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Niterói
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CDD 910.01
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BANCA EXAMINADORA
Niterói
2010
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AGRADECIMENTOS
Num momento como esse é difícil não adotar uma postura personalista. Nossos
interesses particulares em relação com aqueles que foram mais importantes no trilhar
existencial deste pequeno recorte que fora o período de confecção do trabalho vem à tona,
tornando-se inevitável esta pequena forma de expressarmos não somente gratidão, ou de
uma obrigação piegas de retribuir para ganhar em dobro, mas de demonstrarmos os laços
criados através dos acasos e escolhas da vida.
Num primeiro momento agradeço ao professor Ruy Moreira, principalmente na sua
condição de desorientador, não somente de um ordenador lógico de dados e prazos, mas
pelas conversas informais e pelos ―toques‖ que aumentam e alimentam a experiência de
vida.
Ao professor Jorge Luiz Barbosa, pela sua relação com o trabalho desde suas
primárias agruras e propostas no Seminário de releitura crítica, na Pré-defesa e na Defesa,
contribuindo sempre com seu viés filosófico e articulado para nossas escolhas.
Ao professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, por suas inquietações críticas que são
presentes em nossa memória desde a graduação perpassando pelo contato mais próximo
no início construtivo do presente trabalho, o que instigara uma parcela de nossa postura
provocativa.
Ao professor Marcos Antônio Campos Couto, pela sua presença e compreensão na
etapa derradeira de todo o processo. Sua presença mesmo que curta foi imprescindível para
um desfecho que visava ser nada previsível.
A Elias Lopes Lima pela sua contribuição crítica, atenta e prestativa no momento de
construção da estrutura inicial da dissertação.
Aos colegas e amigos construídos durante o período do Mestrado: Débora, Rodrigo
―Cabeça‖, Alexandre, Luís ―Marola‖, Leandro, Maycon, Marcos e Eduardo. Felizmente o
contato vivido é maior do que meras formalidades acadêmicas, ajudando a superar
paradigmas mais do que qualquer discurso.
Aos amigos-irmãos construídos desde a intensa graduação: Anderson ―Hanks‖,
Marcos ―Caju‖, Leonardo ―Polga‖, Leandro ―Dadinho‖, Mateus, Paulinho, Otávio ―Ratão‖ e
Bruno ―Romário‖. Relações duradouras nos auxiliam a reconstruir a existência, e posso dizer
hoje que laços da vida nos reconstroem mais que imposições institucionalmente
construídas. Os papos ontologicamente descompromissados simbolizam o próprio devir da
vida.
Às crianças que propiciaram momentos de alegria e ―perda de tempo‖ para coisas
menos sérias, porém muito mais vivas da eterna-criança que está adormecida em cada um
vii
de nós: André ―joelho‖, Felipe ―cuequinha‖, Alan, Matheus, Andressa e Maria Eduarda
―Dudinha‖.
À Ivone pelo apoio na minha ―empreitada‖ corporal esportiva e não somente como
―sogra‖, uma instituição. Quem versa sobre o corpo e sua perda de repressão não deve
esquecê-lo, onde minha prática e/ou atividade corpórea hoje visa ser muito mais próxima do
discurso.
Ao Bruno ―o amigo‖ e não somente cunhado, também como incentivador corporal-
esportivo e por momentos de muita descontração e ironia. Pelos momentos de riso que
param o tempo em detrimento de um cotidiano que se quer sério para objetivos que não são
os nossos.
Aos ―cães-amigos‖ existenciais e não-lógicos, que em suas existências curtas,
porém de grande experiência, nos fizeram ter mais respeito e admiração por formas de ser
que não as demasiadamente humanas: Rocky, Iuli, Rambo, Samanta e Kiara.
Aos meus pais, mesmo que sendo ―instituições‖ formadas é inevitável reconhecer a
base material que nos foi propiciada. Porém agradeço principalmente a minha mãe Omarisa,
pela sua personificação de provedora da vida, a verdadeira mãe terra encarnada na
representação de uma só pessoa através do laço vivo do tênue cordão umbilical primário.
À Suzana, companheira e amiga, mais do que um simples rótulo hierárquico de
namorada. Seu incentivo prático e os diálogos tensos e questionadores do meu ser
propiciaram e ainda propiciam cada vez mais meu autoconhecimento. Meras palavras de
encadeamento lógico aqui não são suficientes para descrever laços corpóreos de uma
relação que se renova e se engrandece a cada dia.
Por fim, agradeço à vida, ou a todo o devir da existência e todos os entes vivos, não
como substituição de instituições metafísicas e sim na busca por uma harmonia que jamais
deveria ser perdida.
A tudo que se encaixa na grande poesia da vida meu eterno agradecimento!
viii
RESUMO
ABSTRACT
The present dissertation aims to help overcome the paradigm established in the
logical entities of science, the baconian-cartesian-newtonian, which the scientific geography
has as assumption. This problematic emerges a logical imbroglio, leaving the space to an
epistemological approach, the external characteristic of human existence. The fruits will be
the dichotomies: man/nature, man/environment and man/space, that will shape in our
discourse an overdetermination of the subject by the object: the formula space→man in
scientific Geography. From this starting point the self-assessment of the modern concept of
space emerges from the discussion of space as being, whereby we will design the space
with ontological existence, revisiting the meanings of spatiality through being-in-the-world.
Analyzing ontological space and spatiality as a process and form intends to seek with the
analysis of mode of being-strange of human spatial existence, converging to the
understanding of everydayness, the subjectivity in the spatiality, seen through the process of
stereotyping. Through an analysis imbricated of the human spatial existence we will see that
we perceive and conceive space-body without dichotomies and assist in search of a new
odyssey for the human existence.
xi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 1
CAPÍTULO I
AUTO-AVALIAÇÃO CRÍTICA DA ACEPÇÃO MODERNA DE ESPAÇO ..................... 10
1.1. A Dicotomia (o duplo) Absoluto/Relativo: da elaboração do espaço
moderno ao espaço geográfico ................................................................................... 11
1.1.1. O espaço metafísico da espacialidade cartesiana ............................................. 14
1.1.2. O espaço absoluto-relativo e a afirmação empírica: de Newton a Kant.............. 32
1.2. O espaço geográfico: a fórmula espaço→homem na Geografia científica .................... 46
CAPÍTULO II
O ESPAÇO ONTOLÓGICO: UM AUTOCONHECIMENTO CRÍTICO DA
EXISTÊNCIA HUMANA .............................................................................................. 78
2.1. O espaço como totalidade .......................................................................................... 79
2.1.1. O espaço relacional como ponto de partida: a superação da
dicotomia ........................................................................................................... 81
2.1.2. O espaço totalidade: o ser e a essência revelada .............................................. 86
2.2. Do espaço totalidade ao espaço ontológico: construções da ontologia possível ......... 90
2.2.1. Ontologia e filosofia ........................................................................................... 91
2.2.2. Ontologia em geografia ...................................................................................... 96
2.3. O espaço ontológico e a espacialidade ..................................................................... 103
2.4. O modo de ser-estranho da existência espacial humana: o estranhamento.............. 116
2.5. A auto-alienação material humana do trabalho ......................................................... 136
CAPÍTULO III
A SUBJETIVIDADE NA ESPACIALIDADE HUMANA: O ESPAÇO DA CO-
EXISTÊNCIA COTIDIANA E AS REPRESENTAÇÕES SUBJETIVAS DO
ONTOLÓGICO.......................................................................................................... 148
3.1. A cotidianidade: inter-relação espacialidade-subjetividade ....................................... 149
3.2. Processo de estereotipagem do espaço-corpo: corporeidade como
representação ........................................................................................................... 176
INTRODUÇÃO
Dar um salto no escuro é jogar tudo que se
conhece contra tudo que ainda não se sabe.
Há a concentração de todas as energias, os
sentidos tornam-se hipersensíveis, gerando
um espaço-tempo denso, que se distenderá
depois. No entanto, na hora, a sensação é de
tranqüilidade e de segurança, porque se sabe
que jogou tudo. O perder é, então, parte da
resposta.
(Armando Corrêa da Silva)
O
ponto de partida e o ponto de chegada de nossa odisseia é o espaço. Tal análise
no sentido que estamos propondo em certos momentos pode parecer ―um salto
no escuro‖, como dissera Armando C. da Silva. É por isso que nosso trabalho é
uma odisseia para o espaço. As formas como o espaço fora abordado na sua acepção
moderna na ciência como um todo (em sua institucionalização) e na própria elaboração do
conceito na ciência geográfica, que se apropriará deste para formular seu objeto (o espaço
geográfico) será por nós questionada, o que em certos momentos poderá parecer uma
―radicalidade‖ do pensar e consequentemente da escrita. Porém, como dissera Douglas
Santos (2002, p. 14) em sua introdução para a polêmica lançada em torno da categoria
espaço, ―a radicalidade da linguagem não é mais que a perplexidade inerente (no meu
entender) à temática‖. E desta perplexidade crítica, com nuances de radicalidade, também
compactuamos, pois, como veremos, a odisseia que se quer para ―o conceito de espaço‖
nada mais é do que uma proposta autocrítica de mudança da existência espacial humana e
não somente do conceito.
Como podemos ver nosso título é espelhado1 na obra ―2001: uma odisséia no
espaço‖ (tanto do livro de Arthur Clarke quanto no filme dirigido por Stanley Kubrick, pois a
confecção concomitante de ambos faz com que sejam ―gêmeos siameses‖, se
retrocomplementando, e não somente como obras de pontos de vista distintos). O filme-livro
1
. Devemos deixar bem claro neste momento as nossas escolhas. O que colocamos como título e proposta
instigadora de uma odisséia não está atrelado a um dos dois principais poemas épicos da Grécia antiga,
atribuídos a Homero, cujo poema está centrado principalmente no herói grego Odisseu (ou Ulisses, como era
conhecido na mitologia romana) e sua longa viagem para casa depois da queda de Tróia. Buscamos
objetivamente (nesse aspecto traçamos essa meta) a obra ―2001: uma odisséia no espaço‖ como referência e
trocadilho propositais.
2
que inicia uma trilogia terá como ponto de partida algumas abordagens por demais frutíferas
para nossa abordagem crítica da existência humana. O começo do livro irá tratar da ―estrada
para a extinção‖ dos homens-macacos (protótipos do que seria a ―aurora da humanidade‖),
em que se desenrolará, através de percalços existencialmente hostis, o ―sopro‖ autocriador
do ente humano. O monólito que representará esta autocriação (como o surgimento da
lógica humana ou em outros momentos como insights que revolucionarão a existência
humana) será um ponto de ruptura na existência dos homens-macaco de até então para a
chegada da ―aurora humana‖. A existência de um ―novo animal‖ a caminhar sobre o planeta,
partindo da África se auto-dominando (ou domesticando) para dominar todo o mundo. O
questionamento de tal poder adquirido será uma de nossas inquietações críticas ao longo do
trabalho: a existência espacial humana. E por isso que cabe retratar a odisseia, não no
espaço como propõe o filme-livro (uma outra excelente demonstração da acepção moderna
de espaço: continente, externo e até mesmo vazio), mas uma odisseia para o espaço; uma
odisseia para reformularmos a acepção de espaço, não somente de modo que este ser se
transforme pela via epistemológica, mas acima de tudo ontológica. Podemos então dizer
que se trata de um duplo sentido subliminar. A odisseia que buscamos para o espaço é um
longo caminho árduo, de mudança da existência espacial humana; é uma odisseia para nós
mesmos que autocriamos nosso estranhamento.
Esta dissertação é mais do que um projeto de análise, imparcial e/ou com críticas
emprestadas, das quais somente iremos dissertar um apanhado delas para compor um texto
acadêmico. Mais do que isso, mais do que um projeto de análise é um projeto calcado em
anos de experiência vivida (pois, qualquer idade carrega, em si mesma, as experiências de
uma vida). Esta dissertação, escrita, é fruto das angústias e propostas geradas através
delas de tentar responder e modificar, mesmo que um pouco, a nossa existência; e propor,
porque não, a mudança da existência humana, mesmo sendo algo difícil, mas que estes
questionamentos ajudem a desmascarar a existência que está aí. O projeto é então um
projeto da vida e de continuidade para toda a vida. Durante sua confecção, leituras,
pensamentos, percalços e na redação final o projeto fora sendo construído em processo não
de forma axiomática e acabada. Do primeiro capítulo até as propostas finais, estivera em
jogo sempre a proposta de auto-avaliação crítica do caminho a ser escolhido e o caminho a
ser redigido.
No sentido desta introdução buscaremos identificar o percurso e as questões que
irão dar cabo desta odisseia. Veremos os caminhos que formaram os alicerces para a
constituição final do trabalho, perpassando desde um início até um fim, no qual o meio deve
ser muito mais do que somente um ―miolo‖ de informações, mas também não deve se ater a
especificações pormenorizadas que alongariam um trabalho que visa a concatenação de
ideias. Deste modo, a forma como tratamos alguns autores (através de citações de outrem)
3
não coloca nossa abordagem hierarquicamente abaixo de uma citação direta, pois nossos
objetivos não são de autores, pensadores ou pessoas diretamente, mas de uma construção
paradigmática que emerge a partir do ato da existência humana. Vejamos os meandros
desta odisseia como que um roteiro para um viajante interessado.
A acepção moderna de espaço aparece em nosso cotidiano (tanto no senso-comum
quanto na ciência geográfica) como sendo simplesmente dada, como um ―campo‖ ou como
um receptáculo. Hoje, cada vez mais, ―em sociedades ocidentais, essa visão de espaço é
instintiva na linguagem comum‖ (SMITH, 1988, p. 109). Forma-se na nossa coexistência
cotidiana, um uso totalmente acrítico com relação à veiculação desta opinião ―pública‖ de
espaço. Este espaço é manejado dentro de um ―grande corpo de costumes‖ que permeiam
a subjetividade cotidiana que remontam a sua formulação ao paradigma instituído de
ciência2. Os exemplos são diversos e ―pairam‖ em nossa consciência como um a priori.
Quando temos a ideia formada de que uma área construída ou não, dizemos que ―tem
bastante espaço‖. Quando temos algum terreno, saguão de prédio ou área destinada a
algum fim comercial, lá está: ―espaço de lazer‖; ―espaço de cultura‖; ―espaço verde‖; ―espaço
esotérico‖; ―espaço armazém‖; ―espaço aberto‖; ―espaço de dança‖; ―espaço de diálogo e
prática‖; ―espaço AGB‖; etc. E assim poderíamos quantificar inúmeras formas de ver esse
espaço como área, receptáculo vazio, campo: com um sentido de ser simplesmente dado. É
interessante atentarmo-nos para os dois últimos exemplos: espaço de dialogo e prática, e
espaço AGB! Pois bem, são formulações gerais explícitas em domínio ―público‖ pela AGB
(Associação de Geógrafos Brasileiros) para o XV Encontro Nacional de Geógrafos (ENG) do
ano de 2008. Quando mandamos os nossos respectivos resumos e/ou trabalhos para o
encontro, lá encontramos: ―dê dois toques de espaço para o próximo parágrafo‖. Ora, este
espaço do teclado representa um ―vazio‖ entre os caracteres, ou seja, o senso-comum que
―cospe‖ o ―corpo de hábitos cotidianos‖ simplesmente dados é de domínio público e
principalmente científico.
Necessitamos de novos ―olhares‖ acerca da acepção de espaço, que seja reflexiva
sobre sua constituição, perpassando por várias abordagens cruzando-as de modo a torná-
las uma proposta de auto-avaliação crítica, tanto da Geografia científica quanto da
emergência de tentarmos mudar a existência humana. Tal incumbência de uma nova
odisseia deve ser identificada aqui para dizer os propósitos deste estudo, que atinge ele e
vão para além dele – como que uma proposta existencial por toda uma vida. Surge a
proposta para nós de um novo campo de análise, crítico-ontológico acima de tudo,
repensando as condições humanas de existência, como sujeito, como espaço e como
ambos. Uma nova postura que vise recuperar em nós o ―gosto‖ pela Geografia enquanto
2
. Veremos isto no que propusemos como paradigma científico moderno baconiano-cartesiano-newtoniano.
4
ciência. A opinião de que o sujeito pode ser visto como espaço, o ser dos entes é o espaço
e que o ente humano pode ser um viés crítico de análise (existencial-ontológico) na
Geografia ainda é encarado como algo estranho, pitoresco e/ou de muito rebuscamento,
com ares pejorativos de metafísica3. Uma ciência que se perpetua ainda como ―terrena‖, dos
lugares e não dos homens, da empiria e não da teoria, mesmo com a ascensão de temas
compartilhados pela Filosofia na Geografia a problemática do ―homem atópico‖, como nos
fala Moreira (1987, p. 15), de um homem desespacializado, sem referência espacial no
discurso acadêmico, no senso-comum e na prática cotidiana. Estamos, mas não somos
espaço. Na Geografia oficial viemos pensando e reforçando esta concepção, na maioria dos
casos sobre uma epistemologia do espaço, acreditando ser o seu maior problema a falta de
um objeto. Na Geografia o espaço é concebido ideologicamente, como um ente ideal
produzido pela razão, como uma entidade lógica, não como uma categoria enquanto ente
ontológico (um primado da existência sobre a consciência). Reafirmamos a problemática,
este mal-estar espacial, muitas vezes sem refutar, vendo o espaço como um conceito-chave
na Geografia, em nossos ares desde os trabalhos clássicos, atrelando ao caráter científico
da Geografia o estatuto de ciência do espaço.
Na busca de uma re-ligação entre a crítica ao homem ou à humanidade como um
todo e a Geografia científica como visão holística da realidade temos a problematização do
espaço e, consequentemente, a exposição-formulação do tema.
O tema deve ser delimitado no sentido de se consolidar para trazer mais
contribuições e auto-questionamentos para dentro da ciência geográfica e não somente
mais uma dissertação com o fito de se obter um título. Construímos um novo espaço, ou
uma nova concepção do espaço, um novo ciclo que perdurará talvez por toda uma vida: a
relação prazerosa e pessoal com o tema da Ontologia em Geografia. A convicção da perda
do receio de não tratarmos de uma ―teoria teórica‖, pois não queremos e nem seria a
intenção da dissertação, uma empiria teórica que acredita mudar uma pequena parte do
recorte-do-recorte-do-recorte de um mundo limitado cientificamente, por isso também,
limitado de possibilidades. Temos em nossas convicções pessoais, que perpassaram no
―fazimento‖ do trabalho, a ideia de que ―visões de mundo‖ também podem mudar o mundo,
também podem nos auxiliar a mudar a nós mesmos, até porque num mundo onde se
concebe um ser fixo e lógico nada mais ontológico do que ir ao cerne discursivo para
reconstruir a nossa prática – concepções podem ser mais revolucionárias do que muitos
trabalhos e papéis gastos somente para fazer ciência calcada em uma ―empiria teórica‖,
axiomática. É por isso que nosso lugar da busca envereda-se pela Filosofia, tentando
3
. Mesmo entre aqueles que tratam do tema, ao falar que o espaço é inerente à humanidade não como uma
externalidade soa como algo artificial, como se não pudéssemos ser espaço, assim como nos concebemos
enquanto tempo. Não nos sentimos a vontade quando nos sentimos espaço, da mesma forma que expressamos
―naturalmente‖ que sentimos as ―marcas do tempo‖ na pele, em nosso corpo próprio.
5
superar uma relação, que como nos alerta Quaini (2002, p. 25), é muitas vezes vista pelo
geógrafo profissional ―como um fato que, no máximo, pode ter um interesse histórico‖.
Nosso interesse é de uma crítica existencial via da Geografia científica e não teorizar para
consolidar uma ciência.
Entendemos que o tema é a busca central, e, encontra-se implícito no título: um
estudo de Ontologia em Geografia. Buscando nesse sentido, apreender o Espaço
Ontológico e a existência espacial humana. Parece simplista a exposição, portanto, cabe
explicitar a sua problematização. Entendemos este Espaço Ontológico como sendo uma
movimentação do que concebemos enquanto o Espaço como Ser. Parece um jogo de
palavras, que mais complica do que sintetiza; embora saibamos que há muito, a síntese é
um problema cabal na (da) Geografia, porque perdendo seu caráter de síntese para uma
análise fragmentada dos fenômenos e por isso da realidade. Este espaço como ser segue o
sentido não como ser substantivo (ser vivo, ser humano, ―aquele ser!‖, etc.), mas, como
sentido de ser. Estamos diante de um problema de análise ontológica. Posto então que este
sentido de ser é ser-de-um-ente; e este ente que tomamos como análise é a humanidade.
Logo são duas categorias a serem tratadas na pesquisa: homem (enquanto humanidade ou
existência humana) e espaço. Quando estivermos tratando do espaço (devemos aqui fazer
esta ressalva) não se trata de uma categoria enquanto ente ontológico apartada do tempo,
pois espaço e tempo são dimensões e categorias, lógicas ou ontológicas, gêmeas, como
diria Szamosi (1988) – acrescentaríamos ainda mais a ligação, são categorias siamesas.
Este ser que tratamos é espaço-tempo em movimento, a essência metamorfoseada em
existência, contudo, para não nos alongarmos ainda mais e causar alguns empecilhos
textuais, utilizaremos o ser como espaço. Mas, esta explicação faz-se necessária ao leitor
criticamente mais atento.
O espaço emerge então como a questão ontológica, no qual se busca o modo de ser
da existência espacial humana. A frase composta parece mais uma vez como mero jogo de
palavras, remetendo a um entendimento pedante de uma escrita que se quer ―erudita‖, mas
têm-se um sentido. Veremos que a existência é constituída pelo duplo processo-forma no
qual o ser do ente existência humana é seu ser-sendo, ou então, a relação direta da
humanidade com seu modo de ser. Daí que o espaço recai como a análise dessa existência
humana; desta forma, o tema sobre estudo de Ontologia em Geografia. Buscando nesse
sentido, apreender o Espaço Ontológico e a existência espacial humana é também uma
proposta de mudança da existência espacial humana.
Em movimento com este tema é que emerge a questão primeva, onde se
desenrolarão os capítulos concomitantemente com os objetivos específicos que buscaremos
alcançar.
6
da chamada empiria teórica não queremos nos aproximar do discurso lógico, mas de uma
nova aurora, assim como a proposta nietzschiana do Zaratustra, de sair de sua própria
caverna para encontrar sua nova aurora, seu novo si-mesmo. ―Assim falou Zaratustra‖,
coincidentemente, ou não, é a música do pequeno trecho descrito aqui para elucidar a
escolha de nosso título: tanto na aurora da humanidade quanto no surgimento da criança
estelar (ou uma nova humanidade) – no filme de Stanley Kubrick. Esta odisseia é o que nos
espera, vamos às propostas, pois o começo que é mais importante já fora iniciado.
Que ao final desta odisseia possamos juntos, encontrar em nós mesmos a nova
aurora humana, perdendo os velhos medos, a velha aurora, porque perder é também parte
da resposta.
10
CAPÍTULO I
AUTO-AVALIAÇÃO CRÍTICA DA ACEPÇÃO MODERNA DE ESPAÇO
4
. Como nos alerta o compositor maranhense José Ribamar Coelho dos Santos (conhecido na música popular
brasileira como ―Zeca Baleiro‖), em música de sua autoria ―Lenha‖.
12
Este seria um desafio ao geocentrismo (de que a Terra encontrava-se no centro de todo o
Universo), que colocava a morada da humanidade ―como apenas mais um astro, entre
muitos a girar em torno do Sol‖ (SPRINGER, 2008, p. 45).
A tarefa filosófica, dentro de uma tradição medieval apoiada no heliocentrismo,
segundo Douglas Santos (2002, p. 94), de ―deslocar o centro do Universo da Terra para o
Sol foi, sem dúvida, mais um movimento de uma tarefa de gigantes‖. Gigantes, pois,
compartilhando de tamanha magnitude e audácia com Copérnico, temos o astrônomo e
cientista alemão Johannes Kepler (1571 – 1630).
Kepler, baseando-se nas esferas do espaço, da linguagem e do movimento (ibid., p.
121), irá abalar de forma incisiva a estrutura escolástica medieval. ―Mostrando que o
movimento dos planetas não era o de uma esfera perfeita e, sim, uma órbita elíptica‖
(CAMARGO, 2005, p. 37), jogava por terra a teoria do universo divinizado e perfeito (com o
movimento esférico dos astros), rompendo então com a cosmologia medieval. Estes fatos,
que atentavam a tranqüilidade de Kepler, foram mergulhos profundos, chegando ao nível da
abstração, no que D. Santos (2002, p. 141) irá tratar como ―um passo a mais na construção
da ideia de que ‗espaço e tempo‘ são coisas em si‖, através de uma metalinguagem: a
matemática. Uma nova base teórica está lançada, em um novo plano, rompendo com as
bases metafísicas de Aristóteles, no qual, espaço e tempo passarão a ser absolutos.
O terceiro pilar da tríade renascentista científica fora Galileu Galilei (1564 – 1642). O
pensador e pesquisador versátil italiano, atuando em matemática, física e astronomia,
segundo Springer (2008, p. 45) ―exerceu papel fundamental para a criação de um novo
paradigma na relação homem-natureza‖, além de permear na astrofísica consagrando os
modelos desenvolvidos por Copérnico e Kepler efetivando-os numa espacialidade:
matemática e empírica. Galileu Galilei tornou-se o primeiro pensador a comprovar por meio
de experimentação científica os modelos matemáticos, por onde fundamentará
empiricamente inúmeras considerações teóricas (de Copérnico e de Kepler).
Desta forma, segundo explicita Camargo (2005, p. 38), ―o homem, utilizando-se de
uma ferramenta lógica, a matemática, consegue explicar a natureza e sua dinâmica‖. Assim,
temos uma nova concepção que segmenta a natureza-no-mundo, onde Galileu somente
apreenderá o que é natureza como matemático e constante. O mundo se reduz aos axiomas
matemáticos e mecânicos, logo, o mundo torna-se algo externo, circundante, onde o rigor da
objetividade científica analisa e experimenta sobre uma natureza como ser-enquanto-objeto.
O sujeito, como enfatiza D. Santos (2002, p. 135), sofrerá uma mudança de postura,
observando o objeto (o ser-enquanto-objeto) e não para o ser-enquanto-ser da metafísica
aristotélica.
Por esse arcabouço histórico-filosófico é que emerge o paradigma científico
moderno, que continuará a ser as bases de hoje. Porém, não é somente pelas mãos de
14
Copérnico, Kepler e Galileu Galilei que se firmarão os novos métodos científicos europeus
modernos, mas, sobretudo, a partir de dois fatores: um histórico da existência europeia
ocidental e outro personificado na figura de Francis Bacon (1561 – 1626). Bacon irá
condensar todas as formulações de método anteriores, enxugando o renascimento científico
e transformando o método científico e suas concepções de mundo, homem e natureza em
favor do poder reforçado do capitalismo industrial. A formulação do paradigma hodierno
científico, de natureza e da externalidade homem/natureza vão se conformando para o que
hoje temos, enclausurando as ―gavetas científicas‖ do pensamento oficial. É isto o que
veremos acontecer com o espaço, mas, antes de prosseguirmos (sobre o espaço), vamos
ao sustentáculo inicial do paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano.
Vejamos o que nos espera!
métodos e modelos‖. O cientista iria tomando o lugar do sábio, e junto a essas condições
temos a figura central de Francis Bacon.
Bacon estará no ínterim da lógica capitalista, o então Lord Chanceler da Inglaterra
afirmará os benefícios políticos de poder sobre a natureza. Segundo as palavras de
Camargo (2005, p. 38, grifos nossos), para Bacon ―sua função seria tornar a Inglaterra uma
grande potência em face das outras nações; assim, tratou de desassociar a natureza da
ideia de sujeito contemplativo e divino, tornando-a um objeto que deveria servir ao
desenvolvimento do comércio e ao efetivo progresso de sua nação‖. Bacon como
personificação científica do capitalismo industrial inglês, saiu na frente de seus
concorrentes, provando via do método científico que o progresso do tempo levaria ao
aperfeiçoamento humano.
