitir formular o problema do
movimento como um problema determinado. É nisto que consiste a derivação das equações
de Lagrange, e esta é a classe de sistemas com ligações à qual o método é aplicável. Por
vezes é conveniente exprimir a condição (3.4) do anulamento do trabalho virtual das forças
de ligação sob uma força equivalente em que intervém, em vez dos deslocamentos virtuais
δ~ri , as velocidades virtuais ~vi∗ , que se definem como
n
X ∂~ri
~vi∗ = q̇j , i = 1, . . . , N .
∂qj
j=1

Claramente, as condições (3.3) ou (3.4) podem exprimir-se na forma

N
X
~ i · ~v ∗ = 0 ,
Φ ∀ ~v1∗ , . . . , ~vN

, (3.5)
i
i=1

ou seja, uma ligação é ideal se a potência virtual das forças de ligação se anula para qualquer
conjunto de velocidades virtuais.
Note-se que no caso de ligações independentes do tempo, o trabalho virtual das forças de
ligação coincide com o trabalho elementar realizado por essas forças num deslocamento real,
mas que isso deixa de ser verdade no caso de ligações que dependem do tempo. A diferença
diz respeito ao termo ∂~ ri
∂t dt em d~ri , que não intervém em δ~ri . Pense-se por exemplo no caso
de um ponto material sujeito a deslocar-se sobre a superfı́cie de uma esfera que se desloca,
por exemplo segundo a vertical, com velocidade constante. Se as forças de ligação forem
em cada ponto normais à superfı́cie da esfera, então a ligação é ideal e o trabalho virtual
das forças de ligação é nulo. No entanto, o trabalho elementar realizado por essas forças
num deslocamento infinitésimal a partir, por exemplo, do polo norte da esfera é claramente
diferente de zero.
Vejamos alguns exemplos de ligações holónomas ideais. O exemplo mais claro é o de
um ou mais pontos sujeitos a moverem-se sobre uma superfı́cie ou curva lisa, para a qual
se supõe que as forças de ligação são normais à superfı́cie ou curva. Outro caso importante
é o das forças de ligação do corpo rı́gido, responsáveis por manter constantes as distâncias
entre dois pontos arbitrários, e que se supõe que são forças de interacção de tipo clássico,
isto é, verificam o princı́pio de igualdade entre a acção e a reacção e são centrais. De
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 69

d
r1 − ~r2 )2
dt (~ = 0 temos (~r1 − ~r2 ) · (~v1 − ~v2 ) = 0 para qualquer par de pontos. Por outro lado,
a potência virtual Π∗ das forças de ligação associadas a este par de partı́culas é

Π∗ = Φ
~ 1 · ~v1 + Φ
~ 2 · ~v2 = Φ
~ 1 (~v1 − ~v2 ) = c(~r1 − ~r2 ) · (~v1 − ~v2 ) = 0 .

Note-se neste caso a importância de facto de nas condições (3.3), (3.4) ou (3.5) se exigir
apenas que se anule a soma das contribuições de cada partı́cula para o trabalho virtual ou
para a potência virtual, e não que seja nulo cada um dos termos.
Antes de terminar esta secção, façamos uma referência às ligações não holónomas, que
ficarão excluı́das do formalismo que vamos desenvolver a partir de agora. Uma ligação
holónoma F (w, ~ t) = 0 pode também exprimir-se na forma diferencial

f1 dw1 + · · · + f3N dw3N + f0 dt = 0 , (3.6)


∂F
onde fi = ∂w i
, i = 1, . . . , 3N , f0 = ∂F
∂t , de modo que a forma diferencial (3.6) é uma
forma diferencial exacta (cuja integração conduz à formulação integral da ligação expressa
por (3.6)). Existem no entanto ligações que se expressam em termos de formas diferenciais
que não são exactas, e portanto não admitem uma formulação integral, e são essas ligações
que se chamam não holónomas. Um exemplo é a condição de ‘não deslizamento’ para o
movimento de uma esfera sobre um plano. Um outro exemplo curioso neste contexto é
o da ligação que corresponde à condição de ‘não deslizamento’ imposta a um disco que
rola sobre um plano, porque é um caso em que é natural expressar a ligação na forma
diferencial, mas dá origem a uma diferencial exacta, tratando-se portanto de facto de uma
ligação holónoma. Chamando x à coordenada do centro do disco e θ à coordenada as-
sociada à rotação do disco em torno do centro, a condição de ‘não deslizamento’, isto
é, que seja nula a velocidade do ponto de contacto entre o disco e o plano, escreve-se
ẋ + Rθ̇ = 0 .
Portanto, a expressão ‘natural’ da ligação é dx + Rdθ = 0, que
no entanto é uma diferencial exacta e admite a expressão integral
x + Rθ − c = 0.

3.2 As equações de Lagrange


Por comodidade vamos introduzir notação vectorial também para as coordenadas generali-
zadas e para as velocidades associadas, chamadas velocidades generalizadas,

~q = (q1 , . . . , qn ) , ~q˙ = (q̇1 , . . . , q̇n ) .

As equações paramétricas associadas a um sistema holónomo arbitrário, ~ri = ~ri (q1 , ..., qn , t),
i = 1, . . . , N permitem exprimir também em termos das coordenadas e das velocidades
generalizadas as velocidade ~vi , i = 1, . . . , N de cada uma das partı́culas do sistema, dado
que
n
d X ∂~ri ∂~ri
~vi (~q, ~q˙, t) = ~ri (~q, t) = (~q, t) · q̇j + (~q, t) . (3.7)
dt ∂qj ∂t
j=1

A equação (3.7) permite-nos exprimir a energia cinética do sistema em termos das coorde-
nadas generalizadas.
70 3.2. As equações de Lagrange

Proposição 3.1. Para um sistema holónomo de N pontos materiais a energia cinética


expressa em termos das coordenadas generalizadas e velocidades generalizadas, T̃ (~q, ~q˙, t) =
N
1 P
2 mi~vi2 (~q, ~q˙, t) verifica T̃ = T0 + T1 + T2 , onde
i=1

n n
1 X 1 X
T0 = c(~q, t) , T1 = bj (~q, t)q̇j , T2 = ajk (~q, t)q̇j q̇k ,
2 2
j=1 j,k=1

e os coeficientes c, bj e ajk são dados por

N N N
X ∂~ri ∂~ri X ∂~ri ∂~ri X ∂~ri ∂~ri
ajk = mi · , bj = mi · , c= mi · .
∂qj ∂qk ∂qj ∂t ∂t ∂t
i=1 i=1 i=1

Além disso, a matriz [ajk ] é simétrica e definida positiva.

Demonstração. Introduzindo (3.7) na expressão da energia cinética T̃ vem


  
N n n
! !
1X X ∂~ri  ∂~ri  X ∂~ri ∂~ri
T̃ (~q, ~q˙, t) = mi  q̇j + · q̇k + =
2 ∂qj ∂t ∂qk ∂t
i=1 j=1 k=1
 
N n   n  
1 X X ∂~ri ∂~ri X ∂~ri ∂~ri ∂~ri ∂~ri 
= mi ·  q̇j q̇k · +2 q̇j · + · =
2 ∂qj ∂qk ∂qj ∂t ∂t ∂t
i=1 j,k=1 j=1
n N ! n N
 !
1 X X ∂~ri ∂~ri X X ∂~ri ∂~ri
= q̇j q̇k mi · + q̇j mi · +
2 ∂qj ∂qk ∂qj ∂t
j,k=1 i=1 j=1 i=1
N
1 X ∂~ri ∂~ri
+ mi · = T2 + T1 + T0 .
2 ∂t ∂t
i=1

A propriedade de simetria da matriz dos coeficientes da forma quadrática T2 , [ajk ], é ime-


diata a partir da definição dos ajk . Para ver que é definida positiva, há que ver que T2 > 0
para qualquer escolha de vectores ~q e ~q˙, com ~q˙ não nulo, e qualquer t. Mas, claramente,
N
T2 = 12 mi~vi∗ · ~vi∗ , onde ~vi∗ i = 1, . . . , N são as velocidades virtuais. Se ~q˙ 6= 0, então pelo
P
i=1
menos uma das ~vi∗ é não nula e portanto T2 > 0.

Chama-se matriz cinética à matriz dos coeficientes ajk . Em consequência das pro-
priedades que acabámos de demonstrar, a matriz cinética é não singular, e portanto in-
vertı́vel, e diagonalizável. No caso particular das ligações independentes do tempo, a ener-
gia cinética T̃ (que a partir de agora denotaremos também por T ) coincide com T2 e é
portanto uma forma quadrática homogénea definida positiva.

Calculemos como exemplo de aplicação a energia cinética em coordenadas generalizadas


no sistema holónomo que corresponde a uma partı́cula livre em coordenadas esféricas. Esta-
mos no caso de um sistema holónomo sem ligações, e portanto as coordenadas generalizadas
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 71

são em número igual à dimensão do espaço ambiente, isto é, 3. As equações paramétricas
neste caso são
~r(r, ϕ, θ) = r sin θ cos ϕẽ1 + r sin θ sin ϕẽ2 + r cos θẽ3
e temos
1
T = m(ẋ2 + ẏ 2 + ż 2 ) =
2
m m
= (ṙ sin θ cos ϕ + rθ̇ cos θ cos ϕ − rϕ̇ sin θ sin ϕ)2 + (ṙ sin θ sin ϕ + rθ̇ cos θ sin ϕ +
2 2
2 m 2
+rϕ̇ sin θ cos ϕ) + (ṙ cos θ − rθ̇ sin θ) =
2
mh 2
= ṙ (sin θ cos ϕ + sin2 θ sin2 ϕ + cos2 θ) + r2 θ̇2 (cos2 θ cos2 ϕ+cos2 θ sin2 ϕ+sin2 θ)+
2 2
2
+ r2 ϕ̇2 (sin2 θ sin2 ϕ + sin2 θ cos2 ϕ) + 2rṙθ̇ sinθ cosθ cos2 ϕ − 2rṙϕ̇ sin2 θ cosϕ sinθ −
− 2r2 θ̇ϕ̇ sin θ cos θ cos ϕ sin ϕ + 2rṙθ̇ cos θ sin2 ϕ + 2rṙϕ̇ sin2 θ sin ϕ cos ϕ +
i
+ 2r2 θ̇ϕ̇ cos θ sin θ cos ϕ sin ϕ − 2rṙθ̇ cos θ sin θ =
m 2
= (ṙ + r2 θ̇2 + r2 ϕ̇2 sin2 θ) .
2
Neste caso, a matriz cinética é já diagonal, com diag([ajk ]) = (1, r2 , r2 sin2 θ).

Vamos agora ocupar-nos da expressão do trabalho elementar das forças e do potencial


em termos de coordenadas generalizadas.
Proposição 3.2. Seja F~i a força aplicada na i-ésima partı́cula de um sistema holónomo
N
F~i · δ~ri correspondente a um deslocamento
P
de N partı́culas. O ‘trabalho virtual’ δW =
i=1
n
P ∂~
ri
virtual arbitrário δ~ri = ∂qj δqj vem dado, em termos das coordenadas generalizadas pela
j=1
expressão
N
X n
X
δW = F~i · δ~ri = Qj δqj , (3.8)
i=1 j=1
N
F~i · ∂~
ri
j = 1, . . . , n. Em particular, no caso de as F~i , i = 1, . . . , N serem
P
com Qj = ∂qj ,
i=1
forças puramente posionais e conservativas com F~i = −grad i V , V (w,
~ t),
∂ Ṽ
Qj (~q, t) = − , j = 1, . . . , n ,
∂qj

onde Ṽ (~q, t) = V (w(~


~ q , t), t).
Demonstração. É um simples cálculo. A expressão (3.8) resulta imediatamente da substi-
tuição de δ~ri pela expressão geral de um deslocamento virtual. Quando F~i = −grad i V ,
N 3N
X ∂~ri X ∂V ∂wi ∂ Ṽ
Qj = −grad i V · =− =− .
∂qj ∂wi ∂qj ∂qj
i=1 i=1
72 3.2. As equações de Lagrange

Tal como fizémos para a energia cinética, vamos continuar a denotar por V a função Ṽ ,
pelo habitual abuso de notação que se comete ao identificar uma função pelo seu significado
fı́sico, sem ter em conta a forma explı́tica, que depende do conjunto de coordenadas em que
se trabalha.
Após estes preliminares, estamos em condições de deduzir as equações de Lagrange.
Partamos da equação de Newton na forma mi~ai = F~i + Φ ~ i , i = 1, . . . , N . Esta relação,
N
P~
juntamente com a condição de ligação ideal Φi · δ~ri = 0, implica
i=1

N
X
(m~ai − F~i ) · δ~ri = 0
i=1

para um conjunto arbitrário de deslocamentos virtuais δ~r1 , . . . , δ~rN . Usando a expressão


dos deslocamentos virtuais em termos das coordenadas generalizadas e tendo em conta a
arbitrariedade das componentes δqj a equação anterior implica

N
X ∂~ri
(mi~ai − F~i ) · =0, j = 1, . . . , n (3.9)
∂qj
i=1

ou ainda, usando a proposição 3.2,


N
X ∂~ri
mi~ai · = Qj , j = 1, . . . , n . (3.10)
∂qj
i=1

d ∂T ∂T
Vejamos como o primeiro membro se pode escrever na forma equivalente dt ( ∂ q̇j )− ∂q j
. Como
o primeiro membro de (3.10) e a energia são ambos aditivos no número de partı́culas, basta
provar a igualdade para a contribuição de cada partı́cula, ou seja, basta ver que se tem
 
∂~ri d ∂Ti ∂T
mi~ai · = − , j = 1, . . . , n ,
∂qj dt ∂ q̇j ∂qj

onde Ti designa a energia da i-ésima partı́cula. Ora tem-se


 
∂~ri d ∂~ri d ∂~ri
mi~ai · =m ~vi · − mi~vi · . (3.11)
∂qj dt ∂qj dt ∂qj

Por outro lado, da equação (3.7),


n
X ∂~ri ∂~ri
~vi = q̇j +
∂qj ∂t
j=1

∂~
ri ∂~vi
vem ∂qj = ∂ q̇j , e

n n
!
d ∂~ri X ∂ 2~ri ∂ 2~ri ∂ X ∂~ri ∂~ri ∂~vi
= q̇k + = q̇k + = .
dt ∂qj ∂qj ∂qk ∂t∂qj ∂qj ∂qj ∂t ∂qj
k=1 k=1
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 73

Substituindo em (3.11) temos


 
∂~ri d ∂~vi ∂~vi
mi~ai · = mi ~vi · − mi~vi · =
∂qj dt ∂ q̇j ∂qj
d ∂  mi  ∂  mi  d ∂Ti ∂Ti
= ~vi · ~vi − ~vi · ~vi = − . (3.12)
dt ∂ q̇j 2 ∂qj 2 dt ∂ q̇j ∂qj
Resumindo, as equações (3.10), (3.12) e a segunda parte da proposição 3.2 implicam o
seguinte:
Teorema 3.3. Dado um sistema holónomo de N pontos materiais com n graus de liberdade
sujeito a um certo conjunto de forças aplicadas F~i , i = 1, . . . , N , e, eventualmente, a
ligações ideais, as coordenadas generalizadas q1 , . . . , qn verificam as equações de Lagrange
d ∂T ∂T
− = Qj , j = 1, . . . , n , (3.13)
dt ∂ q̇j ∂qj
onde T (~q, ~q˙, t) é a energia cinética do sistema e Qj (~q, ~q˙, t) , j = 1, . . . , n, são as forças gene-
ralizadas definidas pela equação (3.8). Se, além disso, as forças aplicadas forem puramente
posicionais e conservativas com potencial V (w, ~ t), então as equações (3.13) tomam a forma
 
d ∂L ∂L
− = 0 , j = 1, . . . , n , (3.14)
dt ∂ q̇j ∂qj
onde L(~q, ~q˙, t) é o lagrangeano do sistema definido por L = T − V .
Demonstração. As equações (3.13) resultam imediatamente de (3.10) e (3.12). No caso con-
∂ Ṽ
servativo, temos pela proposição 3.2 que Qj = Qj (~q, t) = − ∂q j
, onde Ṽ (~q, t) = V (w(~
~ q , t), t).
Logo,
∂L ∂T ∂L ∂T ∂ Ṽ ∂T
= , = − = + Qj ,
∂ q̇j ∂ q̇j ∂qj ∂qj ∂qj ∂qj
de modo que (3.13) e (3.14) são equivalentes.
Vejamos qual é a forma das equações de Lagrange do ponto de vista matemático. Pela
proposição 3.1,
n n
1 X X 1
T (~q, ~q˙, t) = aik (~q, t)q̇i q̇k + bi (~q, t)q̇i + c(~q, t)
2 2
i,k=1 i=1

de maneira que
n
d ∂T ∂T X
− = ajk (~q, t)q̈k + gj (~q, ~q˙, t) ,
dt ∂ q̇j ∂qj
k=1
onde
n n
!
d X 1 X ∂~aik
gj (~q, ~q˙, t) = ajk (~q, t)q̇k + bj (~q, t) − q̇i q̇k −
dt 2 ∂qj
k=1 i,k=1
n n
∂bi 1 ∂c
X X
− q̇i − − ajk q̈k =
∂qj 2 ∂qj
i=1 k=1
n   n  
X ∂ajk 1 ∂aik X ∂bj ∂bk ∂ajk ∂bj 1 ∂c
= − q̇i q̇k + − + q̇k + −
∂qi 2 ∂qj ∂qj ∂qj ∂t ∂t 2 ∂qj
i,k=1 k=1
74 3.2. As equações de Lagrange

não depende das segundas derivadas das coordenadas generalizadas. Portanto, as equações
de Lagrange são do tipo
n
X
ajk (~q, t)q̈j + gj (~q, ~q˙, t) = Qj (~q, ~q˙, t) , j = 1, . . . , n ,
k=1

e, como a matriz cinética é invertı́vel, podem passar-se à forma normal para um sistema de
n equações diferenciais de segunda ordem,
n
X
q̈j = fj (~q, ~q˙, t) , fj (~q, ~q˙, t) = a−1
jk (Qk − gk ) , j = 1, . . . , n .
k=1

Pelo teorema de existência e unicidade, dado um conjunto de posições e velocidades iniciais


expressas em função das coordenadas generalizadas, a solução ~q(t; ~q(0), ~q˙(0)) fica determi-
nada unı́vocamente, e portanto o movimento do sistema fica determinado. ‘A posteriori’ é
~ i , i = 1, . . . , N , usando
possı́vel achar para cada órbita a expressão das forças de ligação Φ
a relação
~ i = m~ai − F~i
Φ
uma vez conhecida a aceleração de cada partı́cula para essa órbita.
Como veremos, equações da forma (3.14) aparecem naturalmente associadas a proble-
mas variacionais. No caso geral, a função lagrangeana L não tem necessariamente um
significado em termos mecânicos, e, em particular, não será dada por T − V , mas pode
ser qualquer função de n funções incógnitas, das suas primeiras derivadas, e da variável
independente. Os lagrangeanos da forma L = T − V chamam-se lagrangeanos naturais, por
oposição aos lagrangeanos gerais a que acabámos de fazer referência.

A própria dedução das equações de Lagrange deixa adivinhar uma propriedade muito
importante destas equações, que é a sua invariância com respeito a mudanças de coorde-
nadas. De facto, deduzimos as equações de Lagrange partindo de um conjunto arbitrário
de coordenadas generalizadas para um sistema holónomo, o que faz esperar que a forma
das equações seja independente do conjunto de coordenadas escolhido. De facto, tem-se o
seguinte:
Proposição 3.4. Seja um sistema lagrangeano, de lagrangeano L(~q, ~q˙, t), consideremos
uma mudança de variáveis regular e invertı́vel
 
∂ q̇j
qj = qj (q̃1 , . . . , q̃n , t) , j = 1, . . . , n , det 6= 0 ,
∂ q̃k
˙ ˙
   
e seja L̃ ~q̃, ~q̃, t = L ~q(~q̃, t), ~q˙(~q̃, ~q̃, t), t , com
n
X ∂qj ˙ ∂qj
q̇j = q˜k + ,
∂ q̃k ∂t
k=1

˙
o lagrangeano expresso nas novas coordenadas ~q̃ e nas velocidades generalizadas ~q̃. Então,
o movimento ~q̃(t) é solução das equações de Lagrange correspondentes a L̃ se e só se o
movimento ~q(t), imagem de ~q̃(t) pela mudança de variáveis, é solução das equações de
Lagrange associadas a L.
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 75

n
P ∂qj ˙ ∂qj ∂ q̇j ∂qj
Demonstração. Da equação q̇j = ∂ q̃k q̃k + ∂t vem ∂ q̃˙i
= ∂ q̃i e
k=1

n
X ∂ 2 qj ∂ 2 qj
 
∂ q̇j d ∂qj
= q̃˙k + = .
∂ q̃i ∂ q̃k ∂ q̃i ∂t∂ q̃i dt ∂ q̃i
k=1

Então,
n n    
∂ L̃ X ∂L ∂qk d ∂ L̃ X d ∂L ∂qk ∂L ∂ q̇k
= , = · + ,
∂ q̃˙j k=1
∂ q̇k ∂ q̃j dt ∂ q̃˙j
k=1
dt ∂ q̇k ∂ q̃j ∂ q̇k ∂ q̃j
n  
∂ L̃ X ∂L ∂qk ∂L ∂ q̇k
= + ,
∂ q̃j ∂qk ∂ q̃j ∂ q̇k ∂ q̃j
k=1

e portanto
n  
d ∂ L̃ ∂ L̃ X d ∂L ∂L ∂qk
− = − , j = 1, . . . , n .
dt ∂ q̃˙j ∂ q̃j dt ∂ q̇k ∂qk ∂ q̃j
k=1

Dado que o determinante ∂q ∂ q̃j 6= 0, as equações de Lagrange relativas a L̃ são verificadas
k
se e só se as equações de Lagrange relativas a L são verificadas.