Este aperfeiçoamento humano teria como base formulações metódicas que
constituiriam a supremacia científica no modo de pensar capitalista europeu. O que teremos
é uma oficialização da ciência, como instrumento de controle político e ideológico da visão
de mundo hegemônica. Uma nova percepção de mundo, agora objetiva e racional, no qual
―a enorme importância atribuída à objetividade, fetiche do discurso científico, vem desta
possibilidade de construir um objeto do conhecimento por intermédio do método‖ (GOMES
apud. RIBEIRO, 2006, p. 47, grifos nossos). A intenção européia de ―desmistificar‖ o Oriente
e o Novo Mundo iria influenciar Francis Bacon para o desenvolvimento da chamada ciência
experimental. Em uma das propostas de Bacon, estava a busca de sustentação da tese de
que a ciência necessitava da observação e da experimentação, que pela indução, tenderiam
formular às leis uma ordem sistemática e geral (indo dos casos particulares até as
generalizações).
Bacon, pelo que expõe Ribeiro (2006, p. 95),
Estava posto como ordem de seu pensamento e prática, uma nova teoria e
metodologia para o que seria o desenvolvimento humano, por onde, a razão, seria a
condição que habilitaria o desvelar das leis da natureza. O método científico serviria como
um guia, uma regulação e auxílio ao sujeito, ―na análise e construção do conhecimento da
realidade. Buscando a verdade de modo racional‖ (ibid., p. 96). Um prólogo ao método que
dicotomiza efetivamente sujeito/objeto: o método cartesiano.
O que estamos expondo sumariamente, por via das análises de Bacon, é o
empirismo inglês, ou, a versão inglesa do método empírico indutivo. As acepções de
16
5
. Segundo Ribeiro (2006, p. 95), ―na tal busca pela verdade, a empreitada baconiana recebe destaque no fato
de o saber racional dever esgueirar-se dos quatro „ídolos do saber‟, que de todas as formas quer impedir-lhe de
enflorar‖. Os ídolos da ―empreitada científica baconiana‖ são: ídolos da tribo (idola tribi); ídolos da caverna (idola
spectus); ídolos do foro (idola fori); e, ídolos do teatro (idola theatri). Esta seria a busca de Bacon como a razão
indispensável ao saber para dominar ―o inimigo‖, a natureza.
6
. ―Essa visão ontológica da natureza contida em F. Bacon está alinhada com a concepção da tradição filosófica,
pois tanto para os gregos antigos quanto para a filosofia cristã a natureza possui uma ordem em si que deve ser
17
natureza humana, de causas que destinam efeitos, como se todas as ordens fossem de
essência (naturais) obedecendo à natureza humana dominadora (sujeito do conhecimento)
da natureza exterior (objeto do conhecimento). Com esta formulação filosófica, a nova visão
do mundo, nos conduz a uma distinção fundamental, tanto no desmembrar ―engavetado‖ da
moderna ciência quanto no senso comum: a de natureza (o ente natural) de um lado e a de
pessoa humana (o ente existente humano) de outro. Aquilo que Sousa Santos (2002, p. 13)
expôs como sendo a total ―separação entre a natureza e o ser humano‖.
Balizado nestes pressupostos, o conhecimento (poder) científico parte no avanço
pela observação e experimentação descomprometida, sempre rigorosa no entendimento
profundo e no domínio dos ―fenômenos naturais‖. Estes são os postulados que encontramos
no principal livro de Bacon, o Novum Organum, ―no qual propôs uma nova ciência que
pretendia dominar o meio natural e que fugia da ideologia escolástica‖ (CAMARGO, 2005, p.
39), tendo como alvo o domínio sobre a natureza que,
captada e contemplada pelo ser humano. A intervenção humana na natureza deve se dar sempre no sentido de
realizar a própria ordem da natureza, e nunca no sentido de contrapô-la‖ (HANSEN, 2000, p. 61, nota do autor,
possui o número 15 no original).
7
. ―De fato, sua idéia da natureza como uma mulher cujos segredos têm que ser arrancados mediante tortura,
com a ajuda de instrumentos mecânicos, sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos
de bruxas do começo do século XVII. A obra de Bacon representa, pois, um notável exemplo da influência das
atitudes patriarcais sobre o pensamento científico‖. (CAPRA, 1986, p. 52).
18
aceita por todos‖ (SMITH, 1988, p. 27), da dominação da natureza (até os dias de hoje);
espinha dorsal do que concebemos capitalisticamente por natureza. Esta natureza, mais
mecânica que orgânica, sem dignidade, razão e emoção, objeto do domínio humano, é a
base fundamental para o que temos hoje nas ciências: a dicotomia sujeito/objeto. A relação
de externalidade exposta tão veementemente por Bacon, de Homem/Natureza, será a base
lógica para o pensamento ocidental moderno elaborar o seu paradigma de ciência: o de que
o sujeito do conhecimento (cientista pesquisador) deverá sempre ter um objeto de estudo (a
ser averiguado, desmembrado, como um recurso de seu saber). Isto é o que irá chegar até
a Geografia, com os moldes do espaço geográfico: a relação de externalidade
Homem/Espaço.
Mas como nos deixamos ―embebedar‖ por esta acepção e este paradigma?
A resposta não é simples, pois a noção de domínio do objeto torna-se contrária,
como uma camisa de força, onde o sujeito será dominado pelo objeto!
O espaço estará como um feto para Bacon, que se desenvolverá no paradigma
baconiano-cartesiano-newtoniano. Deste modo, o conceito de espaço é como um pano de
fundo nas formulações baconianas, tanto que será amplamente utilizado pelo próximo pilar
do paradigma: René Descartes. ―A estruturação de um novo método científico, que irá
influenciar a ciência até os nossos dias e consolidar o domínio da natureza‖ (CAMARGO,
2005, p. 39), no qual teremos a espacialidade cartesiana de mundo, com uma acepção de
espaço totalmente metafísica. O que, segundo Moreira (2007, p. 138), ―a partir daí, todos os
entes corpóreos, humanos e não humanos estão no espaço. Não são espaço. O espaço se
torna uma externalidade radical‖. Começando a tomar corpo, a partir de afirmações
cartesianas sobre o mundo e a natureza, a externalidade na relação Homem/Espaço.
E para adentrarmos na perspectiva filosófica de espaço em Descartes, é mais do que
preciso remontar às bases metafísicas que irão compor seu pensamento e seu método de
análise do mundo. Desde as ligações basilares em Bacon, ganhando corpo pelas
formulações filosóficas cartesianas de Natureza (a base dicotômica homem/natureza),
Método (a dúvida metódica), Ciência (a dicotomia sujeito/objeto), até o seu conceito de
espaço, temos um bom caminho, para darmos sentidos ao discurso sobre o objeto da
ciência. Darmos massa crítica de análise sobre o espaço tratado na Geografia.
Seguindo os conselhos de Milton Santos (1978, p. 29), se alçamos as fontes em
busca de ―fundamentos filosóficos da ciência geográfica‖ devemos averiguar, além de outros
caminhos, a análise das bases em René Descartes (1596 – 1650). O francês também
conhecido como Renatus Cartesius (forma latinizada), foi filósofo, físico e matemático.
Alcançou notoriedade por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também,
obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria. Deste
modo, foi uma das personificações da chamada Revolução Científica, ou Renascimento
19
8
. Ver mais detalhadamente em: PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Os (Des)Caminhos do Meio Ambiente.
São Paulo: Contexto, 2006a, p. 44.
21
9
. Estas ―forças de expressão‖ cotidianas, que usamos em nosso dia-a-dia explicita na sua base a acepção
externalizada de homem e natureza, no qual segundo Porto-Gonçalves (2006a, p. 25) explicita: ―chama-se de
burro ao aluno ou a pessoa que não entende o que se fala ou ensina; de cachorro ao mau-caráter; de cavalo ao
indivíduo mal-educado; de vaca, piranha e veado àquele ou àquela que não fez a opção sexual que se considera
correta, etc... Juntemos os termos: burro, cachorro, cavalo, vaca, piranha e veado soa todos nomes de animais,
de seres da natureza tomados – em todos os casos – em sentido negativo, em oposição a comportamentos
considerados cultos, civilizados, e bons‖. Fora estes, podemos enumerar mais alguns: papagaio à pessoa que
fala muito; toupeira ao que é ignorante ou não compreende; macaco às pessoas de pele, cabelo ou cultura
negra; de rato ao que é julgado como ladrão; de elefante e baleia aos que não se enquadram no padrão estético
de peso e beleza; de cobra à mulher que é traiçoeira. Além de outros dos mais variados, com as mesmas
intenções (pejorativas e distinguindo humanidade de natureza, entes vivos humanos e não-humanos). Qual de
nós já não fez algum comentário deste tipo, ou não falou que alguém ―parecia um bicho‖, ou exclamou: ―fulano é
um animal!‖?
22
sempre foi de ―procurar adquirir algum conhecimento da natureza‖ (ibid., p. 79), avançando
sempre neste conhecimento para ―assim nos tornar como que senhores e possuidores da
natureza‖ (ibid., p. 71), o que há de melhor para nós (nessa auto-avaliação crítica) seria
averiguar algumas de suas bases teológicas e metafísicas para o uso da razão. O ser-razão
colocado por Deus na mente humana, para que possamos compreender, dominar e possuir
o seu mundo como objeto. Esta que seria a base filosófica onto-teo-lógica no pensamento
cartesiano.
É nesse sentido que o ser-razão divinizado alçará vôo nas elaborações filosóficas de
Descartes, mas, tendo como base uma acepção muito cara de natureza: metafísica; como
uma onto-teo-logia do mundo, através do ser-razão divinizado. A base da razão como
clausura do pensamento cartesiano casa-se em grande estilo com a sua acepção de
natureza, externa-mecânica-sem razão. Assim, como nos explicita Camargo (2005, p. 40),
―a razão, então, traria ao homem uma certeza: se a natureza não sofre, não chora e não se
manifesta, então também não pensa, logo não existe como ser animado, provido de
sensibilidade e sentimentos‖. Este ser-razão cartesiano serviria tanto para mostrar a lógica
humana de pensar, quanto para distinguir, externalizar humanidade/natureza. A dicotomia
do que seria humano, racional e colocado por Deus no corpo-matéria humana, do animal,
mecânico e irracional. Colocado no mundo para servir ao mundo-do-homem.
Na visão antropocêntrica de mundo, as acepções de homem e natureza reafirmarão
o domínio humano sobre tudo o que vê. Podendo agora experimentar, dilacerar, analisar e
usufruir sem nenhum sentimento de remorso. Pois agora, cientificamente, a natureza
mecanizada pelo estatuto do irracional ou animal, não possui sentimentos, logo não sente
dor. A natureza no pensamento cartesiano, seria nada mais que ―uma maquina perfeita
submetida a leis mecânicas exatas‖ (SPRINGER, 2008, p. 49), pelo qual o saber científico
deveria operar e manipular, na busca constante da exploração dos seus funcionamentos.
Assim observamos que nesse momento do pensamento cartesiano, emerge uma
grande dicotomia lógica: a separação corpo/alma. Esta dicotomia, aliada a já elaborada
homem/natureza, auxiliaria na superação de nossos espíritos animais, buscando salvar os
homens das paixões (lembremos de algo semelhante em Bacon, a superação dos ―ídolos‖).
Um desencantamento da humanidade ―para a ciência moderna invoca a perda da
sensibilidade, da ética, dos valores, da alma enfim da consciência‖ (ibid., p. 50). Nessa
dicotomia corpo/alma, reafirma-se a externalidade homem/natureza, pois, corpo seria o
mecânico vindo da natureza, porém, contido pela alma, repleta de razão divina, algo
particularmente humano.
Esta acepção de natureza, mecanizada, irracional e desprovida de alma é a base do
que conhecemos como o especismo. A primeira forma de estranhamento humano em sua
acepção e prática de mundo. Isto será a exposição de Peter Singer (2004), através de um
23
natural‖ (da metafísica divinizada) e sua formulação matemática cartesiana (ibid., p. 152).
Nesse sentido concordamos com as palavras críticas de Moreira (1993, p. 16), de que
―estamos assim diante de um mundo rigorosamente regulado pelas relações constantes da
matemática e que o homem pode conhecer e controlar, sem que cometa qualquer
sacrilégio‖, pois, esta matematicidade perfeita do mundo produto de Deus foi concedido ao
homem como fonte de domínio e exploração, pelo poder e saber racional, advindo
novamente, como num ciclo vicioso (a ―lei natural‖), das ―mãos‖ justas de Deus 10. Justificara
na sua pessoa o consentimento divino tendo a ―certeza de que Deus lhe apontava uma
missão e dedicou-se à construção de uma nova filosofia científica‖ (Capra,1986, p. 53).
O mundo passará a ser visto como uma uniformidade mecânica universal, com a sua
feição geométrica, através do método matemático como modelo para a aquisição de
conhecimentos em todos os campos (temos a Geometria analítica). Com a justaposição de
geometria, álgebra e aritmética temos essa nova forma de análise do mundo, a acepção do
universo como uma uniformidade mecânica produzida por Deus. Essa solução de Descartes
geometriza o mundo e ―a natureza infinita de antes da revolução científica se converte nas
suas mãos no espaço infinitamente descontínuo‖ (MOREIRA, 1993, p. 20). Temos então o
que veremos posteriormente como o espaço cartesiano, como conjunto de corpos animados
mecanicamente. Deste modo que ―a natureza é geométrica e, pela primeira vez, aparece
claramente uma noção abstrata do espaço; princípio vazio e isonômico, este define posição,
pela forma e pelo movimento dos corpos que o ocupam‖ (GOMES apud., RIBEIRO, op. cit.,
p. 50), e não é por acaso que a natureza é mecanizada, a Geometria analítica emerge como
sustentáculo de negação da dúvida e que o espaço será algo externo e vazio, mas por essa
base filosófica de Descartes, calcada no Deus Ser-razão-perfeito, criador de um mundo
universalmente maquínico e doador da dádiva da Razão para os homens existirem e
dominarem o que já lhes foi dado: o mundo. Por esta formulação filosófica que tomará corpo
a institucionalização da ciência e seu método moderno de apreensão deste mundo-do-
homem.
Um dos pilares para o modelo de método científico moderno (até mesmo para os que
se dizem pós-modernos) é o método cartesiano. Tal esforço intelectual visa como seu
objetivo geral e pontual a verdade (como algo cabível de ser concebido, pois provado
metodicamente, cientificamente). Perpassando pela lógica do ser-pensante e da dúvida,
atrelando seu estatuto verídico através da matemática visando o fim comprovado através do
conhecimento, por um método único. Este esforço da dúvida é reformulado por Ribeiro
10
. Para fim de resumo e confirmação desta universalização de Deus-lei natural-geometria, temos uma citação de
Descartes (1973, p. 57): ―Ao passo que, voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito, verificava que
a existência estava aí inclusa, da mesma forma como na de um triângulo está incluso em serem seus três
ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro,
ou mesmo, ainda mais evidente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser
perfeito, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer demonstração de Geometria‖.
26
(2006, p. 58), através do próprio dito mais conhecido de Descartes: eu penso, logo existo. A
reformulação incide justamente na origem do termo pensar, que ―vem do latim pendere:
pender, suspender, pensar, examinar, ponderar, avaliar, compensar, recompensar e
equilibrar‖, sendo seu sentido equivalente ao cogitare, mergulhando em meditações sobre a
existência indubitável de algum fenômeno. Então este homem enquanto eu pensante é um
sujeito que questionava a veracidade dos fatos do mundo, da falsa materialidade.
Esta forma de questionar o mundo circundante irá fazer emergir na metodologia
cartesiana o expoente da dúvida, compondo em combinado com o próprio método como
dúvida metódica, no qual se duvida de cada ideia que pode ser duvidada. Como expressa
Morente (1970, p. 137), ―a dúvida se converte, pois, em método; e o que se tenta aqui
descobrir é uma proposição que não seja duvidosa, que não seja dubitável‖. E para ser
indubitável, somente através da razão, do pensamento, pois está fora do mundo falso da
matéria, é a dádiva divina da racionalidade, que nos remete à dúvida. Assim que como base
da ciência está a busca da evidência do verdadeiro, através desse método cartesiano da
dúvida para comprovar esta crença raciocinada. O caminho a ser seguido (método)11.
Tomado assim pela dúvida, Descartes pretende construir uma epistemologia,
negando para afirmar. Este ―ato da dúvida cartesiana tem mais um caráter paradigmático
que propriamente psíquico‖ (SANTOS, D., 2002, p. 143). Como este paradigma cartesiano
busca a verdade comprovada, racional e científica, se faz ―por meio do método especado na
álgebra e aritmética‖ (RIBEIRO, 2006, p. 49), cabendo lembrar que ―a ontologia cartesiana
parte do abstrato, limitando-se ao conhecimento derivado da matemática. Este
conhecimento apreende apenas o mais estável e permanente, recusando, no ser, o que lhe
é fugidio e mutável‖ (BRASIL, 2005, pp. 64-65). A matematização deste caminho
ensandecido em busca da verdade se faz por meio da matemática, para não esquecermos,
por dois motivos: primeiro pela leitura mecanicista, do mundo máquina, esquadrinhado
aritmeticamente por Deus, numa rede que envolve todos os corpos; segundo, pela releitura
dos clássicos gregos por Descartes, no qual ta mathema, designa completo conhecimento,
perfeito, puro e dominado totalmente pela inteligência (o nosso ―dom divino‖12).
Para ser mais perfeccionista e paradigmático em seu ato revolucionário à época,
Descartes propõe que este seja um método único, universal: a mathesis universalis13. O
11
. Seguindo a descrição da noção de método em geral por Jolivet (1968, p. 71): ―se nos colocarmos no ponto-
de-vista do conhecimento, dir-se-á, com Descartes, que o método é ‗o caminho a seguir para chegar à verdade
nas ciências‘‖.
12
. Não é de se espantar por essa relação, pois, segundo Capra (1986, pp. 55-56): ―Para Descartes, a existência
de Deus era essencial à sua filosofia científica, mas, em séculos subseqüentes, os cientistas omitiram qualquer
referência explícita a Deus e desenvolveram suas teorias de acordo com a divisão cartesiana‖. Para bom
entendedor, estavam e ainda estão calcados num conhecimento como dom divino, na busca do domínio do
mundo e da verdade.
13
. ―A tarefa é construir um único método que dê conta da diversidade de questões de forma inquestionável, que
elimine as contradições, que posicione o sujeito perante a certeza, já que o objetivo do conhecimento é eliminar
a dúvida e ambas são, por pressuposição, inconciliáveis‖ (SANTOS, D., 2002, p. 149).
27
método instituído por Descartes, na pretensão de ser universal balizado no rigor matemático
e na razão, seria o Hipotético-dedutivo, composto de: evidência, análise, síntese e
enumeração. Estas bases dar-lhe-ão comprovação da verdade, divisão das partes a se
estudar, hierarquia linear da dificuldade dos objetos e as relações metódicas entre tais.
A dúvida metódica hipotético-dedutiva cartesiana será completamente racionalista,
buscando não bases empíricas (os sentidos), mas a razão. O que Hansen (2000, p. 61) irá
explicar-nos que no Racionalismo de Descartes, ―a razão é a efetiva fonte de conhecimento,
pois é ela que dá, através da dedução que permite fazer a partir das ideias inatas, certeza e
validação àquilo que conhecemos‖. Desse modo que temos o estabelecimento e predomínio
absoluto do intelecto (da razão, da inteligência, da ciência, sobre a experiência, à vida e aos
sentidos), ―a filosofia de Descartes inaugura uma era de intelectualismo, uma era de
racionalismo‖ (MORENTE,1970, p. 175), lançado a averiguar os problemas do mundo, da
ciência e da vida. Porém, como nos alerta Ribeiro (2006, p. 117), racionalismo abstrato e
metafísico, com a matematização e logicização, é conservadorismo de pensamento; não é
por acaso que a ciência e a razão dominam sobre a vida até os dias de hoje.
A base metódica para a institucionalização da ciência moderna está posta, criando
um vinco moderno na filosofia, substituída pela ciência. A construção do pensamento
ocidental terá com este método um novo pilar de conduta, por onde emergirá a ciência
hodierna.
Como trata Moreira (2008, p. 58), o nascimento da ciência moderna é dado por
Descartes pelo acréscimo ao pitagorismo grego da matematicidade, fusão entre álgebra,
geometria e aritmética. Esses moldes são do que vimos pelo racionalismo mecanicista,
sinônimo de método científico no qual temos ―separação, hierarquização de fatos, dedução
e comprovação de hipóteses‖ (SPRINGER, 2008, p. 49). Todo esse enlace científico
moderno está enredado em três situações, do modo que Sousa Santos (2002) nos
relembrará do pensamento de Descartes: o rompimento com a ―ciência‖ aristotélica
(desconfiando da experiência; a lógica de investigação matemática, como modelo de
investigação e representação (como vimos no aspecto do que seria o Hipotético-dedutivo –
evidência, análise, síntese e enumeração dos fenômenos); e, as análises das leis como
naturais da própria acepção de natureza. Estas leis são arbitrárias, que não aparece como
um saber posto por Deus, pairando sobre os homens, por isso, Porto-Gonçalves (2006a, p.
43) relata que ―em nome da ciência, do seu rigor teórico e metodológico, tem-se justificado
toda uma prática de dominação dos homens e da natureza‖. Esta ciência moderna é
instituída, não é um modo de ser dado divinamente!
A tomada de corpo do método cartesiano, na construção de um paradigma
epistemológico, além do operacional, conflui com a imposição de valores generalizantes do
modo de ser europeu. Cabe então o retorno à Sousa Santos (2002, p. 55), no sentido de
28
que ―todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum‖, por onde ―a ciência
moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante
especializado faz do cidadão comum um ignorante generalizado‖, repetindo rotineiramente
este senso comum cimentado pela ciência, via de um modo de ser imposto pela
europeização do mundo. O que temos por noção de ciência é a busca da personificação, via
do pensamento de Descartes, do dominador europeu. Segundo Jolivet (1968, p. 76),
objetivamente a ciência é um conjunto de verdades certas e logicamente encadeadas entre
si, conformando então um sistema em corrente (um senso comum), porém, se faz
necessário o respeito às suas leis próprias, o método, tendo assim, por objeto mais geral a
generalização da verdade.
Por estes motivos a ciência moderna se institui via de seu método em busca da
verdade, o senso comum cotidiano dos fatos, não como leis naturais e divinas, mas sim
como tentativas parciais de impor certezas que fomentam atos já praticados ou em via de
serem re-praticados. A ciência tornou-se a voz da verdade; das falsas verdades14. Daí o que
veremos como o conceito moderno de espaço, advindo desse senso comum imposto pela
ciência, chegando até a Geografia científica (ou oficial, acadêmica), desde o Racionalismo
cartesiano. O espaço metafísico cartesiano, como veremos, servirá como base para o duplo
dicotômico: absoluto/relativo; tanto da física newtoniana, quanto das apropriações do
conceito ou categoria (no mais geral) de espaço pela ciência Geográfica.
Para entendermos a origem desse duplo dicotômico devemos relembrar as três
dicotomias básicas do que Heidegger (2008, p. 140) irá tratar como ―ontologia do ‗mundo‘ de
Descartes‖. Essa interpretação de mundo cartesiana trata de externalizar o mundo, como
circundante, logo, o que teremos é uma espacialidade fundada na extensão e não no corpo.
Como citamos alhures, o cabedal onto-teo-lógico do método cartesiano propicia ao francês a
primeira dicotomia ou externalização teórica: entre Deus/espírito. Ribeiro (2006, p. 48)
explicita justamente essa idéia, no qual ―a res infinita (Deus), destarte, far-se-ia a fonte para
a res cogitans (pensamento)‖. Esse Deus como coisa infinita e primordial, como uma
substância imprescindível de alguma outra para existir15 seria exterior e intermediário às
coisas finitas, como o homem-corpo, que seria alcançado pela alma, ou pensamento que
cogita ou duvida. Assim se institui para o pensamento cartesiano a dicotomia primordial,
―através de uma ontologia fundada na distinção radical entre Deus, eu e ‗mundo‘‖
(HEIDEGGER, 2008, p. 147).
14
. Não é por menos que o título completo da obra base do desenvolvimento metódico cartesiano chama-se:
Discurso do método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências.
15
. ―Nas Meditationes, Descartes desenvolve suas investigações fundamentais no sentido de aplicar a ontologia
medieval ao ente que ele estabelece como o fundamentum inconcussum. A res cogitans é determinada,
ontologicamente, como ens e o sentido do ser deste ens é estabelecido pela ontologia medieval na compreensão
do ens como ens creatum. Como ens infinitum, Deus é o ens increatum. Ser criado, no sentido amplo de ser
produzido, constitui um momento essencial na estrutura do antigo conceito de ser‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 63).
29
homem e mundo serve para dividir e manter ambos separados, como em extremos opostos,
naquilo que veremos mais adiante na Geografia científica como ―uma relação de recíproca
externalidade em que o espaço é externo ao homem e o homem é externo ao espaço e
apenas nele ocupa lugar‖ (ibid.). Nesse ínterim emerge a acepção de espaço da qual já
estamos familiarizados (se é que o entendimento e a análise autocrítica do familiar nos
parecem ironicamente mais distante daquilo que nos é inabitual), uma noção, categoria e
conceito abstratos de espaço, somente tornado claro (iluminado) pela razão. No mundo
moderno, o que vemos e vivemos, das ditas coisas aos entes vivos, estão no plano dessa
espacialidade que abstrai existência e movimento.
O espaço encontra-se somente como ―sendo a condição de possibilidade da
ocorrência da lei científica e, assim, da existência da ciência‖ (MOREIRA, 2008, p. 58), no
qual esse espaço é um suporte tanto do que é material quanto do que é pensado pela
ciência. Concordamos com Moreira (2009) novamente, em asseverar que a visão moderna
de espaço é cartesiana, numa relação de continente e conteúdo (não são exemplos disso os
atlas que mostram os continentes com seus conteúdos, ora ambientais ora
socioeconômicos, e também não é o que encontramos na formulação do espaço forma-
conteúdo retrabalhada há algumas décadas?). O jogo que nos aparece é o do duplo
absoluto-relativo, em germe para Descartes16, depois apreendido pela física newtoniana.
Espaço como condição absoluta sendo preenchido pela empiria relativa.
Que fique bem claro das releituras feitas até aqui. Não colocamos a culpa de todos
os problemas do mundo ou da ciência humana em Descartes, mas sim, de ter sido
veiculada da filosofia ocidental, para a ciência moderna e para o senso da opinião pública
comum uma única forma de apreensão do mundo. Claro que coexistem outras, mas esta,
calcada no saber científico experimental, comprovado pelo método do especialista e que
vem à tona para o cotidiano de nossa existência, foi a considerada mais ―verdadeira‖, antes
por comprovar Deus, depois no seu processo como legitimação da ordem e do progresso da
civilização (a ilusão do evolucionismo), hoje por uma tecnociência exacerbada em que tudo
engloba para tornar rarefeito, alienígena.
Passemos para a seguinte abordagem da edificação desse modo de pensar
moderno, ocidental, europeu, colonizador e globalizante, agora através da afirmação
empírica newtoniana do espaço duplo absoluto/relativo. Será o veículo de materialização do
16
. ―Chamo absoluto tudo o que contém em si a natureza pura e simples de que trata uma questão; por exemplo,
tudo o que é considerado como independente, causa, simples, universal, uno, igual, semelhante, reto, ou outras
coisas deste gênero; chamo-o, primeiramente, o mais simples e o mais fácil, em função do uso que dele faremos
na resolução das questões.
Quanto ao relativo, é o que participa desta mesma natureza ou, ao menos, de algum dos seus elementos; por
isso, pode referir-se ao absoluto, e dele se deduzir mediante uma certa série; mas, além disso, encerra no seu
conceito outras coisas, que chamo relações; assim é tudo o que se diz dependente, efeito, composto, particular,
múltiplo, desigual, dessemelhante, oblíquo, etc.‖ (DESCARTES, 1989, p. 34).
32
17
. Pioneiro, pós as especulações metafísicas a se calcar numa linha dita científica de pensamento e
inversamente um dos últimos a ser enquadrado no Renascimento científico europeu, servindo de ―trampolim‖
para ideais iluministas e positivistas, como veremos a seguir.
18
. A forma original de escrita das leis foi em Latim, as quais seriam: Lex I: Corpus omne perseverare in statu suo
quiescendi vel movendi uniformiter in directum, nisi quatenus a viribus impressis cogitur statum illum mutare.
(Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento retilíneo e uniformes não for obrigado a
variar esse estado por forças que atuem sobre ele – lei da inércia de Galileu); Lex II: Mutationem motis
proportionalem esse vi motrici impressae, etfieri secundum lineam rectam qua vis illa imprimitur. (A variação do
movimento é proporcional à ação das forças que se movem e que se produzem na direção da força que atua –
conhecido como lei da aceleração ou princípio de ação: força = massa por aceleração); Lex III: Actioni contrariam
semper et aequalem esse reactionem: sine corporum duorum actiones in se mutuo semper esse aequales et in
partes contrarias dirigi. (A ação é sempre igual à reação, ou a ação de dois corpos um sobre o outro é
constantemente igual e de sentidos opostos – ação = reação; por exemplo: a pedra que está caindo atraia a
Terra com a mesma força com que a Terra a atrai (ENCICLOPÉDIA NOVO SÉCULO, 2002, p. 1574).
33
19
. ―A metodologia desenvolvida por Newton compreende a combinação entre o método empírico indutivo de
Bacon e o racional dedutivo de Descartes, destacando que os experimentos necessitam de interpretação
sistemática e que a dedução deve ocorrer a partir de princípios básicos para que uma teoria seja confiável‖
(KOZEL, 2004, p. 163).
34
natureza como algo inteligível pela força da observação e experimentação atenta e racional
do homem‖. Parece fato destinado e irônico, mas, Descartes apesar de ter sido levado
adiante na formulação desse paradigma, já arriscava suas futurologias, realçando as
ciências como fim de todo o saber arbóreo, calcado na metafísica (divinizada) e na física
(explicação exata para o universo eterno e infinito), como nessa citação: ―toda a filosofia é
como uma árvore. As raízes são a metafísica, o tronco é a física e os ramos são todas as
outras ciências‖ (DESCARTES apud., KOZEL, 2004, p. 164).
Esse entrelaçamento de ideias que perpassa Bacon, Descartes e Newton irá
regimentar as acepções que estavam sendo especuladas, dentre elas: a separação entre
homem e natureza; a acepção mecanicista-inorgânica-insensível de natural e/ou animal;
regulamentação de um método científico; espacialidade do mundo como absoluto e um
sistema imutável; busca do entendimento da ―lei natural‖ através da verdade comprovada
cientificamente; fragmentação do conhecimento devido a cada fenômeno; institucionalização
do saber científico; criação da física clássica; e, dentre outros dependendo da análise, a
acepção de espaço, com um duplo dicotômico absoluto/relativo. Este será o quadro do
paradigma moderno por excelência, de um discurso que será hegemônico dentre tantos
outros, até mesmo no ocidente. Vejamos agora, o estabelecimento da física clássica como
leitura de mundo, numa teoria matemática que além de ser calcada na concepção vazia de
espaço, espelhará ideias que nós herdamos até os dias de hoje.
A correlação entre a institucionalização da ciência como reveladora da verdade, a
inauguração da física clássica e a sistematização do universo com uma mecanização
eterna, é a chave para a ―filosofia natural‖ de mundo newtoniana. A concepção advinda de
Descartes do mundo como uma máquina perfeita (como na analogia do relógio), será
consolidada por Newton, sendo seguida e acreditada pelos ramos científicos futuros e pelo
senso público comum. Nas palavras de Kozel (2004, p. 163), ―o universo Newtoniano era um
imenso sistema mecânico, que funcionava com leis matemáticas exatas, sob a força da
gravidade. Isso explica a concepção mecanicista da natureza, que é determinista, pois a
‗gigantesca máquina cósmica é completamente causal e determinada‘‖. Assim, o que é
natural passa a ser matematizado e tudo o que é explicado pela razão matemática se torna
uma ―lei natural‖. Newton irá reformular junto a matematização do universo, ―a queda livre
desenvolvida por Galileu em 1589, aliada à ideia do universo e do movimento de Kepler e
Copérnico‖ (CAMARGO, 2005, p. 40), criando assim a lei da gravitação universal. Não
haveria então criatividade na natureza, no mundo ou na generalização do universo, esse
palco seria absoluto e imutável, sem qualquer modificação. Toda essa estrutura ou lei
levaria a uma concepção mecânica do universo como sincrônico e sempre linear.
Esta nova forma (ou fórmula) de conceber o universo torna-se um modelo de
racionalidade hegemônica, através de um conhecimento que se busca veracidade calcada
35
20
. ―Os resultados podiam naturalmente ser generalizados aos eventos materiais na escala social, da mesma
forma que a lei da gravidade de Newton podia ser aplicada ao corpo humano tanto quanto à maçã, mas, em
ambos os casos, os produtos e os eventos sociais ilustram os princípios científicos não como fenômenos sociais,
mas sim naturais‖ (SMITH, 1988, p. 31).
21
. ―Deus era o gênio da matemática a Newton e que todos os mistérios do „livro da natureza‟ escritos em
linguagem matemática ao homem tornavam-se inteligíveis‖ (RIBEIRO, 2006, p. 46).
36
cientificamente tudo que houvesse na natureza, como num retorno à onisciência de Deus
através da própria benção da razão, que tanto falara Descartes.
Para retratar tal credo newtoniano, nesse Ser que governa todas as coisas, nada
melhor que dar-lhe a palavra e depois fazermos as relações:
somente pela forma, os três com características materiais. O desacordo é tanto que
realmente a física clássica está balizada por um espaço vazio e imaterial, algo confuso, pois
o que podemos conceber como matéria? Qual dimensão de partícula? Essas indagações
retomaremos posteriormente. Esta formulação do conceito de espaço físico absoluto
transformou-se numa ortodoxia, científica porque social, por isso necessitava de uma
materialidade, para poder se cimentar de vez. Daí emergiu as maiores confusões.
Segundo ironia de Milton Santos (1978, p. 31), ―foi Newton quem santificou a ideia de
um espaço absoluto e imutável, do qual o espaço relativo apenas seria uma medida‖, ou se
preferirmos citação mais direta, porém com a mesma conotação, temos Smith (1988, p.
112), no qual ―foi somente com Newton que a distinção entre espaço absoluto e espaço
relativo se tornou explícita‖. Para entendermos uma parte curiosa do pensamento
newtoniano, iremos retomar à sua obra mais influente Princípios matemáticos da filosofia
natural. Nela acontecem confusões lógicas de identificações e objetivos, com uma lista de
dualidades, como: absoluto/relativo, verdadeiro/aparente e matemático/vulgar. Tem-se a
distinção entre o vulgar (aparente-relativo) e o matemático (absoluto-verdadeiro) (SANTOS,
D., 2002, p. 164).
Dessa confusão acaba por emergir a dicotomia absoluto/relativo para o espaço
newtoniano. Por esse motivo o que estava posto por seus antecessores, como Descartes,
de que o absoluto era condição para o relativo, foi um elo para o segmento ante os
problemas metafísico e dualista das idéias de Newton. Ocorrera ―um redimensionamento da
relação entre o res-extensa e o res-cogito cartesiano‖ (ibid., p. 173), aquilo segundo Moreira
(2007) de que a física newtoniana é o veículo de materialização do mundo espaço
geométrico cartesiano. O mundo não aparece como espacial nessa trama, ele está no
espaço. A relação que surge entre absoluto e relativo para a física de Newton seria de
continente e conteúdo, o que na leitura de Moreira seria:
o espaço absoluto, em sua própria natureza sem relação com qualquer coisa
exterior, sempre permanece semelhante e imóvel. O espaço relativo é uma
dimensão ou medida em tanto mutável dos espaços absolutos, que nossos sentidos
determinam por sua posição em relação aos corpos (NEWTON apud., SMITH, 1988,
p. 111).
38
Porque agora tem, necessita ter, uma ciência!‖. O que nos remete ao entendimento seria
que após a institucionalização do conhecimento científico enquanto tal, via do que
entendemos como paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano, na chamada ―era
moderna‖, fora algo que aproximara o homem mais de uma existência estranha a si mesmo,
e principalmente, através da ciência (como verdade instituída), justificar, cimentar e propor
as atitudes perniciosas em prol do progresso humano e contra a vida. Nesse sentido é que a
ciência toma os ―ares de malícia humana‖, num círculo vicioso de estranhamento22 e
necessidade científica. E o novo modo de pensar hegemônico-europeu-ocidental será
calcado em algumas premissas científicas, de método e de condução do pensamento, das
bases paradigmáticas das quais expusemos.
Este novo modo de ser (mais do que um modo de pensar) é o Iluminismo. Ele
encontra-se baseado em premissas do paradigma científico supracitado, principalmente,
pelas repercussões européias das idéias e práticas newtonianas. Para Capra (1986, p. 63),
―a teoria newtoniana do universo e a crença na abordagem radical dos problemas humanos
propagaram-se tão rapidamente entre as classes médias do século XVIII, que toda essa
época recebeu o nome de Iluminismo‖. Tal movimento, da ―Ilustração‖ ou ―Século das
Luzes‖, é calcado na filosofia barroca do século XVII, que assumiu em sua característica
particular, um estado de divulgação em consonância com o crescente aburguesamento do
modo de ser europeu-ocidental. Acompanhou-se então o crescimento econômico
protagonizado pela burguesia. A concepção de mundo, já pré-formatada, é estabelecida
como um conjunto regulamentado no pensamento newtoniano e o antropocentrismo
balizado na razão (algo também cimentado pelo pensamento cartesiano), onde se tentou
representar a diferente forma do pensamento iluminista, uma nova ciência em nome da
natureza, da razão e da humanidade (três frutos do pensamento baconiano-cartesiano-
newtoniano). Kant culmina a vertente de pensadores iluministas como: Herder, Wolff, Hume,
Locke, Voltaire, Bentham, Montesquieu, Benjamin Franklin, Rousseau, Diderot, Adam Smith,
entre outros (ENCICLOPÉDIA NOVO SÉCULO, 2002, p. 1159).
Immanuel Kant (1724 – 1804) nasceu, estudou, lecionou e morreu em Königsberg.
Jamais deixou essa grande cidade da Prússia Oriental (somente se ausentando na época
em que atuou como preceptor, após a morte de seu pai, em famílias nobres), cidade
universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de
nacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. Kant sofreu duas influências
contraditórias: a influência do pietismo, protestantismo luterano de tendência mística e
pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi
a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, além da influência do racionalismo: o
22
. Retomaremos a discussão sobre estranhamento no segundo capítulo deste trabalho.
40
23
. Veja algumas abordagens também sobre o histórico de Kant em: CLAVAL, 1995; ENCICLOPÉDIA NOVO
SÉCULO, 2002, p. 1303. Ou consulte o sítio eletrônico www.mundodosfilosofos.com.br/kant.htm.
24
. Para Silva (1988, p. 6) ficava a dúvida de ―como resolver o impasse aristotélico-kantiano?‖, este que trata
segundo Martins (2003, p. 41) de: ―o fundamento lógico seria a lógica formal (Aristóteles) e a concepção de
espaço advinda de Kant‖.
41
Conforme as partes que destacamos, a influência sofrida por Kant remete ao que
fora dito por Descartes (com a natureza do espaço sendo a extensão) e por Newton, através
de seu conceito de espaço absoluto. Essa concepção kantiana do espaço como
universalmente absoluto e exterior às coisas, é o que Kant quer demonstrar, segundo a
elucidação de Martins (ibid., p. 43), de ―que o fundamento da determinação da forma
corporal não está exclusivamente na relação e na situação das suas partes umas com as
outras, mas, também, principalmente, na situação que mantém com o espaço absoluto em
geral‖. Seria, grosso modo, que os corpos ou matérias corpóreas, assim como nós, não são
espaciais, mas sim estão em relação uns com os outros situados no espaço absoluto (uma
prévia do absoluto/relativo).
25
. Queremos deixar bem claro que não viemos fazer totalmente uma crítica das ―críticas‖ de Kant ou de sua
―malévola influência‖ à Geografia científica contemporânea. O que deve ser apreendido (e iremos expressar em
outras circunstâncias) é que a problemática dessa leitura de espaço foi exatamente de quem a leu e como ela foi
tomando ―corpo‖ científico, não puramente por Kant, mas através de sua leitura em certos momentos, engessada
de apenas algumas obras por certos Geógrafos com o passar dos anos. Queremos expressar também que a sua
leitura do espaço absoluto, como coisa em si, anterior a qualquer experiência humana, sendo um a priori,
combina em parte com nossas aspirações da problemática do ser e do espaço, que serão abordadas no próximo
capítulo, claro que sem prendermos o olhar fixado em Kant.
42
A conclusão kantiana admite que o espaço, como absoluto, ―não é objeto de uma
sensação exterior, mas um conceito fundamental‖ condicionando-lhe a possibilidade.
Somente se diz respeito dos corpos em ―sua relação com o espaço puro‖ (KANT apud.,
MARTINS, 2003, p. 44). Temos então a prévia do que viria, na próxima obra que
analisaremos, a ser o espaço absoluto, ou a priori – o espaço puro.
A obra tomada agora para a segunda etapa de análise é a ―famosa‖ Crítica da razão
pura de 178126, será o foco de seu esforço filosófico em elaborar a chamada Estética
Transcendental. Na ―primeira crítica‖ será justamente ―quando Kant coloca os primeiros
movimentos de todo o seu ‗sistema‘‖ (SANTOS, D., 2002, p. 175), o que segundo Hansen
(2000, p. 62), será o ―percurso no sentido de dar conta das questões que são fundamentais
para a espécie humana‖, como: que posso saber?; que devo fazer?; e, que me é permitido
esperar? Busca então Kant, com essas inquietações, a demonstração dos limites por onde
dos quais o conhecimento torna-se possível. Será uma forma de medida kantiana, onde seu
esforço será de ―permitir à razão ter medida de verdade em relação aos objetivos da
realidade. Sem o que, nenhuma ciência seria possível‖ (MARTINS, 2003, p. 45). Um esforço
gnosiológico para a razão percorrer e ter certeza da verdade (novamente temos a idéia de
verdade nos modo de pensar europeu-ocidental), tendo como base para seu esforço a física
(clássica newtoniana) e a Metafísica, através de juízos sintéticos a priori.
Através do que o próprio filósofo alemão irá tratar como Filosofia transcendental, via
do apriorismo da sensibilidade, temos a estética transcendental. Assim forma-se a intenção
de Kant em ―tornar científica‖ a metafísica.
Essa estética seria uma teoria das formas da sensibilidade a priori. Esta seria uma
nova ciência, que trataria ―das duas formas puras da intuição sensível, como princípios do
conhecimento a priori: o espaço e o tempo‖ (BRASIL, 2005, p. 25). O parâmetro dessa
ciência metafísica kantiana seria da construção do conhecimento, relembrado as bases
dicotômicas, na ―forma pela qual o sujeito relaciona-se com o objeto‖ (SANTOS, D., 2002, p.
176), buscando a tal verdade com precisão!
Essa ciência da sensibilidade a priori está calcada nas dicotomias que foram sendo
conformadas e cristalizadas no modo de pensar científico. Vejamos alguns exemplos.
D. Santos (ibid., p. 176) explicita o esquema kantiano, que irá dar continuidade às
dicotomias científicas, como: ―objetosujeito (sensibilidadeintuiçãoconceito), isto é, o
sujeito ao se relacionar com o objeto o faz pela via da sensibilidade e, com base nela, intui o
que é o objeto para depois construí-lo mentalmente, na forma de conceito‖. Temos
novamente o enclausuramento da razão através da construção mental do objeto culminando
no conceito. Percebemos então a fórmula: sujeito do conhecimentoobjeto a ser
26
. Martins (2003) ressalta que tal trabalho fora feito em ―duas versões‖ (uma em 1781 e a outra em 1787), sendo
a segunda fruto do amadurecimento da forma de passar as idéias filosóficas de Immanuel Kant.
43
Esta distinção entre phaenomena e noumena, entre fenômeno e coisa em si, irá
posteriormente balizar as proposições do duplo espaço absoluto/relativo kantiano e suas
influencias para a ciência geográfica. Por ora, nos detemos com o que prossegue na
tentativa de calcar a Metafísica com o paradigma científico, suas dicotomias, entre sujeito e
objeto. Ainda mais, provocando um idealismo através da elaboração do conceito: que será a
acepção de espaço como lógico e não ontológico.
Através da análise de Brasil (2005, p. 26), podemos apreender que Kant, escolhera o
exame racional sobre a natureza do espaço, pois essa problemática estava em voga na
ciência base do modo de pensar ocidental, a Física. Desta forma, como Kant pretendia
fundar com a filosofia transcendental uma Metafísica científica, necessitava uma veracidade
das ciências. Por isso o esforço sobre o espaço, assim como as bases e problemas das
ciências de seu tempo. Na exposição metafísica do conceito de espaço, em sua primeira
expressão Kant (2001, p. 89) exclama que ―por intermédio do sentido externo (de uma
propriedade do nosso espírito) temos a representação de objetos como exteriores a nós e
situados todos no espaço‖. Desse modo irá enumerar o conceito de espaço segundo sua
acepção metafísica, ou a priori, em si: ―1) O espaço não é um conceito empírico, extraído de
experiências externas (...) a representação de espaço não pode ser extraída pela
experiência das relações dos fenômenos externos‖; dessa forma o espaço kantiano somente
existe enquanto representação externa, não no sujeito, sendo então as coisas dispostas no
espaço. ―2) Consideramos, por conseguinte, o espaço a condição de possibilidade dos
fenômenos, não uma determinação que dependa deles; é uma representação a priori, que
fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos‖; temos aqui a independência
recíproca entre matéria e espaço, entre o ontológico e o em si. ―3) O espaço não é um
conceito discursivo ou, como se diz também, um conceito universal das relações das coisas
44
em geral, mas uma intuição pura (...) uma intuição a priori, com uma certeza apodítica‖; aqui
tal concepção de espaço exterior à matéria é apresentando com uma natureza evidente e
indubitável. ―4) O espaço é representado como uma grandeza infinita dada (...) é assim que
o espaço é pensado (pois todas as partes do espaço existem simultaneamente no espaço
infinito). Portanto, a representação originária de espaço é intuição a priori e não conceito‖;
nessa última assertiva, o espaço é algo ainda mais abstrato que o próprio conceito, pois é
metafísico, anterior como uma essência infinita. É anterior ao próprio conceito (KANT, 2001,
pp. 90-92).
Para o Kant da ―primeira crítica‖, assim como o espaço não pode ser algo interior ao
sujeito, o espaço se dá como uma função da sensibilidade que permite colocar em forma ou
ordenar (arranjar) os sentidos externos. Isso fica bem claro em sua exposição
transcendental do conceito através da frase: ―o espaço não é mais do que a forma de todos
os fenômenos dos sentidos externos‖ (ibid., p. 93). Segundo as explicações de Martins
(2003, p. 55), o espaço (assim como o tempo) em Kant tornou-se atributo a priori em sua
representação empírica. Deixou de constituir modo de existência do ser. Essa forma do
sentido externo do espaço, o torna aparato da razão que torna possível o próprio
conhecimento; assim o espaço emerge ―como organização externa‖ (HANSEN, 2000, p. 63),
elemento que arranja espacialmente as constituições e planos da razão humana – o arranjo
espacial.
Partiremos agora para a terceira e última etapa desta análise sumariada do ―Kant
filosófico‖, para posteriormente ver sua ―atuação‖ nos primórdios da Geografia como ciência.
Tal etapa consiste nas implicações que Kant irá desdobrar de sua ―primeira crítica‖. A
obra seria: Princípios metafísicos da ciência da natureza; que fora realizado no ano de 1785,
portanto, entre as duas edições de sua Crítica da razão pura. O que importa para o
segmento de seu modo de pensar é que viria quatro anos após a obra anterior (com seu
processo de elaboração concomitante à Crítica da razão prática – ou ―segunda crítica‖),
tendo como base as aplicações dos conceitos e métodos já explicitados. Martins (2003, p.
55) utiliza-se de Mourão para afirmar que o propósito de Kant com os ―princípios‖, ―era ser
um complemento à Crítica‖, colocando assim ―a serviço da ciência da natureza todas as
categorias desenvolvidas na Crítica‖.
Entrando na obra de Kant via de Martins27, no capítulo inicial de seus ―princípios‖,
denominado de ―Primeiros princípios metafísicos da foronomia‖, sua consideração será
elaborada em série, de cinco definições. Estas que serão ―sobre o movimento da matéria no
espaço‖ (ibid.). Nesse momento podemos ver o surgimento da relação entre materialidade e
27
. Que fique clara a nossa leitura das idéias de Martins (2003) sobre a obra kantiana, especialmente nos
―Princípios‖. Como se trata apenas de um segmento para um encadeamento sumariado, suas observações e
citações foram de bom grado para nosso objetivo por ora.
45
o espaço seria apenas a forma de toda a intuição sensível externa (...). Em toda a
experiência, algo deve ser sentido e isso é o que há de real na intuição sensível;
portanto, também o espaço, em que devemos estabelecer a experiência dos
movimentos, deve ser suscetível de sensação, isto é ser designado pelo que pode
sentir-se; e este, enquanto complexo de todos os objetos da experiência e ele
próprio um objeto da mesma, chama-se espaço empírico. Mas, enquanto material,
também é móvel. Um espaço móvel, porém, se é que seu movimento se deve
percepcionar, supõe, por seu turno, um outro espaço material alargado, em que ele
é móvel, este (supõe) um outro, e assim por diante até o infinito (ibid.).
É de suma importância destacar a solução que Kant faz para poder dar corpo em sua
obra metafísica ao duplo espaço absoluto/relativo newtoniano. Sendo esse espaço absoluto
a priori (como vimos na ―primeira crítica‖ e no começo desta citação), ele deixa-se habitar
por um espaço em que os movimentos da própria experiência sensível lhe dão
materialidade. Esse espaço palpável de relações é um complexo e nesse sentido unido ao
absoluto tem-se sua porção relativa, o chamado por Kant de ―espaço empírico‖. A dicotomia
está posta em Kant, e a relação entre o imaterial infinito do espaço absoluto (a priori) e o
material do espaço empírico relativo (a posteriori) perpassarão ao pensamento da ciência
geográfica como seu objeto. Martins (2003, p. 58, grifos nossos) sintetizará esse ponto de
vista na frase, ―mediante o espaço absoluto, podemos nele pensar os espaços relativos, e,
por conseguinte, não devemos tomá-los como partes constitutivas do espaço absoluto‖.
Temos aí a percepção de que o espaço absoluto não pode ser apreendido como objeto,
mas coisa em si e anterior à existência; a partir dele podemos pensar cientificamente o
objeto material, que seria nosso espaço relativo. A Geografia científica herdará por meio
dessas acepções kantianas, e de sua prática letiva de ―Geografia física‖, as leituras das
dicotomias científicas: sujeito/objeto; homem/espaço (ou homem/meio); sociedade/natureza
(e também paisagem cultural/paisagem natural) – esta síntese perniciosa e linear tornar-se-
á a fórmula espaço→homem na Geografia científica.
Para Ribeiro (2006, p. 52), foi pela concepção de espaço cartesiano-newtoniano-
kantiano que,
46
sendo elaborado e cultivado bem antes do próprio Kant (o que vimos alhures trazido a Kant
por Newton) fora o filósofo alemão que lhe dará o corpo teórico definitivo, chegando até aos
dias de hoje na Geografia científica.
Esse espaço kantiano, do duplo absoluto/relativo, mesmo que não tão explícito como
no próprio Kant, irá permear quase toda a ciência geográfica, desde os ―primordiais‖
Humboldt e Ritter até chegarmos à Geografia ―radical-crítica‖, de influência marxista ou não,
como veremos posteriormente. Para Camargo (2005, p. 90), tal fenômeno ocorre ―porque a
efetiva ideia do espaço absoluto associa-se à própria concepção da lógica e, portanto, da
realidade‖; acrescentamos a este espaço absoluto o relativo, pois tanto as idéias de análises
regionais, diferenciação de áreas, paisagem cultural e espaço socialmente produzido, dão
ao absoluto as relações materiais que caracterizam a empiria deste a priori, que passa do
em si para o lógico.
Para repensarmos a gênese da Geografia moderna, devemos antes de adentrar em
Humboldt, Ritter e Hettner, averiguarmos as ―atuações em Geografia (física)‖ de Kant. Para
D. Santos, e concordamos com tal exposição, ―Kant é a marca da institucionalização do
discurso geográfico enquanto tal‖ (2002, p. 174), sendo nesse sentido ―lato sensu, o primeiro
responsável por sua institucionalização‖, no qual temos duas idéias do que seria essa
―institucionalização da ciência geográfica‖ (ibid., p. 183): 1) ―identificar os primeiro
movimentos na transformação da geografia em disciplina acadêmica‖; 2) ―evidenciar o fato
de ser Kant que, ao fazê-lo, procura identificar e sistematizar um corpo teórico metodológico
que dê à geografia um estatuto epistemológico específico‖ (ibid., nota do autor com número
14 no original).
Tais fatos serão expostos pelo texto reproduzido de seus cursos ministrados durante
as férias escolares, na Universidade de Königsberg na qual era professor de Filosofia e de
Geografia. Buscaremos, na breve análise da introdução deste texto, entender o porquê da
Geografia ter se tornado uma ciência do espaço, apreendendo-o em sua descrição lógica
em contrapartida de uma posição ontológica da realidade.
Neste texto, teremos as notas da atividade de docência do ―que hoje chamamos
‗geografia física‘‖ (MOREIRA, 1994, p. 23), mais precisamente na conferência introdutória da
qual Kant encarregar-se-á de contrastar História e Geografia sob o ponto de vista das
chamadas ciências sistemáticas, ―cada uma se definindo em termos de categorias e
fenômenos‖ (HARTSHORNE, 2006, p. 13). Kant propriamente não publicará essas notas de
aulas. Segundo Tatham (1959, p. 205), tais aulas foram ministradas ―de 1756 a 1796,
durante cujo período deu cursos quarenta e oito vezes‖ (no mínimo); sendo Kant em sua
prática o que de costume se trata como ―geógrafo de gabinete‖, e seus discursos não eram
sobre um debruçamento empírico da natureza Terrena e sim de ―pesquisa filosófica de todo
48
Assim nesse discurso de Kant, como explica D. Santos (2002, p. 184), ―identifica o
posicionamento do homem em contraposição ao posicionamento da Natureza, do mundo ou
da Terra‖, a dicotomia básica sendo reforçada na Geografia pela contraposição ―entre o
sujeito que pensa a si mesmo e o sujeito que identifica sua alteridade e, efetivamente, o
mundo, a natureza, é sua alteridade‖. Para confirmarmos tal externalidade, nada melhor que
as exposições do próprio Kant (2007, p. 122), vejamos:
28
. Para maiores detalhes sobre a publicação e traduções deste texto, consultar Arantes (2007, pp. 177-119). Os
comentários sobre a terminologia do texto por aqui apresentados encontram-se na nota do tradutor, página 121
no original.
49
Esse posicionamento de que a Geografia seria uma ciência cujo estudo é uma
preparação ao estudo de outra ciência (propedêutica ou essencial), inicia os caminhos
descritivos dessa ciência em germe. Martins (2003, p. 60) colocará também que ―Kant
desenvolve a preocupação de que é necessário que tenhamos uma perspectiva da
totalidade do mundo. (...) Pois crê que no sistema, o todo está entre as partes‖. Nesse
sentido vai formando-se um posicionamento enciclopédico descritivo na metodologia
geográfica, onde a experiência somente pode ser passada (ou narrada) através dessa
descrição da totalidade do mundo através das partes, por onde se encontra o todo. Temos
então aí a fatídica distinção das ciências descritivas: Geografia e História. Kant (2007, p.
124) então explica em uma observação que ―o discurso aqui é o do conhecimento do
mundo, logo, de uma descrição do conjunto da Terra. O nome geografia [Geographie] não
será tomado aqui, portanto, em nenhum significado diferente do habitual‖. Emerge no
discurso kantiano uma concatenação de classificação dos conhecimentos empíricos, de
acordo com o espaço ou o tempo.
Vai surgindo na exposição de Kant os conceitos de Geografia e História, no qual ―a
Geografia são notícias dos acontecimentos que passam um ao lado do outro no espaço.
Enfim, a História estabelece uma narrativa e a Geografia uma descrição‖ (MARTINS, 2003,
p. 61, grifos nossos). Nas palavras do próprio Kant:
mas nós podemos denominar ambas, história e geografia, do mesmo modo, como
uma descrição, mas com a diferença de que a primeira é uma descrição no tempo
[Zeit] e a segunda, uma descrição no espaço [Raume].
História e geografia ampliam, portanto, os nossos conhecimentos em relação ao
tempo e ao espaço. A história [Die Geschichte] se refere aos acontecimentos que,
em relação ao tempo, sucederam-se um após o outro [nacheinander]. A geografia
[Die Geographie] se refere aos fenômenos que, em relação ao espaço, acontecem
ao mesmo tempo [zu gleicher Zeit] (KANT, 2007, p. 125).