É difı́cil sobrestimar a importância deste resultado: ao contrário da equação de Newton,


que é válida apenas nas coordenadas associadas a um referencial inercial, este formalismo é
invariante para mudanças de coordenadas e admite mudanças de coordenadas dependentes
do tempo. A maneira natural de tratar o movimento relativo neste quadro é portanto a
de escrever o lagrangeano inercial e fazer depois as mudanças de coordenadas (dependentes
do tempo) adequadas, em vez do procedimento que vimos no capı́tulo anterior e que leva à
introdução de forças de inércia.
Adiante veremos um exemplo de aplicação desta nova perspectiva. Antes disso, porém,
faremos notar que o lagrangeano associado a um problema não é único, no sentido em que
L(~q, ~q˙, t) e L0 (~q, ~q˙, t) = cL(~q, ~q˙, t) + dt
d
F (~q, t), onde c é uma constante arbitrária e F uma
função regular arbitrária, dão origem às mesmas equações de Lagrange. A observação é
óbvia no que diz respeito à constante multiplicativa c. Por outro lado, seja
n  
d X ∂F ∂F
L0 (~q, ~q˙, t) = F (~q, t) = q̇k + .
dt ∂qk ∂t
k=1

Então,
n 
∂2F ∂2F
  
d ∂L0 d ∂F X ∂
= = q̇k + = L0 ,
dt ∂ q̇j dt ∂qj ∂qk ∂qj ∂qj ∂t ∂qj
k=1

ou seja,
d ∂L0 ∂L0
− ≡0.
dt ∂ q̇j ∂qj
A forma (3.14) das equações de Lagrange vale como vimos no caso das forças aplicadas
puramente posicionais e conservativas. Suponhamos que não estamos neste caso e que
76 3.2. As equações de Lagrange

as forças aplicadas dependem da velocidade mas que existe uma função V (~q, ~q˙, t), que
generaliza o potencial, que veficica
d ∂V ∂V
Qj = − , j = 1, . . . , n .
dt ∂ q̇j ∂qj
Então, claramente, as equações (3.13) também se podem escrever na forma (3.14). Um
exemplo interessante em que se verificam estas condições e o da força de Coriolis,
F~ = 2m~q˙ ∧ ω
~ , ω
~ = constante ,
que deriva do potencial dependente da velocidade V1 (~q, ~q˙, t) = −m(~q˙ ∧ ω
~ ) · ~q. De facto, da
expressão de V1 vem imediatamente
∂V1  
= −m ~q˙ ∧ ω~ .
∂qj j

Por outro lado, temos a expressão equivalente V1 (~q, ~q˙, t) = −m~q˙ · (~


ω ∧ ~q), e portanto
∂V1
= −m(~
ω ∧ ~q)j ,
∂ q̇j
de modo que
d ∂V1 ∂V
− ω ∧ ~q˙)j + m(~q˙ ∧ ω
= −m(~ ~ )j = 2m(~q˙ ∧ ω
~ )j .
dt ∂ q̇j ∂qj
Se considerarmos um referencial em rotação uniforme com velocidade angular ω ~ temos,
para além da força de Coriolis, o termo centrı́fugo das forças de inércia, mω r ~rr , onde
2

r é a distância da posição da partı́cula ao eixo de rotação e ~r é o vector de posição da


partı́cula no plano perpendicular ao eixo de rotação. O termo centrı́fugo, portanto, é
puramente posicional e conservativo, e deriva do potencial V2 (~q) = − m 2 2
2 ω r . Portanto, as
equações do movimento de uma partı́cula livre num referencial em rotação uniforme com
velocidade angular ω ~ são as equações (3.14) com L = T − V1 − V2 e T = m 2 2 2
2 (q1 + q2 + q3 ).
No entanto, como se disse antes, a maneira natural de tratar este problema no quadro
do formalismo lagrangeano é simplesmente escrever o lagrangeano da partı́cula livre no
referencial inercial e depois fazer a mudança de coordenadas dependente do tempo que
corresponde a passar ao referencial móvel, ou seja, não é necessário recorrer ao conceito
de forças de inércia, dada a invariância das equações. Suponhamos então para simplificar
que o eixo de rotação se faz coincidir com o eixo dos zz dos dois sistemas, de maneira que
as coordenadas x, y, z no referencial inercial e as coordenadas q1 , q2 , q3 no referencial em
movimento estão relacionadas pelas equações
x = q1 cos ωt − q2 sin ωt , y = q1 sin ωt − q2 cos ωt , z = q3 .
O lagrangeano L̃(x, y, z, ẋ, ẏ, ż) = T (ẋ, ẏ, ż) = m 2 2 2
2 (ẋ + ẏ + ż ). Então, o movimento
nas coordenadas  q1 , q2 , q3 é dado pelas equações  de Lagrange associadas ao lagrangeano
L(~q, ~q˙, t) = L̃ ẋ(~q, ~q˙, t), ẏ(~q, ~q˙, t), ż(~q, ~q˙, t) . Ora

ẋ = q̇1 cos ωt − ωq1 sin ωt − q̇2 sin ωt − ωq2 cos ωt


ẏ = q̇1 sin ωt + ωq1 cos ωt + q̇2 cos ωt − ωq2 sin ωt
ż = q̇3
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 77

de modo que
mh
L(~q, ~q˙, t) = (q̇1 cos ωt − ωq1 sin ωt − q̇2 sin ωt − ωq2 cos ωt)2 +
2 i
+ (q̇1 sin ωt + ωq1 cos ωt + q̇2 cos ωt − ωq2 sin ωt)2 + q̇32 =
m 2
= q̇ + q̇22 + q̇32 + ω 2 (q12 + q22 ) − 2(q̇1 cos ωt − ωq1 sin ωt)(q̇2 sin ωt +
2 1 i
+ ωq2 cos ωt) + 2(q̇1 sin ωt + ωq1 cos ωt)(q̇2 cos ωt − ωq2 sin ωt) =
m 2 mω 2 2
= (q̇1 + q̇22 + q̇32 ) + (q1 + q22 ) −2ω(q2 q̇1 − q1 q̇2 ) .
2 2 }| {z }
−V1
| {z } | {z
T −V2
Para finalizar esta secção, e como aplicação das equações de Lagrange, vamos tratar
o movimento do pião de Lagrange, isto é, o movimento de um corpo rı́gido axialmente
simétrico, pesado, e com um ponto fixo. As coordenadas generalizadas para este problema
são os ângulos de Euler, como vimos no capı́tulo anterior, mas agora que dispomos de uma
nova maneira de abordar os problemas mecânicos vamos tomar como ponto de partida, em
vez das equações de Euler, deduzidas no quadro do formalismo newtoniano, o lagrangeano
do sistema
I1 I3
L(θ, ϕ, ψ, θ̇, ϕ̇, ψ̇) = T − V = (θ̇2 + ϕ̇2 sin2 θ) + (ψ̇ + ϕ̇ cos θ)2 − mgl cos θ , (3.15)
2 2
onde os dois primeiros termos do segundo membro são a expressão da energia cinética em
termos dos ângulos de Euler (2.27) obtida no capı́tulo anterior, e l é a altura sobre o eixo de
simetria a que se encontra o centro de massa do corpo, de modo que mgl cos θ é a energia
potencial gravı́tica do sistema.
Da equação (3.15) e das equações de Lagrange para ϕ e ψ resultam imediatamente duas
constantes do movimento,
 
d ∂L ∂L ∂L
= =0 ⇒ = I1 ϕ̇ sin2 θ + I3 (ψ̇ + ϕ̇ cos θ) cos θ = constante, (3.16)
dt ∂ ϕ̇ ∂ϕ ∂ ϕ̇
 
d ∂L ∂L ∂L
= =0 ⇒ = I3 (ψ̇ + ϕ̇ cos θ) = constante, (3.17)
dt ∂ ψ̇ ∂ψ ∂ ψ̇
e é fácil identificar o significado fı́sico de cada uma destas integrais primeiras: (3.16) corres-
ponde à componente Lz do momento angular do sistema segundo o eixo dos zz do referencial
fixo, e (3.17) corresponde à componente L3 do momento angular do sistema segundo o eixo
dos zz do referencial solidário com o corpo. Uma maneira de comprovar estas afirmações
é, a partir das respectivas definições, escrever estas duas quantidades, Lz e L3 , em termos
dos ângulos de Euler. Outra maneira, mais elegante, é recordar o que aprendemos sobre a
relação entre simetrias e quantidades conservadas. Temos portanto
Lz = I1 ϕ̇ sin2 θ + I3 (ψ̇ + ϕ̇ cos θ) cos θ , L3 = I3 (ψ̇ + ϕ̇ cos θ) , (3.18)
duas integrais primeiras independentes para o problema, para além da energia T + V .
Usando (3.18) para exprimir ϕ̇ em termos de θ e das constantes,
Lz − L3 cos θ
ϕ̇ = , (3.19)
I1 sin2 θ
78 3.2. As equações de Lagrange

e utilizando novamente (3.18) podemos reescrever o lagrangeano tendo em conta a in-


formação de que dispomos sobre quantidades conservadas, e vem
I1 2 (Lz − L3 cos θ)2 L32
L = L(θ, θ̇) = θ̇ + + − mgl cos θ ,
2 2I1 sin2 θ 2I3
ou seja, o problema original ficou reduzido a um problema unidimensional, e dispomos
ainda da integral primeira da energia
I1 2 (Lz − L3 cos θ)2
E= θ̇ + + mgl cos θ , (3.20)
2 2I1 sin2 θ
onde desprezámos o termo constante L32 /2I3 .
Neste momento, o nosso problema original já está virtualmente integrado: a equação
(3.19) pode resolver-se em ordem a θ̇, o que permite depois obter θ(t) por quadraturas;
uma vez conhecido θ(t), as equações (3.18) podem também resolver-se em ordem a ϕ̇ e ψ̇,
para depois por quadraturas obter ϕ(t) e ψ(t).
Este programa é factı́vel, mas vamos em vez disso levar a cabo uma análise simples mas
astuciosa do problema unidimensional associado a (3.20) que nos vais dar muita informação
sobre o movimento.
Comecemos por introduzir a variável auxiliar u = cos θ. Em termos de u, (3.19) escreve-
-se
a − bu Lz L3
ϕ̇ = 2
, a= , b= .
1−u I1 I1
Por outro lado, de (3.20) temos

2E (Lz − L3 cos θ)2 2mgl


θ̇2 = − − cos θ ,
I1 I12 sin2 θ I1

e como u̇ = −θ̇ sin θ, a conservação da energia da


variável u escreve-se
u̇2 = (1 − u2 )(α − βu) − (a − bu)2 = f (u) , (3.21)
onde α = 2E/I1 e β = 2mgl/I1 > 0. A função f (u) é uma cúbica com coeficiente do
termo de terceira ordem positivo, e verifica f (±1) < 0. Por outro lado, em consequência
da equação (3.21), tem que ser f (u) ≥ 0 nalgum intervalo [u1 , u2 ] ⊂ (−1, 1). Portanto, o
comportamento da função f (u) é do tipo do representado na figura acima e, pela equação
(3.21), a variável u apenas pode tomar valores no intervalo [u1 , u2 ]. Em termos da variável
original θ, isto implica que o ângulo de nutação θ só pode tomar valores num certo intervalo
[θ1 , θ2 ]. Vejamos agora o que é que acontece com a variável de precessão ϕ. Da equação
ϕ̇ = (a − bu)/(1 − u2 ), segue-se que caso u = a/b não pertença a [u1 , u2 ], ϕ(t) é monótona;
enquanto que se u = a/b ∈ [u1 , u2 ], ϕ̇ tem sinais opostos sobre a linha θ = θ1 e sobre
a linha θ = θ2 . Em cada um dos casos, o movimento será tal que a linha traçada pela
intersecção do eixo do pião com a esfera unitária é como se indica na figura em baixo, onde
se representou também o caso limite a/b = u2 .
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 79

3.3 As equações de Hamilton


As equações de Hamilton surgem de maneira natural a partir das equações de Lagrange
quando tentamos escrevê-las como um sistema de 2n equações diferenciais ordinárias de
primeira ordem na forma normal seguindo, em vez do processo ‘standard’, um outro ca-
minho que como veremos é sugerido pela própria forma das equações de Lagrange. A
importância desta terceira formulação alternativa da mecânica clássica é enorme tanto do
ponto de vista da fı́sica como do ponto de vista da matemática: o formalismo hamiltoniano
permite entender a analogia profunda que existe entre a mecânica e a óptica, assim como a
passagem da mecânica clássica à mecânica quântica; é básico para formular e fundamentar
a fı́sica estatı́stica; é o ponto de partida para a teoria de perturbações a que é necessário
recorrer para tratar a maioria dos problemas; e pôr em evidência a geometria especı́fica do
espaço de fases.
Vimos já que as equações de Lagrange associadas a um determinado lagrangeano L
são n equações diferenciais de segunda ordem que podem ser escritas como um sistema na
forma normal desde que se cumpram determinadas condições que os lagrangeanos naturais
verificam sempre. Um sistema de n equações de segunda ordem na forma normal pode
sempre escrever-se como um sistema de 2n equaçõe de primeira ordem na forma normal,
definindo n novas variáveis independentes que são as velocidades generalizadas. No entanto,
a própria forma das equações de Lagrange,
 
d ∂L ∂L
= , j = 1, . . . , n , (3.22)
dt ∂ q̇j ∂qj
sugere um outro processo para obter a partir delas um sistema de 2n equações de primeira
ordem na forma normal. Sejam
∂L
pj = , j = 1, . . . , n . (3.23)
∂ q̇j
Então, as equações (3.22) escrevem-se
∂L
ṗj = , j = 1, . . . , n , (3.24)
∂qj
e as equações (3.23), se forem invertı́veis com respeito a q̇j , j = 1, . . . , n, fornecem, junta-
mente com (3.24), um conjunto de 2n equações de primeira ordem nas variáveis ~q, p~.
A questão que se põe é portanto a de saber se as equações (3.23) deh definição
i das novas
˙ ∂2L
variáveis p~ se podem resolver em ordem aos ~q, ou seja, se a matriz ∂ q̇i ∂ q̇j hessiana do
lagrangeano com respeito às velocidades generalizadas é não singular. Para os lagrangeanos
naturais, vimos na secção anterior que
n
∂L X
pj = = ajk q̇k + bj , j = 1, . . . , n ,
∂ q̇j
k=1

onde ajk e bj são funções de ~q e t, e [ajk ] é a matriz cinética. Portanto, para os lagrangeanos
naturais a condição de invertibilidade de (3.23) verifica-se sempre e pobemos escrevê-las na
forma
q̇j = q̇j (~q, p~, t) , j = 1, . . . , n , (3.25)
80 3.3. As equações de Hamilton

que, juntamente com (3.24), formam um conjunto de 2n equações de primeira ordem na


forma normal cujas soluções determinam o movimento do sistema mecânico em causa.
Podemos resumir e formalizar estas conclusões na seguinte proposição:

Proposição ˙
 2 3.5.  Consideremos um lagrangeano natural L(~q, ~q, t), ou um lagrangeano geral
com det ∂ ∂q̇i ∂Lq̇j 6= 0. Então, os sistemas

∂L
 ~q˙ = ∂H
 
 p~ = ∂ q~˙ ∂~
p
e , (3.26)
 p~˙ = ∂L  ˙
∂~
q p~ = − ∂H
∂~
q
h i
onde H(~q, p~, t) = p~ · ~q˙ − L(~q, ~q˙, t) ˙ e ~q˙(~q, p~, t) é dada pela inversa de (3.23), são
q~=q~˙(~
q ,~
p,t)
equivalentes. Além disso, tem-se
∂H ∂L
=− .
∂t ∂t
Demonstração. Nas hipóteses da proposição, ~q˙(~q, p~, t) está bem definida e portanto H =
H(~q, p~, t) também está bem definida. Tem-se

∂L ˙ ∂L ∂L ∂L
dH = p~ · d~q˙ + ~q˙ · d~
p− d~q − dt = ~q˙ · d~
p− · d~q − dt ,
˙
∂ ~q ∂t ∂~
q ∂t

pelo que ~q˙ = ∂H ∂H


p , ∂~
∂~ q = − ∂L ~˙, e
q = −p
∂~
∂H
∂t = − ∂L
∂t , de modo que o resultado segue.

A função H(~q, p~, t) chama-se hamiltoniano do sistema e as equações (3.26), equações do


movimento nas variáveis ~q, p~, equações canónicas ou de Hamilton.
Recordemos a decomposição da energia cinética T do sistema em função das coordenadas
generalizadas T = T2 + T1 + T0 , onde o termo Ti é homogéneo de grau i nas velocidades
generalizadas. Então,
∂L ˙ ∂T ˙
· ~q = · ~q = 2T + T1 = p~ · ~q˙
∂ ~q˙ ∂ ~q˙
e vem, da definição do hamiltoniano H = p~ · ~q˙ − L,

H = 2T2 + T1 − T + V = T2 − T0 + V .

No caso particular das ligações independentes do tempo, é como se viu na secção anterior:
T = T2 , T0 = 0 e temos
H =T +V ,
ou seja, o hamiltoniano de um sistema mecânico com ligações independentes do tempo
coı́ncide com a energia total do sistema. Para estes sistemas, podemos obter directamente
as equações do movimento escrevendo a energia total em termos das coordenadas ~q e p~,
ou seja, a única relação do formalismo lagrangeano de que precisamos é a definição das
coordenadas p~ dada por (3.23).

Note-se que, a menos de um sinal, o hamiltoniano coı́ncide com a transformada de Legen-


dre do lagrangeano nas velocidades generalizadas. Como é bem sabido da Termodinâmica,
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 81

este é o procedimento natural quando pretendemos passar de uma função de certas variáveis,
por exemplo, a energia interna U (S, V ), para uma outra função de estado cujas variáveis
sejam ∂U ∂S = T e V : a energia livre F (T, V ) é a transformada de Legendre da energia interna
na entropia e F = U − T S.

As variáveis ~q, p~ do formalismo hamiltoniano chamam-se coordenadas generalizadas e


momentos conjugados, e o espaço enquadrado por estas variáveis chama-se espaço de fases
que se distingue portanto do espaço de configurações enquadrado pelas variáveis ~q, e do
espaço de estados do sistema, enquadrado pelas coordenadas e velocidades generalizadas
~q, ~q˙.
Consideremos uma mudança de variáveis no espaço de configurações, ~q = ~q(~q̃), que
vamos supor para simplificar a notação que é independente do tempo. Esta mudança de
variáveis induz uma mudança de variáveis no espaço de estados,
 
˙ ∂qj
~q = ~q(~q̃) , ~q˙ = J(~q)~q̃ , J(~q) = ,
∂ q̃k
e dada a invariância do lagrangeano, o sistema é descrito nas novas coordenadas por
˙ ˙
 
L̃(~q̃, ~q̃, t) = L ~q(~q̃), J(~q(~q̃)) ~q̃, t .

Daqui é imediato deduzir que a transformação induzida no espaço de fases pela trans-
formação pontual considerada é
 −1
~q = ~q(~q̃) , p~ = J> p̃~ .

De facto,
n n
∂ L̃ X ∂L ∂ q̇k X ∂qk
p̃j = = = pk ⇒ p̃~ = J> p~ .
∂ q̃˙j k=1
∂ q̇k ∂ q̃˙j
k=1
∂ q̃j
Portanto, qualquer transformação pontual, isto é, mudança de coordenadas no espaço
de configurações, se pode estender a uma mudança de coordenadas no espaço de fases que
preserva a forma das equações de Hamilton. Mais adiante estudaremos a classe mais geral
das transformações do espaço de fases que têm esta propriedade.

Vejamos agora alguns exemplos simpes de sistemas na sua formulação lagrangeana e


hamiltoniana. O sistema mais simples não trivial é o de um ponto de massa m sujeito a
um potencial V . Em coordenadas cartesianas, temos
m 2
L=T −V = (ẋ + ẏ 2 + ż 2 ) + V (x, y, z)
2
e os momentos conjugados de x, y e z, px , py e pz , vêm dados por
∂L ∂L ∂L
px = = mẋ , py = = mẏ , pz = = mż ,
∂ ẋ ∂ ẏ ∂ ż
de modo que
p2x + p2y + p2z
H =T +V = + V (x, y, z) .
2m
82 3.3. As equações de Hamilton

Suponhamos que a simetria do potencial nos leva a preferir coordenadas cilı́ndricas (r, θ, z),
com
x = r cos θ , y = r sin θ , z = z .
Substituindo ẋ = ṙ cos θ − rθ̇ sin θ, ẏ = ṙ sin θ + rθ̇ cos θ, ż = ż na expressão da energia
cinética vem
m
L(r, θ, z, ṙ, θ̇, ż) = (ṙ2 + r2 θ̇2 + ż 2 ) − V (r, θ, z) ,
2
de modo que os momentos conjugados das novas coordenadas generalizadas r, θ, z são dados
por
pr = mṙ , pθ = mr2 θ̇ , pz = mż ,
e o hamiltoniano é
p2
 
1
H(r, θ, z, pr , pθ , pz ) = p2r + 2θ + p2z + V (r, θ, z) .
2m r
Se quisermos descrever o sistema usando coordenadas esféricas, vimos já que a energia
cinética se escreve
m
T = (ṙ2 + r2 θ̇2 + r2 sin2 θ ϕ̇2 ) ,
2
de modo que se tem
m 2
L(r, θ, ϕ, ṙ, θ̇, ϕ̇) = (ṙ + r2 θ̇2 + r2 sin2 θ ϕ̇2 ) − V (r, θ, ϕ) ,
2
pr = mṙ , pθ = mr2 θ̇ , pϕ = mr2 sin2 θ ϕ̇ ,
!
1 2 p2θ p2ϕ
H(r, θ, ϕ, ṙ, θ̇, ϕ̇) = pr + 2 + 2 2 + V (r, θ, ϕ) .
2m r r sin θ
Note-se que nestes três casos, como acontece sempre que as linhas coordenadas se intersec-
tam umas às outras perpendicularmente, a matriz cinética é diagonal.
Uma situação importante em que se impõe a escolha de coordenadas esféricas é o caso
de um sistema formado por duas partı́culas com interacções de tipo clássico, isto é, com
forças de interacção simétricas uma da outra, centrais e com simetria esférica. Para os
problemas de dois corpos, vimos já que é conveniente tomar como coordenadas generalizadas
as coordenadas do centro de massa e as coordenadas de uma das partı́culas em relação à
outra. É fácil ver que
m1 2 m2 2 m µ
T = (ẋ1 + ẏ12 + ż12 ) + (ẋ2 + ẏ22 + ż22 ) = (Ẋ 2 + Ẏ 2 + Ż 2 ) + (ẋ2 + ẏ 2 + ż 2 ) ,
2 2 2 2
onde xi , yi , zi , mi são as coordenadas e a massa da partı́cula i, i = 1, 2, m = m1 + m2 , µ é
a massa reduzida do sistema, X, Y, Z são as coordenadas do centro de massa e x, y, z são
as coordenadas de uma das partı́culas em relação à outra. Como o potencial é apenas o
potencial de interacção que tem simetria esférica, é conveniente passar x, y, z a coordenadas
esféricas, de modo que fica
m 2 µ
L = (ẋ + ẏ 2 + ż 2 ) + (ṙ2 + r2 θ̇2 + r2 sin2 θ ϕ̇2 ) − V (r) ,
2 2 !
p2x + p2y + p2z 1 2 p2θ p2ϕ
H = + pr + 2 + 2 2 + V (r) ,
2m 2µ r r sin θ
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 83

onde px = mẋ, py = mẏ, pz = mż.