29
. ―Justifica-se assim o por que do filósofo relacionar o espaço com a categoria de quantidade. A quantidade
estabelece o movimento contínuo do ser num espaço, igualmente contínuo e invariável. O deslocamento
mecânico deve supor a invariância do ser e do espaço onde este se desloca‖ (MARTINS, 2003, p. 64).
30
. Porém existem possibilidades de leitura dos Geógrafos em todos os momentos que fujam a essa clausura do
espaço. Mas esta é uma proposta a ser averiguada em outro momento, o que por hora não interessa aos nossos
objetivos.
51
alemão, também responsável pelo assentamento científico da Geografia: Karl Ritter. Tal
ligação fora feita principalmente pelo método comparativo, adotado similarmente por ambos,
chamando atenção para a organização do pensamento geográfico baseada no legado
kantiano (LEAL, 2009, p. 4). Para Moreira (1993 e 2007), embora Humboldt e Ritter dessem
pesos diferentes para natureza e homem, atribuem à geografia uma totalidade das coisas
onde os homens vivem, entrecruzando assim os conceitos, que hoje são atuais, de espaço e
meio ambiente. Nas palavras de Tatham (1959, pp. 218-219), os dois alemães
diferenciavam-se bastante quanto ao âmbito de trabalho, no qual Humboldt trabalharia com
o sistemático (Geografia geral ou sistemática) e Ritter com a Geografia regional. Mas, seus
trabalhos se entrelaçavam, como um complemento, tendo juntos, empreendido quase que
um completo e moderno programa de Geografia.
O alemão Karl Ritter (1779 – 1859) tinha formação em Filosofia e História, sendo
também tutor de uma família de banqueiros, como podemos ver em Moraes (1993).
Recebeu assim, as bases de seus ensinamentos calcados nos princípios de Rosseau e
Pestalozzi. Nesse momento surgira o seu interesse pela Geografia, através do sistema de
Pestalozzi em ―despertar o entusiasmo pela natureza‖ (ibid., p. 207) em longos trabalhos de
campo. Outro elemento importante era o das ―relações espaciais‖,através das relações entre
as coisas, numa regionalização dos fenômenos distribuídos no espaço empírico; ia-se da
vizinhança imediata até o mundo inteiro. Tais ensinamentos ebuliram o ―espírito geográfico‖
em Ritter, que, como cita Andrade (1984, pp. 12-13), Ritter ―em seus cursos na Universidade
de Berlim, procurava fazer análises comparativas entre regiões diversas, procurando
explicar as formas de ocupação do espaço territorial‖. Tais fatores comparativos foram
advindos da base prática de formação deste Geógrafo tradicional. Demonstrou nesse
sentido a importância de métodos empíricos e comparativos na pesquisa geográfica.
Indicando ―o caminho da análise da relação do homem com o meio‖ (TATHAM, 1959, p.
212).
Fato interessante ao pensamento de Ritter é de uma não distinção clara entre
História e Geografia. E segundo Hartshorne (2006, p. 20), ―não faz nenhuma tentativa para
mudar a posição da Geografia em relação ao campo inteiro do conhecimento‖, expressando,
―muitas vezes, a comparação entre a Geografia e a História‖; tal fato faz lembrar alguma
influência kantiana, como nesta citação: ―assim, pois, a geografia e a história devem sempre
andar inseparáveis. A terra tem influência sobre os habitantes e estes últimos sobre a terra‖
(RITTER apud., TATHAM, 1959, p. 209). Mas a metodologia de análise ritteriana aborda um
aspecto que será perpassado para o campo da Geografia científica: o método comparativo.
Realmente se teria uma ciência corológica, deixando de lado uma ―corologia‖ que era mais
corográfica, enciclopédica ou catalográfica. Na metodologia de Ritter ―toda geografia que
ultrapassava a mera descrição tornava-se comparativa‖ (LEAL, 2009, p. 6); uma corologia
53
como uma análise comparada dos fenômenos em várias escalas do espaço empírico da
Terra. Ritter vê dessa forma uma totalidade entre o natural e o humano, mas, o porém, vem
tanto de sua formação antropológica quanto de sua concepção religiosa. A imbricação serve
para sistematizar o seu pensamento teleológico da natureza, onde ―ela existe com a
finalidade de servir ao homem‖ (MOREIRA, 1994, p. 26); nada muito diferenciado do
paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano de ciência. Desse modo que a obra elaborada
por Ritter difere da de Humboldt, pois no primeiro a atenção é voltada para o homem que
seria o senhor da natureza, faz parte de sua teleologia, já Humboldt buscava a
compreensão das relações entre a superfície terrestre e a atividade humana (CAMARGO,
2005, p. 93)31. Vejamos a seguinte exposição, que sumaria tal particularidade ritteriana.
31
. Encontra-se como nota do autor, nota 9 no original.
54
É perceptível então desde sua metodologia até sua prática de análise que Ritter
possui a influência clássica do espaço dicotômico absoluto/relativo herdado de Kant. As
relações espaciais empíricas sobre um espaço teleológico absoluto que deve ser estudado e
dominado pelo homem. Temos aí o imbricamento dos imbróglios: o paradigma baconiano-
cartesiano-newtoniano e a fórmula espaço→homem como objeto de estudo (e domínio!) da
Geografia científica. Tal ciência cumprirá seu papel de dominadora de um espaço que
logicamente sujeita o homem e o Geógrafo acadêmico.
Agora passemos para dois nomes que reforçarão a espaciologia, principalmente na
Geografia dita humana.
Iniciaremos então a segunda faze da sistematização ―moderna‖ da Geografia
científica, ou que irá tomando os ―ares‖ de ciência institucionalizada. Mais especificamente
com a composição de idéias dos atuantes no início do século XX Ratzel-La Blache-Hettner-
Hartshorne relatada por Moreira (1987, p. 14). Veremos que aos dois primeiros nomes,
temos muito mais do que a simples dicotomia epistemológica ―determinismo‖ (relativo a
Ratzel) e ―possibilismo‖ (La Blache), principalmente dos seguidores de suas dimensões
propositivas para a Geografia científica, como veremos sumariamente em Jean Brunhes e
Max. Sorre.
A relação que evidencia a passagem dos ideais ritterianos para Ratzel nessa
Geografia do século XX, está clara segundo Moreira (1994, pp. 29-32) dizendo que ―já existe
embrionariamente em seus antecessores, mais visivelmente em Ritter‖ as propostas
epistemológicas de constituição da Geografia como ciência. Mais a frente, o mesmo autor,
relacionará a conhecida ―teoria do espaço vital‖ ratzeliana com os ideais teóricos da
chamada ―geografia pura‖ (ou teleológica) de Ritter. Outro Geógrafo que encontrará
relações evidentes entre Ritter e Ratzel será Tatham. Em sua visão, no primeiro volume da
obra Antropogeographie de Ratzel, existe uma ―repetição do tema tratado por Ritter na
Erdkunde, e o próprio Ratzel salientou o fato de estar desenvolvendo as idéias de Ritter‖
(TATHAM, 1959, p. 223).
Para elucidarmos tais semelhanças, mostraremos através das próprias palavras de
Ratzel, algumas bases de suas propostas e constituintes do pensamento geográfico. Em
sua Antropogeographie, na ―evolução dos conceitos relativos à influência que as condições
naturais exercem sobre a humanidade‖, vemos uma admiração prévia a Ritter, que se
expressam assim: ―recordemos, na expressão escultural de Karl Ritter, ‗ser o Estado cingido
à natureza do seu território‘‖ (RATZEL, 1990, p. 33); ou, no segmento em que Ratzel dedica
32
. O texto ―A organização do espaço na superfície do globo e sua função na evolução histórica‖ encontra-se
disponível no sítio eletrônico: <//www.ufjf.br/nugea/files/2010/09/ritter.pdf>>.
55
exclusivamente a Ritter, destacando o mérito que este último teve em reforçar o ―laço
insolúvel‖ entre Geografia e História, dando abertura para um amplo campo de estudo na
Geografia científica. Mais adiante, vemos uma ligação das idéias de Ritter com as propostas
de espaço em Ratzel, vejamos a citação na íntegra:
Para concretizar ainda mais essa relação entre Ritter e Ratzel, nas ―tarefas e
métodos da geografia do homem‖, em relação ao método, Ratzel irá creditar suas idéias às
propostas ritterianas, no qual sua superação da natureza puramente descritiva da Geografia
daria um caráter sistemático a esta como ciência, sendo essa a ―verdadeira natureza da
geografia‖ (ibid., p. 96). O método, as propostas da natureza geográfica, e sua acepção de
espaço serão reformulados por Ratzel, principalmente em seus novos contextos e
metodologias.
Friedrich Ratzel (1844 – 1904), essa personalidade, também alemão e prussiano,
teve formação como naturalista, atraído que fora pelos ideais evolucionistas e seletivos
darwinianos trazidos para a discussão metodológica da vida nas ciências na segunda
metade do século XIX, porém, suas obras foram voltadas para as ditas humanidades (não
que fossem sem intervenção do evolucionismo seletivo e ―naturalizado‖), dos processos
civilizatórios e de suas relações história das populações humanas-história da Terra (a
relação fatos culturais-fatos telúricos), como cita Carvalho (2004, p. 72). A Geografia
ratzeliana será balizada no problema-chave da relação homem/natureza (perpassado como
homem/meio), atrelando assim à etnografia os princípios que justificassem a ecologia
evolucionista na sua aplicação social (o evolucionismo de disputa natural trazida para o
social – a sua ―naturalização‖ como supracitamos).
Dentro de seu contexto histórico-científico estava a leitura do sociólogo Herbert
Spencer da obra darwiniana A origem das espécies, no qual terá uma redução
(principalmente das ―leituras‖ feitas a partir desse dito ―evolucionismo‖) a um evolucionismo
linear da história, tanto da chamada natural quanto da social (atrelada somente ao humano).
Nesse momento a tão aclamada dicotomia homem/natureza tem uma ―harmoniosa‖ união,
mas como já citamos, somente para justificar e embasar cientificamente o modo de ser
capitalista em momento de engrandecimento como algo natural e que seleciona o mais
forte, apto e evoluído. Tais leituras foram feitas, sobretudo por Spencer e ―o nosso‖ Ratzel,
tratando a sociedade como um organismo perfeito e imutável de evolução linear e mecânica
56
33
. As bases das ideias contidas nesse parágrafo sintético encontram-se em Moreira (1994, p. 30). O mesmo
autor fará uma leitura das ideias de Darwin que concordamos plenamente e resolvemos aqui transcrever na
íntegra: ―A obra de Darwin coroa a prodigiosa evolução das ciências naturais, da biologia em particular, nos
séculos XVII ao XIX. Embora represente um salto extraordinário no conhecimento humano e na sua libertação
das influências escolásticas (religiosas) e idealistas, a obra de Darwin apóia-se numa visão mecânica da
evolução natural das espécies‖ (ibid.). Sendo assim, o evolucionismo mecânico competitivo naturalizado pelo
darwinismo spenceriano acaba por reforçar o criacionismo, numa camisa de força lógica onde a vida tem uma
finalidade e em ambas as explicações (tanto criacionistas como evolucionistas) o ―topo‖ de toda a cadeia da vida
seria a obra final, a magnum opus (divina ou natural): o homem. Nada melhor para coroar o pensamento
mecanicista cartesiano da natureza e da dádiva divina dada ao homem através da razão; agora, sabendo
cientificamente que ele é o ―mais evoluído‖ e que necessitam (é natural!) ter uma competição entre os povos do
mundo; não ouvimos nos esportes o velho lema: ―o importante é competir‖.
57
pensamento de Ratzel a noção do tão afamado ―espaço vital‖. Este ponto será privilégio de
sua Antropogeografia, a relação Estado e espaço, no qual elabora sua idéia de território que
representa as condições de trabalho e existência de uma sociedade, sua perda seria fatal
para a manutenção ou evolução de uma espécie. Nesse sentido o espaço seria ―vital‖.
Assim a Geografia do Homem de Ratzel abriu caminho para uma discussão do espaço em
seu aspecto histórico e político, porém, ―encravou‖ na camisa de força lógica do espaço
também a Geografia Humana que estava em germe nas suas propostas. Nas palavras de
Corrêa (2003, p. 18) ―o domínio do espaço transforma-se em elemento crucial na história do
Homem‖, no qual ―a preservação e ampliação do espaço vital‖ será a ―própria razão de ser
do Estado‖. Desse modo, ―o espaço transforma-se, assim, através da política, em território,
em conceito-chave da geografia‖34.
Temos então uma pequena fórmula através das propostas de Ratzel. Seria a
seguinte: espaço base para a vida→natural humanizado→território+espaço vital. Os dois
conceitos-chave da Geografia Humana moderna vão conformando-se através da acepção
de espaço moderno, como base para as formulações de algum saber que deseja tornar-se
científico. A clausura lógica do espaço que ―atenta‖ a Geografia científica através da fórmula
espaço→homem. Por isso se esse espaço é vital, não é somente ou como algo
ontologicamente vital que ele se realiza como modo de ser, mas sim como uma busca de
afirmação epistemológica para a Geografia, o espaço como estruturação do pensamento
geográfico científico; por isso, se remetermos à herança kantiana, temos que o espaço é
uma categoria de ordenação, como uma síntese ritteriana do espaço empírico.
Para confirmarmos, citaremos algumas passagens do próprio Ratzel sobre essa
clausura do espaço como ordenador do pensamento geográfico científico. Nos ―limites da
geografia do homem‖, sua proposição é bem clara, pois ―a geografia é base e premissa da
geografia do homem‖ (RATZEL, 1990, pp. 100-101); o que se encontra nas entrelinhas não
é o que está explícito na dicotomia Geografia Física/Geografia Humana, mas sim a
passagem do espaço base para a vida humana, o finito dado, como absoluto da natureza
passado e humanizado para o espaço vital e o território: o espaço empírico (relativo) dos
artefatos humanos. Na ―variedade das influências que a natureza exerce sobre o homem‖,
além de atrelar as relações evolucionistas competitivas tidas como naturais ao mundo
humano, reforça o que seria de caráter estritamente geográfico, e assim afirma a
espaciologia e seus conceitos-chave, vejamos: ―este estudo contempla uma questão de
espaço e é portanto um problema meramente geográfico. E, ao mesmo tempo, cabe à
34
. Camargo (2005, pp. 96-97), expõe brevemente a acepção do espaço vital, onde ―na concepção ratzeliana,
como o espaço da Terra nunca cresce, ou seja, é finito, ocorre um grande paradoxo, que se origina na luta por
espaço vitais, pois as nações se desenvolvem economicamente e, logo, tecnologicamente, tendem a querer
ampliar seus territórios. (...) O espaço vital passa a ser, então, uma área geográfica onde os povos são
representados por Estados que estão acima das classes sociais e que devem defender sua população contra os
inimigos comuns‖.
58
35
. Para verificarmos esse espaço superfície como um receptáculo pronto para a ocupação, vejamos o próprio La
Blache: ―Na base da geografia política há uma questão que podemos considerar capital - trata-se da repartição
das populações humanas na superfície terrestre. Nada é mais desigual: algumas partes relativamente restritas
do globo apresentam enormes aglomerações; a Índia e a China sozinhas compreendem perto da metade da
humanidade; são massas humanas cimentadas pelo tempo, contra as quais se exercem as guerras, as
60
epidemias e a fome. Ao contrário, existem vastos espaços novos que o homem, numericamente, mal começou a
ocupar‖ (LA BLACHE, 2002, p. 89).
36
. Podemos tomar esse sentido, pois nas palavras de Aldo Silva (2004, p. 145), ―a noção de meio, que compõe o
arcabouço teórico de Vidal, não pode ser entendida sem a noção de ação humana (...), a natureza torna-se
‗meio‘ à medida que a ação humana intervém em sua dinâmica. Nesse sentido, a noção de meio está
relacionada com a intervenção humana, que lhe dá uma forma particular‖.
61
amplo, na busca de uma teoria geral em geografia, uma Geografia Geral de caráter
metodológico (MORAES, 1993). O seu trabalho de 1939 supracitado, fora mundialmente
discutido, tratando longamente o processo do pensamento geográfico, abordando em
especial a ―escola alemã‖.
Nas palavras de Corrêa (2003, p. 18), o trabalho de 1939 sobre a natureza da
Geografia ―por sua vez, admite que conceitos espaciais são de fundamental importância
para a geografia, sendo tarefa dos geógrafos descrever e analisar a interação e integração
de fenômenos em termos de espaço‖. Nesse sentido, caberia à análise geográfica dos
diferentes espaços através da descrição de seus elementos singulares, interconectando o
físico e o humano. Reafirma-se a Geografia como uma ciência de síntese, no qual o espaço
absoluto (isotrópico, continente) seria onde as relações ocorreriam (o espaço relativo).
Assim a ciência geográfica teria o caráter ―de perceber a localização espacial e a sua
distribuição‖ (CAMARGO, 2005, p. 98). Tal inspiração de Hartshorne viera de Hettner em
segmento às idéias de Kant, como observado claramente em seu artigo de 1958
conceituando a ―Geografia como uma ciência do espaço, de Kant e Humboldt para Hettner‖
(HARTSHORNE, 2006). Nesse artigo o geógrafo norte-americano buscará a afirmação para
suas idéias das características intrínseca da Geografia, dando os contornos finais nas
acepções de Hettner, onde ―esse conceito não pode ser considerado como uma invenção de
um homem qualquer‖, mas como um ―reconhecimento consciente da incontável quantidade
de geógrafos que procuraram uma estrutura comum de referência para seus trabalhos‖
(ibid., p. 32).
Agora buscaremos o terceiro trabalho, em que Hartshorne fará a síntese
metodológica de suas propostas para a ciência Geográfica e seu objeto. Trata-se da obra de
1959 intitulada de Perspectives on the nature of Geography, que terá sua tradução de 1978
com o título ―Propósitos e natureza da Geografia‖. Segundo Moraes (1993, p. 87), será
apresentado por Hartshorne ―o conteúdo final de sua proposta. Esta vai ser a última
tentativa de agilizar a Geografia Tradicional, mantendo-lhe a essência de busca de um
conhecimento unitário, e dando-lhe uma versão mais moderna‖. Em nota à edição brasileira
que utilizaremos, Armando C. da Silva alerta que em seu trabalho, Hartshorne tem uma
concepção singular do objeto, visto através do método, colocando o problema do espaço e
do lugar, consubstanciados na idéia de área.
Nos primórdios de seu tratado sobre a natureza da Geografia, um entendimento é
cabal: ―o propósito da Geografia consiste em buscar a compreensão do caráter variável das
áreas‖ (HARTSHORNE, 1978, p. 22). A este aporte de método emerge o conceito de
―superfície terrestre‖, adotando uma idéia próxima a considerada por Carol, de ―crosta da
terra‖, através da integração dos cinco domínios diferentes: litosfera, hidrosfera, atmosfera,
biosfera, antroposfera – a sua síntese seria a ―geosfera‖ enquanto realidade concreta. Assim
64
temos a dicotomia afirmada, das variações de áreas (o espaço absoluto) versus a geosfera
(enquanto espaço relativo), no qual a Geografia tem como importância primordial a
―obtenção de conhecimentos sobre o espaço exterior‖ (ibid., p. 26). Esta será ―a meta da
Geografia‖, numa ―compreensão da superfície da terra‖ como ciência de síntese dos
fenômenos inter-relacionados (ibid., p. 38).
Essa combinação integrada de fenômenos inter-relacionados no mesmo lugar e
através do espaço será medida na Geografia pela significância, ou importância, humana. A
Geografia é uma ciência antropocêntrica, pois construída por entes humanos. Isto faz
Hartshorne afirmar que ―o objeto da Geografia, o mundo – até mesmo nas partes desse
mundo em que não há homens – é encarado como o mundo do homem‖ (ibid., pp. 47-48).
Tal afirmação é altamente sintética e esclarecedora, reafirma o paradigma secular
(moderno) de ciência como antropocêntrica e dominadora da ―natureza‖ (externa e interna –
da própria humanidade), além de condensar na acepção do objeto da Geografia o ―mundo
do homem‖, este não seria o espaço geográfico como produto humano? Não seria o objeto
atual da Geografia? Assim temos a medida humana em Geografia humana através desse
objeto, onde se transpõe da dicotomia absoluto/relativo para a produção humana a idéia de
espaço externo, uma camisa de força científica37.
Ao final de sua obra, Hartshorne se pergunta e induz-se a responder qual tipo de
ciência é a Geografia. E dessa forma chega à síntese de seus problemas, dos quais citamos
alguns; seria assim: ―o estudo que busca proporcionar a descrição científica da terra como o
mundo do homem‖ (ibid., p. 181), uma descrição cognitiva dos fenômenos espaciais, sejam
eles ―naturais‖ ou humanos, pois estão consubstanciados no conceito de mundo do homem.
A Geografia se define como ciência descritiva, corológica e antropocêntrica. Tal corologia
lógica daria o lugar da Geografia na classificação das ciências; no estudo das relações
através do espaço, neste ―mundo extraordinariamente variado que é a morada do homem e
o único espaço que ele é capaz de observar diretamente a maravilhosa diversidade dos
seres vivos‖ (ibid., p. 185). Temos aí o espaço enquanto morada do homem, alguma
coincidência com o discurso contemporâneo, mesmo na chamada ruptura ―radical-crítica‖?
No discurso metodológico de Hartshorne se conforma a Geografia dentre as ciências
do espaço, corológica, estudando a superfície terrestre com os fenômenos tendo valor para
o homem numa concatenação espacial lógica. Este é ―o complexo mundo da superfície da
terra‖, o seu método geográfico de análise: a ―compreensão e interpretação das variações
espaciais de lugar a lugar‖ (ibid., pp. 191-192). Então acreditamos que uma análise do
espaço geográfico pode ser crítica por ser lógica, e por termos a segurança científica de um
37
. Como não apreendermos isto através da proposta de Hartshorne (1978, p. 51, grifos nossos): ―a Geografia é a
disciplina que procura descrever e interpretar o caráter variável da terra, de lugar a lugar, como o mundo do
homem‖.
65
objeto de estudo. Não será mais uma prisão do objeto e da ciência contra a crítica e a
mudança do sujeito? Não buscando dar respostas fechadas e prontas prosseguimos para
ver se realmente este espaço não é uma ―camisa de força‖ para a Geografia científica.
Antes de darmos prosseguimento à ruptura metodológica da Geografia científica,
abarcaremos dois nomes de grande importância no tratamento da Geografia Humana: Jean
Brunhes e Max. Sorre (ambos da Geografia tradicional francesa). O que citaremos
brevemente será a relação do discurso com o espaço e a Geografia enquanto ciência,
demonstrando que nessa vertente ―humana‖ da Geografia a análise do espaço será algo
que se reafirmará com o tempo.
Jean Brunhes (1869 – 1930), fora um dos seguidores da proposta de Geografia
Humana lablacheana, desenvolvendo ―propostas próprias de definição do objeto‖. E em sua
maior obra ―Geografia Humana‖, fizera a proposta de uma ―classificação positiva dos fatos
geográficos‖ (MORAES, 1993, p. 74). Tal proposta será a fonte das críticas de M. Santos
(1978), que relaciona a obra de Brunhes ao positivismo marxista; da leitura do geógrafo
francês no fim do século XIX das obras de Marx entrelaçado com o positivismo, na busca de
creditar a Geografia enquanto ciência. Porém, em nossa leitura, não encontramos somente
essas problemáticas ressaltadas por M. Santos. Além de uma visão complexa do fenômeno
geográfico (através do princípio de conexão) temos uma pequena ligação do discurso de
Brunhes atrelada ao espaço enquanto conceito. Porém, em sua obra resumida, na última
seção, destinada ao ―espírito geográfico‖, encontramos lá uma breve discussão espacial;
não somente atrelado ao termo espaço, mas de suas características, como foram traçadas
cientificamente.
Na busca da adaptação humana às condições geográficas, nas palavras de Brunhes,
―alguns fatos geográficos vêm a ser, cada vez mais, os senhores absolutos do homem. Tais
fatos, que tendem a influenciar cada vez mais o destino dos grupos humanos – estes fatores
tirânicos da Geografia Humana do futuro‖ (BRUNHES, 1962, p. 446). No afã epistemológico
de Brunhes, tais fatos são os seguintes: o espaço; a distância; a diferença de nível. Brunhes
irá definir espaço como a superfície ocupada, mas também por ocupar, como base correlata
material na conquista do espaço. Tal acepção aproxima-se do ―espaço vital‖ ratzeliano,
porém com outras conotações. A distância seria o obstáculo a ser vencido; a diferença de
nível seria a tradução da luta econômica das sociedades, das suas riquezas em potencial a
serem conquistadas.
Podemos resumir a idéia, que chamamos espacial, de Brunhes na seguinte
expressão: ―o espaço, a distancia, a diferença de nível são condições e fatores do trabalho e
do povoamento humano (...) e não tomam lugar na geografia do homem, a não ser quando
animados pelo espírito do homem e entrosados com a nossa vida‖ (ibid., p. 448). O que
desejamos resumir é que Brunhes irá dar alguns indícios do que apreendemos com o
66
Para frisarmos a ideia de que em Sorre, mesmo que com discussões sociais e
ecológicas dos fenômenos humanos, a base de sua proposição é de ―uma ciência dos
lugares‖ está em sua introdução de L‟homme sur La terre, onde ―entre as ciências da
natureza e do homem nenhuma outra situa em primeiro plano a localização dos fenômenos.
A Geografia é a disciplina dos espaços terrestres. Sua originalidade reside na natureza dos
objetos que descreve‖ (SORRE, 2003, p. 138, grifos nossos). Assim o pensamento da
Geografia como uma ciência social humana em Sorre dá-se pela união dessa acepção
espacial com o homem habitante, temos o espaço ecumênico, habitado (a morada do
homem). A inter-relação homem-espaço geográfico é sumariada na expressão: ―o ecúmeno
incorporou espaços proibidos aos homens‖ (ibid., p. 143); estes espaços enquanto
localização e configuração remetem ao espaço geográfico, agora incorporado ou
transformado pelo homem em sua morada, o espaço ecumênico (humanizado). A Geografia
Humana enquanto parte da Geografia Geral tratando da distribuição humana no espaço
superfície (geográfico), tratará de descrever cientificamente o espaço humanizado
(ecúmeno) – não é esta a herança que parecemos ter mesmo hoje com a ―adoção‖ de uma
postura mais ―crítica‖, de descrever o espaço geográfico produzido? Isto se encontra
embrionário em Sorre, no sentido de ―que as características essenciais da espécie humana
atuam em uma diversidade de meios, que se transformam com a diversidade dos modos de
vida, para desembocar na formação das paisagens humanas, isto é, no ecúmeno‖ (ibid., p.
141).
Fechamos nesse momento a Geografia Clássica e suas influências espaciais, com
Brunhes e Sorre tendo uma relação bem próxima com o que apreendemos hoje como o
conceito de espaço geográfico (mesmo que suas obras não sejam muito divulgadas, mas
como veremos, através de suas leituras chegaram até nós com outra ―roupagem‖). Agora
veremos rapidamente os movimentos de transformação na Geografia científica; de um lado
uma vertente chamada de ―pragmática‖ (da Geografia quantitativa e da Humanística), de
outro a vertente ―radical-crítica‖, com o que temos de mais usual atualmente na
epistemologia do espaço geográfico.
No primeiro momento dessa ―ruptura‖ encontramos a chamada ―geografia teorético-
quantitativa‖. Tal nomenclatura fora contestada por Moraes (1993, p. 105), pois atribui o
termo ―teorética‖ a má tradução do termo inglês ―theoretical‖, que remete ao teórico, então
temos o movimento do que tratamos como ―Geografia teórico-quantitativa‖. Seu movimento
fora intensificado nas décadas de 1950 e 1960, balizado nas idéias propositivas do
positivismo lógico, ou neopositivismo38; trazendo assim mudanças bruscas ao método
38
. O positivismo lógico fora um dos movimentos mais importantes do pensamento filosófico analítico, conhecido
também por ―neopositivismo‖ e por ―empirismo lógico‖. Tendo surgido nos anos 1920 com o Círculo de Viena, o
positivismo lógico manteve uma vasta influência durante cerca de trinta anos (influenciando assim o novo
68
movimento geográfico dos anos 1950). Os elementos deste movimento, unidos por uma postura radicalmente
empirista e anti-metafísica (apresentada como a ―concepção científica do mundo‖), procuraram revolucionar a
filosofia através do uso dos recursos da lógica simbólica na análise da linguagem científica – assim fora atribuído
ao novo pensamento na Geografia cientifica uma ―verdadeira‖ ciência, pois calcada em tais parâmetros vigentes.