Vejamos agora alguns exemplos simples de sistemas com ligações. Consideremos o
sistema formado por uma massa m sujeita a mover-se sobre uma recta sob a acção de uma
força elástica. Fazendo coincidir o eixo dos xx com essa recta, as equações de ligação são
simplesmente
x=x, y=0, z=0,
de modo que o lagrangeano é
ẋ2 x2
L=m −k ,
2 2
e o hamiltoniano é
p2x x2
H= +k .
2m 2
Outro sistema ligado é o pêndulo simples no plano vertical Oxy. É um problema com
um grau de liberdade, e as equações de ligação são

x = l sin θ , y = −l cos θ , z=0,

tomando como é habitual o ângulo θ medido a partir do semieixo negativo dos yy. O
potencial é V = mgy = −mgl cos θ, de modo que fica

m 2 2 p2θ
L= l θ̇ + mgl cos θ , H= − mgl cos θ .
2 2ml2
A generalização para o pêndulo esférico, tendo em conta a expressão da energia cinética
em coordenadas esféricas obtida anteriormente, é imediata e vem
!
1 2 2 2 2 1 2
p2ϕ
L = mR (θ̇ + sin θ ϕ̇ ) − mgR cos θ , H = pθ + + mgR cos θ ,
2 2mR2 sin2 θ

onde R é o comprimento do pêndulo (e portanto o valor fixo da coordenada esférica r), e θ


se tomou coincidente com o ângulo homónimo das coordenadas esféricas.
Finalmente, vamos estudar um exemplo importante de potencial dependente da veloci-
dade, que inclui como caso particular a força de Coriolis, cujo tratamento lagrangeano se
viu na secção anterior. Uma partı́cula carregada num campo electromagnético fica sujeito
a uma força dada por
F~ = e(E~ + ~q˙ ∧ B)
~ , (3.27)
~ o campo eléctrico, e B
onde e é a carga da partı́cula, E ~ o campo magnético. O termo da
~
força de Lorentz tem, no caso em que B é constante, exactamente a mesma forma do termo
de Coriolis, o que sugere a possibilidade de, também no caso geral, a força F~ derivar de um
potencial dependente da velocidade, V (~q, ~q˙, t). Recordemos que a condição a verificar pelo
potencial é
d ∂V ∂V
Fj = − , j = 1, 2, 3 ,
dt ∂ q̇j ∂qj
e que, das equações do electromagnetismo se tem
~
~ = −(grad φ + ∂ A ) ,
E ~ = rot A
B ~,
∂t
84 3.4. Teorema de Noether

~ q , t) são o potencial escalar e o potencial vector, respectivamente. Vejamos


onde φ(~q, t), A(~
então que
V (~q, ~q˙) = eφ − e~q˙ · A
~

é o potencial de que deriva a força dada por (3.27). Temos

3 3
! !
∂V d ∂V X ∂Aj ∂Aj ∂V ∂φ X ∂Ak
= −eAj , = −e q̇k + , =e − q̇k ,
∂qj dt ∂ q̇j ∂qk ∂t ∂qj ∂qj ∂qj
k=1 k=1

de modo que
    3  
d ∂V ∂V ∂φ ∂Aj X ∂Aj ∂Aj
− = −e + +e − q̇k ,
dt ∂ q̇j ∂qj ∂qj ∂t k=1
∂qj ∂qk
| {z } k6=j
=eEj | {z }
=(q~˙∧rot A
~)
j

e portanto o lagrangeano deste sistema escreve-se


m
L(~q, ~q˙, t) = T − V = ~q˙2 − eφ(~q, t) + e~q˙ · A(~
~ q , t) .
2
Vejamos agora qual a formulação hamiltoniana deste mesmo problema. Da definição de
momento conjugado temos
∂L
p~ = = m~q˙ + eA
˙
∂ ~q
que é sempre invertı́vel em relação a ~q˙ com

~
p~ − eA
~q˙(~q, p~, t) = .
m
O hamiltoneano fica então
!2 !
h i ~
p~ − eA m ~
p~ − eA ~
p~ − A
H(~q, p~, t) = p~ · ~q˙ − L ˙ ~ = p~ · − + eφ − e ~=
·A
q~= p~−e
m
A
m 2 m m
!
~
p~ − eA ~ 2
p − eA) ~ 2
p − eA)
= (~ ~ − (~
p − eA) + eφ =
(~
+ eφ .
m 2m 2m

3.4 Teorema de Noether


Nesta secção estamos interessados em falar de leis de conservação, isto é, da identificação
de constantes do movimento, aspecto que, como se viu, tem grande importância tanto do
ponto de vista conceptual como do ponto de vista prático.
Dentro das possı́veis integrais do movimento, a energia desempenha um papel especial
de modo que vamos começar por falar da análise da conservação da energia no quadro dos
formalismos lagrangeano e hamiltoniano.
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 85

Dado um lagrangeano L(~q, ~q˙, t), seja a função


n
X ∂L
E(~q, ~q˙, t) = q̇j −L ,
∂ q̇j
j=1

que coincide com o hamiltoniano expresso em termos das coordenadas e velocidades gene-
ralizadas. Tem-se
n    Xn  
dE X ∂L d ∂L ∂L ∂L ∂L ∂L
Ė = = q̈j + q̇j − q̇j + q̈j − =− , (3.28)
dt ∂ q̇j dt ∂ q̇j ∂qj ∂ q̇j ∂t ∂t
j=1 j=1

onde a segunda igualdade é absolutamente geral pois só depende da utilização das próprias
equações de Lagrange. Portanto, sempre que L não depende explı́citamente de t, E(~q, ~q˙)
é uma quantidade conservada. Vejamos em vários casos qual é o significado fı́sico desta
integral primeira.
Se for L(~q, ~q˙) = T (~q˙) − V (~q), sendo T função homogénea de grau 2 nas velocidades
generalizadas, isto é, se tivermos um lagrangeano natural com ligações independentes do
tempo e forças conservativas puramente posicionais, então
n
X ∂T
E= q̇j − L = 2T − L = T + V .
∂ q̇j
j=1

Se for L(~q, ~q˙) = T (~q˙) − V (~q, ~q˙) sendo T homogénea de grau 2, isto é, se tivermos um
lagrangeano natural com ligações independentes do tempo e forças que derivam de um
potencial dependente das velocidades V (~q, ~q˙), e se além disso for V (~q, ~q˙) = V0 (~q) + V1 (~q, ~q˙)
com V1 linear em ~q˙, como no caso da força de Coriolis e da força de Lorentz, então é

E = 2T − V1 − (T − V0 − V1 ) = T + V0 .

Em qualquer destes dois casos, E tem o significado fı́sico da energia total do sistema, dado
que as forças associadas ao potencial V1 são perpendiculares às trajectórias e portanto,
como realizam trabalho nulo, não intervêm no balanço de energia.
Finalmente, consideremos o caso em que estão presentes forças generalizadas Qj (~q, ~q˙)
dissipativas, isto é, que não derivam de um potencial nem em sentido estrito nem em sentido
lato dependente da velocidade. Nesse caso, a equação (3.28) modifica-se para
n
X ∂L
Ė = Qj q̇j − .
∂t
j=1

Suponhamos que o lagrangeano L não depende explı́citamente do tempo. Então vem


n
X
Ė = Qj q̇j (3.29)
j=1

e, se o sistema, à parte a presença das forças generalizadas Qj , estiver nas hipóteses de um


dos dois casos anteriores o significado da equação (3.29) é o do balanço da energia para um
sistema na presença de forças dissipativas. No caso particular da equação (3.29) em que
86 3.4. Teorema de Noether

V = 0, isto é, em que se consideram no segundo membro todas as forças presentes, obtemos
a versão lagrangeana do teorema da energia cinética,
n
X
Ṫ = Qj q̇j .
j=1

Do ponto de vista hamiltoneano, esta análise é ainda mais directa. Decorre imediata-
mente da forma das equações de Hamilton que
n  
dH X ∂H ∂H ∂H ∂H
Ḣ = = q̇j + ṗj + = ,
dt ∂qj ∂pj ∂t ∂t
j=1

ou seja, reencontramos a equação (3.28) na forma hamiltoneana. Portanto, H é uma in-


tegral primeira sempre que não depende explı́citamente do tempo, e, como coı́ncide com
a grandeza E, corresponde à energia total do sistema se este for um sistema natural com
ligações independentes do tempo e força que derivam de um potencial, independente das, ou
linear nas, velocidades generalizadas. Em alguns casos importantes, por exemplo quando se
trabalha em sistemas de coordenadas giratórias com velocidade angular constante, o hamil-
toneano é uma integral primeira que não coı́ncide com a energia total do sistema (veremos
nas teórico-práticas alguns exemplos deste tipo de situação).

Vejamos agora como estudar e aproveitar outras leis de conservação. Suponhamos


que o lagrangeano L não depende explı́citamente de certas coordenadas generalizadas; por
exemplo, para fixar idéias, suponhamos que se tem

∂L
=0, j = m + 1, . . . , n (3.30)
∂qj

para um certo 1 ≤ m < n. As coordenadas qm+1 , . . . , qn chamam-se então coordenadas


cı́clicas ou ignoráveis, e as equações (3.30), que traduzem certas simetrias do problema têm
como consequ encia que os momentos conjugados das coordenadas cı́clicas são constantes
do movimento, i.e.,

∂L ∂L
pj = = constante, j = m + 1, . . . , n, ⇐ ṗj = = 0, j = m + 1, . . . , n . (3.31)
∂ q̇j ∂qj

Vejamos como tirar partido do conhecimento destas n − m integrais primeiras para reduzir
o número de graus de liberdade do problema. Supondo como sempre que as primeiras
equações (3.31) são invertı́veis com respeito aos q̇j , j = m + 1, . . . , n, teremos

q̇j = q̇j (q1 , . . . , qm , q̇1 , . . . , q̇m , t, pm+1 , . . . , pn ) , j = m + 1, . . . , n . (3.32)

Queremos usar as equações (3.32) para produzir um lagrangeano L∗ para o sistema que
dependa apenas do conjunto das m primeiras coordenadas e velocidades generalizadas
q1 , . . . , qm , q̇1 , . . . , q̇m . A mudança mais simples, de q̇j para pj , j = m + 1, . . . , n, não é
óbviamente uma transformação no espaço de estados do sistema, de modo que estamos
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 87

fora do âmbito de validade da invariância do lagrangeano se quisermos utilizar as equações


(3.31) e (3.32). Vejamos que

L∗ (q1 , . . . , qm , q̇1 , . . . , q̇m , t, pm+1 , . . . , pn ) =


n
X
= L(q1 , . . . , qm , q̇1 , . . . , q̇m , q̇m+1 , . . . , q̇n , t) − pj q̇j ,
j=m+1

onde se entende que os q̇j , j = m + 1, . . . , n, são substituı́dos pelas funções de q1 , . . . , qm+1 ,


q̇1 , . . . , q̇m , pm+1 , . . . , pn e t dadas pelas equações (3.32), é a função que pretendemos, no
sentido em que apenas depende dos m primeiros graus de liberdade do sistema e, por outro
lado, as equações de Lagrange associadas são equivalentes às equações de Lagrange originais
para aqueles graus de liberdade. De facto,
n n
∂L∗ ∂L X ∂L ∂ q̇j X ∂ q̇j ∂L
= + − pj = , i = 1, . . . , m ,
∂qi ∂qi ∂ q̇j ∂qi ∂qi ∂qi
j=m+1 j=m+1
n n
∂L∗ ∂L X ∂L ∂ q̇j X ∂ q̇j ∂L
= + − pj = , i = 1, . . . , m ,
∂ q̇i ∂ q̇i ∂ q̇j ∂ q̇i ∂ q̇i ∂ q̇i
j=m+1 j=m+1

de modo que as equações de Lagrange para q1 , . . . , qm correspondentes a L e a L∗ são as


mesmas.
Resumindo, a existência de coordenadas cı́clicas e as correspondentes leis de conservação
tornam possı́vel a passagem do problema original para um problema reduzido, com m =
n − c graus de liberdade, onde c é o número de coordenadas cı́clicas. Uma vez resolvido
o problema reduzido, a solução do problema inicial depende apenas da quadratura das c
equações (3.32).
Note-se a analogia entre a construção de L∗ e a passagem ao formalismo hamiltoniano.
De facto, L∗ é a transformada de Legendre do lagrangeano inicial nas velocidades generali-
zadas associadas às coordenadas cı́clicas, que são as coordenadas que se pretende substituir
pelos respectivos momentos, que são constantes do movimento. Claramente, a redução do
número de graus de liberdade do sistema no caso hamiltoniano é natural, e não necessita
nenhuma modificação do hamiltoniano.
Voltemos à relação entre simetrias e leis de conservação, para a formular num contexto
ainda mais geral. À existência de uma nova coordenada cı́clica qi está associada, por uma
lado, a conservação do respectivo momento conjugado pi , e, por outro lado, a invariância
do lagrangeano para uma famı́lia a um parâmetro de transformações no espaço de estados,
~ (α, ~q), ~q˙ 7→ ψ(α,
~q 7→ ϕ ~ ~q, ~q˙), dada por

ϕj (α, ~q) = qj + δij α , ψj (α, ~q, ~q˙) = q̇j , j = 1, . . . , n , α∈R,


 
ou seja, tem-se L ϕ ~
~ (α, ~q), ψ(α, ~q, ~q˙, t), t = L(~q, ~q˙, t). Este resultado admite uma fomulação
geral, dada pelo seguinte:

Teorema 3.6 (Noether). Seja ~q 7→ ϕ ~ (α, ~q) uma famı́lia de aplicações regulares e in-
vertı́veis dependente de um parâmetro real α, diferenciável em ordem a α numa vizinhança
88 3.4. Teorema de Noether

n
~ (0, ~q) = ~q. E seja ~q˙ → ~ ~q, ~q˙) = ∂ϕ
~
P
da origem e tal que ϕ 7 ψ(α, ∂qj q̇j a extensão natural dessa
j=1
transformação às velocidades generalizadas. Se para todo ~q, ~q˙ e α se tem
 
L ϕ ~
~ (α, ~q), ψ(α, ~q, ~q˙), t = L(~q, ~q˙, t)

então a função
n
X ∂ϕj
P (~q, ~q˙, t) = (0, ~q)pj (~q, ~q˙) ,
∂α
j=1
∂L
onde pj = ∂ q̇j , é uma integral primeira do movimento.

Demonstração. Temos
n   Xn     
∂L X ∂L ∂ϕj ∂L ∂ψj ∂ϕj d ∂L ∂L d ∂ϕj
= + = + ,
∂α ∂qj ∂α ∂qj ∂α ∂α dt ∂ q̇j ∂ q̇j dt ∂α
j=1 j=1

dado que
n n
!    
∂ψj ∂ X ∂ϕj X ∂ ∂ϕj d ∂ϕj
= q̇k = q̇k = .
∂α ∂α ∂qj ∂qk ∂α dt ∂α
k=1 k=1
Portanto,  
n n
∂L d X ∂ϕj ∂L d  X ∂ϕj 
= · = pj . (3.33)
∂α dt ∂α ∂ q̇j dt ∂α
j=1 j=1
∂L
Masa dada a invariância de L, ∂α ≡ 0 e portanto, tomando α = 0 na equação anterior,
temos P (~q, ~q˙, t) = constante.

Note-se que os outros integrais primeiros fornecidos pela equação (3.33) com α arbitrário
não são independentes de P .
Vamos terminar esta secção com dois exemplos que ilustram a técnica de redução e a
aplicação do teorema de Noether. Consideremos primeiro o lagrangeano associado a uma
partı́cula no plano sujeita à acção de um potencial central,
m 2
L(r, θ, ṙ, θ̇) = (ṙ + r2 θ̇2 ) − V (r) .
2
Como θ é coordenada cı́clica,
∂L
pθ = = mr2 θ̇
∂ θ̇
é uma constante do movimento, e θ̇ = pθ /mr2 . O lagrangeano unidimensional equivalente
que corresponde à redução deste problema tendo em conta esta integral primeira é

L∗ (r, ṙ, pθ ) = L(r, ṙ, θ̇(r, pθ )) − pθ θ̇(r, pθ ) =


ṙ2 p2θ p2θ ṙ2 p2θ
= m + − V (r) − = m − V (r) − ,
2 2mr2 mr2 2 2mr2
e reencontramos assim, no quadro de um procedimento geral, o potencial eficaz Ve (r) =
l2
V (r) + 2mr 2 que fomos levados a introduzir no estudo do problema de Kepler.
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 89

Vejamos finalmente, como exemplo de aplicação do teorema de Noether, o problema


de duas partı́culas livres de massas m1 e m2 com um potencial de interacção que é função
exclusiva da distância mútua. Tomando como coordenadas generalizadas (q1 , . . . , q6 ) =
(~r1 , ~r2 ), o lagrangeano do sistema é
m1 2 m2 2
L(~q, ~q˙) = (q̇1 + q̇22 + q̇32 ) + (q̇4 + q̇52 + q̇62 ) − V (q4 − q1 )2 + (q5 − q2 )2 + (q6 − q3 )2 .

2 2
Como as coordenadas generalizadas só intervêm na expressão do lagrangeano através das
diferenças q4 − q1 , q5 − q2 , q6 − q3 , temos invariância do lagrangeano com respeito a
translacções ao longo de cada um dos eixos coordenados. Consideremos por exemplo o
eixo dos xx. Na linguagem do teorema de Noether, o lagrangeano é invariante para o par
de transformações ϕ(α, ~q), ψ(α, ~q, ~q˙) dados por
ϕj (α, ~q) = qj , j 6= 1, 4 , ϕj (α, ~q) = qj + α , j = 1 ou j = 4 ,
com a correspondente transformação de velocidades ψ(α, ~q, ~q˙) = ~q˙. A integral primeira
dada pelo teorema de Noether é então
n
X ∂ϕj ∂ϕ1 ∂ϕ4
P (~q, ~q˙, t) = (0, ~q) pj (~q, ~q˙) = (0) p1 + (0) p4 = m1 q̇1 + m2 q̇2 ,
∂α ∂α ∂α
j=1

ou seja, é a componente do momento linear total segundo o eixo dos xx. As outras compo-
nentes do momento linear obtêm-se da mesma maneira tendo em conta a invariância com
respeito a translacções segundo o eixo dos yy e segundo o eixo dos zz.
Outra simetria deste lagrangeano é a simetria com respeito a qualquer rotação dos eixos
coordenados, dado que apenas depende da distância entre dois pontos, e as distâncias entre
pontos são preservadas por qualquer rotação. Em particular, o lagrangeano é invariante
para rotações em torno de qualquer dos eixos coordenados. Consideremos por exemplo o
~ (α, ~q) = ~q̃
caso das rotações em torno do eixo dos zz. A transformação correspondente ~q 7→ ϕ
é dada por
         
q̃1 cos α − sin α q1 q̃4 cos α − sin α q4
= =
q̃2 sin α cos α q2 , q̃5 sin α cos α q5 ,
q̃3 = q3 q̃6 = q6

˙
com a extensão natural às velocidades generalizadas ~q˙ 7→ ψ(α;
~ ~q, ~q˙) = ~q̃, que é também li-
near e dada pela mesma matriz de rotação, que deixa invariante o termo da energia cinética
do lagrangeano. A integral primeira dada pelo teorema de Noether é
6
X ∂ϕj
P (~q, ~q˙, t) = (0) pj =
∂α
j=1
∂ ∂
= p1 (q1 cos α − q2 sin α)α=0 + p2 (q1 sin α + q2 cos α)α=0 +
∂α ∂α
∂ ∂
+p4 (q4 cos α − q5 sin α)α=0 + p5 (q4 sin α + q5 cos α)α=0 =
∂α ∂α
= q1 p2 − p1 q2 + p5 q4 − p4 q5 = m1 (q1 q̇2 − q2 q̇1 ) + m2 (q4 q̇5 − q5 q̇4 ) =
= m1 (~q1 ∧ ~v1 )z + m2 (~r2 ∧ ~v2 )z ,
ou seja, é a componente segundo o eixo dos zz do momento angular total do sistema.
90 3.5. Parêntesis de Poisson

Note-se finalmente que, em virtude do que se disse no inı́cio desta secção sobre a con-
servação da energia, esta traduz a invariância do lagrangeano com respeito a translacções
no tempo, dado que Ė = − ∂L ∂t .