69
segundo tratará o espaço relativo, como relação entre os objetos; já Bunge analisaria os
fenômenos sociais e naturais pelo viés espacial comum. Essa acepção de Geografia como
ciência do espaço fornece uma idéia falsa de unidade. O espaço geográfico seria
representado pela matriz topológica do grafo, uma representação lógica não-ontológica.
Algo ainda como uma clausura de nosso modo de pensar; porque não um modo de ser,
vivido.
Dois autores podem servir de exemplo para essa acepção espacial da Geografia
teórico-quantitativa. O primeiro é Taaffe, que em seu artigo irá propor uma ―visão espacial
em conjunto‖, fazendo uma análise desde a visão ―homem-terra‖, passando pelo ―estudo de
área‖ até a ―visão espacial‖. Tal perspectiva é reforçada por Taaffe (1975, p. 19) na seguinte
afirmativa: ―atualmente, no início da década de setenta, a força e o momentum da visão
espacial é nítida no volume contínuo, diversidade e relativamente alta qualidade do trabalho
teorético, descritivo e matemático‖. Porém, é do Geógrafo francês Paul Claval, numa
contribuição não muito comentada da Geografia teórico-quantitativa39. Seu trabalho é
intitulado de ―A nova Geografia‖, lançado em Frances no ano de 1977. Utilizaremos a versão
portuguesa do ano de 1982 para apontar algumas questões pertinentes ao que já
verificamos na acepção de Geografia relacionada ao espaço lógico (geográfico).
No capítulo três de sua obra, Claval irá tratar dos fundamentos teóricos referentes ao
homem, a sociedade e ao espaço, explicando que ―a nova geografia debruça-se sobre o
papel do espaço na vida de cada um e no funcionamento da sociedade‖, no qual ―a
organização do espaço traduz o jogo destes factores‖, complementando sintéticamente que
―a teoria geográfica determina as dimensões espaciais da acção humana e dos mecanismos
de ajustamento das vontades sem os quais a vida social seria impossível‖ (CLAVAL, 1982,
p. 57). Nos subitens de número um e dois desse capítulo, o Geógrafo francês irá tratar de
forma direta, literalmente, o indivíduo e a sociedade como estando no espaço, e não como
sendo espaço. A fórmula epistemológica espaço→homem na Geografia científica já está
sendo cimentada, agora a formulação para apreender o homem e a sociedade humana é
pela ―prisão espacial‖, onde tal sociedade encontra-se arranjada. Vejamos os exemplos.
Primeiro: ―o universo em que o homem se desloca é limitado (...). o individuo opta no espaço
que a sua experiência anterior lhe fez conhecer‖; cabendo assim ao Geógrafo, ―interessado
em compreender a organização do espaço, a interrogar a sociedade‖ (ibid., pp. 64-68).
Quanto à sociedade no espaço, temos que estudar a sociedade e sua organização espacial,
através do qual ―o geógrafo define o papel do espaço neste funcionamento‖ (ibid., p. 77).
39
. O autor assume ter trabalhado com a chamada ―Nova Geografia‖ na década de 1960, em uma entrevista
concedida à Revista eletrônica dos estudantes de Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina:
Expressões Geográficas em novembro de 2008.
70
objeto lógico. Serão ―ideias a respeito do espaço e do lugar‖ (TUAN, 1982, p.144, grifos
nossos). Em Buttimer podemos perceber uma grande tendência ao espaço social, com
grande influência de Sorre (BUTTIMER, 1986), ou de uma ―experiência humana do espaço‖
(BUTTIMER, 1982, p. 173). Vejamos os termos, mesmo o foco humano ter sido aumentado,
tal proposta ainda é presa à lógica (idéia) e ao espaço (espaço vivido e social, e lugar); a
fórmula espaço→homem se mantém, mesmo que de forma tênue. Vejamos o que isto irá
ser encontrado também na chamada Geografia ―radical-crítica‖.
A tendência de uma nova ruptura contra as bases e paradigmas científicos vigentes
é o nosso último patamar de análise sobre o espaço, como objeto geográfico por excelência.
Apesar da maior contribuição dada a Geografia científica, em nosso ponto de vista, através
da postura de julgamento ideológico, de engajamento político e de contestação ao
cientificismo; este novo movimento (não único, mas de um corpo geral de questionamento
social e interno da própria Geografia) também se depara com a fórmula espaço→homem,
pois apesar de sua proposta crítica da sociedade burguesa a reformulação se dá no corpo
metodológico de uma ciência, que tem até então o espaço como objeto. A reformulação
deste objeto faz-se urgente no sentido de uma mudança do real social e do teórico
concebido; este espaço (objeto) fora reformulado para dar cabo das propostas críticas de
apreensão e mudança do mundo, tal qual estava sendo reproduzido. Nesse sentido
partiremos para uma sumariada averiguação de como algumas dessas bases foram sendo
reformuladas e também reproduzidas.
Elegemos a terminologia Geografia ―radical-crítica‖ (entre aspas, pois não se
formulou um consenso genérico sobre esta postura, devido seus diferentes parâmetros de
interpretação crítica), pois relaciona a ―tendência esquerdista e a postura contestatória de
seus praticantes‖ (CHRISTOFOLETTI, 1982, p. 26), com a postura de cunho metodológico
de elaboração marxiana, crítica à sociedade vigente e suas conjunturas atuais, e ao
paradigma científico da própria Geografia até então. A ―ruptura‖ científica fora dada às duas
tendências até então atreladas à Geografia: a Geografia tradicional e a Geografia teórico-
quantitativa. E juntos na busca desta mudança estavam geógrafos tanto marxistas quanto
não-marxistas (CORRÊA, 2003). O período do movimento é processual, onde foram
percorridas as décadas de 1960 (algumas irrupções radicais), de 1970 (com o amalgamento
crítico), e de 1980 em diante (período relativo às mudanças brasileiras).
Na década de 1960, a proposta será mais voltada para as mudanças nos ―ares‖ da
Geografia tradicional francesa, principalmente com o grupo, que intitulará um livro
homônimo, da Geografia ativa; principalmente dos autores Pierre George e Yves Lacoste.
Embora George tenha introduzido ―pioneiramente alguns conceitos marxistas na discussão
geográfica‖ (MORAES, 1993, p. 119), sua abordagem não será próxima da que se
desenvolverá pós-década de 1970. Seu capítulo na obra supracitada, intitulado ―Problemas,
72
pensado, apreendido, lógico. Porém, agora com a função política de criticar o espaço real-
vivido, mas, mesmo assim temos as relações vistas na Geografia científica. Outra influencia
de Lacoste seria a inauguração da revista Hérodote, editada desde 197642.
As influencias da década de 1970 foram mais amplas e serão calcadas além das
propostas de Marx e Engels, em pensamentos externos à Geografia, como Manuel Castells
e Henri Lefebvre. Castells com sua obra de 1975 A questão urbana fará um longo debate
atrelando à estrutura urbana o debate sobre a teoria do espaço. As propostas de espaço
como produto material humano e como estrutura organizada, serão expressas
sinteticamente como a ―organização social do espaço‖ (CASTELLS, 1983, p. 158). Além
desse debate, estava em voga a descoberta do importante filósofo marxista acerca da
discussão do espaço: era Henri Lefebvre. A sua leitura marxista de certo modo também
influenciou a busca aos clássicos de Marx e Engels, assim como outras leituras clássicas da
teoria marxiana. Livros como A revolução urbana e A cidade do capital, apontam para a
discussão urbana do espaço, mas seu principal trabalho será A produção do espaço, de
1974. Nele serão desenvolvidas as idéias contidas no Espaço e política, sobre ―essa teoria
do espaço social‖ (LEFEBVRE, 2008, p. 17), no que o filósofo pretendia como uma ―ciência
do espaço‖ através do método da ―economia política do espaço‖. Assim que a Geografia de
cunho ―radical-crítico‖ vai reformulando suas bases, e vemos surgir dentre as influências de
Castells e Lefebvre trabalhos como o de Bunge em 1971, Anderson em 1973 (publicado no
Brasil em 1977), e Peet em 1978. Porém, temos duas fundamentais ebulições internas na
Geografia: o trabalho A justiça social e a cidade de David Harvey em 1973 e Por uma
geografia nova de Milton Santos de 1978. A grande curiosidade está em Harvey, por dois
motivos, o primeiro por ele ter participado da chamada ―Geografia teórico-quantitativa‖ e
segundo por ter sido ele ―o precursor na análise do ‗espaço criado... como o princípio
supremo da organização geográfica‘‖ (SMITH, 1988, p. 139). A leitura de Harvey é
justamente através da dicotomia absoluto/relativo, no qual o espaço criado (produzido, ou
humanizado) domina o espaço efetivo (físico, ou a natureza dada). O que podemos ver é um
aprisionamento no debate geográfico, e até não estritamente, em Harvey ao espaço43. Mas
isso não foge muito ao que vimos em M. Santos.
Milton Santos irá construir em Por uma geografia nova uma sistematização de ideias
em que ele irá levar e desmembrar para toda vida, assim como a cooptação da chamada
Geografia ―radical-crítica‖ brasileira de tal discurso. Desde o início da década de 1970, M.
42
. Ver também no sítio: <www.herodote.org>.
43
. Em três livros amplamente divulgados mais recentemente por Harvey, A condição pós-moderna (1989);
Espaços de esperança (2000); e A produção capitalista do espaço (2001), a prisão espacial está presente em
alguns de seus temas. No primeiro, expressa ideias de experiência espacial e compressão espaço-tempo (esta
amplamente difundida), no segundo constrói seu discurso através do que poderiam ser espaço utópicos de
esperança urbanos, e no último trata da produção da organização através da dicotomia processo social e infra-
estrutura física, um teoria em busca sempre do ajuste espacial.
74
Santos trabalhara com a questão relativa ao espaço. De 1975 é seu artigo ―Espaço e
dominação‖ de cunho marxista e descobridor das idéias lefebvreanas. Em 1977 publica na
Antipode o altamente difundido artigo ―Sociedade e espaço‖, de onde podemos trazer a
citação: ―o espaço é a matéria trabalhada por excelência. Nenhum dos objetos sociais tem
uma tamanha imposição sobre o homem, nenhum está tão presente no cotidiano dos
indivíduos‖ (SANTOS, M., 1977, p. 18, grifos nossos). Grifamos aqui justamente para
mostrar a relação entre espaço e produção social, e a sobredeterminação do objeto (tanto
do conhecimento, através dessa própria idéia difundida, quanto do ―real‖) em relação ao
sujeito. No seu livro coletânea de artigos Pensando o espaço do homem, temos ―Da
sociedade à paisagem‖ de 1978, no qual irá dar os primeiros passos em prol das categorias
espaciais, como forma, função e estrutura; além de propor uma epistemologia do espaço
(SANTOS, M., 2004), aquilo que seria uma espaciologia, ou o papel da Geografia enquanto
ciencia do espaço. Em sua obra máxima de 1978, Por uma geografia nova, irá atrelar à
problemática científica da Geografia a sua ―viuvez do espaço‖, pois ―é por isso que tantos
geógrafos discutem tanto sobre a geografia – uma palavra cada vez mais vazia de conteúdo
– e quase nunca do espaço como sendo o objeto, o conteúdo da disciplina geográfica‖
(SANTOS, M., 1978, p. 91, grifos nossos). Os grifos somente reforçam o que fora também
grifado na citação anterior. No prosseguimento de sua obra irá tratar de reconstruir o seu
conceito de espaço, como social, o espaço humanizado, sendo este o espaço geográfico, ou
de interesse da Geografia. Assim define também este espaço tanto como um fator social
como uma instância, um condicionante condicionado, através do qual o último de uma
instância como uma estrutura ou o espaço organizado será altamente perigoso no que se
relaciona com a sobredeterminação, ou na fórmula que aprisiona o homem ao espaço.
Essa problemática surge sutilmente em duas ocasiões. Primeiro no artigo ―O espaço
como categoria filosófica‖, onde irá expor que ―o espaço é uma estrutura social dotada de
um dinamismo próprio e revestida de uma certa autonomia, na medida em que sua evolução
se faz segundo leis que lhe são próprias‖ (SANTOS, M., 1988, p. 15, grifos nossos), ou de
seu livro Espaço e método, no qual trata o homem como um ―elemento do espaço‖, assim
como as firmas, as instituições, o meio ecológico e as infra-estruturas (SANTOS, M., 1985,
p. 6). Afinal o homem está submetido às leis externas a ele como nas propostas de
Descartes a Newton? O espaço é algo que é dominador do homem, possuindo um caráter
de entidade acima do mundo e por isso coloca a humanidade como simples elemento seu,
apartado existencialmente? São questões que parecem envolver mais uma problemática de
definição lógica do que ontológica e este parece ser o maior imbróglio para a acepção de
espaço: o não tratamento ontológico. O que M. Santos tentara fazer em sua Natureza do
espaço fora um resgate tardio, com discussões menos dicotômicas, mas que não dão cabo
75
(ou não deram tempo de dar por seu falecimento) do espaço ontológico; este espaço
continua sendo lógico.
Na Geografia brasileira, especificamente, tivemos alguns movimentos de renovação.
Moreira (2007) irá dar como exemplo o 3º. ENG de 1978 junto ao Por uma geografia nova
de M. Santos. Podemos perceber também nos textos do livro organizado pro Moreira,
Geografia: teoria e crítica de 1982, assim como outra organização, essa de M. Santos,
também de 1982, Novos rumos da geografia brasileira44. No livro organizado por Moreira
encontramos textos ―clássicos‖, inclusive um dos que demonstram a concatenação de suas
próprias idéias. O seu ―A geografia serve para desvendar máscaras sociais‖, Moreira (1982)
irá tratar o espaço como o objeto da geografia, ou seu ―chão‖, porém como a Geografia é
uma ciencia social tal espaço é socialmente produzido: um espaço social. Moreira traz à
baila a idéia de espaço como instância e seus arranjos espaciais, semelhante às idéias
(como vimos até certo ponto perigosas) de M. Santos. É dessa coletânea o texto de Porto-
Gonçalves enaltecendo a Geografia por seu movimento de crise e de postura crítica. Seu
posicionamento é contagiado pelo momento nas suas palavras: ―torna-se, portanto, mais
que necessário pensar o objeto da geografia. O espaço deve ocupar o centro dos debates
dos geógrafos‖ (PORTO-GONÇALVES, 1982, p. 110). O posicionamento desses dois
autores, ícones do movimento brasileiro de renovação, demonstra a centralidade de se
redefinir o espaço epistemológico para poder se combater o real social. Atualmente a
postura de ambos é contrária a este ponto de vista, tanto que reutilizaremos os mesmos na
releitura que faremos dos clássicos, pois os colocamos nessa categoria por motivos que
explicitaremos depois. Por hora, mesmo sabendo que existem inúmeros exemplos
nacionais45 dessa espaciologia, ficamos por aqui, somente dando mais três exemplos da
Geografia que dará prosseguimento aos pensamentos de Harvey.
Soja será o principal seguidor das ideias propostas por Harvey em sua obra
Geografias pós-modernas. O geógrafo irá relacionar Geografia com espaço, História com
tempo, logo em seus primeiros apontamentos do trabalho; algo próximo da herança kantiana
44
. Para uma perspectiva mais ampla desse processo de renovação na Geografia brasileira consultar o artigo de
Armando C. da Silva (1983), intitulado ―A renovação geográfica no Brasil – 1976/1983 (as geografias crítica e
radical em uma perspectiva teórica)‖. É curioso constatar, em estudo sobre as categorias de análise utilizadas no
período por Silva, que os termos: espaço, espaço geográfico, arranjo espacial, forma espacial, formação
espacial, organização espacial, espaço social, espaço produzido, espaço-tempo e produção do espaço, ganham
conotações relevantes no debate crítico; por ser uma reformulação do conceito de espaço, que apesar da crítica
muitas vezes contundente, acaba por ser uma teoria em volta dela mesma.
45
. Podemos citar o texto do livro organizado por Moreira, de M. Santos, ―Marxismo e subdesenvolvimento‖, no
qual o autor coloca as relações entre a Geografia (entendida por ele como espaço) e marxismo. O texto de
Moreira, no livro organizado por M. Santos os Novos rumos..., numa continuação das análises teóricas sobre os
arranjos espaciais; ou, no texto de Corrêa voltado especificamente para o espaço geográfico através de sua
própria leitura, dado a grande importância que este termo alcançou no debate geográfico. Corrêa (2003)
retomaria a centralidade do espaço em seu artigo ―Espaço, um conceito-chave para a Geografia‖, demonstrando
as diferentes leituras espaciais pelas correntes da Geografia científica. Andrade (1984), outro nome importante
para a Geografia brasileira, também teorizará sobre o espaço geográfico, caracterizando-o como produto da
ação humana, sendo necessária para a Geografia a análise da ação humana do processo de produção do
espaço geográfico no modo de produção capitalista.
76
que vimos alhures. Além desta correlação, Soja reafirmará o debate lefebvreano em relação
com Harvey, do espaço criado diretamente inter-relacionado com a base social da produção
deste espaço. O espaço como uma materialidade externa ao homem, sua produção social
que o aprisiona, pois ―o espaço socialmente produzido é uma estrutura criada‖ (SOJA, 1993,
p. 101). O outro autor é Smith, que em uma única frase elucida-nos sobre sua acepção de
espaço geográfico, que embora tenha uma postura crítica quanto à construção social do
conceito (e não somente material), acaba por aderindo ao debate pelas heranças que sofre
de Harvey. Então a sua ―preocupação é com o espaço geográfico que podemos considerar,
no seu sentido mais geral, como o espaço da atividade humana, desde o espaço
arquitetural, numa escala mais baixa, até a escala de toda a superfície da Terra‖ (SMITH,
1988, p. 110). Veremos que também Soja e Smith, assim como o precursor Harvey, têm
idéias que podem ser exploradas de forma fecunda pela nossa proposta ontológica e não
meramente espacial ou de definição científica, mas, acima de tudo de cunho crítico.
O espaço é realmente o objeto de estudo da Geografia científica? Devemos
realmente nos prender a essa incessante definição meramente conceitual (discutir em
pormenores o que é o objeto ou sujeito geográfico) ou realmente mudarmos o que
discordamos, ou ajudarmos pelo menos mudando a nós mesmos? A Geografia deve ser a
perpetuação desta ―espaciologia‖, como alarmava Souza (1988)46, onde há claramente uma
sobredeterminação do objeto para com o sujeito? As respostas não são fáceis de serem
dadas, principalmente porque ―descobre-se agora que não é tão fácil falar do sujeito na
geografia‖ (MOREIRA, 2007, p. 33). O espaço sempre aparecera perigosamente com o
papel de sujeito. Este é o real fetiche, científico, do espaço – e será que transformado em
senso comum? –, no qual tal sujeito, o homem, aparece sujeitado ao que ele chama de
objeto, o espaço geográfico, que nada mais é do que o espaço lógico (de uma proposta
epistemológica secular). Cabe discutir uma questão ou um objeto geográfico em meio a
tantos problemas de inúmeras ordens, na maior parte causada pela forma como se conduziu
a humanidade? Afinal o aspecto antropocêntrico de estranhamento da humanidade (a
externalização entre o que o homem se considera para com a sua acepção paradigmática
de ―natureza‖) não conduz a esse entendimento ou mudança, pois sabemos que o mundo
não é divinamente posto ao nosso serviço, e justificável pela ciência47. Não pretendemos
aqui dar prosseguimento a este imbróglio lógico do espaço geográfico, porque assim como
46
. Marcelo Lopes de Souza em seu artigo fará uma crítica contundente a esta incessante tendência dos
geógrafos de serem ―cientistas espaciais‖ – os ―espaciólogos‖. Concordamos com Souza no sentido de que o
espaço aparece muitas vezes ―para os espaciólogos e alguns outros, contudo, esse palco é ao mesmo tempo
‗ator‘‖, assim, ―o Espaço interfere no devir dos homens‖ segundo esta proposta (SOUZA, 1988, p. 23).
47
. A problemática aqui não é de Fé em divindade ou não, mas sim do paradigma instituído através da civilização
ocidental através do qual a concepção de Deus e a institucionalização da ciência se inter-relacionaram para as
justificativas que observamos no senso público comum – seja para ratificar o que já fora praticado, seja para
embasar o que deverá ser feito; através de um antropocentrismo sem precedentes, que assola o que o próprio
Homem elegeu como Natureza (tudo o que lhe é oposto).
77
Silva (1986) o vemos, nessa produção conceitual secular, como um ente ideal produzido
pela razão, uma entidade lógica. Buscamos a partir de agora o espaço como ser (o espaço
ontológico), num primado da existência sobre a consciência, através do qual a categoria
espaço deva ser considerada como ente ontológico: modalidade ontológica do ser.
Assim damos prosseguimento, e desculpamos o leitor por alguns pormenores por
nós até aqui explicitados, que embora pareçam desnecessários são de cabal importância
para o entendimento de todo esse aprisionamento lógico, que é fruto de um estranhamento
existencial (uma externalidade da vida que veremos no próximo capítulo). É por respeito ao
leitor e a nós, que aqui escrevemos, o motivo de perdurarmos nessa abordagem, para
buscar as bases em que se formulam a nossa critica ao pensamento vigente – e ao modo
de ser. Libertemo-nos destas amarras e partamos para a nossa construção.
Vejamos agora, alguns pontos de ruptura e algumas contra-correntes que assim
como a nossa pretende além de uma nova forma de ver o mundo, uma nova existência para
a humanidade e sua relação com o ser.
78
CAPÍTULO II
O ESPAÇO ONTOLÓGICO: UM AUTOCONHECIMENTO CRÍTICO DA EXISTÊNCIA
HUMANA
Adentramos neste debate com a citação de Armando Corrêa da Silva (1994, p. 80),
onde ―a Terra é pequena mas o espaço é infinito‖. Tal assertiva parece-nos referenciada
num modo de pensar o espaço segundo o modelo cartesiano-newtoniano-kantiano, porém
tal infinitude espacial não remete ao paradigma dominante, mas, ao que veremos, a uma
dissolução de uma parcela deste modelo teórico vigente. Tal dissolução, como um
eufemismo para a busca de uma ―ruptura total‖, irá ter eclosões de diversas correntes e em
diversos períodos históricos. Vejamos sintéticamente algumas formas de conceber a ciência
e o espaço, divergindo do paradigma dominante baconiano-cartesiano-newtoniano da
civilização ocidental.
Podemos começar simplesmente com a dicotomia civilizacional (em processo de
cooptação pela chamada globalização empreendida pelo ―mundo‖ ocidental às demais
humanidades – e vidas, em geral – do planeta Terra) entre ocidente/oriente. Apesar de
terem muitas características perniciosas também no seu modo de existência, como
machismo e classismo de castas, as noções espaciais (não exatamente a formulação de um
conceito) orientais tendem mais a um holismo do que meramente a uma dicotomia. Embora
a presença do Yin-Yang seja um exemplo básico dicotômico, sua posteridade tende a um
inter-relacionamento, algo próximo de uma espacialidade provida pela acepção da mandala.
Esta é uma palavra de origem sânscrita, que significa "círculo" e em geral designa toda
figura organizada ao redor de um centro, sendo uma representação geométrica da dinâmica
relação entre o homem e o Cosmos. Não se trata de uma geometria de propósitos
euclidianos, nem de uma ideia cósmica apartada entre divindade/homem/natureza, tal como
concebemos no ocidente, mas de uma exposição estético-visual, de retorno à unidade de
um espaço sagrado. É uma representação do inter-relacionamento entre o macrocosmos e
o microcosmos, no qual o círculo representa o Cosmos e a eternidade, já o quadrado o
mundo construto humano. Tal círculo tenta passar a forma básica do universo, uma ―ordem‖
de totalidade da natureza. Nesse sentido, milenarmente e em oposição aos parâmetros
científicos do mundo ocidental existe uma acepção próxima de um espaço como totalidade:
a mandala – com noções distintas das que presumimos ser ―natureza‖, ―humanidade‖,
―cosmos‖, ―divindade‖, etc48.
48
. Para algumas curiosidades a mais sobre a mandala, consultar o sítio eletrônico:
<https://studybuddhism.com/pt/budismo-tibetano/tantra/tantra-budista/o-que-e-uma-mandala>.
80
49
. Para alguns detalhes do processo histórico desta ‖teoria de complexidade‖, consulte Almeida (2004), em seu
artigo, que serve de introdução ao livro Geografia: ciência do complexus, ―Mapa inacabado da complexidade‖.
81
50
. Posteriormente faremos uma discussão da inter-relação processo-forma como espacialidade e espaço
ontológico.
82
sua ―Crítica da faculdade do juízo‖, sua obra de 1790. Nesse sentido é que Kant não foi
interpretado.
Comecemos pela releitura de Kant. Para tal, citemos uma das passagens finais de
sua obra:
(...) considere-se que a força motora que atribuo é uma força de repulsão. Nesse
caso o corpo recebe (enquanto eu ainda não coloque ao seu lado nenhum outro
corpo contra o qual ele exerça essa força) um lugar no espaço, mais ainda, uma
extensão <Ausdehhnung>, isto é, espaço nele mesmo, e além disso o
preenchimento do mesmo através das forças repulsoras das suas partes. E
finalmente recebe também a lei deste preenchimento, que consiste no seguinte: a
razão da reclusão das partes tem que decrescer na mesma proporção em que
cresce a extensão do corpo e aumenta o espaço que este preenche com as mesmas
partes através desta força (KANT, 2008, p. 322).
miraculoso. Carlos Santos (2009, p. 14) irá explicar que o espaço passa a não ser mais
concebido como um vazio, mas um ―manancial de energia e matéria (...) como algo inerente
a tudo que se possa imaginar‖. O espaço tridimensional dará lugar ao espaço-tempo tetra-
dimensional, recombinando espaço e matéria, onde a curvatura do espaço-tempo é causada
pela presença da matéria. Não existe então movimento espacial sem movimento temporal.
Isto é, no espaço-tempo não é possível a um corpo se mover nas dimensões espaciais sem
se deslocar no tempo. Mas mesmo quando não nos movemos espacialmente, estamos nos
movendo na dimensão temporal (no tempo). Portanto, no espaço-tempo estamos sempre
em movimento. Tal é a base espaçotemporal para a Relatividade Geral, porém, a luta de
Einstein contra os postulados newtonianos não foram totais, pois o espaço continua a ter
prioridade sobre a matéria. Uma subordinação da matéria ao espaço, não possuindo uma
recombinação desejada entre os dois. Isto parece estar filosoficamente mais próximo das
acepções de Leibniz.
O alemão Gottfried Leibniz (1646 – 1716) irá contra o pensamento de Descartes, e
será também opositor ao seu contemporâneo Newton. A base de seu pensamento é a
―teoria das mônadas‖51. Surge com esta teoria o espaço-monadológico. Contudo, ele está na
contramão do pensamento científico, que vai tomando como base o rigor matemático do
espaço-geométrico (absoluto/relativo) cartesiano-newtoniano; ora, por esse motivo Leibniz
torna-se esquecido. Na filosofia de Leibniz, na sua verdadeira metafísica, nega-se a
existência da matéria por si mesma, assim como a do espaço e do tempo. Para Leibniz o
mundo é constituído por entidades fundamentais, as mônadas, que existem totalmente
isoladas umas das outras, não estando em interação nem sequer em termos causais. Cada
mônada contém na sua natureza uma imagem completa de todo o universo, o que explica
como, sem interação, as mônadas possam exibir uma evolução coerente ao longo do
tempo.
51
. Basicamente, Leibniz irá formular sua teoria com base em um ser indivisível, um átomo. Esta seria uma visão
de essência geral e monista, que não abarca a existência. Fato este que irá criticar Silva (1982), como veremos
posteriormente. Citemos a leitura de Heidegger sobre esta metafísica da substância de Leibniz: ―a palavra que
Leibniz escolhe para identificar a substancialidade da substância é característica. A substância é mônada. A
palavra grega monas significa: o simples, a unidade, o um, mas também: o separado o solitário‖ (HEIDEGGER,
1996, p. 203).