3.5 Parêntesis de Poisson


Consideremos uma variável dinâmica arbitrária f (~q, p~, t), isto é, uma função regular das
variáveis em fase e, eventualmente, do tempo, com valores reais. Temos
n   n  
˙ df X ∂f ∂f ∂f X ∂f ∂H ∂f ∂H ∂f ∂f
f= = q̇j + ṗj + = − + = {f, H} + .
dt ∂qj ∂pj ∂t ∂qj ∂pj ∂pj ∂qj ∂t ∂t
j=1 j=1

A quantidade definida pela última igualdade chama-se parêntesis de Poisson de f com H,


e, para além de ser uma maneira cómoda de expressar a variação temporal de uma variável
dinâmica arbitrária, tendo-se em particular que uma variável dinâmica independente do
tempo é uma integral primeira se e só se o seu parêntesis de Poisson com H é nulo, tem
um significado muito mais profundo. De facto, a definição de parêntesis de Poisson de duas
variáveis dinâmicas arbitrárias,
n  
X ∂f ∂g ∂f ∂g
{f, g} = − ,
∂qj ∂pj ∂pj ∂qj
j=1

é invariante, como veremos mais tarde, para as transformações pontuais (estendidas de


maneira natural a transformações no espaço de fases), e, em geral, para todas as trans-
formações no espaço de fases que preservam a forma hamiltoniana das equações do movi-
mento, e constitui um ponto de partida alternativo, puramente geométrico, para formular
a Mecânica. é um instrumento muito útil no estudo de sistemas hamiltonianos integráveis,
e para operar a redução em sistemas com integrais primeiras adicionais, assim como para
entender a relação entre a teoria quântica ‘clássica’ e a mecânica.
O parêntesis de Poisson goza das propriedades de antisimetria, de bilinearidade e das
derivações:

{f, g} = −{g, f } , {f, α1 g1 + α2 g2 } = α1 {f, g1 } + α2 {f, g2 } ,

{f, g1 g2 } = {f, g1 }g2 + g1 {f, g2 } .


A primeira destas propriedades decorre imediatamente da definição, a segunda e a terceira
decorrem das propriedades análogas válidas para as derivadas parciais. Verifica-se ainda a
chamada identidade de Jacobi,

{f, {g, h}} + {g, {h, f }} + {h, {f, g}} = 0 .

Fica como exercı́cio a demonstração directa desta identidade a partir da definição. Aqui
faremos uma demonstração indirecta, a partir da relação entre parêntesis de Poisson e
derivadas de Lie. Fixada f , {f, g} pode pensar-se como o resultado de aplicar a g o
operador
n  
X ∂f ∂ ∂f ∂
{f, } = Df = − .
∂qj ∂pj ∂pj ∂qj
j=1
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 91

Recordando a definição de derivada de Lie de uma variável dinâmica, vemos que Df é uma
derivada de Lie, mais precisamente coincide com LΦ ~ , derivada de Lie associada ao campo
~ ∂f ∂f
Φ = (− ∂~p , ∂~q ) no espaço de fases.
Lema 3.7. O comutador [LΦ ~ , LΨ
~ ] = LΦ ~ − LΨ
~ LΨ ~ LΦ~ das derivadas de Lie LΦ
~ , LΨ
~ é a
derivada de Lie LΘ
~ , onde Θi = LΦ ~ Ψi − LΨ
~ Φi , i = 1, . . . , m.
Demonstração. Para uma variável dinâmica f arbitrária tem-se
m m
! !
  X ∂f X ∂f

~ , LΨ
~ f = LΦ ~ Ψi − LΨ~ Φi =
∂xi ∂xi
i=1 i=1
m     
X ∂ ∂f ∂ ∂f
= Φj Ψi − Ψj Φi =
∂xj ∂xi ∂xj ∂xi
i,j=1
m
X ∂Ψi ∂f ∂Φi ∂f
= Φj − Ψj =
∂xj ∂xi ∂xj ∂xi
i,j=1
 
m m   m
X X ∂Ψi ∂Φi ∂f  X ∂f
=  Φj − Ψj = Θi .
∂xj ∂xj ∂xi ∂xi
i=1 j=1 i=1

Na linguagem de operadores, a identidade de Jacobi pode escrever-se, dado que h é


arbitrário, na forma
Df Dg − Dg Df = D{f,g} .
~ ∂f ∂f
O primeiro membro é o comutador das derivadas de Lie LΦ ~ , LΦ
~ , com Φ = (− ∂~ p , ∂~
q ),
∂g ∂g
~ = (− , ). Usando o lema anterior, a identidade de Jacobi fica demonstrada se com-
Ψ ∂~
p ∂~q
provarmos que Θ ~ dado pelo lema 3.7 coincide com Θ~ = (− ∂ {f, g}, ∂ {f, g}). Isto é, temos
∂~
p ∂~
q
que comprovar que
2n   2n  
∂ X ∂Ψk ∂Φk ∂ X ∂Ψk ∂Φk
− {f, g} = Φj − Ψj , − {f, g} = Φj − Ψj ,
∂pk ∂xj ∂xj ∂qk ∂xj ∂xj
j=1 j=1
k = 1, . . . , n .
Vejamos por exemplo as primeiras n igualdades (para as segundas os cálculos são análogos).
Tem-se:
n   X n  
∂ X ∂Ψk ∂Φk ∂Ψk ∂Φk
− {f, g} = Φj − Ψj + Φj+n − Ψj+n =
∂pk ∂qj ∂qj ∂pj ∂pj
j=1 j=1
n     
X ∂f ∂ ∂g ∂g ∂ ∂f
= − − + − +
∂pj ∂qj ∂pk ∂pj ∂qj ∂pk
j=1
   
∂f ∂ ∂g ∂g ∂ ∂f
+ − − − =
∂qj ∂qj ∂pk ∂qj ∂pj ∂pk
n     
X ∂ ∂f ∂g ∂ ∂f ∂g
= − ,
∂pk ∂pj ∂qj ∂pk ∂qj ∂pj
j=1

onde a última identidade é evidente.


92 3.5. Parêntesis de Poisson

Um espaço vectorial munido de uma operação bilinear e antisimétrica que verifica a


identidade de Jacobi chama-se uma álgebra de Lie. Assim, o parêntesis de Poisson introduz
uma estrutura de álgebra de Lie no conjunto das variáveis dinâmicas. Outros exemplos
de álgebras de Lie que já são conhecidos são o espaço vectorial R3 com o produto exte-
rior ∧, o espaço vectorial das matrizes n × n com o comutador, e o espaço dos operadores
linears no espaço de Hilbert munido também do comutador. A correspondência entre
mecânica clássica e quântica faz-se precisamente a partir da analogia entre estas estruturas
algébricas: os operadores correspondem às variáveis dinâmicas, e o comutador corresponde
aos parêntesis de Poisson.

Em termos de parêntesis de Poisson, as equações de Hamilton podem escrever-se


q̇j = {qj , H} , ṗj = {pj , H} , j = 1, . . . , n ,
e é imediato verificar que os segundos membros das equações acima coincidem com as
expressões dos segundos membros das equações de Hamilton na forma habitual. É também
fácil comprovar que se tem
{pi , pj } = 0 , {qi , qj } = 0 , {pi , qj } = −δij , i, j = 1, . . . , n .
Verifiquemos por exemplo a terceira destas igualdades:
n   n
X ∂pi ∂qj ∂pi ∂qj X
{pi , qj } = − =− δik δjk = −δij .
∂qj ∂pk ∂pk ∂qk
k=1 k=1

Consideremos agora as componentes cartesianas do momento linear e do momento angular.


É fácil ver que se tem
{px , Lz } = −py , {py , Lz } = px , {pz , Lz } = 0 .
Verifiquemos por exemplo a primeira destas relações:
{px , Lz } = {px , xpy − ypx } = {px , x}py + {px , py }x − {px , py }y − {py , y}px = −py .
Para as outras duas componentes do momento angular valem relações análogas. Usando o
conjunto destes parêntesis de Poisson, tem-se também
{Lx , Ly } = Lz ,
e as relações análogas que se podem obter desta por permutação de ı́ndices. De facto,
{Lx , Ly } = {ypz − zpy , Ly } = y{pz , Ly } + pz {y, Ly } − z{py , Ly } − py {z, Ly } =
= −ypx − py {z, −xpz } = xpy − ypx .
Em consequência, temos
{Lz , L2 } = {Ly , L2 } = {Lz , L2 } = 0 ,
dado que, por exemplo,
{Lz , L2 } = {Lz , L2x } + {Lz , L2y } + {Lz , L2z } = 2(Lx {Lz , Lx } + Ly {Lz , Ly }) =
= 2(Lx Ly − Ly Lx ) = 0 .
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 93

3.6 Oscilações na vizinhança de um ponto de equilı́brio. Mo-


dos normais
Dissemos na introdução que o objectivo da mecânica era o de, dado um problema concreto,
formular as equações que regem esse problema e obter o máximo de informação possı́vel so-
bre as soluções. Vimos que o programa clássico de procurar ‘soluções gerais’ era na maioria
dos casos inexequı́vel, e que é necessário recorrer a métodos perturbativos e/ou qualita-
tivos. Nesse contexto, vimos no capı́tulo 1 que a análise local na vizinhança dos pontos de
equilı́brio jogava um papel essencial. Neste secção vamos proceder a essa análise para os
sistemas mecânicos conservativos e com ligações independentes do tempo. Em particular,
vamos reencontrar num contexto muito mais global o teorema de Lagrange-Dirichlet que se
enunciou no capı́tulo 1, na página 9, para sistemas de partı́culas livres num potencial.
Seja então um sistema holónomo com n graus de liberdade e ligações e forças indepen-
dentes do tempo. Neste caso, as equações de Lagrange escrevem-se
d ∂T ∂T
− = Qj , j = 1, . . . , n , (3.34)
dt ∂ q̇j ∂qj

com Qj = Qj (~q, ~q˙) e T = 1 P


2 akl q̇k q̇l . Vimos na secção 3.2 que, com aquelas hipóteses, as
k,l
equações (3.34) são da forma
q̈j = fj (~q, ~q˙) , (3.35)
n
ajk (~q)fk (~q, ~q˙) = Qj (~q, ~q˙) − gj (~q, ~q˙), [ajk (~q)] é a matriz cinética, e
P
onde
k=1

X  ∂ajk 1 ∂akl

gj = − q̇k q̇l .
∂ql 2 ∂qj
k,l

Introduzindo vj = q̇j , j = 1, . . . , n, o sistema (3.35) pode escrever-se como um sistema de


primeira ordem no espaço de estados (~q, ~v ),
(
q̇j = vj
, j = 1, . . . , n . (3.36)
v̇j = fj (~q, ~v )

Dado que fj (~q, 0) = Qj (~q, 0), temos que ~q ∗ é ponto de equilı́brio das equações de (3.36) se
e só se Qj (~q ∗ , 0) = 0, j = 1, . . . , n.
Note-se que a presença de forças dependentes da velocidade, desde que se anulem para
velocidades nulas, é de todo irrelevante para a determinação das configurações de equilı́brio.
Note-se também que a conclusão a que chegámos se pode enunciar de forma equivalente
dizendo que a configuração de equilı́brio é caracterizada pelo chamado ‘princı́pio dos traba-
lhos virtuais’, de acordo com o qual o trabalho virtual associado a um deslocamento virtual
arbitrário a partir duma configuração de equilı́brio é nulo, ou seja,
N
X n
X
δW = F~i · δ~ri = Qj δqj = 0 ∀δ~r1 , . . . , δ~rN , ∀δq1 , . . . , δqn ⇔ Qj = 0 ,
i=1 j=1
j = 1, . . . , n .
94 3.6. Oscilações na vizinhança de um ponto de equilı́brio. Modos normais

No caso conservativo, Qj = ∂q ∂V
j
, j = 1, . . . , n e portanto ~q ∗ é ponto de equilı́brio das
equações de Lagrange se e só se é ponto crı́tico do potencial V (~q).

Teorema 3.8 (Lagrange-Dirichlet). Considere-se um sistema lagrangeano natural, com


n
L(~q, ~q˙) = T (~q, ~q˙) − V (~q) e T = 21
P
akl (~q)q̇k q̇l . Se a energia potencial V (~q) tem um
k,l=1
mı́nimo não degenerado em ~q ∗ , então ~q ∗ é um ponto de equilı́brio estável das equações de
Lagrange.
∂V
Demonstração. Dado que Qj = − ∂q j
, j = 1, . . . , n, é óbvio que qualquer ponto crı́tico
do potencial é um ponto de equilı́brio. Quanto à estabilidade, demonstra-se utilizando
o teorema de Liapounov tal ocmo no caso da partı́cula livre, tomando como função de
Liapounov a energia E(~q, ~q˙) = T (~q, ~q˙) + V (~q). Temos E(~q ∗ , 0) = E0 = V (~q ∗ ), e, se ~q ∗
é um mı́nimo estrito, E(~q, ~q˙) > E0 numa vizinhança de (~q ∗ , 0) dado que T como forma
quadrática nas velocidades generalizadas é definida positiva. Finalmente, a conservação da
energia implica Ė = 0, pelo que E(~q, ~q˙) é uma boa função de Liapounov.

O teorema de Lagrange-Dirichlet generaliza-se facilmente ao caso de potenciais depen-


dentes da velocidade da forma V (~q, ~q˙) = V0 (~q) + V1 (~q, ~q˙) com V1 linear em ~q˙, dado que,
como vimos, a energia E(~q, ~q˙) = T (~q, ~q˙) + V0 (~q) é ainda uma integral primeira nesse caso,
que podemos tomar como função de Liapounov com as mesmas hipóteses.
Suponhamos então que conhecemos um ponto de equilı́brio ~q ∗ das equações de Lagrange
de um sistema natural, L(~q, ~q˙) = T (~q, ~q˙) − V (~q) = 21 akl (~q)q̇k q̇l − V (~q). No espı́rito
P
k,l
dos métodos da teoria qualitativa, pretendemos linearizar as equações do movimento na
vizinhança de ~q ∗ . Para isso, é necessário desenvolver o lagrangeano até termos de segunda
ordem na vizinhança de (~q ∗ , 0). Considerando, sem perda de generalidade, ~q ∗ = ~0, temos

1X X ∂V 1 X ∂2V
L= akl (0)q̇k q̇l − V (0) − (0) qk − (0)qk ql + o3 = L∗ (~q, ~q˙) + o3 ;
2 ∂qk 2 ∂qk ∂ql
k,l k | {z } k,l
=0

onde o3 inclui termos que são pelo menos de terceira ordem nos qk e q̇k , e L∗ (~q, ~q˙) =
T ∗ (~q˙) − V ∗ (~q) com

1X ∗
T ∗ (~q˙) = akl q̇k q̇l , a∗kl = akl (0) ,
2
k,l
1X ∂2V
T ∗ (~q) = b∗kl qk ql , b∗kl = (0) ,
2 ∂qk ∂ql
k,l

∂V
onde se teve em conta que ∂q k
(0) = 0, k = 1, . . . , n, dado que 0 é ponto de equilı́brio, e se
desprezou o termo constante V (0). As equações de Lagrange de L∗ são

A~q¨ + B~q = 0 ,

isto é, equações lineares de segunda ordem que descrevem o movimento numa vizinhança do
ponto de equilı́brio ~q ∗ = 0, que dependem apenas da matriz cinética A = [akl ] calculada no
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 95

ponto de equilı́brio e da matriz hessiana B do potencial nesse mesmo ponto. Procuremos


como é habitual soluções da forma

~q(t) = s(t)~u , ~u ∈ Rn constante , s:R→R.

Substituindo em (3.31) vem s̈(t)A~u + s(t)B~u = 0, que tem solução se e só se A~u e B~u
forem paralelos, i.e., se B~u = λA~u para um certo λ ∈ R, caso em que a solução é dada pela
solução da e.d.o. linear de segunda ordem s̈ + λs = 0, que como é sabido tem sempre duas
soluções linearmente independentes. O conhecimento da solução geral de (3.31) depende
portanto da existência de n soluções da equação em λ, (B − λA)~u = 0, que generaliza a
equação aos valores próprios e vectores próprios da matriz B. Dado que A é simétrica e
definida positiva, valem no essencial as mesmas propriedades que se têm no caso em que
A = 1, nomeadamente:
1. det(B − λA) = 0 é uma equação algébrica de grau n em λ.

2. Se B é simétrica, como no nosso caso, então esta equação algébrica tem n raizes
reais, λ1 , . . . , λn , e os correspondentes ‘vectores próprios’ ~u1 , . . . , ~un podem tornar-se
‘ortonormados em relação a A’, isto é, tais que A~ui · ~uj = δij .

3. Se B é definida positiva, os valores próprios λ1 , . . . , λn são positivos.

4. A matriz U cujas colunas são os vectores próprios ~u1 , . . . , ~un diagonaliza simultânea-
mente A e B. Mais precisamente, U> AU = 1, (U> BU)ij = λi δij .
Vejamos o que tudo isto nos diz no caso em que ~q ∗ = 0 é um ponto de equilı́brio estável
correspondente a um mı́nimo quadrático do potencial. Nesse caso, a matriz hessiana de V
em 0, B, é definida positiva e portanto

λj = ωj2 , j = 1, . . . , n .

A solução geral de (3.31) escreve-se então


n
X
~q(t) = Aj cos(ωj t + ϕj )~uj ,
j=1

onde Aj ·ϕj , j = 1, . . . , n, são 2n constantes arbitrárias que dependem das condições iniciais.
As soluções particulares que correspondem a tomar uma das amplitudes, Ak 6= 0, e todas
as outras nulas, qj (t) = Ãjk cos(ωk t + ϕk ), j = 1, . . . , n são especialmente interessantes
dado que são periódicas: todas as coordenadas oscilam com a mesma frequência. Estes
movimentos chamam-se modos normais de oscilação do sistema, e caracterizam o equilı́brio,
dado que o movimento mais geral na vizinhança desse equilı́brio é uma sobreposição de
modos normais.
Vejamos para terminar qual o efeito da mudança de coordenadas ~q = U~x no lagrangeano
L = 12 A~q˙ · ~q˙ − 12 B~q · ~q. A transformação correspondente no espaço de estados é ~q = U~x,

~q˙ = U~x˙ , de modo que o lagrangeano do sistema nas novas coordenadas é


n n
1 1 1X 2 1X
L0 = (U> AU)~x˙ · ~x˙ − (U> BU)~x · ~x = ẋi − di x2i ,
2 2 2 2
i=1 i=1
96 3.7. Teorema de Liouville. Teorema do retorno de Poincaré


ou seja, é o lagrangeano de n osciladores harmónicos de frequências ωi = λi , i = 1, . . . , n.
As coordenadas x1 , . . . , xn chamam-se coordenadas normais. A conclusão importante do
ponto de vista fı́sico, é a de que qualquer lagrangeano na vizinhança de um ponto de
equilı́brio estável é equivalente a um conjunto de osciladores harmónicos desacoplados,
em número igual ao número de graus de liberdade do sistema. Em particular, a energia
associada às pequenas oscilações na vizinhança de uma configuração de equilı́brio estável é
n n
X X 1
E= Ei = (ẋ2i + ωi2 x2i ) .
2
i=1 i=1

3.7 Teorema de Liouville. Teorema do retorno de Poincaré


Nesta secção, vamos apresentar dois resultados que são fundamentais do ponto de vista da
compreensão do formalismo e dos fundamentos da Fı́sica Estatı́stica.
Consideremos um sistema autónomo, ~x˙ = f~(~x), ~x ∈ Rn , f~ : Rn → Rn , e um conjunto
A ⊂ Rn . O fluxo Φt : Rn → Rn definido pelo sistema autónomo vai aplicar A, para cada
valor de t, no conjunto A(t), que é o transformado de A pelo fluxo definido pela equação
diferencial. Se pensarmos no caso tridimensional, é geométricamente evidente que o volume
V (t) do conjunto A(t) varia no tempo de acordo com
Z Z
dV d
= vol(Φt (A)) = f~ · ~u ds = divf~ dV ,
dt dt
∂Φt (A) Φt (A)

em que usámos o teorema de Gauss em dimensão arbitrária. É possı́vel fazer uma dedução
alternativa, puramente algébrica. De facto,
Z
vol(Φ (A)) = det Jt (~x) dx1 . . . dxn ,
t


A
h t
i
∂Φ
onde Jt (~x) = ∂~
x é a matriz jacobiana da aplicação fluxo no tempo t. Portanto,
Z
dV d
det Jt dx1 . . . dxn .

= (3.37)
dt dt
A

Por outro lado, dado que Φt (~x)


é a solução geral, temos
d
det Jt (~x) = det Jt (~x) · divf~ Φt (~x) ,
  
dt
relação que generaliza a propriedade análoga para sistemas lineares
d
det eAt = (Tr A) det eAt .
 
dt
Substituindo em (3.37) vem
Z Z
dV ~
t t
divf~ dV .
 
= det J (~x) divf Φ (~x) dx1 . . . dxn = (3.38)
dt
A Φt (A)

Um corolário importante de (3.38) é que os campos de divergência nula preservam o


volume em fase. Em particular, temos o seguinte:
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 97

Teorema 3.9 (Liouville). O fluxo hamiltoneano preserva o volume no espaço de fases.

Demonstração. No caso de um campo hamiltoniano,


 
~ ∂H ∂H ∂H ∂H
f= ,..., ,− ,...,− ,
∂p1 ∂pn ∂q1 ∂qn

pelo que
2n n     
X ∂fi X ∂ ∂H ∂ ∂H
divf~ = = − =0.
∂xi ∂qj ∂pj ∂pj ∂qj
i=1 j=1

dV
Portanto, dt ≡ 0.

Esta propriedade é fundamental para a Fı́sica Estatı́stica. Um enunciado equivalente


pode dar-se em termos da densidade de probabilidade ρ(~x, t) = ρ(~q, p~, t) que caracteriza
uma colectividade de sistemas macroscópicos idênticos: ρ(~x, t) é a fracção do número total
de sistemas cujo estado macroscópico corresponde, no instante t, ao ponto ~x = (~q, p~) do
espaço de fases. Cada ‘partı́cula’ deste ‘fluido’ de probabilidade move-se com velocidade
dada por f~, onde ~x˙ = f~(~x) é a equação diferencial que rege o movimento do sistema
considerado como um sistema mecânico de muitas partı́culas. A equação da continuidade,
que expressa a conservação da massa deste fluido, ou seja, a conservação do número total
de sistemas da colectividade, é

= −ρ divf~ .
dt
Como f~ = ( ∂H ∂H
p , − ∂~
∂~
~
q ) é hamiltoniano, divf = 0, e o movimento do fluido de probabilidade
é incompresı́vel. A conservação do volume em fase, teorema de Liapounov, é portanto
equivalente à incompressibilidade do fluido de probabilidade. Esta propriedade é a hipótese
fundamental do teorema de Birkhoff, que permite identificar médias temporais com médias
tomadas no espaço de fases, e que está na base de toda a Fı́sica Estatı́stica. Como não
existe análogo do teorema de Liouville no espaço de estados, a Fı́sica Estatı́stica tem que
fazer-se no espaço de fases.

Outro resultado importante que é consequência do teorema de Liouville é o teorema do


retorno de Poincaré. Informalmente, o significado deste resultado é o seguinte: se tivermos
um fluxo que preserva a medida definido numa região de volume finito, então qualquer
ponto, ao longo do movimento, regressa infinitas vezes a uma vizinhança arbitráriamente
pequena da sua condição inicial.
Vejamos como enunciar e demonstrar rigorosamente este resultado. Seja Ω ∈ R2n
um volume finito e invariante no espaço de fases, e seja Φt o fluxo hamiltoniano nesse
espaço. Diz-se que um ponto ~x = (~q, p~) ∈ Ω é recorrente ou não-errante se, para qualquer
 > 0, arbitráriamente pequeno, e T > 0, arbitráriamente grande, existe t > T tal que
dist(~x, Φt (~x)) < . Os pontos que não são recorrentes dizem-se errantes. Se ~x é errante,
existem  > 0, T > 0, tais que dist(~x, Φt (~x)) >  ∀ > T .

Teorema 3.10 (do retorno de Poincaré). O conjunto E dos pontos errantes de Ω tem
medida nula.
98 3.8. Problemas

Demonstração. Fixados  e T , seja R(, T ) = {~x ∈ Ω : ∃t ≥ T : dist(Φt (~x), ~x) < }


o conjunto dos pontos -recorrentes após o tempo T. Consideremos um recobrimento de
Ω por esferas de raio ; seja B uma qualquer destas esferas, e seja E(B) = {~x ∈ B :
dist(~x, Φt (~x)) >  ∀t ≥ T } a intersecção com B do complementar de R(, T ). Vamos
mostrar que E(B) tem medida nula. Como B é arbitrária e Ω está recoberto por esferas
B, segue-se que E tem medida nula, dado que  e T são arbitrários. Consideremos então
os conjuntos
E(B), ΦT (E(B)), . . . , ΦkT (E(B)), . . . . (3.39)
Por definição, E(B) ∩ ΦkT (E(B)) = ∅ ∀k, caso contrário alguns pontos de E(B) seriam
pontos de R(, T ). De facto, temos até, em geral,

ΦkT (E(B)) ∩ ΦlT (E(B)) = ∅ ∀k, l , k 6= l ,

dado que
 
ΦkT (E(B)) ∩ ΦlT (E(B)) = ΦkT E(B) ∩ Φ(l−k)T (E(B)) = ΦkT (∅) = ∅ .

Portanto, a sucessão (3.39) é uma sucessão de infinitos conjuntos, disjuntos dois a dois, todos
eles contidos em Ω, e todos eles com medida igual e igual à medida de E(B), µ(E(B)).
Portanto,
+∞ 
X  +∞
X
µ(Ω) ≥ µ ΦkT (E(B)) = µ(E(B)) 1,
k=1 k=1
o que implica µ(E(B)) = 0.

3.8 Problemas
Série IV
1. Considere a transformação linear de R3 que leva um ponto de coordenadas (x, y, z)
ao ponto de coordenadas (y, x, −z). Determine a matriz desta transformação linear.
Verifique que se trata de uma rotação, ache o eixo de rotação e o ângulo de rotação.
2. Considere a transforção linear de R3 que aplica um referencial S = (O, ẽ∗1 , ẽ∗2 , ẽ∗3 ) no
referencial S 0 = (O, ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 ), onde ẽ1 = ẽ∗2 , ẽ2 = ẽ∗1 e ẽ3 = ẽ∗3 . Escreva a matriz da
transformação e diga se se trata de uma rotação.
3. Escreva a matriz que representa uma rotação de um ângulo θ em torno do eixo dos
xx.
4. Sejam R1 , R2 e R3 as matrizes associadas a uma rotação de θ1 em torno do eixo dos
zz, uma rotação de θ2 em torno do eixo dos zz, e uma rotação de θ3 em torno do eixo
dos yy, respectivamente. Mostre que R1 e R2 comutam, mas R1 ou R2 não comutam
em geral com R3 , e interprete geométricamente o resultado.
5. Calcule a matriz de rotação R(θ, ϕ, ψ) que dá a posição dos versores ẽ1 , ẽ2 , ẽ3 do
sistema móvel em relação aos versores ẽ∗1 , ẽ∗2 , ẽ∗3 do sistema fixo em função dos ângulos
de Euler θ, ϕ, ψ.
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 99

6. Considere uma placa rectangular homogénea. Determine:


(a) Os momentos principais de inércia e os eixos principais de inércia em relação a
um dos vértices.
(b) O momento de inércia em relação a uma recta que passa pelo centro da placa e
é perpendicular a um dos seus lados.
(c) O momento de inércia em relação a uma diagonal.
7. Determine o momento de inércia de um fio circular homogéneo em relação a:
(a) Um diâmetro.
(b) Uma recta tangente ao fio.
(c) Uma recta que forma um ângulo θ com o plano do fio e passa pelo seu centro.
8. Determine os momentos principais de inércia de:
(a) Um cilindro homogéneo em relação ao centro de massa e em relação ao centro
da base.
(b) Um paralelipı́pedo homogéneo de base quadrada em relação ao centro da base.
(c) Uma semiesfera homogénea em relação ao centro da base.
9. Considere o sólido homogéneo formado por um cilindro e uma semiesfera unidos pela
base, a rodar com velocidade angular constante em torno de uma geratriz do cilindro.
Determine os momentos principais de inércia em relação ao centro da base comum ao
cilindro e à esfera, assim como a energia cinética do sólido em relação a um ponto do
eixo de rotação e em relação ao centro de massa.
10. Considere o sólido homogéneo formado por um paralelipı́pedo de secção quadrada
de lado a com uma cavidade cilı́ndrica de raio a/2. Determine os eixos principais
de inércia e os momentos principais de inércia em relação ao centro de massa, e
em relação ao centro da base. Qual a energia cinética do sólido quando roda com
velocidade angular constante em torno duma aresta de comprimento b 6= a?

11. Uma barra homogénea de comprimento l e peso P~ pode girar num plano vertical
em torno de um eixo horizontal fixo. Supondo que no instante inicial a barra está na
posição horizontal com velocidade nula, determine a aceleração angular e a velocidade
angular da barra, assim como a força de ligação no plano de suspensão.
12. Um disco homogéneo situado num plano vertical pode rodar em torno de um eixo
horizontal que passa pelo seu centro. Uma corda enrolada à volta do disco é puxada
com uma força constante F~ dirigida segundo a vertical. Determine a velocidade
angular do disco ao fim de 2s.
100 3.8. Problemas

13. Uma placa quadrada homogénea é posta a rodar com velocidade angular inicial ω0
em torno da linha vertical que une os pontos médios de dois lados opostos.

(a) Qual é a velocidade angular no instante t? E a energia cinética?

(b) Suponha que a mesma placa é posta a rodar em torno de um dos seus lados
com a mesma velocidade angular inicial. Qual o valor da energia cinética num
instante t?

(c) Determine as forças de ligação nos pontos externos do eixo de rotação nos dois
casos anteriores.

(d) Determine o movimento da placa quando esta é posta a rodar com a mesma
velocidade inicial ω0 em torno de um eixo horizontal que passa pelo centro de
massa e em torno de um lado horizontal.

14. Um cilindro homogéneo roda em torno do seu eixo de revolução com velocidade an-
gular α̇. Este eixo, que faz com a vertical um ângulo β constante, está apoiado nos
pontos B1 e B2 de um suporte rı́gido que roda com velocidade angular γ̇ em torno de
um eixo vertical. Escreva a expressão da energia cinética do cilindro.

15. Um disco homogéneo roda com velocidade angular α̇ em torno de um eixo horizontal,
o qual por sua vez roda com velocidade angular β̇ em torno de um eixo vertical.
Determine a energia cinética do disco em relação ao ponto O.
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 101

16. As extremidade de uma barra homogénea podem deslizar sem atrito sobre uma cir-
cunferência. Uma partı́cula de massa m percorre a barra com velocidade constante
(em relação à barra). Escreva a equação que descreve o movimento do sistema no
caso em que o cı́rculo se encontra no plano horizontal e no caso em que o cı́rculo se
encontra no plano vertical.

17. Utilize o programa rotate do CUPS-CM para resolver os exercı́cios 5.1 e 5.2 do
respectivo manual.

Série V
1. Para os sistemas seguintes, escreva as equações de Lagrange, discuta a existência
de integrais primeiras do movimento, de pontos de equilı́brio classificando-os quanto
à sua estabilidade, de modos normais de vibração e, sempre que isso seja possı́vel,
escreva também as equações de Hamilton.

(a) Partı́cula livre no campo gravı́tico terrestre (aproximação local).


(b) Partı́cula livre sujeita a uma força central com simetria esférica.
(c) Pêndulo simples.
(d) Pêndulo esférico.
(e) Pêndulo centrı́fugo (cujo plano de oscilação roda com velocidade angular cons-
tante em torno do eixo vertical que passa pelo ponto de suspensão).
(f) Pêndulo duplo coplanar.
(g) Pêndulo simples cujo ponto de suspensão
i. se move sobre uma circunferência com velocidade angular constante;
ii. oscila horizontalmente no plano de movimento do pêndulo segundo a lei
x = a cos ωt;
iii. tem massa m2 e pode deslocar-se sobre uma recta horizontal no plano de
oscilação do pêndulo.
102 3.8. Problemas

(h) Partı́cula livre sujeita à acção da gravidade e a mover-se sobre a superfı́cie de


um cone
i. de eixo horizontal;
ii. de eixo vertical;
(i) Oscilador linear sujeito a uma força exterior F~ = F0 sin ωt ẽ1 e a uma força de
atrito proporcional à velocidade, −bẋẽ1 , b > 0.
(j) Partı́cula pesada que se move sobre uma parábola de eixo vertical z = a(x2 + y 2 )
i. quando o plano da parábola está fixo;
ii. quando o plano da parábola roda com velocidade angular constante em torno
do eixo dos zz.
(k) Sistema formado por duas massas, m1 e m2 , em que m1 está ligada ao ponto
P por um fio rı́gido de massa desprezável, ao longo do qual m2 , que está ligada
ao ponto P por uma mola ideal, pode deslizar sem atrito, e o sistema está no
campo gravı́tico.

(l) Sistema formado por duas massas, m1 e m2 , ligadas entre si por um fio inex-
tensı́vel de massa desprezável que passa por uma roldana como se indica na
figura, de maneira que m2 está sujeita à acção da gravidade, enquanto que m1
está ligada ao ponto C por uma mola ideal.

(m) Sistema formado por duas massa, m1 e m2 , ligadas entre si por dois fios inex-
tensı́veis ligados entre si por uma mola ideal, e que se deslocam sem atrito no
interior de dois tubos cilı́ndricos horizontais, os quais por sua vez rodam em
torno de um eixo vertical com velocidade angular constante. Despreze a massa
da mola e suponha conhecido o momento de inércio I da roldana em relação ao
seu eixo.
Capı́tulo 3. As equações de Lagrange e de Hamilton 103

(n) Partı́cula pesada sujeita a mover-se sobre a superfı́cie de um cilindro de eixo


vertical
i. fixo;
ii. que se desloca com aceleração horizontal ~a constante.

2. Mostre que o parêntesis de Poisson de duas integrais primeiras é também uma integral
primeira. Conclua que se duas componentes do momento angular se conservam então
~ é constante.
L
Capı́tulo 4

Princı́pios variacionais e mecânica


hamiltoneana

4.1 Os princı́pios variacionais da Mecânica


Nesta secção vamos estudar uma derivação alternativa das equações da Mecânica clássica,
a partir de princı́pios de extremo ou princı́pios variacionais. Esta abordagem é essencial
para entender a unidade das teorias fı́sicas, dado que, por um lado, se aproxima das teo-
rias relativistas através da possibilidade de geometrizar a mecânica e, por outro lado, se
aproxima também das formulações mais modernas da Mecânica Quântica.
Para introduzir este ponto de vista vamos ter primeiro que introduzir os conceitos
e alguns dos métodos do cálculo variacional. O objectivo do cálculo variacional é o de
encontrar extremos de certas quantidades, que podem ser funções ou objectos mais gerais.
Assim, os problemas bem conhecidos de achar extremos ou extremos condicionados de uma
função f : Rn → R são exemplos de problemas variacionais. Menos familiar é o caso em
que o que se pretende extremar são funcionais, em vez de funções. Um funcional generaliza
a ideia de função, é uma aplicação com valores nos reais cujo argumento é por sua vez uma
ou mais funções, em vez de ser um ponto de Rn . Por exemplo,
v
Zb
u b
uZ
F [u] = u(x)dx , F [u] = t u2 (x)dx , F [u] = u(x) , F [u] = u0 (x) ,
u

a a

onde u : [a, b] → R é uma função diferenciável e x é um ponto fixo do seu domı́nio são
exemplos de funcionais. Destes quatro exemplos, todos excepto o segundo são também
exemplos de funcionais lineares, i.e., funcionais para os quais

F [c1 u1 + c2 u2 ] = c1 F [u1 ] + c2 F [u2 ] .

Um funcional muito importante em geometria é o que nos dá o comprimento de uma curva
entre dois pontos A e B de uma superfı́cie arbitrária em função da forma da curva, e um
problema clássico é o de encontrar as geodésicas de uma superfı́cie, isto é, as curvas que
minimizam, ou em geral são pontos estacionários, daquele funcional. No caso mais simples
em que a superfı́cie é um plano, o funcional comprimento da curva y = u(x), (a, u(a)) = A,

104
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 105

(b, u(b)) = B, é
Zb p
F [u] = 1 + u0 (x)2 dx .
a

Em Mecânica e Óptica, um problema importante é o da determinação do tempo que uma


partı́cula ou um raio luminoso demora a percorrer uma determinada trajectória γ, sabendo
como a velocidade depende do ponto em que o objecto se encontra. Restringindo-nos, para
simplificar a questão, a trajectórias planas, dadas por uma função regular y = u(x), e
chamando v (x, u(x)) à velocidade no ponto (x, y) = (x, u(x)), o funcional do tempo de
percurso entre os pontos de abcissas a e b é
Zb p
1 + u0 (x)2
Z
ds
T [u] = = dx .
v v (x, u(x))
γ a

O princı́pio de Fermat diz-nos que as trajectórias dos raios luminosos vão ser aquelas que
minimizam (ou tornam estacionário) o funcional do tempo de percurso.
A noção de funcional estende-se naturalmente ao caso em que há dependência em duas
ou mais funções e eventualmente nas suas derivadas. Por exemplo, o funcional comprimento
de uma curva em R3 parametrizada por t, ou seja dada por x = u(t), y = v(t), z = w(t),
t ∈ [a, b], é
Zb p
F [u, v, w] = u0 (t)2 + v 0 (t)2 + w0 (t)2 dt .
a
Abordemos agora a questão de calcular a variação de um funcional, que é a noção
que generaliza o conceito de derivada direccional de uma função. Por analogia, chamamos
variação ou derivada direccional δF do funcional F [~u] relativo à variação δ~u a
d
δF (~u, δ~u) = (F (~u + αδ~u))α=0 ,

onde ~u = (u1 , . . . , un ) é o vector formado pelas funções argumento de F e δ~u = (δu1 , . . . , δun )
é uma certa variação dessas funções. Derivando a função composta temos
n
X ∂F
δF (~u, δ~u) = (~u)δui ,
∂ui
i=1

ou seja, tal como a derivada direccional, a variação é linear em δ~u. Dizemos que o funcional
F é estacionário em ~u se a variação δF (~u, δ~u) se anula para qualquer escolha da variação
δ~u. Note-se que a variação δF (~u, δ~u) é por sua vez um funcional, linear em δ~u.
Rb Rb
Vejamos alguns exemplos. Para F [u] = u(x)dx, temos F [u+αδu] = (u(x) + αδu(x)) dx
a a
Rb Rb
e δF [u, δu] = δu(x)dx. Para F [u] = u2 (x)dx vem
a a

Zb
u2 (x) + 2u(x)αδu(x) + α2 δu(x)2 dx

F [u + αδu] =
a
106 4.1. Os princı́pios variacionais da Mecânica

e portanto
Zb
δF [u, δu] = 2u(x)δu(x)dx .
a

Consideremos então o caso geral de um funcional, como o comprimento de uma curva, em


que intervém uma função e a sua derivada, ou seja, tomemos

Zb
L u(x), u0 (x), x dx ,

F [u] = (4.1)
a

onde L é uma função regular. Neste caso, temos

Zb
d 
δF [u, δu] = L u(x) + αδu(x), u0 (x) + α(δu)0 (x), x dx =
dα α=0
a
Zb  
∂L 0
 ∂L 0
 0
= u(x), u (x), x + 0 u(x), u (x), x (δu) (x) dx =
∂u ∂u
a
Zb b Zb
∂L ∂L d ∂L
u(x), u0 (x), x dx + 0 δu u(x), u0 (x), x δu(x)dx =
 
= − 0
∂u ∂u a dx ∂u
a a
b Zb  
∂L d ∂L ∂L
= δu − − δu(x)dx .
∂u0 a dx ∂u 0 ∂u
a

Em particular, para variações que deixem fixos os valores de u nos extremos do intervalo
de integração [a, b], vem

Zb  
d ∂L ∂L
δF [u, δu] = − − δu(x)dx .
dx ∂u0 ∂u
a

Temos então o seguinte resultado:

Proposição 4.1. Dado um funcional da forma (4.1), a condição necessária e suficiente


para que u(x) seja ponto de estacionaridade de F para variações que deixem fixos os ex-
d ∂L ∂L
tremos que u(x) seja solução da equação diferencial dx ∂u0 − ∂u = 0.

Demonstração. A condição suficiente é óbvia. Demonstremos a condição necessária por


redução ao absurdo. Suponhamos que u(x) é ponto de estacionaridade de (4.1) e não é
d ∂L ∂L
solução da equação dada. Então, existe x0 ∈ [a, b] tal que, por exemplo, dt ∂u0 − ∂u > 0,
e, em particular, existe um intervalo de amplitude finita δ, contido em [a, b], onde, por
d ∂L ∂L
continuidade, dx ∂u0 − ∂u > . Tomando uma variação δu(x) que seja nula fora daquele
intervalo e igual a 1 em algum ponto desse mesmo intervalo, δF [u, δu] será estritamente
negativa para essa variação, o que contradiz a hipótese de u ser ponto de estacionaridade.
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 107

Em resumo, um ‘ponto’ de estacionaridade do funcional (4.1) verifica a equação dife-


rencial, chamada de Euler-Lagrange,
d ∂L ∂L
0
− =0,
dx ∂u ∂u
no intervalo [a, b].
Tomemos por exemplo o funcional de comprimento de uma curva no plano,

Zb q
F [u] = 1 + (u0 (x))2 dx ,
a

que é da forma (4.1) com L(u, u0 , x) = (1 + u0 (x)2 )00 2 . A equação de Euler-Lagrange é

u0 (x)
 
d 1 0 2 −1/2
 0 d
1 + (u (x)) · 2u (x) = 0 ⇔ p =0,
dx 2 dx 1 + u0 (x)2

ou seja,
u00 (x)
=0 ⇔ u00 (x) = 0 ,
(1 + (u0 (x))2 )3/2
isto é, as geodésicas do plano são linhas rectas.

A proposição 4.1 generaliza-se imediatamente ao caso em que o argumento da função L


contém n funções u1 (x), . . . , un (x), e as suas derivadas u01 (x), . . . , u0n (x), em vez de apenas
uma função e a sua derivada, ou seja, ao caso em que L = L(~u, ~u 0 , x), obtendo-se nesse
caso n equações de Euler-Lagrange. Passando então à notação da Mecânica e definindo o
funcional da acção hamiltoniana S[~q] como

Zt1
S[~q] = L(~q(t), ~q˙(t), t)dt ,
t0

onde L é o lagrangeano do sistema considerado, temos a seguinte proposição, que constitui


a formulação variacional da Mecânica:

Proposição 4.2 (princı́pio de Hamilton). Um movimento ~q(t), t0 ≤ t ≤ t1 , é ponto


de estacionaridade do funcional da acção S[~q] para variações δq1 (t), . . . , δqn (t) arbitrárias
mas nulas nos extremos do intervalo [t0 , t1 ] se e só se verifica as equações de Lagrange
d ∂L ∂L
− =0, j = 1, . . . , n .
dt ∂ q̇j ∂qj

Demonstração. Refazendo no caso geral os cálculos que conduziram à proposição 4.1, temos
t1 Zt1 X
 
n n  
X ∂L d ∂L ∂L
δS[~q, δ~q] = δqj −  − δqj  dt ,
∂ q̇j t0 dt ∂ q̇ j ∂q j
j=1 t0 j=1

e o resultado segue da condição de extremos fixos e da arbitrariedadede de δ~q(x).