85
O espaço leibniziano é relacional por existir somente através das relações dos
corpos entendidos enquanto matéria. Existem coisas e relações espaciais entre elas, mas
não há qualquer espaço com existência independente, o espaço em si, tal como não há um
"espaço relacional" com existência independente. Segundo Myrce Gomes (1994, p. 90),
Leibniz afirma que, ―se não houver objetos não haverá espaço‖, nesse sentido Leibniz irá
afirmar que o espaço é infinito, semelhante à afirmação de Armando C. da Silva, pois não há
uma porção espacial que não seja ocupada por um objeto; não existe o espaço vazio (o
vácuo), não existindo assim, lugar que não seja ocupado pela matéria. Para citar o próprio
Leibniz: ―eu não digo que a matéria e o espaço são a mesma coisa; eu digo apenas que não
há pontos no espaço onde não haja matéria; e que o espaço em si mesmo não é uma
realidade absoluta‖ (LEIBNIZ apud., GOMES, 1994, p. 93).
É por esses motivos que Armando C. da Silva irá tomar da abordagem de Harvey,
pois este irá discorrer sobre o espaço relacional em dois momentos: o primeiro em uma
análise sobre a ―natureza do espaço‖ (visando sua essência); e o segundo, através de uma
conclusão ontológica52. No primeiro momento o Geógrafo destaca que a sua proposta de
espaço relacional é do ―espaço tomado, a maneira de Leibniz, como estando contido em
objetos, no sentido de que um objeto existe somente na medida em que contém e
representa dentro de si próprio as relações com outros objetos‖ (HARVEY, 1980, p. 5). O
autor cita Leibniz, por estar inter-relacionando a essência mesma do espaço com a
―monadologia‖, ou a teoria das mônadas.
52
. Outro motivo que suscitamos para a utilização da escolha do espaço relacional de Harvey (tomado ao modo
de Leibniz) por Armando C. da Silva é por ter sido este o tradutor da versão original do livro. Dando assim uma
maior proximidade com o tema e a proposta.
86
53
. ―Sem a compreensão de que a realidade é totalidade concreta – que se transforma em estrutura significativa
para cada fato ou conjunto de fatos – o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou a coisa
incognoscível em si‖ (KOSIK, 1995, p. 44).
54
. ―Creio ser tão impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como conhecer o todo sem conhecer
particularmente as partes‖ (PASCAL apud., GOLDMANN, 1967, p. 6).
89
55
. ―Chamamos de ‗ente‘ muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que falamos dessa ou daquela
maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 42). Nesse sentido também,
ente pode ser tanto uma categoria lógica (das ideias e do conhecimento – epistemológico) quanto, ontológica,
existencial.
90
56
. Utilizamos a palavra Terra não como terra-chão ou superfície terrestre, mas como o recorte do ser (espaço)
em essência do Planeta Terra.
91
tornar ato através das particularidades. Neste momento surgem as existências Terrestres. É
o Um (uno) manifestadamente múltiplo através de cada particularidade, como expressão da
totalidade. Assim, as partes são os entes orgânicos do nosso planeta, sob o Espaço-
terrestre como essência, onde, neste momento de análise tomemos uma das partes: o
homem, ou melhor, a humanidade (para eliminar o caráter ―machista‖ e androcêntrico da
ciência e da espécie humana). O Todo, como forma da existência, o espaço humano, mais
especificamente o espaço ontológico humano, o que podemos tratar como mundo, ou
mundo-da-humanidade (evitando novamente o termo homem – como mundo do homem). E
agora entendemos o porquê do todo na parte e da parte no todo, pois, o todo sendo o
mundo e a parte a humanidade (―homem‖), ―o mundo do homem é aquele que nós fazemos
e que nos faz, onde fazemos a partir de nós, a partir do que fizemos‖ (SARTRE, 1966, p. 3).
Partimos agora para o entendimento deste ser da existência espacial humana. Esta
particularidade que tem um modo de ser peculiar como ser-no-mundo heideggeriano. Para
tal façamos uma regressão ontológica até os termos tratados na Geografia, visando
apreender e mudar este processo recursivo, que se constitui como nosso ser-no-mundo
(processo que se inter-relaciona como construção da forma). Mas primeiro, trataremos de
dar um breve histórico da construção do tema da Ontologia na Filosofia, como um dos
alicerces do modo de pensar do mundo ocidental. Em seguida trataremos do tema da
Ontologia em Geografia, com algumas propostas que permearam e ainda ocupam lugar no
debate da Geografia científica.
A análise acerca do tema da Ontologia toma quase sempre uma conotação de difícil
entendimento, tanto na Filosofia quanto na Geografia. A ciência geográfica, principalmente,
por estar calcada num ―espírito que se quer ‗terra a terra‘‖ (LACOSTE, 1977, p. 198),
empírico e nos moldes de método do paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano como
vimos alhures. Este breve fator, não impede uma discussão de tal análise na Geografia,
como propusemos: filosófica! Deste modo, buscaremos expor da seguinte forma a
sequência de análise deste item: primeiramente, fazendo uma regressão quanto à
Ontologia, seu ―surgimento‖ e sua análise na Filosofia; segundo, listaremos alguns autores
(de modo geral) que trataram sobre a Ontologia; e finalmente, buscaremos estabelecer os
parâmetros dos quais utilizaremos para nossa abordagem, em específico.
92
57
. A fim de dar um entendimento sobre o termo filosofia, buscamos três definições gerais. Filosofia é proveniente
da palavra grega philosophía, e segundo Jolivet (1968, p. 20), ―entre os antigos gregos, a Filosofia era a ciência
universal; abarcava quase todo esse conjunto de conhecimentos que agrupamos sob os nomes de ciência, de
arte e de Filosofia‖; já Morente (1970, p. 26), abarca desde a estrutura verbal da palavra, versando que ―é
formada pelas palavras gregas philos e sophia, que significam ‗amor à sabedoria‘. Filósofo é o amante da
sabedoria‖. O próprio filósofo diz que a palavra vai se modificando já a partir de Heródoto, ―de modo que, já nos
primeiros tempos da autêntica cultura grega, filosofia significa, não o simples afã ou o simples amor à sabedoria,
mas a própria sabedoria‖. Como nossa terceira opinião, Heidegger, irá dissertar, dentre uma longa abordagem
sobre o que é filosofia, no sentido de que ―a filosofia é epistéme tís, uma espécie de competência, theoretiké, que
é capaz de theorien, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta. É por isso
que a filosofia é epistéme theoretiké‖, indo mais adiante dizer que, o que a filosofia perscruta é: o ente, ―a saber,
sob o ponto de vista do que ele é, enquanto é ente‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 33-34).
58
A Ontologia aflora então como uma busca pelo sentido-de-ser do ente-homem sem ser dado ou absoluto. O
entendimento da existência humana é fruto de um questionar ontologicamente o ser do homem; sem a abstração
metafísica. Contudo, como nosso viés de análise é calcado nas observações de fenômenos cotidianos, faz-se
necessário a abordagem fenomenológica, ou melhor, uma análise fenomenológico-existencial da coexistência
humana. Estes encraves dados pelas abstrações metafísicas serão analisados através e como fenômenos
cotidianos, do processo de estereotipagem.
59
. A Metafísica oscilou desta forma, tradicionalmente entre ambos os temas de estudo. A primeira seria a
―metafísica geral‖ que estudaria o ser ou ser ―comuníssimo‖. A segunda chamada de ―metafísica especial‖
estudaria temas como Deus, a alma, etc. Desta forma a necessidade de se distinguir esses dois temas de estudo
(com nomes distintos) fez-se no séc. XVI.
93
sive ente in genere‖ (1772). Le Clerc pode ser considerado um verdadeiro precursor de
Wolff, este último foi quem sintetizou e popularizou a ontologia em 1730. A Ontologia foi na
chamada escola Leibniz-Wolff, a primeira ciência racional por excelência. Deste modo, por
meio do nome ontologia, designava-se o estudo de todas as questões que afetam o
conhecimento dos ―gêneros supremos das coisas‖. Nesse caso, a sobreposição da ontologia
à metafísica geral já representaria, um primeiro passo em direção àquele processo
mencionado de divergência das significações nos vocábulos: metafísica e ontologia.
A ontologia (ou ―metafísica geral‖) ocupar-se-ia só de formalidades, embora de um
formalismo distinto do exclusivamente lógico, aceitas, sobretudo por tendências neo-
escolásticas do séc. XIX, que de algum modo tiveram contato com o ―wolffismo‖. Immanuel
Kant faz referência aos transcendentais, no sentido de sua ontologia, chegando a concebê-
la como o estudo dos conceitos a priori que residem no entendimento e têm seu uso na
experiência. Mora diz que a mesma imprecisão que vige na questão dos transcendentais faz
que a ontologia seja entendida de maneiras diferentes: por um lado concebida com ciência
do ser em si (último e irredutível em que todos os demais consistem ou dependem), nesse
caso sendo necessariamente metafísica (ciência da realidade ou existência); por outro lado,
a ontologia parece ter como ―missão‖ às determinações daquilo em que os entes consistem
e daquilo em que consiste o ser em si (sendo assim uma ciência das essências e não das
existências, precisamente como uma teoria dos objetos). Alguns autores ratificam esta
separação entre metafísica e ontologia, outros, argumentam ao contrario, considerando que
a divisão é inaceitável, e até deplorável, pois quebra a unidade de investigação do ser
(esse), tema da metafísica-ontologia.
Partindo para o século XX, temos alguns autores como Feibleman, que apresenta
uma ―ontologia finita‖ destinada a mediar entre a atitude metafísica e a atitude positivista,
trata-se de um positivismo ontológico. A ontologia converte-se assim numa serie de
postulados que, embora primariamente de caráter formal, são capazes de constituir uma
rede conceitual que apreenda a realidade. A ontologia é entendida então como uma
―construção‖ dentro da qual se adquirem sentidos certos conceitos metafísicos fundamentais
como: realidade, essência, existência, etc. Quine entende por ontologia a ―ontologia de uma
teoria‖, em que dada uma teoria, cabe perguntar por sua ontologia e também por sua
―ideologia‖ (pelas ideias que podem expressar-se nela). Não há correspondência simples
entre ontologia de uma teoria e sua ideologia (podendo as duas teorias ter a mesma
ontologia e uma ideologia distinta). O ―renovado uso do termo ontologia‖ também se
apresenta em outros autores contemporâneos, entre eles: Ernest Nagel e Gustav
Bergmann. Este último assinala que ―o há (existe)‖ quantificado não tem muito a ver com a
―existência‖ de que fala a ontologia tradicional e propõe um ―padrão ontológico‖, constituído
por uma linguagem ideal, suscetível de esclarecer muitos problemas filosóficos. Carnap
94
ataca o problema das chamadas questões ―falsamente ontológicas‖, mediante uma distinção
entre ―questões internas‖ e ―questões externas‖. As ditas questões internas são como: o
mundo das coisas, o sistema de números, etc. com indagações sobre ―se há um número
primeiro maior que 100?‖ são das ditas questões internas. São questões externas,
referentes aos questionamentos sobre: ―Existe o mundo real?‖, ou melhor, ―Existe a própria
‗coisa mundo‘?‖. Estas questões deveriam ser respondidas mediante uma investigação que
transcendesse os objetos internos. Porém, não é esse o caso, segundo Carnap, no qual as
questões externas referem-se a assuntos desprovidos de conteúdo cognoscitivo e não são
propriamente teóricas, é uma decisão que o filósofo toma sobre o uso de uma ―linguagem‖.
Estas questões seriam pseudo-ontológicas, porque não implicam nenhuma asserção acerca
de uma realidade. E argumenta que somente as ―asserções internas‖ podem ser
justificadas, quer empiricamente, quer logicamente. Sendo assim, todo o erro consistiria,
pois, em tratar as ―questões externas‖.
Edmund Husserl será uma personalidade de grande influência para a investigação
ontológica do século XX. Husserl considerava a ontologia tanto como formal quanto
material. A ontologia formal trata das essências formais (daquelas essências que convêm a
todas as demais essências); a ontologia material trata das essências materiais e, constitui
um conjunto de ontologias a que se dá o nome de ontologias regionais. A ontologia formal
seria o fundamento de todas as ciências e a material, o fundamento das ciências dos fatos;
mas, como todo fato participa de uma essência, toda ontologia material estaria fundada na
ontologia formal. É a partir desse momento que tomamos as ideias de Martin Heidegger.
Discípulo do pensamento de Husserl60 (tendo outros dois filósofos por ele influenciados:
Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty), irá basear-se no método fenomenológico de
investigação, através do qual iria buscar a formulação de sua ontologia fundamental. A sua
base é a ―questão do ser‖, mas tendo como base o método fenomenológico, sua ontologia
será fenomenológica (DARTIGUES, 2008), ou melhor, uma analítica fenomenológico-
existencial do Dasein61, por isso existencial, pois somente o ―Dasein humano‖ existe62.
A Ontologia veio a se estabelecer então, como uma ―disciplina‖ filosófica, das quais,
segundo Morente (1970, p. 29) são: ―a ontologia, a metafísica, a lógica, a teoria do
60
―Fundador‖ da fenomenologia através dos estudos do ―sistema total dos atos possíveis da consciência, das
possíveis aparições, das significações que se relacionam precisamente com esses objetos‖, como uma
―investigação transcendental‖ do mundo ―no qual vivemos, nos movemos e estamos‖ (HUSSERL apud.,
DARTIGUES, 2008, p. 65).
61
A tradução deste termo cabal para a ontologia fenomenológica heideggeriana será explicitado brevemente
depois, cabendo comentar que seus sentidos são dos mais variados e cabíveis de inúmeras confusões e
conflitos de pensamento.
62
. Este referencial é fundamentado no verbete Ontologia do dicionário filosófico de Ferrater Mora (1996, pp. 523-
532) veio a chamar de ―pré-história‖ do termo ontologia, e permite compreender, entre outras coisas, o que é
notório: os autores que utilizaram ―ontologia‖ ou ―ontosofia‖ tenderam a destacar o caráter ―primário‖ dessa
ciência, em face de qualquer estudo ―especial‖. Por isso, se a ontologia pôde continuar sendo identificada com a
metafísica, o foi com uma metafísica geral e não com a ―metafísica especial‖.
95
concreto do modo de ser da existência humana no Heidegger de ―Ser e Tempo‖. Karel Kosík
(1995), em seu ―A Dialética do Concreto‖, também buscará uma leitura de Heidegger, mas
também voltado para uma visão ontológica da práxis. István Mészáros (1981), com seu
―Marx: a teoria da alienação‖; resgatará a partir dos Manuscritos de 1844 (assim como parte
do livro supracitado de Marcuse) a ontologia do ser social de Marx. Alain Badiou (1996) com
seu ―O ser e o evento‖, traçará um debate de articulação rara, numa ontologia com
seguimentos de Heidegger, mas também com algumas alternativas. Será o prevalecimento
do matema sobre o poema, através de um panorama teórico no qual temos a conjugação da
matemática, da arte contemporânea e da política. Seu ponto de partida é o um e o múltiplo
como a priori da Ontologia.
Duas últimas análises ontológicas, curiosas, porém frutíferas, são de Nietzsche, em
seu afamado ―Assim Falou Zaratustra‖, no qual o Filósofo, principalmente na dissertação
sobre ―O convalescente‖ buscará retratar uma regressão existencial-ontológica como, por
exemplo: ―Tudo vai, tudo torna; a roda da existência gira eternamente. Tudo morre; tudo
torna a florescer; correm eternamente as estações da existência. Tudo se destrói, tudo se
reconstrói, eternamente se edifica a própria casa da existência‖ (NIETZSCHE, 2008, p.
188)63. Outra abordagem é a de Michel Foucault (2000). Este Filósofo em sua obra ―As
Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas‖ buscará, através de um
discurso bem elaborado sobre a linguagem, resgatar o ser do homem, através do discurso
(por isso a colocação do título). O discurso sobre o mundo, este ser da linguagem, acaba
sendo o ser da humanidade enquanto discurso das ciências humanas.
Passemos então, para uma exposição dos autores que veicularam, e ainda veiculam,
a análise ontológica na Geografia.
Buscaremos trazer para análise, alguns Geógrafos que trataram diretamente com o
tema da Ontologia na Geografia científica. Verificamos também que tais geógrafos são
vinculados principalmente com o movimento de renovação, mais especificamente com a
chamada Geografia ―radical-crítica‖, pós década de 1970. Primeiramente, como já citamos,
o principal autor na Geografia que enveredou pela análise ontológica no Brasil fora Armando
Corrêa da Silva. Em inúmeros artigos, alguns não publicados, em livros, e em palestras e
aulas diversas, seu nome figura como a vanguarda da temática na Geografia brasileira. Sua
ontologia analítica se constituía de uma ―abstração que passa pela aparência, o ser e a
63
. Fica exposto que para Nietzsche, a existência, ou o ser em ato, se movimenta com a vida. É uma busca de
regressão ou solução do ser em geral através da vida, na ideia do eterno retorno por ele elaborada – algo
tomado de seu apreço pelo devir, num vir-a-ser constante do heraclitismo antagônico ao somente ser de
Parmênides.
97
através da espacialidade diferencial de Lacoste, mas percebe que o espaço se põe como
ser, mas um ser ideal, por via epistemológica. Dentre outras proposições bem atípicas e
plurais (e por isso muito frutíferas), Silva descreve ser seu ponto de vista pluralista, e não
monista, do ser, pois o espaço não é irredutível, mas sim múltiplo. A sua principal ideia é:
―tanto os corpos como o lugar vazio constituem manifestações da materialidade do espaço‖
(SILVA, 1982, p. 82), no qual o espaço (como ser) é sujeito e objeto ao mesmo tempo.
Em um pequeno artigo para o livro ―Espaço interdisciplinar‖ de 1986, intitulado ―As
categorias como fundamentos do conhecimento geográfico‖, Silva irá consolidar mais sua
proposta teórica, trocando o termo estrutura por modo de ser, ou forma, onde irá tratar as
categorias como entes ontológicos, dando primazia à existência, em relação à consciência.
Nos anos de 1991 e 1992, terá mais algumas contribuições, dentre elas uma proposta da
―Ontologia analítica‖, como teoria e método do ser. Este texto imbricará parte e todo, além
de citar sua fenomenologia-ontológica-estrutural. Fará também em outro breve artigo
considerações acerca da dicotomia sujeito/objeto, no qual através de sua ontologia analítica
construirá o sujeito e sincronicamente reconstruirá o objeto – um reflexo do que já expusera
do ser como sujeito e objeto ao mesmo tempo. Em seu livro ―Geografia e lugar social‖ de
1991, com uma variada coletânea de inúmeros autores, fará uma grande contribuição
ontológica para a Geografia, principalmente nos seus ―pressupostos‖. Silva inter-relacionará
via do espaço-terrestre como lugar possível, o natural e o físico, o humano e o espaço
geossocial analítico, sintetizando o debate com sua acepção de processo e forma (da qual
utilizaremos a seguir alguns fatores importantes para o prosseguimento de nossas
propostas). O que está em pauta para Silva é a conscientização do modo de ser espacial
desde o inorgânico, perpassando pelo orgânico até a humanização espacial; a analítica
espacial é ontológica porque este é o ser das coisas, dos eventos e da vida. É isto o que
entendemos como o ser revelado, do qual trata Silva em um texto divulgado tardiamente,
em 2000 – pós sua morte, intitulado ―A aparência, o ser e a forma (geografia e método)‖.
Contemporâneo a Silva, e mais conhecido academicamente, retornamos a Milton
Santos; mas primeiro, cabe ressaltar, que embora M. Santos tenha esboçado algumas
proposições filosóficas, e até de tema ontológico, sua postura acadêmica pessoal para com
essa corrente (principalmente na Geografia) era de suspeita. Uma suspeita deixada clara,
em um momento que remonta a renovação ―radical-crítica‖, em seu artigo de 1982 (ano de
grande movimentação acerca da nova postura dos geógrafos acadêmicos) ―Para que a
geografia mude sem ficar a mesma coisa‖. Uma das críticas à postura filosófica da
fenomenologia é quanto seu possível aspecto positivista e individualista pela carga do
humanismo (como se somente fosse ―realmente‖ revolucionário questionamentos acerca da
sociedade ou de suas ―estruturas‖, o que parcialmente discordamos). Seu toque de crítica
vai se fundamentar justamente na outra corrente em voga, a Geografia Humanística, no qual
99
seu tratamento é de um espaço como ser, mas por via da epistemologia do espaço – sua
inquirição ontológica é de um modo de ser da produção social do espaço, portanto o que
nos passa é mais um conceito, com bases para uma formulação geográfica do espaço, tanto
que a indagação de se o espaço é um objeto geográfico ainda causa certo incômodo.
Outros geógrafos brasileiros, seguidores de Armando C. da Silva nesse campo
teórico, que vêm trabalhando atualmente no sentido do tema da Ontologia em Geografia
são: Elvio Martins e Ruy Moreira. Martins, em seu texto ―Geografia e ontologia: o
fundamento geográfico do ser‖ busca o fundamento geográfico do ser calcado no ser-aí
humano e suas singularidades e universalidades geográficas. Divergindo das ideias
basilares do espaço como ser de Silva, Martins irá fazer uma correlação entre objetividade e
materialidade, no qual a Geografia herdará este discurso em relacionar o espaço como algo
palpável, material; além da crítica a outra herança, não menos influente, de que a Geografia
é uma ciência que tem por objeto o espaço (algo que também frisamos no primeiro capítulo).
Sua proposta é de que História e Geografia não sejam somente categorias lógicas, tratadas
como objeto das ciências, mas como categorias ontológicas, ―fundamentos da existência,
em seu complexo dinâmico que é a vida, homem e meio e sua respectiva relação‖, através
do qual Martins irá definir o fenômeno da história como estabelecimento ―a partir do
movimento, do espaço e do tempo (...). enquanto a Geografia é especialmente definida em
Ritmos e Durações‖ (MARTINS, 2007, p. 41). Casando as proposições do Dasein
heideggeriano (apreendido por Martins como ser-aí), da sociabilidade, do trabalho e do
estranhamento de Marx, além de trabalhos clássicos na Geografia como os de M. Sorre e
de George, Martins vai propondo seu fundamento geográfico do ser, por nós apreendido
como um ser-no-mundo que constrói-se a partir da existência, em uma imbricada relação
entre entes e na relação de identidade-alteriadade vista como homem-meio; a forma
complexa da existência que é a geograficidade (ibid.). Sua construção é altamente frutífera,
principalmente por não ficar limitado ao âmbito do espaço e de uma delimitação do objeto,
mas por inter-relacionar fenômenos que auxiliam o entendimento cotidiano do
estranhamento da existência humana.
O outro geógrafo que tratará do tema é Ruy Moreira. Em variados trabalhos vem
reunindo análises ontológicas altamente contributivas desde meados da década de 1990.
Em seu recente livro ―Pensar e ser em geografia‖ de 2007, Moreira reúne boa parte dos
artigos destinados ao tema da Ontologia em Geografia. Por referenciar ao final de cada
texto a fonte original da primeira publicação (com o fito de propor uma averiguação do
processo histórico do pensamento de si mesmo e do decorrer da Geografia brasileira),
podemos identificar que ―Ser-tões‖ será uma de suas primeiras abordagens da temática,
casando os textos de literatura de ficção com geografia, datando do ano de 1996. Na sua
conclusão, Moreira fará algumas propostas acerca da geograficidade, que irá abordar mais
101
a frente. Sua proposição é tratar o espaço como modo espacial de existência do homem,
pela espacialidade que se torna através da transformação humana do espaço-mundo.
Tratará da hominização do homem metabolizado através do trabalho, no qual se conforma a
geograficidade, como o pertencimento do espaço como o ser-estar-do-homem-no-mundo.
Em seu ―Mal-estar espacial no fim do século XX‖, originalmente publicado em 1997, Moreira
busca uma clarificação da relação entre espaço e existência, como um problema ontológico
que deve se indagar sobre o olhar do mundo como mundo-do-homem, mas reformulando,
pois na cultura do Ocidente existe um apartamento entre homem e espaço. Fará então uma
crítica à gênese da existência espacial moderna calcada em uma desespacialização do
mundo e do homem através da desnaturização, da desterreação e da desterritorialização.
Este seria o mal-estar espacial, da externalidade na relação entre homem e espaço; aquilo
que o próprio autor chamara de ―um vazio de pertencimento‖ (MOREIRA, 2007, p. 141).
Em seu artigo de 2004, ―Marxismo e Geografia: a geograficidade e o diálogo das
ontologias‖, Moreira vai reunir as concepções das Ontologias nas teorias, marxiana e
geográfica, estabelecendo a geograficidade como síntese desse casamento. O próprio
geógrafo irá propor um paralelo entre as possíveis ontologias, explicitando que ―faltou uma
reflexão mais profunda do significado do espaço como ser-estar-do-homem-no-mundo, da
mundanidade como o sentido da própria ação geográfica do homem em sociedade na
história‖ (MOREIRA, 2004, p. 28). Assim, tem-se a busca de uma ontologia que se quer
marxista da geografia, ou no que Moreira irá tratar como geograficidade enquanto ―condição
espacial da existência do homem‖, no qual ―a existência realizando na mundanidade do
espaço a relação da essência metabólica‖; resumindo, a existência em sua expressão
espacial. No seu ―Sociabilidade e espaço‖ de 2005, Moreira irá retratar o metabolismo do
trabalho do movimento da natureza transformada em homem, a auto-poiesis. Mais
recentemente temos em 2008 o artigo ―Espacidades‖, em que Moreira fará uma revisão
ontológica do espaço, principalmente de seu conceito, afirmando a relação de externalidade
já denunciada em 1997 no seu ―Mal-estar...‖ além da construção do mundo ocidental deste
conceito trará para o debate alguns pontos de ruptura, de Leibniz até Armando C. da Silva,
com as questões da ontologia do espaço.
Outro geógrafo brasileiro que perpassou pelo tema fora Antônio Carlos Robert de
Moraes, basicamente em seu único artigo sobre a temática nomeado de ―Em busca da
ontologia do espaço‖ de 1982 (mas que como relata o autor fora originalmente publicado em
1979). O objetivo de Moraes (1982, p. 65) nesse texto será de ―fornecer ao leitor indicações
de uma posição possível no tratamento de questões referentes ao espaço‖. Sua busca
remete sobre o questionamento dos atributos e da dinâmica própria do espaço, e também
de uma teoria sobre o espaço, que será calcada na teoria marxiana de proposta lukacsiana.
Então o ser que Moraes trabalha é o ser social. Uma pena que este trabalho tenha sido
102
64
. ―A forma, pois, se confunde com o conjunto dos caracteres essenciais que fazem com que as coisas sejam
aquilo que são; confunde-se com a essência‖ (MORA, 1996, p. 98).
104
Porém, não é esta também a nossa perspectiva, ela é existencial, próximo ao que coloca
Jolivet, mas não somente o que foi posto por este filósofo. Mas, para alcançarmos esta
perspectiva existencial, analisemos alguns Geógrafos acadêmicos que trabalharam este
tema.
Primeiramente Harvey, em seu livro, por nós já citado, de 1973, irá tratar o par: forma
espacial e processo social; indicando a expressão ―forma-espaço-processo social‖
(HARVEY, 1980, p. 5). No momento deste livro Harvey aplicará esta dualidade para o
entendimento da cidade, no qual se deve ―reconhecer que uma vez criada uma forma
espacial particular, ela tende a institucionalizar e, em alguns aspectos, a determinar o futuro
desenvolvimento do processo social‖ (ibid., p. 17); nessa abordagem de Harvey deve-se
elaborar conceitos que sejam capazes de lidar com as complexidades, tanto do processo
social quanto dos elementos da forma espacial. Deve-se então buscar a interseção da
complexidade de processo social-forma espacial, pois se trata de algo apartado
metodologicamente – não é disto que iremos tratar, porque não se deve separar para depois
reunir de maneira encaixada. Abordagem esta que Harvey irá reformular mais tarde em seu
livro ―Espaços de Esperança‖, no qual irá buscar a ideia de forma como arranjo ou
organização (bem próxima da abordagem lefebvreana). Na sua proposta de um utopismo
espaço-temporal reutiliza e reelabora os termos forma espacial e processo social de outrora.
Harvey fará paralelismos entre tais acepções e leituras empíricas, como por exemplo: ―o
modo como o utopismo do livre mercado (o processo) foi implantado globalmente
(geopoliticamente como forma espacial) depois da Segunda Guerra Mundial‖ (HARVEY,
2006a, p. 252). Podemos ver um descolamento entre processo e forma, pois não trata
ontologicamente do assunto e sim epistemologicamente, em busca de aplicações empíricas;
o que pretendemos é uma analítica ontológica de processo e forma, por isso não se
necessita de imposições dicotômicas na empiria, pois o ontológico já trata do movimento,
por ser algo vivido.