108 4.1. Os princı́pios variacionais da Mecânica

Note-se que as duas propriedades importantes das equações de Lagrange, a sua in-
variância para mudanças de coordenadas e o facto do lagrangeano estar definido a menos
da derivada total em ordem ao tempo de uma função arbitrária das coordenadas generali-
zadas e do tempo, aparecem de maneira natural no contexto desta formulação variacional.
Uma extensão, devida a Helmholtz, do princı́pio de Hamilton permite, como é natural
esperar, obter as equações de Hamilton a partir de um princı́pio variacional. Considere-
mos então o funcional das 2n funções independentes, que continuaremos a chamar acção
hamiltoniana e a representar por S,
Zt1 X
 
n
S[~q, p~] =  (pj (t)q̇j (t) − H(~q(t), p~(t), t) dt .
t0 j=1

Temos então
Zt1 X
 
n
∂H ∂H
p] =  (δpj (t)q̇j (t) + pj (t)δ q̇j (t) −
δS[~q, p~, δ~q, δ~ δpj (t) − δqj (t) dt ,
∂pj ∂qj
t0 j=1

d
onde δ q̇j (t) = dt δqj (t),
j = 1, . . . , n. Integrando por partes o termo correspondente vem
Zt1 X
 
n      n t1
∂H ∂H X
δS[~q, p~, δ~q, δ~
p] =  q̇j − δpj (t) − ṗj + δqj (t) dt + pj (t)δqj (t)
∂pj ∂qj t0
t0 j=1 j=1

e temos que um movimento no espaço de fases ~q(t), p~(t) é o ponto de estacionaridade do


funcional da acção com respeito a variações arbitrárias δ~q, δ~ p, mas nulas nos extremos t0 , t1
do intervalo de integração se e só se é solução das equações de Hamilton ~q˙ = ∂H
∂~ ~˙ = − ∂H
p ,p q .
∂~
A Mecânica admite ainda uma outra formulação variacional, menos geral mas histórica-
mente precedente, a partir de um funcional, chamado acção de Maupertuis, que é definido no
espaço das trajectórias γ vistas como curvas geométricas no espaço das configurações, sem
ter em conta a maneira como são percorridas ao longo do tempo pelo ponto representativo do
sistema, e parametrizadas pela energia E. Para abordar esta formulação, vamos restringir-
nos aos sistemas lagrangeanos naturais e conservativos,
L(~q, ~q˙) = T (~q, ~q˙) − V (~q) ,
para os quais, como já vimos, a energia E = T + V é uma constante do movimento. Fixado
um valor da energia E, consideremos o conjunto das trajectórias orientadas γ entre dois
extremos fixos ~q0 e ~q1 , compatı́veis com aqeuele valor da energia, isto é, para os quais se
tem sempre E − V (q) > 0. Para cada escolha de E e γ, ~q˙ fica determinado em cada ponto
como função de ~q, dado que γ determina a direcção de ~q˙ em cada ponto, e o valor de E
determina a energia cinética T = E − V (~q), a qual por sua vez, conhecida a direcção de
n
~q˙, fixa o seu módulo. Portanto, também os momentos conjugados pj = ∂T =
P
akj (~q)q̇k
∂ q̇j
k=1
ficam determinados como função de ~q, e tem sentido definir o funcional A[γ, E], chamado
acção de Maupertuis, como o integral de linha
 
Z Z X n
A[γ, E] = p~(~q) · d~q =  pj (~q)dqj  .
γ γ j=1
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 109

Pelo mesmo argumento, vemos que a escolha de um valor de E implica que a cada trajectória
γ está associado um movimento ~q(t), t ∈ [t0 , t1 ], onde t0 é fixo e arbitrário e t1 depende em
geral de γ. Parametrizando então a curva γ pelo parâmetro t do movimento correspondente,
temos
Zt1 Zt1
A[γ; E] = p~(~q(t)) · ~q˙(t)dt = (L + E)dt = S[~q] + E(t1 − t0 ) . (4.2)
t0 t0

Consideremos então uma curva γ entre ~q0 e ~q1 , e uma famı́lia a um parâmetro γ α de
curvas variadas de γ que deixam fixos os extremos ~q0 e ~q1 . Definimos a variação do funcional
da acção de Maupertuis como
d
δA = A[γ α ; E] , (4.3)

dα α=0

onde o valor E da energia se toma o mesmo para todas as curvas. À parte este matiz, esta
definição difere da definição habitual de variação de um funcional na medida em que as
curvas γ α não são necessáriamente lineares em α. Esta generalização é natural e útil no
cálculo variacional, e poderı́amos desde o inı́cio tê-la considerado, sem alterar mais nada,
d α
fazendo δu(x) = dα u (x)|α=0 . A cada curva γ α corresponde como vimos um movimento
~q(α, t), t ∈ [tα0 , tα1 ], e a condição de extremos fixos implica que se tenha
~q(α, tα0 ) ≡ ~q0 , ~q(α, tα1 ) ≡ ~q1 .
Derivando em ordem a α em α = 0 vem
d ∂~q d
~q(α, tαi ) = (α, tαi ) + ~q˙(ti ) tαi =0,

dα α=0 ∂α α=0 dα α=0
ou seja,
δ~q(ti ) = −~q˙(ti )δti , i = 0, 1 . (4.4)
Calculemos então a variação δA a partir das equações (4.3) e (4.2):
α
Zt1
d
δA = L(~qα (t), ~q˙α (t))dt + E(δt1 − δt0 ) =

dα α=0

0

Zt1  
∂L t1
= − p~˙ − · δ~qdt + p~ · δ~q +

∂~q t0
t0

+L(~q(t1 ), ~q˙(t1 ))δt1 − L(~q(t0 ), ~q˙(t0 ))δt0 + E(δt1 − δt0 ) ,


e, usando (4.4), os quatro últimos termos ficam
   
p(t1 ) · ~q˙(t1 ) + L(~q(t1 ), ~q˙(t1 )) + E δt1 − −~
−~ p(t0 ) · ~q˙(t0 ) + L(~q(t0 ), ~q˙(t0 )) + E δt0 = 0
e vem apenas
Zt1
 
n  
X ∂L
δA = −  ṗj − δqj  dt . (4.5)
∂qj
t0 j=1

Em consequência, temos:
110 4.1. Os princı́pios variacionais da Mecânica

Proposição 4.3 (princı́pio de Maupertuis). Para cada valor da energia E, as trajectó-


rias correspondentes às soluções
R das equações de Lagrange estacionarizam o funcional da
acção de Maupertuis A = p~ · d~q em relação a variações da trajectória que deixem fixos os
γ
seus extremos.
O recı́proco deste resultado também é verdadeiro, embora a demonstração seja mais
delicada, dado que as variações δqj em (4.5) não são independentes, uma vez que a energia
total E está fixa.

Consideremos então um ponto material sujeito a mover-se sobre uma superfı́cie ‘lisa’ e
a um sistema de forças conservativas de potencial V (~q). Fixadas uma trajectória γ e um
valor da energia E, temos, dado que neste caso T é uma função homogénea de grau 2 das
velocidades generalizadas,
√ √ √
~q · d~q = p~ · ~q˙dt = 2T dt = 2T 2T dt = 2(E − V ) mvdt ,
p

onde v é o módulo da velocidade, e a acção de Maupertuis escreve-se


Zt1 p
A[γ; E] = 2m(E − V )vdt ,
t0

ou, voltando a uma formulação puramente geométrica e tomando como parâmetro o com-
primento de arco l sobre γ,
Z p
A[γ; E] = 2m(E − V (~q))dl ,
γ

ou seja, a acção é o comprimento da curva calculado com um ‘factor de peso’ que depende
do potencial. Em particular, para o caso do movimento de uma partı́cula livre sobre uma
superfı́cie lisa, o princı́pio de Maupertuis diz-nos que as trajectórias coı́ncidem com as
geodésicas da superfı́cie.
Para um sistema arbitrário com n graus de liberdade e ligações independentes do tempo,
é natural tomar para o comprimento de arco no espaço de configurações, generalizando a

relação dl2 = 2T dt = mvdt válida para uma partı́cula,
X √
ds2 = akl (~q)dq̇k dq̇l , ds = 2T dt , (4.6)
k,l

e a acção de Maupertuis fica


Z √ Z p
A= 2T ds = 2(E − V (~q))ds
γ γ

e as trajectórias no caso do sistema livre coı́ncidem também com as geodésicas do espaço


de configurações em relação à métrica (4.6). Isto sugere a possibilidade de definir uma nova
métrica X
ds2 = 2(E − V (~q)) akl (~q)dqk dql , (4.7)
k,l
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 111

de tal modo que a acção de Maupertuis fica simplesmente


Z
A = ds ,
γ

e, para qualquer sistema, as trajectórias coı́ncidem com as geodésicas no espaço de con-


figurações dotado da métrica (4.7). Ou seja, a Mecânica pode ser completamente ge-
ometrizada, dado que as forças aplicadas podem ser ‘substituı́das’ por modificações na
métrica no espaço de configurações, isto é, considerando que o ponto representativo do
sistema se move sobre uma superfı́cie de curvatura adequada. É este programa que a
relatividade geral vai levar até ao fim.

4.2 As transformações canónicas


O objectivo desta secção é o de estudar a classe de transformações no espaço de fases que
são admissı́veis no quadro do formalismo hamiltoniano, chamadas transformações canónicas.
Como já vimos, as transformações pontuais estendidas, isto é, as mudanças de variável no
espaço de configurações estendidas ao espaço de fases da maneira que decorre naturalmente
da passagem de velocidades generalizadas a momentos conjugados, pertencem a esta classe
que, no entanto, como veremos, é bem mais vasta.
Para fixar a notação, consideremos transformações de coordenadas da forma
~ ~q̃, t) ,
pj = uj (p̃, ~ ~q̃, t) ,
qj = vj (p̃, j = 1, . . . , n ,
ou, em notação mais compacta e introduzindo também a transformação inversa,
( (
~ ~q̃, t)
p~ = ~u(p̃, p̃~ = ~ũ(~q, p~, t)
, , (4.8)
~ ~q̃, t)
~q = ~v (p̃, ~q̃ = ~ṽ(~q, p~, t)

ou ainda
(~q, p~) = w( ~ ~q̃, t) ,
~ p̃, (~q̃, ~0̃) = w̃(~
~ q , p~, t) .
Vamos supor sempre que as transformações de coordenadas são invertı́veis e tão regulares
quanto o necessário, o que significa, em geral, classe C2 .
A ideia de partida é a de caracterizar a classe de transformações que preserva o carácter
hamiltoniano das equações do movimento, ainda que o novo hamiltoniano possa não coı́ncidir
com o hamiltoniano original expresso nas novas coordenadas. De acordo com esta ideia,
temos o seguinte:
Definição 4.1. A transformação (4.8), regular e invertı́vel, diz-se canónica se transforma
um sistema canónico arbitrário noutro sistema canónico, isto é, se dado qualquer hamil-
toniano H(~q, p~, t) existe sempre um hamiltoniano K(p̃, ~ ~q̃, t) tal que as equações canónicas
˙ ∂H ˙ ∂H
relativas a H, ~q = ∂~p , p~ = − ∂~q , se transformam mediante a mudança de variáveis (4.8)
˙ ˙
nas equações canónicas relativas a K, ~q̃ = ∂K~ , p̃~ = − ∂K~ .
∂ p̃ ∂ q̃

Note-se que o novo hamiltoniano K(p̃,~ ~q̃, t), que se chama canónicamente conjugado de
H pela transformação (4.8), não tem necessáriamente que coı́ncidir com a função H ◦ w. ~
Vejamos alguns exemplos de transformações que é fácil verificar a partir da definição que
são canónicas:
112 4.2. As transformações canónicas

1. p~ = p̃~ + ~a, ~q = ~q̃ + ~b, com ~a, ~b constantes.


~q̃˙ = ~q˙ = ∂H = ∂ H ~q̃ + ~b, p̃~ + ~a, t
  
∂~
p ~
∂ p̃
 canónica com

   
˙
  K ~ ~q̃, t = H ~q̃ + ~b, p̃~ + ~a, t
p̃,
p̃~ = p~˙ = − ∂H = − ∂
H ~q̃ + ~b, p̃~ + ~a, t 

∂~
q ~
∂ q̃

~ ~q = β ~q̃, com α, β ∈ R constantes não nulas.


2. p~ = αp̃,
˙
  
p̃~ = α1 p~˙ = − α1 ∂H
∂~q = − 1 ∂
αβ ∂ q̃~ H β ~q̃, αp̃,
~ t   canónica com
 
˙~ 1 ˙
  K( ~q̃, p̃,
~ t) = 1 H β ~q̃, αp̃,
~ t
q̃ = β ~q = αβ 1 ∂ ~ ~ αβ
~ H β q̃, αp̃, t


∂ p̃
   
3. p~ = ~q̃, ~q = p̃~ é canónica com K ~q̃, p̃,
~ t = −H p̃,
~ ~q̃ .

4. p~ = p̃, ~ ~q = ~q̃ + ~ct, ~c constante.


˙
  
p̃~ = p~˙ = − ∂H = − ∂
H ~q̃ + ~ct, p̃~  canónica com

∂~
q ∂ q̃~    
K ~q̃, p̃,
~ t = H ~q̃ + ~ct, p̃~ − ~c · p̃~
~q̃˙ = ~q˙ − ~c = ∂H − ~c = ∂ H ~q̃ + ~ct, p̃~ − ~c · p̃~
  

∂~
p ∂~
p

(Em todos os exemplos, K = qH◦W + (K0 ), com K0 6= 0 se a transformação depende do


tempo).

Não obstante todos estes exemplos, é claro que há transformações de coordenadas que
não são canónicas, caso contrário o problema da classificação seria trivial. Por exemplo, a
passagem a coordenadas polares no plano q, p,
q = q̃ cos p̃ , p = q̃ sin p̃ ,
não é canónica, como se pode ver tomando o hamiltoniano da partı́cula livre de massa
unitária, H(q, p) = p2 /2, cujas equações são q̇ = p, ṗ = 0. As equações do movimento nas
novas coordenadas são
q̃˙ = q̃ cos p̃ sin p̃ , p̃˙ = − sin2 p̃ ,
que é imediato verificar que não têm forma hamiltoniana.
Note-se também que o exemplo 2 mostre que, mediante um relaxamento das variáveis,
é sempre possı́vel eliminar uma constante multiplicativa no hamiltoniano.

Procuremos então uma classificação das transformações canónicas. Dada uma função
f (~q, p~, t), chamaremos diferencial a tempo fixo de f , e denotaremos por d∗ f , a
n  

X ∂f ∂f ∂f
d f= dqj + dpj = df − dt .
∂qj ∂pj ∂t
j=1

Diremos que uma mudança de coordenadas da forma (4.8) satisfaz à condição de Lie se
existem uma constante c 6= 0 e uma função F (~q̃, p̃, ~ t) tais que se verifique identicamente a
igualdade
c~u · d∗~v = p̃~ · d∗ ~q̃ + d∗ F . (4.9)
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 113

Na expressão (4.9), que se pode também escrever, com um pequeno abuso de notação, na
forma
p · d∗ ~q = p̃~ · d∗ ~q̃ + d∗ F ,
c~
a diferencial a tempo fixo d∗ ~q̃ coincide com d~q̃. Sem recorrer a diferenciais a tempo fixo,
(4.9) pode ainda escrever-se na forma
c~u · ~v = p̃~ · ~q̃ + dF − K0 dt , (4.10)
∂~v ∂F
com K0 = −c~u · ∂t + ∂t .
Proposição 4.4. Se uma transformação de coordenadas na forma (4.8) satisfaz a condição
de Lie (4.9) ou (4.10) com uma certa constante c e uma certa função F , então ela é canónica
e o hamiltoniano conjugado de H é
K = cH◦w
~ + K0 . (4.11)
Recı́procamente, se (4.8) é canónica, então verifica a condição de Lie para certos c e F e
o hamiltoniano conjugado é dado por (4.11).
Demonstração. Neste ponto daremos apenas a demonstração da afirmação directa; a recı́proca
será provada mais tarde. Consideremos então uma transformação (4.8) que verifica a
condição de Lie (4.10), para um certo par de funções F e K0 . Dado um hamiltoniano
~
arbitrário, a função K dada por (4.11) fica então determinada. Sejam p~(t), ~q(t), e p̃(t), ~q̃(t),
movimentos possı́veis ‘a priori’ relacionados pela transformação (4.8), isto é, tais que
p~(t) = ~u(~q̃(t), p̃(t),
~ t) , ~q(t) = ~v (~q̃(t), p̃(t),
~ t) ,
e sejam também as acções hamiltonianas correspondentes,
Zt1 Zt1
˙
S = (~ p · ~q˙ − H)dt , S̃ = (p̃~ · ~q̃ − K)dt .
t0 t0

Vejamos que it1


cS = S̃ + F (~q̃(t), p̃(t),
~ t) . (4.12)
t0

Se assim for, a demonstração fica concluida, dado que então cδS = δ S̃, ou seja, as variações
das duas acções anulam-se simultâneamente, o que significa, via o princı́pio de Hamilton,
que ~q(t), p~(t) são soluções das equações de Hamilton correspondentes a H se e só se ~q̃(t), p̃(t)
~
são soluções das equações correspondentes a K.
Para provar (4.12), temos que, usando a condição de Lie (4.10),
Zt1 Zt1    
c p~(t)~q˙(t)dt = c ~u ~q̃(t), p̃(t),
~ t · ~v˙ ~q̃(t), p̃(t),
~ t dt =
t0 t0
Zt1
˙
 
= ~ · ~q̃(t)
p̃(t) − K0 (~q̃(t), p̃(t),
~ t) + Ḟ (~q̃(t), p̃(t),
~ t) dt ⇒
t0
it1
⇒ cS = S̃ + F (~q̃(t), p̃(t),
~ t) .
t0
114 4.2. As transformações canónicas

A constante c, que intervém em (4.10) e (4.11), chama-se valência da transformação


e é, como já vimos, irrelevante do ponto de vista da determinação do movimento, dado
que se pode eliminar por um rescalamento das variáveis. As transformações univalentes
chamam-se completamente canónicas e, em alguns textos, são as únicas que se consideram.
A condição de Lie é útil também para demonstrar que as transformações canónicas
constituem um grupo em relação à composição.
Vejamos agora como obter funções geradoras para transformações canónicas. Suponha-
mos primeiro que é  
∂vj
det 6= 0 , (4.13)
∂ p̃k
~ e as equações
de modo que a segunda das equações (4.8) se pode inverter em ordem a p̃,
da transformação se podem escrever na forma equivalente
p̃~ = p̃(~
~ q , ~q̃, t) , p~ = p~(~q, ~q̃, t) ,
substituindo na primeira dessas equações p̃~ como função de ~q e ~q̃ dado pela segunda. Isto
significa que ~q e ~q̃ se podem tomar como um conjunto de 2n variáveis independentes, e a
condição de Lie (4.10) escreve-se, em termos destas variáveis,
p~ · d~q − p̃~ · d~q̃ + K0 dt = dF1 ,
onde por simplicidade tomamos c = 1 e F1 (~q, ~q̃, t) = F (~q̃, p̃(~
~ q , ~q̃, t), t). Por outras palavras,
~
uma função F1 (~q, q̃, t define a transformação canónica dada por
∂F1 ∂F1 ∂F1
pj = , p̃j = − , j = 1, . . . , n com K0 = , (4.14)
∂qj ∂ q̃j ∂t
isto é, as equações (4.14), caso se possam inverter em ordem a qj e pj , j = 1, . . . , n,
definem uma transformação da forma (4.8) que verifica automaticamente a condição de
Lie com F = F1 e que ~ ~
 leva o hamiltoniano H(~q, p~) ao novo hamiltoniano K(q̃, p̃, t) =
H ~q(~q̃, p̃,
~ t), p~(~q̃, p̃,
~ t), t + ∂F1 . A condição de invertibilidade é claramente
∂t

∂ 2 F1
 
det 6= 0 . (4.15)
∂ q̃j ∂qk

No sentido da afirmação anterior, qualquer função F1 (~q, ~q̃, t) que verifica (4.15) é uma
função geradora de uma transformação canónica.
É natural esperar que esta construção se possa estender a funções de 2n variáveis cujos
argumentos sejam qualquer combinação de ‘antigas’ e ‘novas’ coordenadas ou momentos.
Suponhamos por exemplo que ~q e p̃~ se podem tomar como coordenadas independentes,   ou
seja que a segunda das equações (4.8) é invertı́vel em ordem a q̃ por se ter det ∂v
~ k
∂ q̃j 6= 0,
de modo que se podem apresentar na forma equivalente
~q̃ = ~q̃(p̃,
~ ~q, t) , ~ ~q, t) .
p~ = p~(p̃,
~
A condição de Lie (4.10) pode escrever-se, em termos das variáveis independentes ~q e p̃,
d(~q̃ · ~q̃) − ~q̃ · dp̃~ + dF − K0 dt = p~ · d~q ⇔
p~ · d~q + ~q̃ · dp̃~ + K0 dt = dF2 ,
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 115

~ t) = F − p̃~ · ~q̃(~
onde F2 (~q, p̃, ~ t). Por outras palavras, uma função F2 (~q, ~q̃, t) define uma
p, p̃,
transformação canónica dada por

∂F2 ∂F2 ∂F2


pj = , q̃j = , j = 1, . . . , n com K0 = , (4.16)
∂qj ∂ p̃j ∂t
2
desde que | ∂∂p̃j F∂q2k | =
6 0 e as equações (4.16) se possam inverter em ordem aos pj e escrever
na forma (4.8). Essa transformação  leva o hamiltoniano original ao novo hamiltoniano
K(~q̃, p̃,
~ t) = H ~q(~q̃, p̃, ~ t), p~(~q̃, p̃,
~ t), t + ∂F2 . Da mesma maneira temos F3 (~q̃, p~, t) e F4 (~
∂t
~ t)
p, p̃,
definem transformações canónicas dadas por

∂F3 ∂F3 ∂F3


qj = − , p̃j = − , j = 1, . . . , n , K = H + ,
∂pj ∂ q̃j ∂t (4.17)
∂F4 ∂F4 ∂F4
qj = − , q̃j = , j = 1, . . . , n , K = H + ,
∂pj ∂ p̃j ∂t

desde que se verifiquem as respectivas condições de invertibilidade, isto é, desde que as
respectivas matrizes jacobianas sejam não singulares.
Em qualquer uma das suas quatro formas, portanto, as funções geradoras fornecem
imediatamente e de uma maneira simples, amplas classes de transformações canónicas. Mais
precisamente, estas quatro funções geram todas as transformações canónicas em dimensão
1; em dimensão arbitrária, para conseguir obter qualquer transformação canónica a partir
de uma função geradora haverá que considerar também funções geradoras de tipo misto,
isto é, de tipo 1, 2, 3 ou 4 em relação a cada par de variáveis conjugadas.
No que se segue, vamos considerar uma transformação canónica muito particular, que
vai desempenhar um papel importante em teoria de Hamilton-Jacobi, e que é a gerada pelo
próprio fluxo hamiltoniano.