M. Santos também tratou de conceituar os termos processo e forma em algumas
obras, porém, mais detalhadamente em seu ―Espaço e Método‖, no qual irá tratar forma
primeiramente como ―ao arranjo ordenado de objetos, a um padrão‖. Em outra acepção
quanto a ―uma estrutura revelada‖ (SANTOS, M., 1985, pp. 50-51), ou um objeto que é
responsável pela execução de uma função determinada (como uma estrutura técnica),
assim tem-se a direta relação entre função e forma, porém a forma pode abarcar mais de
uma função. Esta estrutura revelada é possível pela ideia de forma como mais visível –
nesta análise de M. Santos as formas são artefatos da (de uma dada) paisagem, como
resultados do tempo, de processos pretéritos que ocorreram na estrutura. A forma além de
ser um resultado aparente na paisagem pelo processo temporal, ―ela é também um fator
social‖ (ibid., p. 55), dada a significação usada através da execução de uma função. A
105
abordagem estrutural da forma pode ser frutífera, porém, na analítica existencial, forma, não
é meramente a revelação de uma estrutura, por ter sentido ontológico como mundo sendo
inseparável do processo, este como existencialidade, contém a estrutura, mas, vai para
além disto – a estrutura é um dos componentes ontológicos deste existencial que é a forma.
Outro Geógrafo que se aproxima de nossa abordagem, se bem que busque uma
verificação teórica balizada em uma acepção estrutural, é Ruy Moreira, no qual ―o espaço
geográfico é a materialidade do processo do trabalho‖ (1994, p. 85-86). Nessa assertiva, o
espaço (geográfico) é um ente de existência ontológica e não epistemológico – o que
discordamos (pois pensamos o espaço geográfico como constructo lógico dos métodos e
epistemologia das ciências, não com existência ontológica – este seria o mundo-forma, tal
como iremos expor a seguir); e o processo do trabalho seria a essência do espaço, como
forma. Porém, mesmo tendo discordâncias quanto a essa acepção, abre-se caminho para
trazermos (mais uma vez) o discurso de Armando C. da Silva, através de sua abordagem
sobre o processo e a forma. Em sua abordagem mais próxima do ―estrutural‖, Silva irá
dissertar que ―a apropriação discreta do espaço é um processo de criação de formas e de
conquista de formas já existentes‖, e por este motivo como uma estrutura revelada que ―a
forma é o espaço produzido em seu modo de ser estrutural‖ (SILVA, 1986, p. 33). O autor irá
propor também, em uma abordagem mais ampla, que ―o processo é o contínuo devir da
forma‖, no qual ―o espaço de ocorrência e manifestação determina o espaço em si, como
processo e forma‖ (SILVA, 1991, pp. 36-37).
Novamente, se retomarmos ao ―Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa‖,
encontraremos treze modos diferentes de conceber o processo; dentre eles: 1) ―ação
continuada, realização contínua e prolongada de alguma atividade; seguimento, curso,
decurso‖; 2) ―num sistema físico, a sucessão de estados intermediários na sua passagem
entre dois estados‖; 3) ―modo de fazer alguma coisa; método, maneira, procedimento‖. O
processo pode ser relacionado ao movimento, um constante devir, o ser-em-si que pelo seu
vir-a-ser em movimento constante caracteriza o processo da forma – seria então o processo
―uma figuração particular do movimento‖ (ibid., p. 37). Mesmo no senso comum veiculado
pelo dicionário o movimento é captado, porém, numa analítica ontológica o que deve ser
posto não é a ideia e sim o existencial, por isso a relação inevitável de processo-movimento-
forma. Ambos, processo e forma, estão em movimento. Sendo assim, podemos tratar como
uma manifestação ontológica através do ser em movimento viabilizado através do seu existir
do processo-forma; o que dará o entendimento do ser concreto humano, o seu existir pelo
processo-forma das coisas e eventos daí surgidos.
Sendo, como tratou Silva, esse processo uma particularidade do movimento65,
65
. ―Então, a forma é momento do processo, como configuração de particularidade e seu resultado‖ (SILVA, 1991,
p. 44).
106
podemos falar então de forma como mundo, no qual este mundo é o espaço ontológico; o
existencial particular como momento do processo, este que se dá como existencialidade, o
que viremos a tratar como espacialidade. Assim podemos tratar de processo-forma em uma
imbricação ontológico-geográfico, pois que ―o que é geográfico está diante de nossa
percepção – aquilo que se ‗vê‘ – e possui um significado dado pela particularidade e pela
forma: aquilo que se apresenta como um momento da existência de uma configuração do
espaço e pelo movimento diferenciado e múltiplo neste‖ (SILVA, 2000, p. 7). O geográfico
encontra-se justamente na particularidade do ser (espaço) como relações tramadas entre o
ser e a espacialidade. Mas porque geográfico? Pois, como visto, o processo é o devir da
forma, a particularidade como espacialidade é expressão da totalidade (ibid., p. 12), mais
especificamente, como já retratamos, expressão da Subtotalidade geográfica que é o
planeta Terra. Esta é uma proposta de exposição ontológico-analítica na Geografia
científica, no qual o ser deve ser revelado, pois se encontra velado pelo discurso
epistemológico, não em uma auto-avaliação crítica de cunho ontológico, através do qual
veremos que ocorrera o velamento pelo modo de ser da forma elaborada pela humanidade
– a particularidade, vista por nós como espacialidade, que tomou aspectos perniciosos em
que urge uma modificação.
Seguindo esta proposta que, para ressaltarmos a forma como espaço ontológico
enquanto inseparável da espacialidade, abarcaremos as análises ontológico-existenciais
sintetizadas através da expressão: modo de ser-no-mundo da existência humana.
Comecemos então por uma breve análise do que concebemos como existência espacial
humana, entrecruzando proposições ontológicas.
Como já mencionamos alhures, a existência consiste no ser em ato. Ou melhor, é o
ser como essência que no seu ato-de-ser confere ao ser o ato de existir. Quando indagamos
sobre a existência, podemos levar em consideração duas inquietações: que é existir? Ou
quem existe? Segundo Morente (1970), o ato de existir é algo que intuímos diretamente, por
isso, não pode ser algo definido, ou definitivo. Em nossa acepção, o ato de existir é definido
(porém não como a priori pensado, mas sim, a posteriori praticado) como ser espacial em
ato, ou seja, o espaço como ser uno e múltiplo (essência e existência), logo, o ato de existir
é espacial; no caso da Subtotalidade geográfica ―Terra‖ (como já fora tratado). Temos então
uma definição do ―que é existir?‖. Temos uma distinção no que se refere à existência e à
consistência. O termo ser tem dois sentidos, um que nos remete ao existir e outro que toma
o sentido de consistir (ou ser alguma coisa ou outra). Quando nos indagamos sobre que é o
espaço e o que é a humanidade, buscamos o entendimento justamente da consistência
destes termos – espaço e humanidade –, queremos saber enfim a essência de ambos.
Temos então a partir dessa premissa mais quatro possibilidades de indagações: que é
existir?; quem existe?; que é consistir?; e quem consiste? – vejamos as possibilidades. A
107
primeira indagação sobre que é existir é algo que não deve ser objeto, pois não tem
definição, mas é algo vivido e intuído. A segunda inquirição é sobre quem existe. Neste caso
concordamos com Morente, pois podemos dizer que existem coisas, o mundo, a
humanidade, as outras formas de vida; os entes em geral. A terceira pergunta remete ao
que é consistir, no qual a resposta pode ser definida, pois ―existem maneiras, modos, formas
variadas de consistir‖ (ibid., p. 61), a essência pode ser concebida de inúmeras maneiras,
como a que estamos concebendo como espacial. A quarta e derradeira pergunta irá amarrar
o nexo ontológico, que seria quem consiste – no qual seria a definição de quem é a
essência. Nas palavras de Morente (ibid., pp. 61-62) ―somente quando saibamos quem
existe, com existência real em si, poderemos dizer que tudo o mais existe nesse ser primeiro
e, portanto, tudo o mais consiste‖. O entendimento da existência remete a consistência à
existência revelada; portanto, ao elaborarmos a consistência (essência) dos entes em geral
(que concebemos como o espaço-essência), apreendermos quem são os entes existentes,
como por exemplo, a existência humana (que é um ser-em-ato espacial), poderemos a partir
de então definir a consistência dos demais modos de ser a partir desta existência.
Pois bem, deste modo iremos recortar a resposta para somente a análise de um ente
em específico, a humanidade, sendo mais preciso: a existência humana. Como concebemos
o ato de existir como sendo espacial, logo, a existência humana é existência-espacial
humana. Assim, podemos definir o modo de ser deste ente e dos demais entes que se
atrelam a esta existência – a mundanidade do mundo consistido pela existência humana.
Após este breve relato da nossa ideia particular de uma ontologia espacializada66,
passemos para algumas citações relevantes, que por motivos particulares revigoraram este
nosso modo de pensar. Tais citações são de origem complexa, porém, abrangentes e que
desmembrarão na expressão que fora supracitada67. Algumas bases dos argumentos se
encontram no filósofo alemão Martin Heidegger, principalmente em seu livro Ser e Tempo,
através do qual o pensador veiculará as reflexões ontológicas sobre o Dasein. Nesse
sentido, previamente, gostaríamos de fazer uma breve discussão sobre este termo, próprio
do Filósofo alemão, pois será de grande importância para o entendimento da existência-
espacial humana e para o desfecho na expressão modo-de-ser no mundo da existência
humana. O termo Dasein é, a nosso ver, na Filosofia Moderna, o de mais polêmica, crítica e
dificuldade de tradução, até porque, segundo algumas declarações do filósofo Julián
Marías68 (este participou na Alemanha de aulas com Heidegger), o próprio Heidegger
66
. É curioso verificar que Soja (1993, p. 166) buscou reafirmações espaciais para o discurso filosófico-
ontológico, finalizando seu capítulo, dentre outros questionamentos, com uma crítica a Heidegger, onde a
―construção de uma ontologia mais plenamente espacializada nunca se completou‖ por parte do Filósofo alemão.
Cabe aos interessados neste debate trazerem para si a responsabilidade, e a coragem, de retomar a análise.
67
. Modo de ser-no-mundo da existência humana.
68
. O texto-aula de Julián Marías, sobre Martin Heidegger, encontra-se no sítio eletrônico:
<www.hottopos.com/harvard4/jmshdg.htm>.
108
acreditava que a Filosofia somente deveria ser escrita em duas línguas: o grego e o alemão;
logo, sua autocriação de terminologias era com interesse em uma das línguas bases para a
Filosofia, segundo Heidegger: o alemão. É interessante também observar que, segundo
Marías, em alemão não há distinção escrita para as palavras que para o espanhol ou
português correspondem a: ser, estar, existir e haver. Isto dificulta ainda mais a tradução e
sua apreensão. Porém, buscamos uma definição própria, mesmo não tendo conhecimento
do idioma falado por Heidegger, através da análise de algumas traduções e comentários
sobre o termo Dasein para auferir um parecer69.
Na tradução nacional de Sein und Zeit (―Ser e Tempo‖), a palavra escolhida para
representar o Dasein heideggeriano é presença. Não sendo sinônimo nem de existência e
nem de homem, este termo busca no ―pre‖ o movimento de aproximação antecipadora e
antecipação aproximadora, sendo este ―pre‖ o constitutivo da dinâmica do ser (―ença‖)
através das localizações. A alegação do movimento é bastante interessante, principalmente
na abordagem localizacional, que poderia remeter a algo ―geográfico‖, mas, não é frutífero
para o que pretendemos. Na coleção ―Os Pensadores‖, o texto ―Sobre a Essência do
Fundamento‖, a tradução emprestada ao Dasein é ―ser-aí‖, aparecendo em certa ocasião
como ―ser-aí existente‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 118). Em outra passagem, encontramos
ainda a colocação: ―o mundo, por conseguinte, pertence ao ser-aí humano, ainda que
abarque todos os entes, também o ser-aí em sua totalidade‖ (ibid., p. 126, grifos nossos).
Em uma terceira obra, intitulada ―Sobre o Humanismo‖ (ou ―Carta Sobre o Humanismo‖),
encontramos uma colocação também acerca do Dasein, que significa segundo Heidegger
(1995, p. 43): ―o homem se essencializa, de tal sorte que ele é o ‗lugar‘ (Da), isto é, a
clareira do Ser. Esse ‗ser‘ do lugar (Da), e só ele, possui o caráter fundamental (Grundzug)
de ec-sistência, isto é, da insistência ec-stática na Verdade do Ser‖.
Outras duas abordagens sobre o Dasein foram feitas, uma pelo também filósofo
alemão Herbert Marcuse (1968b), em seu texto, ―Contribuições para a compreensão de uma
Fenomenologia do Materialismo Histórico‖. A tradução escolhida é referenciada às outras
obras também traduzidas para o português, sendo ainda recomendada para os idiomas:
espanhol e francês. A expressão é ―existência humana‖ (não somente existência), como
sinônimo de Dasein. Luciano Brasil, em dissertação de mestrado em Filosofia com um
69
. O termo, como citado é a tradução referente ao Dasein, que preferimos e resumimos, como existência
humana. Em algumas traduções o termo assume a tradução de ser-aí, outras de estar-aí, outras como
existência, e em outros momentos como simplesmente homem. Como vimos, em alemão não há distinção entre
ser, estar, haver e existir, o que dificulta ainda mais a tradução. E ainda, devemos compreender que ambos os
sentidos, tanto de ser ou de estar, não significam em sentido absoluto ―imobilidade‖, ―enraizamento‖ ou qualquer
termo semelhante. Ambos podem representar este caráter estático dependendo da situação, vejamos, se uma
pessoa está morta, não significa que está ―passageiramente‖ morta, a morte é um fato consumado. Se
perguntarmos como algo vai ser, estamos remetendo não a uma fixidez, mas sim a uma das possibilidades.
Nesse entendimento a pre-s-ença humana é a existência humana, pois, abarca a relação que o ente homem
(ença) tem com seu sentido de ser, que é a existência humana, o modo de ser de toda humanidade e de todo o
mundo-do-homem como prolongamento de seu ato de ser.
109
estudo sobre a obra ―Ser e Tempo‖, nos brinda com uma explicação de sua escolha,
seguindo um critério próprio de interpretação da linguagem heideggeriana. Brasil (2005, p.
15) clarifica-nos que Benedito Nunes ―indicou a inconveniência de se traduzir Dasein por
pre-sença, como ocorreu na tradução nacional‖. Em outra passagem do texto, apesar de
Brasil ter discordado em traduzir o vocábulo Dasein, surge para nosso entendimento a
seguinte assertiva:
Nesse momento Brasil cunha o termo existência humana por via de uma analítica
existencial, isto é, uma ontologia fundamental, com ―um propósito fundamentalmente
ontológico-existencial‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 234), através do qual também iremos tratar,
por via de uma analítica ontológica espacial da existência humana. É interessante observar
também que, em alguns casos, curiosos, e não sabemos se propositalmente (acreditamos
que não), o termo presença aparece em três obras distintas. Uma de Armando C. da Silva,
outra de Maurice Merleau-Ponty e a terceira de Michel Foucault. Silva (1978a, p. 97, grifos
nossos) irá retratar que ―em todos os níveis nota-se que a presença humana é decisiva‖;
Merleau-Ponty irá nos dar duas pistas para seu debate fenomenológico, um no qual ele
menciona ser a presença uma estrutura única, em outro momento temos a colocação de
―presença no mundo‖ (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 578). Sabemos que a tradução é
totalmente diferente da efetuada para Heidegger, principalmente pela diferença dos idiomas
francês e alemão, mas, sabemos também que o capítulo em que se encontra essas
colocações do filósofo francês uma das epígrafes é da obra de Heidegger (―Ser e Tempo‖)70.
Logo, pode não se tratar de tanta coincidência assim! A terceira e última abordagem, mais
distante da temática ontológica expressa até agora, porém, não menos criativa, é por conta
de Foucault. Em ―História da Sexualidade I‖, sobre o método, o pensador cunha a expressão
―onipresença do poder‖ (FOUCAULT, 1985, p. 89), buscando demonstrar que o poder está
em toda parte. Analisando o vocábulo omnipresente, o prefixo ―omni‖, de origem latina,
significa todo, todos; tudo; qualquer; de toda a espécie; todo, inteiro. O termo presente, ou
melhor, presença, se formos analisar pelo viés filosófico, o prefixo pre-, fornece a ideia de
lugar e localização, enquanto o radical s-ença implica o verbo esse, ser em latim. Isto faz
com que o poder omnipresente seja de um existencial da existência humana, pois toda a
existência humana, ontologicamente, é dotada de poder.
70
. A citação encontra-se na terceira parte ―O ser-para-si e o ser-no-mundo‖ no segundo capítulo intitulado de ―A
temporalidade‖ (tema também tratado em ―Ser e tempo‖ por Heidegger) na forma de epígrafe do seguinte modo:
―Der Sinn Daseins ist die Zeitlichkeit‖ (HEIDEGGER apud., MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549).
110
71
. ―Os grupos humanos, estes encontram-se em presença de outros seres, animais e plantas, igualmente
agrupados e vivendo em relações recíprocas‖ (SILVA, 1991, p. 23). As espacialidades são relacionadas em
reciprocidade pois coabitam a mesma Subtotalidade geográfica que é o planeta Terra. Não admitir isto é parte de
uma reprodução do discurso especista (e) antropocêntrico do modo de pensar ocidental.
112
só humana. Moreira será outro autor que remeterá o seu entendimento geográfico
ontológico à espacialidade, em que num primeiro momento irá tratar espacialidade como
―modo da existência do homem‖ (MOREIRA, 2007, p. 158); no segundo momento tratará
como ―o estado empírico-concreto de organização da forma de existência espacial dos
entes‖ (MOREIRA, 2008, p. 55). Realmente a espacialidade é o modo de existência
humano, mas não como um estado empírico somente, pois trata-se de um processo que
também tem sua materialidade mas não somente isso – é um ser-no-mundo em que seu
estado empírico-concreto de organização é o mundo (espaço ontológico).
Carlos Santos será outro geógrafo que trará para o debate a espacialidade
humana, de forma peculiar, porém não menos intrigante. O seu discurso da espacialidade
nos remete ao que o autor chama de próteses ou expressões exossomáticas da existência
humana. Segundo C. Santos (2009, pp. 25-26) ―tais espacialidades ganham uma precisão
maior quando adquirem a conotação de extensos humanos ou próteses humanas, de vez
que se trata de produções exossomáticas‖, assim constata um contraposto planeta/mundo,
no qual ―o mundo é um complexo de espacialidades que funcionam como recursos para o
existir humano‖ (ibid., p. 29). Mundo então é uma construção, um espaço ontológico como
forma da existência espacial, no caso nos remetemos à humana, como uma prótese
intrincada que ordena, reproduz e reflete o seu existente, a humanidade – que o
exossomatiza. Porém, a espacialidade não se confunde com o mundo, como quer C.
Santos, mas a espacialidade é processo, um ser-no-mundo, inter-relacionado à forma
mundo. Soja (1993, p. 158) tratará por duas vias o entendimento da espacialidade; primeiro
como um produto social, sendo simultaneamente meio e resultado, pressuposto e
encarnação, não como um processo, o que pode levar à confusão de espacialidade com
espaço ontológico. Na outra via, o autor buscará uma ―volta à ontologia‖, embasando a
espacialidade como existencial do ser. Apesar de não concordarmos ao pé da letra com sua
proposta, pois, a espacialidade não é o existencial (a forma), mas uma existencialidade do
ente existente humano e não do ser – tal ser já fora metamorfoseado em existência pelo ato
de ser –, tem uma parcela de importância as afirmações de Soja. Na ideia trazida de Buber
do ―distanciamento primário‖, no qual ―somente os seres humanos são capazes de objetivar
o mundo, afastando-se dele. E o fazem através da criação de um hiato, uma distância, um
espaço‖ (ibid., p. 161, grifos nossos). Não concordamos ao pé da letra, pois, entendemos
que mundo e planeta formam uma dicotomia (o planeta é uma Subtotalidade enquanto
essência, já o mundo um existencial), então tal objetificação é quanto ao planeta (veremos
posteriormente através da crítica ao estranhamento), na construção de uma realidade
externa à vida; mas, no que se refere ao espaço temos algumas concordâncias, pois a
prótese, forma como espaço ontológico (ou mundo), é de tal artificialização que torna-se um
hiato, como um abismo que separa a humanidade das outras formas de vida, porém este é
113
fato do espaço ontológico humano, não de todos os espaços enquanto próteses dos outros
existentes, pois concebemos que possuem seus existenciais (claro em outras escalas e
complexidades e, principalmente, na não criação de tal hiato, deste abismo existencial para
com a vida).
Seguindo esse parâmetro, em nossa acepção, a espacialidade enquanto
existencialidade é também práxis, pois ―o homem é formador do mundo‖ (BRASIL, 2005, p.
66). Este processo ontocriativo que é a existencialidade, para nós emerge como o conceito
de espacialidade. A inter-relação conceitual da práxis de Kosík, da existencialidade de
Heidegger e o vocábulo ontológico-geográfico utilizado por Moreira, C. Santos e Soja;
resumindo: o ser-no-mundo da expressão por nós cunhada e interpretada. Assim como
citamos Merleau-Ponty alhures, podemos apreender que não há existência espacial humana
sem o mundo. São correlatos de uma presença no mundo, ao mesmo tempo em que ―não
existe mundo sem uma Existência que sustente sua estrutura‖ (MERLEAU-PONTY, 2006,
pp. 578-579). Este ser-no-mundo como processo ontocriativo (e espacialidade) é predicado
e constante devir do mundo pela existência humana. Retomando neste momento a inter-
relação existencial do duplo processo-forma: ser-no-mundo e mundo, espacialidade e
processo ontocriativo.
Cabe em boa hora uma breve verificação de similitude ao nosso entendimento de
existencialidade (a constituição de ser de um ente que existe) e práxis (como processo
ontocriativo). Kosík irá fazer tal definição de processo ontocriativo remetendo à práxis a
esfera de ser do humano, num ―autêntico caráter da criação humana como realidade
ontológica‖ (KOSIK, 1995, p. 222). Nesta práxis humana está contida o próprio modo de ser
que dá realização ao processo-forma, possuindo então uma importância ontológico-
existencial. Assim, nas palavras de Kosík (ibid.), ―a práxis do homem não é atividade prática
contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade‖,
constituindo uma unidade do homem com o mundo, nesse caso sua ontocriação, por esta
via que seria um ser-no-mundo – este ―modo específico de ser do homem‖ (ibid.) no seu
mundo como existencial. Tal termo práxis não é o mesmo que poiésis (como produção
material ou de objetos)72, mas como uma atividade concreta porque não somente numa
externalização de objetos, por ser um processo ontocriativo a humanidade ao
concretamente realizar sua existência e seu existencial (mundo) se autoconstrói e
autocondiciona. É nesse momento que cabe ressaltar segundo Vázquez (2007, p. 219) que
―toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis‖, mesmo que tenhamos diversas
atividades práticas e diversidades de práxis (como artística, experimental, política, teórica,
dentre outras), esta, do ponto de vista como estamos tratando é total, ―que se traduz
72
. Para uma explicação desta distinção entre os termos e significados ver Konder (1992).
114
73
. O que segundo Heidegger (1996, p. 126) seria: o ―modo fundamental de ser da existência humana‖.
115
Marcuse irá se embasar em Heidegger para dizer que o mundo que nos é
preexistente por um lançamento a partir do seu modo de ser, deve ser posto em xeque com
a percepção crítica do ―estar lançado‖. ―No lançamento do ser-no-mundo adquire a
existência humana suas possibilidades a partir da exteriorização transferida, herdada, do
homem‖ (MARCUSE, 1968b, p. 71), no qual este lançamento da existência humana
constituiria a característica do próprio ser da existência humana. Este mundo que é
autocriado originariamente já com a sua existência espacial aflora em sua mundanidade o
estar-lançado, que é justamente a condição de cada ente singular que nasce para o mundo.
Uma mundanidade que o deixa a mercê do modo de ser do processo. Marcuse (ibid., pp.
71-72) irá através de contundentes palavras sintetizar seu argumento crítico, onde ―a
lançada existência humana‖ é o que ―se constitui o próprio ser da existência humana. Sua
liberdade consiste apenas na posse da herança, pronta pela morte, em cumprimento auto-
imposto pela necessidade‖. Esta mundanidade de já-ser-junto-ao-mundo como constituição
fundamental da existência humana através do ser-no-mundo, que como modo de ser lança
o existente em uma negação da vida em toda a sua existência – esta externalização da vida
116
é o que devemos analisar e propor uma mudança; para isso, vejamos a qual problemática
estamos nos atrelando e que briga estamos comprando.
A existência humana está-lançada no mundo através do que ela mesma criou para
si. Lançada no mundo através do Estranhamento. Este é o ser, ou mais precisamente, o
modo-de-ser que buscamos criticar – aquilo que fora tratado por Marx outrora de ―o ser
estranho‖ (MARX, 2006, p. 119). O estranhamento da existência humana é veiculado em
processo (como modo-de-ser) através da auto-alienação humana, gerando tanto uma
alienação objetivada via do trabalho alienado, quanto uma alienação subjetiva; este é o
processo ontocriativo como ―caráter coisificado da práxis‖ (KOSÍK, 1995, p. 74),
transformando a humanidade em um ente estranho em todos os níveis da vida: aos homens,
às mulheres, às diferentes cores (cientificamente definidas e chamadas intencionalmente de
―raças‖), às diferentes culturas e etnias, às outras formas de vida e existência (animal ou
vegetal, microscópica ou macroscópica), ao próprio planeta (estamos sempre achando que
o ―paraíso‖ não é aqui!); e com fito de negar tudo isso num grupo só, chama-se o oposto ao
homem (civilizado, social e cultural) de natureza. Nega-a e a rejeita em prol do mundo-do-
homem. Além de que, o mundo que deveria ser da existência humana é somente para
poucos, isto em prol de mais um estranhamento específico, o do próprio mundo enquanto
existencial, através da propriedade privada; o espaço ontológico o qual criamos e que nos
condiciona é balizado na propriedade privada. A alienação que ―move a presença para o
modo de ser em que ela busca a mais exagerada ‗fragmentação de si mesma‘‖
(HEIDEGGER, 2008, p. 243). Esta é a lei que ―pesa‖ entre nós, como já alertava um tal
filósofo alemão, de ―que nos tornássemos estranhos um ao outro‖ (NIETZSCHE, 2007a, p.
145).
Para adentrarmos com nossas propostas neste intrincado assunto, devemos rever
algumas considerações primordiais para darmos prosseguimento às citações e críticas. Um
dos principais esclarecimentos é acerca da nomenclatura utilizada: a distinção entre
estranhamento e alienação.
A base para este debate encontra-se, principalmente, na leitura da obra póstuma de
Karl Marx (1818 – 1883) que recebera o título (dentre outras variações) de ―Manuscritos
econômico-filosóficos‖ (nas suas obras posteriores, como ―A ideologia alemã‖ escrita em
conjunto com Engels, ainda encontramos os termos estranhamento e alienação, porém, a
ênfase de Marx nessa postura teórica crítica irá perdendo o enfoque). As interpretações
serão variadas, desde a famosa Escola de Frankfurt por Erich Fromm e Herbert Marcuse até
a interpretação lukácsiana do próprio György Lukács, em sua grande obra ―Para uma
117
ontologia do ser social‖, e posteriormente por seu discípulo István Mészáros, mais
especificamente na sua análise da teoria da alienação segundo os ―Manuscritos‖ de Marx.
Os dois termos em alemão Entfremdung e Entäusserung (ou Entäuβerung) são traduzidos
respectivamente como ―estranhamento‖ e ―alienação‖, o que segundo Costa (2005),
merecem distinção, pois em inúmeros trabalhos sobre estas categorias marxianas
encontramos traduções indistintas, assumindo frequentemente a terminologia sintética de
―alienação‖.