Proposição 4.5. Consideremos um sistema hamiltoniano arbitrário de hamiltoniano H,


e sejam ~q = ~q(~q̃, p̃,
~ t), p~ = p~(~q̃, p̃,
~ t) as equações da solução geral do movimento em termos
~ ~
das condições iniciais q̃, p̃, isto é, as equações de transformação em coordenadas definida
pelo próprio fluxo. Esta transformação é canónica, verifica a condição de Lie (4.9) com
c=1e

Zt  
0 ∂~v ~ ~ 0
~ ~
F (q̃, p̃, t) = ~ ~
~u(q̃, p̃, t ) · (q̃, p̃, t ) − H(~v (q̃, p̃, t ), ~u(q̃, p̃, t ), t ) dt0 .
~ ~ 0 ~ ~ 0 0
∂t
0

Demonstração. Da condição de Lie (4.9) com c = 1,

p~ · d∗ ~q = ~q̃ ·∗ ~q̃ + dF ,

vem imediatamente
n n
X ∂qj ∂F X ∂qj ∂F
pj − p̃k = , pj = , k = 1, . . . , n ,
∂ q̃k ∂ q̃k ∂ p̃k ∂ p˜k
j=1 j=1
116 4.2. As transformações canónicas

ou, equivalentemente,
n
X ∂vj n
X ∂vj
∂F ∂F
= uj − p˜k , = uj , k = 1, . . . , n .
∂ q̃k ∂ q̃k ∂ p̃k ∂ p̃k
j=1 j=1

Verifiquemos a partir da definição de F a segunda destas igualdades (para a primeira o


procedimento é análogo):

Zt X
 
n  2  Xn  
∂F ∂uj ∂vj ∂ vj ∂H ∂vj ∂H ∂uj  0
=  + uj − + dt =
∂ p̃k ∂ p˜k ∂t ∂t∂ p̃k ∂qj ∂ p˜k ∂pj ∂ p̃k
0 j=1 j=1

Ztn 
∂ 2 vj

X ∂uj ∂vj ∂uj ∂vj ∂vj ∂uj
= + uj + − dt0 =
∂ p̃k ∂t ∂t∂ p̃k ∂t ∂ p̃k ∂t ∂ p̃k
0 j=1
Zt X Zt
 
n  2  n
∂uj ∂vj ∂ vj ∂  X ∂vj  0
= + uj dt0 = uj dt =
∂t ∂ p̃k ∂t∂ p̃k ∂t ∂ p̃k
0 j=1 0 j=1
 
n
X ∂vj n
X ∂vj n
X ∂vj
= uj − uj  = uj .
∂ p̃k ∂ p̃k ∂ p̃k
j=1 j=1 j=1
t=0

Note-se que a função F correspondente a esta transformação canónica particular coin-


cide com a acção hamiltoniana S calculada sobre a trajectória real e expressa em função
das condições iniciais e do tempo.
Para sabermos qual a nova função hamiltoniana, terı́amos, seguindo a teoria, que calcu-
lar a função K0 , a partir da condição de Lie na forma (4.10), dado que K = H◦w ~ + K0 . É
~ ~ ~ ~
óbvio no entanto que K(q̃, p̃, t) ≡ 0, dado que as novas coordenadas, q̃, p̃ são constantes ao
longo de cada trajectória (só as condições iniciais), e portanto as equações do movimento
correspondentes são
~q̃˙ = 0 , p̃~˙ = 0 .

De facto, conhecer explı́citamente a transformação canónica dada pelo fluxo é equivalente


a resolver o problema do movimento.
Vejamos agora a relação entre transformações canónicas e transformações que preservam
o parêntesis de Poisson. Dizemos que uma transformação de coordenadas

~ ~q̃, p̃,
(~q, p~) = w( ~ t)

preserva o parêntesis de Poisson se, dadas duas funções arbitrárias f e g, se tem, chamando
F a f ◦w e G a g◦w, {F, G} = {f, g}◦w, ou seja,

{F, G}(~q̃, p̃,


~ t) = {f, g}(w(
~ ~q̃, p̃,
~ t), t) . (4.18)

É evidente da definição que as transformações que preservam o parêntesis de Poisson formam


um grupo em relação à composição. Podemos também considerar o grupo mais geral das
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 117

transformações que preservam o parêntesis de Poisson a menos de uma constante, isto é,
para as quais se tem c{F, G} = {f, g}◦w para qualquer par de funções f e g.
Note-se que
n  
X ∂F ∂G ∂F ∂G
{F, G} = − =
∂ q̃j ∂ p̃j ∂ p̃j ∂ q̃j
j=1
n n  ! X n  !
X X ∂f ∂qk ∂f ∂pk ∂g ∂ql ∂g ∂pl
= + + −
∂qk ∂ q̃j ∂pk ∂ q̃j ∂ql ∂ p̃j ∂pl ∂ p̃j
j=1 k=1 l=1
n n  ! X n  !
X X ∂f ∂qk ∂f ∂pk ∂g ∂ql ∂g ∂pl
− + + =
∂qk ∂ p˜j ∂pk ∂ p̃j ∂ql ∂ q̃j ∂pl ∂ q̃j
j=1 k=1 l=1
n     
X ∂f ∂g ∂qk ∂ql ∂qk ∂ql ∂f ∂g ∂qk ∂pl ∂qk ∂pl
= − + − +
∂qk ∂ql ∂ q˜j ∂ p̃j ∂ p̃j ∂ q̃j ∂qk ∂pl ∂ q̃j ∂ p̃j ∂ p̃j ∂ q̃j
j,k,l=1
   
∂f ∂pk ∂pk ∂ql ∂pk ∂ql ∂f ∂g ∂pk ∂pl ∂pk ∂pl
+ − + − =
∂pk ∂ql ∂ q̃j ∂ p̃j ∂ p̃j ∂ q̃j ∂pk ∂pl ∂ q̃j ∂ p̃j ∂ p̃j ∂ q̃j
n  
X ∂f ∂g ∂f ∂g ∂f ∂g ∂f ∂g
= {vk , ul } + {vk , ul } + {uk , vl } + {uk , ul } .
∂qk ∂ql ∂qk ∂pl ∂pk ∂ql ∂pk ∂pl
k,l=1

É evidente portanto que (4.18) se verifica para pares de funções arbitrárias se e só se for

{vk , vl } = {uk , ul } = 0 , {vk , ul } = δkl , k, l = 1, . . . , n ,

ou seja, uma transformação preserva o parêntesis de Poisson se e só se preserva os parêntesis


de Poisson fundamentais associados às próprias coordenadas.
Antes de prosseguir, vamos introduzir uma notação compacta que é útil no tratamento
do formalismo canónico. Façamos

~x = (x1 , . . . , x2n ) = (~q, p~) ,

e consideremos a matriz 2n × 2n
 
0 1
E= ,
−1 0

onde 1 representa a matriz identidade n × n. Dada uma função f , seja ∂~x f o seu gradiente,
 
∂f ∂f
∂~x f = ,..., .
∂x1 ∂x2n

Com esta notação, é imediato verificar que as 2n equações de Hamilton associadas a um


hamiltoniano H se escrevem
~x˙ = E∂~x H , (4.19)
e que o parêntesis de Poisson de duas funções f e g se escreve

{f, g} = ∂~x f · E∂~x g . (4.20)


118 4.2. As transformações canónicas

As operações definidas por (4.19) e (4.20) chamam-se gradiente simplético de H e produto


escalar simplético de ∂~x f e ∂~x g, respectivamente.
No que se segue, e para acabar esta secção, vamos dar uma caracterização simples das
transformações que preservam o parêntesis de Poisson, chamadas transformações simpléticas,
e mostrar que estas coincidem com as transformações canónicas.
Proposição 4.6. A transformação de coordenadas (4.8) é simplética se e só se a corres-
pondente matriz jacobiana [Jij ] = ∂w
∂ x̃j , ou seja,
i

 ∂~v ∂~v 
∂ q̃~ ~
∂ p̃
J=  ,
∂~
u ∂~
u
∂ q̃~ ~
∂ p̃

verifica a condição
JEJ> = E . (4.21)
Demonstração. Por definição, a transformação (4.8) é simplética se se verificar {F, G} =
{f, g}◦w para qualquer par de funções f, g. Em termos da notação que acabámos de
introduzir, esta condição escreve-se

∂~x̃ F · E∂~x̃ G = (∂~x f · E∂~x g)◦w


~ .

~ ∂~x̃ G = (J> ∂~x g)◦w,


Mas δ~x̃ F = (∂~x f J)◦w, ~ de modo que vem

(∂~x f · JEJ> ∂~x g)◦w


~ = (∂~x f · E∂~x g)◦w
~

e o resultado segue.

As matrizes que verificam a propriedade (4.21) chamam-se matrizes simpléticas e é fácil


ver que formam um grupo em relação à multiplicação.
Se tivessemos considerado transformações que preservam o parêntesis de Poisson a
menos de uma constante c, tais que c{F, G} = {f, g}◦w ~ para qualquer par de funções f e g,
então serı́amos levados à condição cJEJ> = E em vez da condição (4.21). Estas matrizes
chamam-se simpléticas com multiplicador, e as transformações de variável correspondente
recebem o mesmo nome.
Vejamos então que as transformações simpléticas (e respectivamente, simpléticas com
multiplicador) coı́ncidem com as transformações completamente canónicas (respectivamente,
canónicas).
Proposição 4.7. A transformação de coordenadas (4.8) é simplética ou simplética com
multiplicador c se e só se a condição de Lie (4.9) é verificada com a mesma constante c e
uma certa função F (~q̃, p̃,
~ t).

Demonstração. Consideremos por simplicidade o caso c = 1 e recordemos que a condição e


Lie (4.9) é
~u · d∗~v = p̃~ · d∗ ~q̃ + d∗ F ,
que podemos escrever na forma equivalente

d∗ (~u · ~v ) − ~v · d∗ ~u = d∗ (p̃~ · ~q̃) − ~q̃ · d∗ p̃~ + d∗ F ,


Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 119

ou ainda, somando estas duas expressões,

~u · d∗~v − ~v · d∗ ~u = p̃~ · d∗ ~q̃ − ~q̃ · d∗ p̃~ + d∗ G ,

com G = 2F + p̃~ · ~q̃ − ~u · ~v . Esta última expressão pode ainda escrever-se

~ · d∗ w
Ew ~ − E~x̃ · d∗ ~x̃ = d∗ G

~ = Jd∗ ~x̃, vem


e, com d∗ w
(J> Ew(
~ ~x̃) − E~x̃) · d∗ ~x̃ = d∗ G .
Para que exista uma função G que verifique a condição de Lie escrita sob esta forma é
necessário que os coeficientes da forma diferencial do primeiro membro verifiquem a condição
de fecho, ou de igualdade das derivadas cruzadas. Seja então

f~ = J> Ew(
~ ~x̃) − E~x̃

e calculemos
2n 2n
! !
∂fi ∂ X
> ∂ X
= ~ k − (E ~x̃)i
(J )ik (Ew) = Jki k wk+k n − i x̃i+i n ,
∂ x̃j ∂ x̃j ∂ x̃j
k=1 k=1

onde (
+1 para 1 ≤ i ≤ n
i = ;
−1 para n < i ≤ 2n
temos então
n 2n
∂fi ∂ X ∂ X
= Jki wk+n − Jki wk−n − δj i+i n =
∂ x̃j ∂ x̃j ∂ x̃j
k=1 k=n
n n 2n 2n
X ∂ 2 wk X ∂wk+n X ∂ 2 wk X ∂wk−n
= wk+n + Jki − wk−n − Jki − Eij
∂ x̃j ∂ x̃i ∂ x̃j ∂ x̃i ∂ x̃j ∂ x̃j
k=1 k=1 k=n k=n
e
n 2n n 2n
∂fi ∂fj X X X X
− = Jki Jk+nj − Jki Jk−nj − Jkj Jk+ni + Jkj Jk−ni − Eij − Eji =
∂ x̃j ∂ x̃i
k=1 k=n k=1 k=n
X2n 2n
X
= Jki k Jk+k nj − Jkj k Jk+k ni − 2Eij =
k=1 k=1
2n 2n 2n
! !
X X X X
= Jki (k δl k+k n Jlj ) − Jkj k δl k+k n Jli − 2Eij =
k=1 l=1 k=1 l
X2n 2n
X
= Jki Ekl Jlj − Jkj Ekl Jli − 2Eij =
k,l=1 k,l=1

= (J> EJ)ij − (J> EJ)ij − 2Eij = 2(J> EJ − E)ij ,

pelo que a condição de Lie se verifica se e só se J> EJ = E, condição que é fácil ver que é
equivalente a (4.21).
120 4.3. A equação de Hamilton-Jacobi

Completamos assim o estudo da teoria das transformações canónicas mostrando a


equivalência entre as seguintes caracterizações: preservar a forma hamiltoniana das equações
do movimento, verificar a condição de Lie, preservar os parêntesis de Poisson, preservar os
parêntesis de Poisson fundamentais e ser simplética. Vimos ainda uma maneira de obter
transformações desta classe a partir de funções geradoras, e que a transformação definida
pelo próprio fluxo de um sistema hamiltoniano é canónica. Note-se que este último resul-
tado implica o teorema de Liouville, dado que, pela equação (4.21), qualquer transformação
canónica tem jacobiano de módulo 1. Fica pendente apenas a demonstração do recı́proco
da proposição 4.4, que omitiremos por falta de tempo, remetendo para a bibliografia os
alunos interessados.

4.3 A equação de Hamilton-Jacobi


Suponhamos que é dado um hamiltoniano H(~q, p~) para o qual todas as coordenadas são
cı́clicas, isto é, H só depende dos momentos conjugados e tem-se H(~q, p~) = H(~
p). Nesse
caso, a integração é trivial, dado que as equações do movimento são
∂H
~q˙ = =ω p) , p~˙ = 0
~ (~
∂~
p
e vem
pj = pj (0) , qj = qj (0) + ωj t , j = 1, . . . , n ,
∂H
onde ωj = ∂p j
(p1 (0), . . . , pn (0)).
Evidentemente, um hamiltoniano depende em geral dos 2n coordenadas e momentos
conjugados, mas tem sentido que nos interroguemos sobre a possibilidade de, através de
transformações canónicas, passar de um hamiltoniano dado a um que só dependa dos mo-
mentos. Consideremos por exemplo o oscilador harmónico,
n
1X 2
H(~q, p~) = pj + ωj2 qj2 .
2
j=1

A transformação (~q, p~) = (~q(ϕ1 , . . . , ϕn , I1 , . . . , In ), p~(ϕ1 , . . . , ϕn , I1 , . . . , In )) dada por


s
p Ij
pj = 2ωj Ij cos ϕj , qj = 2 sin ϕj
ωj
é canónica, como é fácil comprovar, e o novo hamiltoniano é
n
X
K(ϕ1 , . . . , ϕn , I1 , . . . , In ) = Ij ωj ,
j=1

só depende dos novos momentos conjugados. As soluções nestas coordenadas, a que chama-
mos coordenadas angulares (os ϕ’s) e de acção (os I’s), são Ij (t) = Ij (0), ϕj (t) = ϕj (0)+ωj t,
e nas coordenadas originais temos
qj (t) = Aj sin(ϕj (0) + ωj t) , pj (t) = ωj Aj cos(ϕj (0) + ωj t) , j = 1, . . . , n ,
p
onde Aj = 2Ij (0)/ωj , j = 1, . . . , n.
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 121

Os sistemas hamiltonianos para os quais, tal como neste exemplo, é possı́vel encontrar
uma transformação canónica com esta propriedade definida globalmente no espaço de fases,
isto é, definida num aberto invariante do espaço de fases, dizem-se integráveis e são, num
certo sentido, excepcionais no conjunto de todos os hamiltonianos. É para esta classe excep-
cional de sistemas que é possı́vel encontrar soluções analı́ticas, e o seu interesse resulta do
facto de muitos sistemas relevantes serem modelados por hamiltonianos que estão próximo
de hamiltonianos integráveis. Assim, embora sejam pouco plausı́veis como modelo de qual-
quer sistema fı́sico, a sua integração é o primeiro passo para, via teoria das perturbações,
sabermos alguma coisa sobre esse sistema.
Voltemos então à questão de tentar encontrar uma função geradora para uma trans-
formação canónica que transforme o hamiltoniano numa função exclusiva dos novos mo-
mentos conjugados.
Consideremos a equação, chamada de Hamilton-Jacobi reduzida,
 
∂W ∂W
H q1 , . . . , q n , ,..., =E , (4.22)
∂q1 ∂qn

vista como uma equação às derivadas parciais onde as incógnitas são a função W (q1 , . . . , qn )
e a constante E. Por exemplo, para o oscilador harmónico, a equação de Hamilton-Jacobi
reduzida é
1 ∂W 2 1 2 2
 
+ ω q =E .
2 ∂q 2
Diz-se que a equação (4.22) admite um integral completo se existe uma famı́lia n-paramétrica
de soluções Wα1 ,...,αn (q1 , . . . , qn ), Eα1 ,...,αn , tal que

∂2W
 
det 6= 0 . (4.23)
∂αi ∂qj

Suponhamos que (4.22) admite um integral completo. Em face da condição de não de-
generescência (4.23), podemos tomar W como uma função geradora do tipo

F2 (q1 , . . . , qn , p̃1 , . . . , p̃n ) = Wp̃1 ,...,p̃n (q1 , . . . , qn ) ,

ou seja, W define uma transformação canónica dada por

∂W ∂W
pj = , q̃j = , j = 1, . . . , n
∂qj ∂ p̃j

e, como W não depende do tempo, o novo hamiltoniano é


 
∂W ∂W
K (q̃1 , . . . , q̃n , p̃1 , . . . , p̃n ) = H q1 , . . . , qn , ,..., = Ep̃1 ,...,p̃n ,
∂q1 ∂qn

ou seja, um integral completo da equação de Hamilton-Jacobi reduzida é função geradora


de uma transformação canónica que leva o hamiltoniano original a um hamiltoniano em
que todas as coordenadas são cı́clicas. As soluções são portanto

~ = p̃(0)
p̃(t) ~ , ~q̃(t) = ~q̃(0) + ω ~
~ (p̃(0))t ,
122 4.3. A equação de Hamilton-Jacobi

∂E
com ω
~ = ~, ou, nas coordenadas originais,
∂ p̃

p~(t) = ~u(~q̃(0) + ω ~
~ (p̃(0))t, ~
p̃(0)) , ~q(t) = ~v (~q̃(0) + ω ~
~ (p̃(0))t, ~
p̃(0)) .

Se considerarmos em vez de W a função geradora dependente do tempo

F2 (q1 , . . . , qn , p̃1 , . . . , p̃n , t) = Wp̃1 ,...,p̃n (q1 , . . . , qn ) − tEp̃1 ,...,p̃n , (4.24)

os novos momentos e coordenadas vêm dados por

∂W ∂W
pj = , q̃j = − tωj ,
∂qj ∂ p̃j

e o novo hamiltoniano é
 
∂W ∂W ∂F2
K(q̃1 , . . . , q̃n , p̃1 , . . . , p̃n , t) = H q1 , . . . , qn , ,..., + =
∂q1 ∂qn ∂t
= Ep̃1 ,...,p̃n − Ep̃1 ,...,p̃n = 0 ,

ou seja, a função (4.24) construı́da a partir do integral completo de (4.22) é função geradora
da transformação canónica cujos novos momentos e coordenadas são as condições iniciais.
Portanto, achar um integral completo de (4.22) é equivalente a integrar o sistema hamil-
toniano. Como sabemos que a integrabilidade é uma propriedade rara, achar um integral
completo de (4.22) não será em geral possı́vel. No entanto, o formalismo que acabámos de
desenvolver vai permitir-nos caracterizar a classe, rara mas extremamente importanto, dos
hamiltonianos integráveis. Por um lado, é claro que um sistema integrável de n graus de
liberdade tem que ter n integrais primeiras independentes, que são as funções p̃j = ũj (~q, p~),
j = 1, . . . , n. Por outro, dada a invariância dos parêntesis de Poisson fundamentais para
transformações canónicas, essas n integrais primeiras têm que estar em involução, isto é,
tem que ser {ũj , ũk } = 0, j, k = 1, . . . , n. Um teorema importante, de Liouville-Arnol’d,
diz-nos que estas condições necessárias são também suficientes, de modo que esta caracter-
ização dos sistemas integráveis é completa.
Outra conclusão que podemos tirar a partir das equações do movimento nas novas coor-
denadas é que, para um sistema integrável num nı́vel de energia limitado, as coordenadas q̃j
têm que ser ângulos. Neste caso, que é o mais interessante, as coordenadas ~q̃, p̃~ chamam-se
coordenadas angulares e de acção e representam-se habitualmente por ϕ ~ O movimento
~ , I.
mais geral num sistema integrável é portanto da forma

~q = ~v (~
ϕ(0) + ω ~
~ t, I(0)) , p~ = ~u(~
ϕ(0) + ω ~
~ t, I(0)) ,

ou seja é um movimento quase-periódico, e periódico no caso excepcional em que as frequências


de pulsação ωj forem racionalmente dependentes.
Finalmente, o formalismo que desenvolvimos é ainda útil como base para a teoria das
perturbações, da qual por falta de tempo falaremos apenas brevemente. Como se disse
antes, os hamiltonianos integráveis são raros, mas muitos problemas fı́sicos são modelados
por hamiltonianos próximo de integráveis, isto é, hamiltonianos da forma

H (~q, p~) = H0 (~q, p~) + H1 (~q, p~, ) ,


Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 123

onde H0 é integrável e  é um parâmetro pequeno. Passando às variáveis angulares e de


acção associadas ao hamiltoniano integrável H0 , o novo hamiltoniano fica
K (~ ~ = K0 (I)
ϕ, I) ~ + K1 (~ ~ )
ϕ, I, (4.25)
e as equações do movimento são
ϕ̇j = ωj (I1 , . . . , In ) +  ∂K
( 1
∂Ij
, j = 1, . . . , n ,
I˙j = − ∂K1 ∂ϕj

onde ωj , j = 1, . . . , n são as frequências do movimento quase-periódico não perturbado.


As variáveis de acção variam lentamente para o sistema perturbado (e são constantes no
movimento não perturbado) e esta diferença nas escalas de tempo caracterı́sticas associadas
às variações de acções e ângulos estão na base de muitas técnicas da teoria de perturbações,
como vimos já num exemplo no princı́pio do curso.
Outra abordagem tı́pica da teoria das perturbações é a de procurar transformações
canónicas que levem o hamiltoniano (4.25) a um outro hamiltoniano em que a dependência
nos ângulos ϕ ~ apareça apenas em termos de ordem 2 , isto é, procurar uma transformação
canónica, que terá que ser -próxima da identidade, que leve (~ ϕ, I) ~ J)
~ a (ψ, ~ e K (~ ~ a
ϕ, I)
~ J)
K (ψ, ~ = K0 (J)
~ + K1 (J) ~ J,
~ + 2 K2 (ψ, ~ ) .

A reiteração deste processo permite simplificar ao máximo o hamiltoniano perturbado que


se pretende estudar. Evidentemente, não é possı́vel eliminar totalmente a dependência nos
ângulos através de um processo convergente, caso contrário todos os sistemas hamiltoni-
anos teriam o comportamento dinâmico particular dos sistemas integráveis, o que se pode
facilmente demonstrar que é falso com uma simples experiência numérica.
Voltemos então ao método de integração de Hamilton-Jacobi e vejamos a sua aplicação
ao caso do oscilador harmónico. Como vimos, a equação de Hamilton-Jacobi reduzida é
neste caso
∂W p
= ± 2E − ω 2 q 2 , (4.26)
∂q
que, como em qualquer hamiltoniano com um grau de liberdade se pode resolver por uma
quadratura. Tomando o sinal + vem
Zq p
W = 2E − ω 2 x2 dx .
0

Para achar um integral completo basta escolher uma dependência entre E e α. Tomando
por exemplo Eα = ωα vem
Zq p
Wα (q) = 2ωα − ω 2 x2 dx ,
0

e portanto a função geradora é


Zq p
F2 (q, I) = 2ωI − ω 2 x2 dx .
0
124 4.3. A equação de Hamilton-Jacobi

As equações da mudança de variável são


∂F2 p
p= = 2ωI − ω 2 q 2 ,
∂q
Zq r
∂F2 dx ω π π
ϕ= = q = arcsin q, − <ϕ< .
∂I 2I
− x2 2I 2 2
0 ω

É facil ver que tomando o sinal negativo em (4.26) se obtêm as expressões complementares,
p √ π π
p = − 2ωI − ω 2 q 2 , ϕ = − arcsin ω2Iq , − < ϕ < .
2 2
A segunda destas equações é fácilmente invertı́vel, e obtemos as expressões explı́citas


r
2I
q= sin ϕ , p = 2ωI cos ϕ , ϕ ∈ [0, 2π) .
ω
O novo hamiltoniano é K(I) = EI = ωI e portanto as soluções das equações do movimento
são ϕ = ϕ0 + ωt, I = I0 . Nas variáveis originais, vem
r
2I0 p
q= sin(ϕ0 + ωt) , p = 2ωI0 cos(ϕ0 + ωt) ,
ω
onde ϕ0 e I0 são constantes arbitrárias.

O método de integração de Hamilton-Jacobi generaliza-se facilmente ao caso em que o


hamiltoniano depende explı́citamente do tempo. Consideremos, em vez de (4.22), a equação
de Hamilton-Jacobi
 
∂S ∂S ∂S
H q1 , . . . , q n , ,..., ,t + =0, (4.27)
∂q1 ∂qn ∂t

e chamemos como é natural um integral completo de (4.27) a uma famı́lia n-paramétrica


de soluções Sα1 ,...,αn (q1 , . . . , qn , t) tal que
 2 
∂ S
det 6= 0 .
∂αi ∂qj

Tomando Sp̃1 ,...,p̃n (q1 , . . . , qn , t) como função geradora F2 (q1 , . . . , qn , p̃1 , . . . , p̃n , t) de uma
transformação canónica, é imediato que o novo hamiltoniano será
 
∂S ∂S ∂S
K(q̃1 , . . . , q̃n , p̃1 , . . . , p̃n ) = H q1 , . . . , qn , ,..., ,t + =0,
∂q1 ∂qn ∂t
ou seja, um integral completo da equação de Hamilton-Jacobi é a função geradora da
transformação canónica para a qual as novas coordenadas e momentos são as condições
iniciais, e, portanto, conhecê-lo é equivalente a integrar as equações do movimento. No
caso em que H não depende explicitamente do tempo,

Sα1 ,...,αn (q1 , . . . , qn , t) = Wα1 ,...,αn (q1 , . . . , qn ) − Et , (4.28)


Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 125

e (4.27) reduz-se a (4.22).


Observemos mais atentamente o que acontece neste caso. As superfı́cies de nı́vel de W
são superfı́cies fixas no espaço de configuração, enquanto que as superfı́cies de S constante
se deslocam nesse espaço, coincidindo em cada instante com uma superfı́cie de nı́vel de W .
Podemos pensar então nas superfı́cies de S constante como frentes de onde que se propagam
no espaço de configurações. Calculemos para essas frentes de onda em movimento a sua
velocidade u, isto é, o espaço percorrido por unidade de tempo segundo a normal à frente
de onda em cada ponto. Temos então
ds
u=
dt
onde s é a distância normal entre a frente de onda associada a um certo valor W e a frente
de onda associada a W + Edt. Portanto,

dW = Edt = |grad W |ds

e vem
E
u= .
|grad W |
Consideremos por exemplo o caso do sistema formado por uma partı́cula sujeita à acção de
um potencial V . Nesse caso, a equação de Hamilton-Jacobi reduzida é
 !
∂W 2 ∂W 2 ∂W 2
    
1
+ + + V (x, y, z) = E ,
2m ∂x ∂y ∂y
p √
de modo que |grad W | = 2m(E − V ) = 2mT = mv = p. Há portanto uma relação
simples entre a velocidade de propagação das frentes de onda de S constante e a velocidade
da partı́cula cujo movimento é descrito por S, dada por
E
u= .
p
Por outro lado, p~ = grad W , pelo que as trajectórias das partı́culas são perpendiculares em
cada ponto às frentes de onda.
É natural então pensar na analogia entre esta descrição e a da óptica geométrica. Para
explorar esta analogia, recordemos que a equação das ondas que descreve a propagação do
potencial electromagnético escalar φ é

n2 ∂ 2 φ
lap φ − =0, (4.29)
c2 ∂t2
onde n(x, y, z) é o ı́ndice de refracção e c a velocidade da luz. Para n = constante, temos
a conhecida solução da onda plana,
~
φ(~r, t) = φ0 ei(k·~r−ωt) ,

onde k e ω estão relacionados através de k = 2π nω


λ = c . A aproximação da óptica geométrica
é a de supôr que as variações do ı́ndice de refracção ao longo de distâncias da ordem do
126 4.3. A equação de Hamilton-Jacobi

comprimento de onda são desprezáveis. Nessa aproximação, procuremos uma solução de


(4.29) próxima da onda plana; mais precisamente, ensaiemos uma solução da forma

φ(~r, t) = φ0 eA(~r)+ik0 (L(~r)−ct) , (4.30)

onde k0 = ω/c é o número de onda correspondente a n = 1. Quando A(~r) = 0 e L(~r) = nr


esta solução reduz-se à onda plana, sendo r a coordenada tomada ao longo da direcção de
propagação. Introduzindo (4.30) em (4.29) e operando, obtemos as duas equações escalares

lap A + (grad A)2 + k02 (n2 − (grad L)2 ) = 0


lap L + 2grad A · grad L = 0 .

Multiplicando a primeira equação por λ2 vem

4π 2 2
λ2 (lap A + (grad A)2 ) + (n − (grad L)2 ) = 0
n2
que, na aproximação da óptica geométrica se reduz a

(grad L)2 = n2 ,

chamada equação do eikonal. A solução desta equação dá-nos, na aproximação da óptica


geométrica, as superfı́cies de fase constante a tempo constante, ou seja, a forma das
frentes de onda, de modo que corresponde no quadro desta analogia à equação reduzida de
Hamilton-Jacobi: L corresponde a W , e n2 corresponde R a 2m(E − V ). Neste momento,
é Róbvia
p a analogia entre o princı́pio de Fermat, δ nds = 0, e o princı́pio de Maupertuis,
δ 2m(E − V )ds = 0.

Dada a completa analogia entre mecânica clássica e óptica geométrica tem sentido que
nos façamos a seguinte pergunta: qual é a equação de ondas cuja aproximação ‘geométrica’
corresponde à mecânica clássica? Tal como a óptica geométrica se obtém da óptica ondu-
latória considerando n praticamente constante à escala do comprimento de onda, a mecânica
clássica deve ser a aproximação de uma equação de ondas no caso em que o potencial V se
pode tomar como constante à escala dos comprimentos de onda correspondentes.
No quadro da analogia que estamos a desenvolver, a fase das ondas da mecânica é
dada por S = W − Et. Na óptica, a fase é dada por k0 (L − ct) = 2π( λL0 − νt). As duas
quantidades têm portanto que ser proporcionais, o que implica que a energia da partı́cula
seja proporcional à frequência da onda associada. Ponhamos então

E = hν .

Daqui deduz-se imediatamente uma relação entre o comprimento de onda e o momento


linear:
u E/p h
λ= = = .
ν E/h p
Substituindo na equação das ondas independente do tempo,

4π 2
lap φ + φ=0,
λ2
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 127

concluimos que associada a uma partı́cula clássica deve haver uma quantidade escalar ψ
que verifica a equação
4π 2
lap ψ + 2 p2 ψ = 0 ,
h
ou seja,
8π 2 m
lap ψ + (E − V )ψ = 0 ,
h2
que é a equação de Schrödinger independente do tempo.

4.4 Problemas
Série VI
1. Verifique que os cı́rculos máximos são geodésicas da superfı́cie esférica.

2. Considere a expressão
Zb s
1 1 + u02 (x)
T [u] = √ dx
2g u(x)
0

que nos dá o tempo de percurso da curva y = u(x) situada no plano vertical por um
ponto material que parte da origem x = 0, y = 0 com velocidade inicial nula (o eixo
dos yy tem a orientação da força da gravidade). Ache a equação diferencial da curva,
chamada braquistocrona, que minimiza o tempo de percurso, e verifique que se trata
de um arco de ciclóide, isto é, de uma curva cujas equações paramétricas são da forma
x = R(ϕ − sin ϕ), y = R(1 − cos ϕ).

3. Mostre que as seguintes transformações de variáveis são canónicas e determine para


cada uma delas a função geradora F2 .

(a) p~ = p̃~ + ~a, ~q = ~q̃ + ~b, com ~a, ~b constantes.


(b) p~ = (J> )−1 p̃,~ ~q = J~q̃, em que J é matriz invertı́vel.
~ ~q = ~q̃ + ~ct, com ~c constante.
(c) p~ = p̃,
~ ~q = ~q̃ + αp̃t,
(d) p~ = p̃, ~ em que α é uma constante.
√ √
(e) p = 2p̃ cos q̃, q = 2p̃ sin q̃.

4. Deduza as equações (4.17) da página 115 para as funções geradoras F3 e F4 .

5. Mostre que a transposta de uma matriz simplética também é simplética, e que as


matrizes simpléticas formam um grupo em relação à multiplicação.
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128
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 129

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this License applies to the Document. These Warranty Disclaimers are considered to be
included by reference in this License, but only as regards disclaiming warranties: any other
implication that these Warranty Disclaimers may have is void and has no effect on the
meaning of this License.

2 VERBATIM COPYING
You may copy and distribute the Document in any medium, either commercially or noncom-
mercially, provided that this License, the copyright notices, and the license notice saying
this License applies to the Document are reproduced in all copies, and that you add no
other conditions whatsoever to those of this License. You may not use technical measures
to obstruct or control the reading or further copying of the copies you make or distribute.
However, you may accept compensation in exchange for copies. If you distribute a large
enough number of copies you must also follow the conditions in section 3.
You may also lend copies, under the same conditions stated above, and you may publicly
display copies.

3 COPYING IN QUANTITY
If you publish printed copies (or copies in media that commonly have printed covers) of the
Document, numbering more than 100, and the Document’s license notice requires Cover
Texts, you must enclose the copies in covers that carry, clearly and legibly, all these Cover
Texts: Front-Cover Texts on the front cover, and Back-Cover Texts on the back cover. Both
covers must also clearly and legibly identify you as the publisher of these copies. The front
cover must present the full title with all words of the title equally prominent and visible.
You may add other material on the covers in addition. Copying with changes limited to
the covers, as long as they preserve the title of the Document and satisfy these conditions,
can be treated as verbatim copying in other respects.
If the required texts for either cover are too voluminous to fit legibly, you should put
the first ones listed (as many as fit reasonably) on the actual cover, and continue the rest
onto adjacent pages.
If you publish or distribute Opaque copies of the Document numbering more than 100,
you must either include a machine-readable Transparent copy along with each Opaque copy,
or state in or with each Opaque copy a computer-network location from which the general
network-using public has access to download using public-standard network protocols a
complete Transparent copy of the Document, free of added material. If you use the latter
option, you must take reasonably prudent steps, when you begin distribution of Opaque
copies in quantity, to ensure that this Transparent copy will remain thus accessible at the
stated location until at least one year after the last time you distribute an Opaque copy
(directly or through your agents or retailers) of that edition to the public.
It is requested, but not required, that you contact the authors of the Document well
before redistributing any large number of copies, to give them a chance to provide you with
an updated version of the Document.
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 131

4 MODIFICATIONS
You may copy and distribute a Modified Version of the Document under the conditions
of sections 2 and 3 above, provided that you release the Modified Version under precisely
this License, with the Modified Version filling the role of the Document, thus licensing
distribution and modification of the Modified Version to whoever possesses a copy of it. In
addition, you must do these things in the Modified Version:
A. Use in the Title Page (and on the covers, if any) a title distinct from that of the
Document, and from those of previous versions (which should, if there were any, be
listed in the History section of the Document). You may use the same title as a previous
version if the original publisher of that version gives permission.
B. List on the Title Page, as authors, one or more persons or entities responsible for
authorship of the modifications in the Modified Version, together with at least five of
the principal authors of the Document (all of its principal authors, if it has fewer than
five), unless they release you from this requirement.
C. State on the Title page the name of the publisher of the Modified Version, as the
publisher.
D. Preserve all the copyright notices of the Document.
E. Add an appropriate copyright notice for your modifications adjacent to the other copy-
right notices.
F. Include, immediately after the copyright notices, a license notice giving the public per-
mission to use the Modified Version under the terms of this License, in the form shown
in the Addendum below.
G. Preserve in that license notice the full lists of Invariant Sections and required Cover
Texts given in the Document’s license notice.
H. Include an unaltered copy of this License.
I. Preserve the section Entitled “History”, Preserve its Title, and add to it an item stating
at least the title, year, new authors, and publisher of the Modified Version as given on
the Title Page. If there is no section Entitled “History” in the Document, create one
stating the title, year, authors, and publisher of the Document as given on its Title Page,
then add an item describing the Modified Version as stated in the previous sentence.
J. Preserve the network location, if any, given in the Document for public access to a
Transparent copy of the Document, and likewise the network locations given in the
Document for previous versions it was based on. These may be placed in the “History”
section. You may omit a network location for a work that was published at least four
years before the Document itself, or if the original publisher of the version it refers to
gives permission.
K. For any section Entitled “Acknowledgements” or “Dedications”, Preserve the Title of
the section, and preserve in the section all the substance and tone of each of the con-
tributor acknowledgements and/or dedications given therein.
132 5. COMBINING DOCUMENTS

L. Preserve all the Invariant Sections of the Document, unaltered in their text and in their
titles. Section numbers or the equivalent are not considered part of the section titles.

M. Delete any section Entitled “Endorsements”. Such a section may not be included in the
Modified Version.

N. Do not retitle any existing section to be Entitled “Endorsements” or to conflict in title


with any Invariant Section.

O. Preserve any Warranty Disclaimers.

If the Modified Version includes new front-matter sections or appendices that qualify as
Secondary Sections and contain no material copied from the Document, you may at your
option designate some or all of these sections as invariant. To do this, add their titles to
the list of Invariant Sections in the Modified Version’s license notice. These titles must be
distinct from any other section titles.
You may add a section Entitled “Endorsements”, provided it contains nothing but
endorsements of your Modified Version by various parties–for example, statements of peer
review or that the text has been approved by an organization as the authoritative definition
of a standard.
You may add a passage of up to five words as a Front-Cover Text, and a passage of up
to 25 words as a Back-Cover Text, to the end of the list of Cover Texts in the Modified
Version. Only one passage of Front-Cover Text and one of Back-Cover Text may be added
by (or through arrangements made by) any one entity. If the Document already includes
a cover text for the same cover, previously added by you or by arrangement made by the
same entity you are acting on behalf of, you may not add another; but you may replace the
old one, on explicit permission from the previous publisher that added the old one.
The author(s) and publisher(s) of the Document do not by this License give permission
to use their names for publicity for or to assert or imply endorsement of any Modified
Version.

5 COMBINING DOCUMENTS
You may combine the Document with other documents released under this License, under
the terms defined in section 4 above for modified versions, provided that you include in the
combination all of the Invariant Sections of all of the original documents, unmodified, and
list them all as Invariant Sections of your combined work in its license notice, and that you
preserve all their Warranty Disclaimers.
The combined work need only contain one copy of this License, and multiple identical
Invariant Sections may be replaced with a single copy. If there are multiple Invariant
Sections with the same name but different contents, make the title of each such section
unique by adding at the end of it, in parentheses, the name of the original author or
publisher of that section if known, or else a unique number. Make the same adjustment to
the section titles in the list of Invariant Sections in the license notice of the combined work.
In the combination, you must combine any sections Entitled “History” in the various
original documents, forming one section Entitled “History”; likewise combine any sections
Capı́tulo 4. Princı́pios variacionais e mecânica hamiltoneana 133

Entitled “Acknowledgements”, and any sections Entitled “Dedications”. You must delete
all sections Entitled “Endorsements”.

6 COLLECTIONS OF DOCUMENTS
You may make a collection consisting of the Document and other documents released under
this License, and replace the individual copies of this License in the various documents with
a single copy that is included in the collection, provided that you follow the rules of this
License for verbatim copying of each of the documents in all other respects.
You may extract a single document from such a collection, and distribute it individually
under this License, provided you insert a copy of this License into the extracted document,
and follow this License in all other respects regarding verbatim copying of that document.

7 AGGREGATION WITH INDEPENDENT WORKS


A compilation of the Document or its derivatives with other separate and independent
documents or works, in or on a volume of a storage or distribution medium, is called an
“aggregate” if the copyright resulting from the compilation is not used to limit the legal
rights of the compilation’s users beyond what the individual works permit. When the
Document is included in an aggregate, this License does not apply to the other works in
the aggregate which are not themselves derivative works of the Document.
If the Cover Text requirement of section 3 is applicable to these copies of the Document,
then if the Document is less than one half of the entire aggregate, the Document’s Cover
Texts may be placed on covers that bracket the Document within the aggregate, or the
electronic equivalent of covers if the Document is in electronic form. Otherwise they must
appear on printed covers that bracket the whole aggregate.

8 TRANSLATION
Translation is considered a kind of modification, so you may distribute translations of the
Document under the terms of section 4. Replacing Invariant Sections with translations
requires special permission from their copyright holders, but you may include translations
of some or all Invariant Sections in addition to the original versions of these Invariant
Sections. You may include a translation of this License, and all the license notices in
the Document, and any Warranty Disclaimers, provided that you also include the original
English version of this License and the original versions of those notices and disclaimers.
In case of a disagreement between the translation and the original version of this License
or a notice or disclaimer, the original version will prevail.
If a section in the Document is Entitled “Acknowledgements”, “Dedications”, or “His-
tory”, the requirement (section 4) to Preserve its Title (section 1) will typically require
changing the actual title.
134 9. TERMINATION

9 TERMINATION
You may not copy, modify, sublicense, or distribute the Document except as expressly
provided for under this License. Any other attempt to copy, modify, sublicense or distribute
the Document is void, and will automatically terminate your rights under this License.
However, parties who have received copies, or rights, from you under this License will not
have their licenses terminated so long as such parties remain in full compliance.

10 FUTURE REVISIONS OF THIS LICENSE


The Free Software Foundation may publish new, revised versions of the GNU Free Doc-
umentation License from time to time. Such new versions will be similar in spirit to
the present version, but may differ in detail to address new problems or concerns. See
http://www.gnu.org/copyleft/.
Each version of the License is given a distinguishing version number. If the Document
specifies that a particular numbered version of this License “or any later version” applies
to it, you have the option of following the terms and conditions either of that specified
version or of any later version that has been published (not as a draft) by the Free Software
Foundation. If the Document does not specify a version number of this License, you may
choose any version ever published (not as a draft) by the Free Software Foundation.

ADDENDUM: How to use this License for your documents


To use this License in a document you have written, include a copy of the License in the
document and put the following copyright and license notices just after the title page:

Copyright c YEAR YOUR NAME. Permission is granted to copy, distribute


and/or modify this document under the terms of the GNU Free Documenta-
tion License, Version 1.2 or any later version published by the Free Software
Foundation; with no Invariant Sections, no Front-Cover Texts, and no Back-
Cover Texts. A copy of the license is included in the section entitled “GNU
Free Documentation License”.

If you have Invariant Sections, Front-Cover Texts and Back-Cover Texts, replace the “with...
Texts.” line with this:

with the Invariant Sections being LIST THEIR TITLES, with the Front-Cover
Texts being LIST, and with the Back-Cover Texts being LIST.

If you have Invariant Sections without Cover Texts, or some other combination of the three,
merge those two alternatives to suit the situation.
If your document contains nontrivial examples of program code, we recommend releasing
these examples in parallel under your choice of free software license, such as the GNU
General Public License, to permit their use in free software.

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