A própria tradução brasileira da obra de Mészáros (1981), o termo ―alienação‖
assume, em seu contexto, a síntese das categorias Entfremdung, Entäusserung e
Veräusserung. Em nota a sua introdução explicativa ao tema e à terminologia ―alienação‖, o
filósofo húngaro buscará esclarecer que estes três termos em alemão irão ter conotação de
―alienação‖ ou ―alheamento‖. O terceiro termo será menos utilizado por Marx, nas palavras
de Mészáros, sendo definido como ―a prática da alienação‖. Já Marcelo Backes, em nota à
tradução brasileira de ―A ideologia alemã‖ de Marx e Engels (2007), fará esta distinção
entre, o que o mesmo elege como ―conceito marxiano‖, Entäuβerung (―alienação‖), e o outro
conceito de Entfremdung, que será preferencialmente traduzido como ―estranhamento‖.
Backes mostrará, assim como Costa (2005), que a categoria de análise estranhamento é
posterior à alienação; o Entfremdung de Marx será um conceito com ―concretude‖. Esta será
também a interpretação de Lukács, o que levará Costa retrabalhar nesse sentido.
A autora irá verificar então que:
Seria então o modo de ser estranho da existência espacial humana que externalizará a vida
em todos os sentidos possíveis para poder dar prosseguimento ao seu domínio, a sua
domesticação e alienação do que caracteriza o oposto (alheio) ao seu poder (porém a ser
dominado). Podemos perceber que do estranhamento emerge a alienação, mas, que será
uma reprodução em conjunto, não meramente posterior, tanto ―concreta‖ quanto ―subjetiva‖
– pois através desta subjetividade da alienação deve-se impor a ―naturalização‖ do modo de
ser estranho.
Não buscamos romper com as categorias marxianas, mas, apenas lhes dar nova
roupagem de interpretação, que correspondam aos nossos objetivos por hora. Agora
buscaremos definir esse conceito com a ―criticidade‖ que merece, além de buscar uma não
sintetização dos termos (estranhamento e alienação). Vejamos o que os mesmos
representam em nossa releitura, começando com o estranhamento.
Sartre (1998, p. 96) já esseverava que ―o homem é responsável por aquilo que é‖;
mas, qual relação cabal entre tal afirmativa existencialista sartreana e a nossa acepção de
estranhamento? Basicamente porque tal fenômeno seria o modo de ser estranho da
existência humana, aquilo no qual dançamos conforme a melodia, fazendo de nós muitas
vezes o personagem da música ―Ser estranho‖ do grupo Titãs, no indagar vazio da rotina: ―o
que aconteceu? / o que será que eu sou? / eu sou essa coisa louca / eu sou esse ser
estranho / eu sou esse disco voador / eu sou essa noite escura / eu sou essa criatura / eu
sou esse filme de terror‖. Não sabemos quem somos nós, enquanto entes singulares da
existência humana, porque estamos distanciados de nós mesmos. Nos tornamos esse ente
estranho dado o motivo de que ―o homem não é mais que o que ele faz‖ (ibid., p. 95),
portanto, somos obras de nossas próprias mãos, objetos de nosso próprio modo de ser,
deste estranhamento que nos externaliza de tudo e de todos. E esta não é somente uma
concepção a priori da humanidade, mas uma práxis de como a humanidade se fez e se
pretendeu para suas utilidades.
Nossa reinterpretação do estranhamento parte de um casamento de ideias. Da
proposta de Marx sobre o ―estranhamento‖ e da proposta de Heidegger na relação do modo
de ser-no-mundo com a ―decadência‖. Numa primeira leitura superficial parece-nos que tais
autores são totalmente contraditórios, o primeiro com uma perspectiva que visa uma
revolução concreta do ponto de vista histórico e o segundo partindo de uma abordagem que
seria bastante criticada por Marx, a de uma filosofia de interpretação e não de crítica e
mudança do mundo concreto, um pendor pejorativo de metafísica. Contudo, algumas
leituras foram feitas, posteriormente aos dois autores, no sentido de buscar inter-
relacionamento de ideias, principalmente críticas. O primeiro, que já citamos alhures, é
Herbert Marcuse, trazendo a historicidade para o debate de Heidegger. Seu objetivo é
explicitar que o modo de ser-no-mundo da existência humana está em seu ―lançamento‖ (o
119
que já explicitamos anteriormente). O outro autor é Pierre Bourdieu, que buscou uma
interpretação da ―ontologia política‖ de Heidegger. Segundo Bourdieu (1989, p. 89), o
―estranhamento‖ (ou Entfremdung) pode se reduzir a algo como ―desenraizamento‖, e irá se
constituir como ―estrutura ontológico-existencial‖ do Dasein – seria como uma ―deficiência
ontológica‖ própria da constituição da existência humana. Em prosseguimento, Bourdieu irá
fazer uma citação de Lefebvre sobre a similitude de ideias de Marx e Heidegger, onde ―não
há antagonismo entre a visão cósmico-histórica de Heidegger e a concepção histórico-
prática de Marx‖ (LEFEBVRE apud., BOURDIEU, 1989, p. 119). Dando prosseguimento às
citações, veremos através de Bourdieu que ambos pensadores alemães darão provas de
posturas radicais na questão do mundo, com crítica ao passado e preocupação com o
futuro; e, além de Heidegger somente buscar nos ajudar a entender Marx criará um estilo
particular no qual irá continuar, de certo modo, a obra crítica de Marx.
Neste momento que entrecruzaremos as duas acepções, de estranhamento em Marx
e decadência em Heidegger.
A ―decadência‖ (Verfallen) da existência humana em Heidegger remete à estrutura
existencial que é a existência humana e seu mundo. Esta ―decadência é uma determinação
existencial da própria‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 241) existência humana. Esta decadência em
Heidegger é o modo de ser no mundo, o que interpretamos como um estranhamento
enquanto o modo de ser da existencialidade da existência humana no mundo. Tal
estranhamento ou decadência fez com que a existência humana se aprisionasse em si
mesma, naquilo que ela mesma se proporcionou. Este estranhamento é esta decadência
porque a existência humana fez-se numa ―fuga decadente de si mesma‖ (ibid., p. 252), isto
se tornou algo inerente à existência humana – tal qual uma ―condição humana‖ que se
assemelha com o ―estar-lançado‖. Temos então essa sensação de angústia, de uma
estranheza onde não nos sentimos familiarizados (―em casa‖) com nós mesmos, como em
uma negação de nosso próprio ser antes deste modo de ser proporcionado pela
existencialidade da existência humana; esse processo ontocriativo enquanto práxis, que
possui como modo de ser almejado (para as realizações humanas): a estranheza.
Sentimos-nos estranhos e angustiados por essa oposição deste ser estranho, nos
fazendo sentir como um ―cristo redentor‖, com nossos fardos, ou como uma criatura em um
longo filme de terror. Mas, como dissemos referenciados em Sartre, este modo de ser
estranho é o condicionamento da própria humanidade; aquilo que Marx (2006, p. 132) irá
esboçar como ―ser-externo-a-si-mesmo, a exterioridade real‖ da existência humana. Este é
um poder que nos parece estranho, que está à margem e não em nós, ou como nas
palavras de Marx e Engels (2007, p. 57), ―que não sabem de onde ele procede nem para
onde ele se dirige, um poder que eles não podem mais dominar, portanto, mas que, pelo
contrário, percorre uma série de fases e etapas do desenvolvimento peculiar e independente
120
da vontade e dos atos dos homens, e que inclusive dirige esta vontade e estes atos‖. Este é
um sentimento de impotência perante um poder de externalidade, mas que na verdade
encontra-se em todos nós entes singulares da existência humana; não é somente algo
externo e por isso causa estranheza, é estranho porque não fomos nós os criadores diretos,
mas fomos lançados nesta existência para reproduzi-los, e reproduzir a exterioridade real –
o verdadeiro estranhamento.
Erich Fromm irá fazer uma proposta de análise do ―estranhamento‖ em Marx bem
intrigante e frutífera, que terá algumas abordagens gerais próximas da que estamos
tratando. Segundo Fromm (1979, p. 46), a base deste pensamento em Marx será de que a
humanidade tornou-se alheia a si mesma (à natureza – vista como externa – à natureza
humana, às coisas, aos outros entes vivos e a si mesma, aos outros entes singulares). A
existência humana é repleta ―de manifestações exteriorizadas de sua capacidade‖ vital.
Então, a preocupação de Marx não é somente do ―estranhamento‖ da humanidade em
relação ao seu produto ou apenas ao seu trabalho, na acepção de Fromm, mas, um
estranhamento da humanidade em relação à vida, e principalmente de si mesma. Fromm a
caracteriza como ―a doença do homem‖, não como uma doença nova, uma novidade
tecnológica e informatizada, pois, tem seu princípio com o inicio da civilização que
transcende o antigo modo de ser tratado como primitivo (ainda não civilizado) – esta, diz
Fromm (ibid., p. 50), ―é uma doença de que todos sofrem‖.
Em outro momento, Fromm (1970) irá despertar este entendimento mais amplo do
estranhamento. O autor irá dizer que este ―estranhamento‖ é uma negação da
produtividade, referenciando-se em Marx, pois segundo o mesmo a história da humanidade
é uma história de desenvolvimento crescente do ―estranhamento‖; para nos livrar do
―estranhamento‖ devemos voltar para nós mesmos e não procurar ainda mais coisas e
sentidos externos. Este modo de ser estranho significa que a humanidade não se
experimenta a si mesma como um fator ativo, vivo, em relação ao mundo, mas
permanecendo externa, uma externalidade real ao ser. O que presenciamos na
institucionalização das ciências, com a distinção entre sujeito e objeto, nada mais é que uma
representação do que o estranhamento vem desenfreadamente se espraiando sobre a
humanidade, cada vez mais. Este estranhamento é uma não experimentação do mundo tal
como ele é. Temos uma pseudo-experimentação passiva, uma dicotomia entre nós mesmos
e o mundo, entre a existência humana e a vida. Nesta estranheza para com nossas próprias
forças vitais, esta negação do contato conosco é revertida, segundo Fromm (ibid., p. 56),
num culto aos ídolos. Nessa negação da potencialidade humana em sentido lato (não numa
potencialidade mental ou produtora antropocêntrica especista) transferimos toda nossa
plenitude para os ídolos. Estes ídolos são representações, da qual a maior delas é a própria
representação humana, o que a própria humanidade representa para si mesma – isto
121
Um consenso sobre o que seria a vida como um todo não tem uma definição
suficiente para totalizar os fenômenos que caracterizariam tal estado da matéria
(assimilação, adaptação, exaptação74, crescimento e possibilidade de reprodução) que o
pensamento científico corrente classifica com o nome de vida. E além destas ideias mais
genéricas temos a imbricação não muito entendida entre vida e morte (geralmente sendo
levadas para o campo metafísico, ou de especulação ―religiosa‖), no qual a maior
problemática parece ser de uma visão não integrada, onde vemos somente vida/morte e não
vida-morte como processo vívido – pois sem a chamada morte inexistiria o processo de
vida. Desta interpretação dicotômica emerge outra problemática: como é que sabemos se
uma dada entidade é ou não um ente vivo? Seria mais simples traçar um conjunto prático de
critérios nos limitando à vida na Terra tal como a conhecemos, como por exemplo:
crescimento, produção de novas células; metabolismo, consumo, transformação e
armazenamento de energia e massa, crescimento por absorção e reorganização de massa,
excreção de desperdício; movimento, movimento próprio ou movimento interno; reprodução,
a capacidade de gerar entidades semelhantes a si próprias; resposta a estímulos, a
capacidade de avaliar as propriedades do ambiente que a rodeia e de agir em resposta a
determinadas condições. Porém, toda regra, principalmente uma que contenha em sua
tentativa de definição algo vívido (que é a própria tentativa de definição de vida), tem
algumas exceções. Então, conforme os critérios citados poder-se-ia dizer que: o fungo tem
vida pela presença de alguma estrutura que delimite a extensão do ente vivo, como a
membrana celular, levantando novos problemas na definição de indivíduo em organismos;
as estrelas (entes siderais) também poderiam ser consideradas entes vivos, por motivos
semelhantes aos do fungo; entes como a ―Mula‖ dentre outros híbridos não são seres vivos
se adotarmos as restrições de reprodução, porque são estéreis e não podem se reproduzir,
o mesmo seria aplicado para todos os entes (inclusive humanos – imagine humanos vistos
como não-vivos?) estéreis ou impotentes. Se nos referirmos aos vírus e afins que não são
considerados entes vivos porque não crescem e não se conseguem reproduzir fora da
célula hospedeira, mas muitos parasitas externos possuem semelhantes características.
Portanto, a conceituação religiosa, filosófica ou científica sobre vida pode ser
altamente especulativa, pois se torna um problema a ser desvendado e não um processo
vívido e contínuo sem intermitência, tal qual concebemos pela dicotomia vida/morte. Até a
concepção mais ampla do biocentrismo pode ser reducionista dependendo de sua
concepção de vida. Mais recentemente tivemos especulações científicas que remontam
como origem da vida justamente o inorgânico: a argila, como num inconsciente do ―barro
74
. Exaptação é uma adaptação biológica que não teve um processo dirigido principalmente por pressões
relacionadas à sua atual característica ou particularidade. Em vez disso percorreu processos diferentes
relacionados a uma adaptação para outras características, até que eventualmente chegou a uma forma ou
construção em que veio a ser utilizada para uma terceira via, uma nova particularidade.
123
bíblico‖. A argila seria uma base para o entendimento de como os compostos orgânicos se
transmutaram para um material genético auto-replicante. Os cristais, e inclusive os de barro,
são auto-replicantes, sendo um traço fundamental dos entes vivos (MORAIS, 2003). Como
responder ao que seja vida pelas contra-regras expostas? E o inorgânico, se apresenta
padrões semelhantes, como algo visto como inanimado se aproxima do que também somos:
vívidos.
Tal panorama resumido sobre a vida enquanto ideia pode nos fazer prosseguir sobre
o modo de ser que exterioriza a vida, o estranhamento. Portanto, a vida não é o que é
concebido, pois isto já é uma postura posterior à exteriorização prática da mesma, pois
ideias e pensamentos buscaram na existência humana (como vimos) justificar
acontecimentos e através destas justificativas ―fundamentadas‖ darem o poder de
continuarmos no mesmo processo. Tal processo de colocar a vida à margem da
humanidade é justamente de negar qualquer entidade que não tenha a finalidade
antropocêntrica especista, no qual esta humanidade é o centro dos acontecimentos e todo o
resto é qualificado em espécies como inferior a esta humanidade. Porém, tal modo de ser
não é concepção somente, emergiu de práticas, e estas sim foram as exteriorizações: a
antinatureza (domesticação da ―natureza humana‖ e consequentemente a natureza não-
humana em benefício da própria ação humana – conformando uma condição humana auto-
domesticada); o androcentrismo (a repressão da sexualidade e não somente do sexo em si,
onde o domínio do gênero ―homem‖ – dos iguais – irá subjugar o feminino, e
consequentemente suas sensações e sexualidade, assim a repressão da sexualidade é uma
autodomesticação humana do feminino, da natureza de geração da vida em detrimento da
imposição da razão androcentrada e controlada); e o domínio da lógica e da linguagem (na
construção subjetiva do cabedal racional que reafirmará e dará condições de
prosseguimento à exteriorização da vida em processo – com estes padrões de
comportamento sendo simbolicamente demarcados torna-se mais fácil a perpetuação do
modo de ser). Estas exteriorizações é o que iremos sumariamente tratar a partir de agora.
Comecemos com a exteriorização via da antinatureza, ou no que podemos tratar
como ―domesticação‖. A domesticação, para nós, chamados de iguais, pela lógica
classificatória (e hierárquica) das espécies, ou homo, no que segundo Biro (2007, p.2) ―a
palavra ‗homo‘ significa ‗semelhante‘‖ ou a palavra latina para "pessoa", é atrelada somente
aos outros animais, sendo vistos sempre como objetos de nossa domesticação da natureza.
Raramente cogitamos se tratar de uma autodomesticação de nossa própria ―natureza
selvagem‖ para uma natureza controlada, mas o que nos parece, é que o modo de ser de
exteriorização da vida é antes de tudo uma antinatureza, no sentido de que o homem
domestica a si mesmo para em seguida aplicar a domesticação ao que ele também
pretende controlar – além de si mesmo. Nietzsche (2008, p. 148) irá asseverar que fora feito
124
―do próprio homem o melhor animal doméstico do homem‖, uma mediocridade que se passa
como moderação. Concordamos com esta afirmativa do filósofo alemão, pois, o que a
humanidade mais buscou para o estabelecimento de um mundo a seu dispor utilitário é
própria domesticação; o próprio controle das vontades e atos em si que pudessem demolir
toda a necessidade compulsiva de dominação sobre a sub-totalidade geográfica Terra.
Nesse sentido, Marcuse (1968a, p. 51) irá utilizar o termo ―arregimentação repressiva‖ para
sintetizar a domesticação humana de seus próprios desejos. A domesticação humana é uma
arregimentação (organização, ordenamento, conformação) repressiva (coerção, castigo,
punição ou recompensa) e do mesmo modo aderimos esses métodos para domesticar tudo
o que se interpôs no caminho da longa (porém curta) civilização do mundo humano, ―pois a
domesticação de outras espécies é resultado de um processo de autodomesticação do
homem‖ (ZERZAN apud., BIRO, 2009, p. 1).
Esta autodomesticação pode ser encontrada na análise crítica do discurso de
Mészáros (1981, p. 16), que irá traçar quatro características da exteriorização da vida pelo
estranhamento, que interpretamos da seguinte forma: 1) a humanidade encontra-se
exteriorizado da natureza selvagem; 2) está exteriorizada de si mesma (de sua própria vida
enquanto ente co-pertencente à sub-totalidade Terra); 3) de seu ―ser genérico‖, ou de seu
pertencimento enquanto membro da espécie humana; 4) a humanidade produziu uma
exteriorização da vida de entes singulares humanos de outros humanos, um individualismo
egoísta. A base deste modo de ser como práxis humana é o que Moreira (2007, p. 135) irá
frisar como ―desnaturização‖, ou o que estamos explicando como antinatureza, no qual a
humanidade é esvaziada ―de suas propriedades ontológicas mais profundas‖. Profunda
justamente por se tratar de um modo de ser da práxis, não somente de um discurso ou de
uma concatenação lógica, mas de uma prática material e de uma lógica inter-relacionada
com esta mudança ontológica. Será Konder (2009, p. 70) que irá caracterizar tais fatos com
a ―história concreta e das condições materiais de vida dos homens‖, devido que a
profundidade ontológica que modificará a práxis humana será a base para a conformação
de sua história concreta e principalmente das suas condições materiais de vida humana, o
mundo humano, seu espaço ontológico.
A antinatureza desta autodomesticação humana, Konder (ibid., p. 63) irá caracterizar
como um processo segundo o qual a humanidade não mais era composta de criaturas que
pertencessem à natureza selvagem ―da mesma maneira absoluta em que a ela
pertencessem os animais‖, a natureza além de ser dominada será algo visto como de fora.
Esse processo será um movimento em que a natureza selvagem passará a ser sujeitada,
numa transformação de tudo em objeto, utensílio utilitário (aqui não como uma redundância,
mas como um reforço de palavras para caracterizar a utilidade da vida nas mãos humanas
que através de seu uso procura tirar vantagem, proveito próprio) da ação humana. Seria o
125
―estabelecimento, pela primeira vez na historia do reino animal, de uma relação prática entre
um sujeito e um objeto‖, será muito antes de o pensamento cartesiano institucionalizar a
dicotomia sujeito/objeto nas ciências ―a primeira diferença importante estabelecida‖ (ibid.)
através de um modo de ser da práxis humana. Segundo Zerzan (2006, p. 5), ―antes da
domesticação, (...), a existência humana passava essencialmente no ócio‖; Konder afirmará
que as parcelas anteriores ao ―nascimento‖ da humanidade limitavam-se a consumir
somente ―aquilo que a natureza já lhes oferecia em estado de coisa pronta para consumo‖,
não era uma vida sedentária ainda, mas de um amplo nomadismo. A adaptação e
exaptação humana ―conseguiu iniciar a separação do homem e a natureza, bem como a
destruição progressiva desta‖ (Zerzan, 2006, p. 27), e além da submissão da natureza
selvagem do entorno através das caças de grandes mamíferos, a ritualização com intuito de
estabilizar a repressão foi o caminho para conformar a autodomesticação da natureza
selvagem vista como maligna para os interesses dominadores da humanidade que avança.
Além do velamento da natureza selvagem através da institucionalização cotidiana de uma
hierarquia prática (como a caça) dos humanos para as outras espécies animais, a
desarmonia corporal dos humanos será cada vez mais intensa. Os corpos selvagens e
integrados darão lugar a corpos como ―objetos estrangeiros‖ sobre o qual o sujeito humano
(exteriorizado) atua; seria ―a lógica da domesticação, com suas exigências de total
dominação‖ (ibid., p. 78) – da mente selvagem em humana, do corpo integrado em
arregimentado e da natureza como um todo para um utensílio da dominação humana que
busca tirar seus proveitos egoístas.
A primeira distinção da autodomesticação humana perpassada para seu próprio
mundo, oposto ao planeta integrado em que vivera, de uma sujeição da natureza selvagem
ao seu ímpeto de dominação e expansão de seu utilitarismo auto-centrado irá arregimentar
outras tantas dualidades também importantíssimas para a conformação da existência
humana. As dicotomias de sagrado/profano (a busca das re-ligações sagradas para deter o
profano selvagem); distante/próximo (o estabelecimento de distancias hierárquicas, desde
as antropocêntricas especistas até o caráter androcêntrico); desvio/norma (a base para a
estruturação das repressões na base da existência humana – as oposições entre o tolerável,
norma de conduta, e o perigoso para a desestruturação de toda a ordem, o classificado
como desvio de conduta ou até loucura); e o consciente/inconsciente (a relação da
educação das regras impostas para a autodomesticação introjetadas na reprodução da
existência humana de forma inconsciente para que o consciente seja ―naturalizado‖ como
―instinto‖). Assim a primeira dualidade gerará ―outros contrastes‖ pelos quais ―outras
oposições emergirão na cena‖ (RODRIGUES, 1986, p. 24) da existência humana.
Tais oposições irão se conformando no cotidiano corpóreo (vivido) como um tabu à
natureza selvagem, porque pulsões que devem ser controladas para a manutenção do
126
noção de servilismo do planeta Terra para com a existência humana passa ser expressa
através da produção de ferramentas. A partir desta lógica a humanidade processualmente
buscou na natureza, tanto interna quanto externa, o exclusivo benefício utilitarista próprio
para a existência humana.
A vida passa a ser uma utilidade instrumental, e nos relacionamos por meio destes
instrumentos. O imediato dos sentidos se rompe e ao contato direto se dá a interposição dos
instrumentos, desde ossos ou rochas minimamente utilizados até os artefatos tecnológicos
contemporâneos, lá está o instrumento entre os entes – entre a humanidade e o que ele
procurou dominar. E esta instrumentalidade utilitarista domesticadora é utilizada, antes de
mais nada, sobre nós mesmos. Biro (2009) irá demonstrar algumas relações etológicas da
domesticação humana em relação aos outros animais, posteriormente domesticados pelos
humanos. Nesse sentido ―é visível no animal domesticado a perda de certas características
físicas, como o crescimento de pêlos. A perda de tais características não é necessariamente
genética, pois essas características são reguladas por hormônios (...). Isto quer dizer que
estas características não foram eliminadas da espécie, mas apenas inibidas‖ (ibid., p. 1).
Por outro lado, os indivíduos domesticados se tornam mais propensos a ferir
sistematicamente através do estresse de confinamento, condições inadequadas de vida,
solidão, perda de companheiro, mudança de habitat, ansiedade, dentre outros. Biro irá
também explicar que espécies domesticadas por várias gerações podem vir a ter sua
capacidade de sobrevivência modificada, além da indisposição para a atividade corporal
através possibilidade de alcançar a comida com menos esforço pode levar ao acúmulo de
gordura, sendo somado à ansiedade resultará, dentre outras, no alto índice de doenças
cardíacas e infartos entre animais domesticados.
Porém, a domesticação mais perceptível é quanto ao comportamento sexual, por ser
o comportamento mais importante para a perpetuação da vida e por envolver uma grande
trama, não só genital, mas um complexo de sexualidade corporal. Segundo Biro (ibid.),
―animais domesticados tendem a ser menos seletivos quanto a seus parceiros sexuais. Este
efeito é chamado de vulgarização sexual‖. O antropocentrismo domesticador tomará os
caminhos do androcentrismo como repressão da sexualidade e de suas sensações como
autodomesticação humana do feminino. Para Boff (1995, p. 113), ―este antropocentrismo,
quando considerado historicamente, se desmascara como androcentrismo. É o varão e
macho que se autroplocama senhor da natureza‖, assim o feminino que irá sendo instituído
como mulher, será considerada pelo homem, ou macho alfa (dominador, competitivo e
egoísta) como a expressão humana da natureza selvagem que ele deve possuir com
exclusividade para fins utilitaristas (seja de trabalho, manutenção da prole ou objetificação
sexual), domesticando-as pelos moldes androcêntricos.
128
Assim a existência humana irá ser baseada nos parâmetros do varão, centrada na
masculinidade que a domesticou, reprimindo tudo o que for feminino tanto no homem quanto
na mulher, acabando por introjetar ―nas mulheres esta autocompreensão do ser humano
como um todo, alienando-as de sua própria singularidade como mulheres‖ (ibid.). Nietzsche
(2007a, p. 75) dará os moldes para esta domesticação androcêntrica: ―são os homens que
corrompem as mulheres! E todas as falhas da mulher devem ser expiadas pelo homem e
corrigidas por eles: pois é o homem que cria a imagem da mulher e a mulher se modela
conforme essa imagem‖.
A imagem que servirá de modelo para a existência humana será masculina. Este
androcentrismo é o fenômeno da autodomesticação humana do feminino e de sua
sexualidade aparente. Este fenômeno está intimamente ligado ao surgimento do patriarcado
e de sua noção75, porém não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também da
forma como as experiências masculinas são consideradas como iguais às experiências de
todos os humanos e tidas como uma norma universal tanto para homens quanto para
mulheres. Evitando assim de dar o reconhecimento completo e igualitário à sabedoria e
experiência feminina. É uma tendência quase universal de se reduzir a ―raça‖ (espécie)
humana ao termo ―o homem‖ de forma excludente, ilustrando um comportamento
androcêntrico lógico. A exteriorização da vida como modo de ser da existência espacial
humana tenta calar as vozes e enclausurar os corpos femininos. Zerzan (2006) irá mostrar-
nos uma proposta de análise para esta conduta androcêntrica da existência humana.
Segundo este mesmo autor, a divisão sexual do trabalho é fundamental para este
entendimento, pois seria primordial na humanidade. A partir deste processo a materialização
da subjugação da mulher irá estar associada à dominação da natureza (externa e interna,
numa simbiose), construindo então algo inexistente fora da ótica da existência humana: a
divisão de gênero. Com a proto-organização da existência humana e sua inicial busca de
autodomesticação, a dominação das mulheres, dos outros animais e das plantas será a
base material que conformará a chamada ―revolução agrícola‖ – vejamos que a revolução
não é algo somente em busca de uma proposta menos autoritária, aqui veio esta para
mudar a condição harmônica do que podemos chamar de evolução, por isso a ―primeira‖ re-
evolução humana.
75
. O androcentrismo é parte da dominação patriarcalista, do homem sobre a mulher, que perdura entre nós
desde a Idade do Cobre (entre o Neolítico e a Idade do Bronze), que foi legitimada explicitamente pelas duas
religiões mais seguidas do mundo – o cristianismo e o islamismo – tornando-se majoritárias no mundo depois do
avanço islâmico e da dominação colonialista européia. O comportamento androcêntrico de quem fala (sendo a
voz da religião, da ciência ou do senso público comum) do ―homem‖ como se fosse o ser humano em sua
totalidade é uma naturalização deste patriarcalismo. O uso da palavra ―homem‖ como sinônimo de ser humano
somado ao não-uso da palavra ―mulher‖ nesse mesmo propósito é uma postura que reafirma o androcentrismo,
como uma forma de banalizar a hegemonia masculina, a dominação de um gênero que se quer destruidor,
competitivo e agressivo em cima do gênero feminino subjugado.
129
somos destrutivos de muitas maneiras. Olhe ao seu redor. Todas as coisas que
estão profundamente associadas à vida são condenadas. O sexo é condenado (...).
É porque o sexo parece ser a fonte da vida; parece ser a energia original que move
o mundo (RAJNEESH, 1993, p. 99, grifos nossos).
Então, aqueles que são contra a natureza (sem dicotomias, seja ela interna ou
externa), ou melhor, contra a vida, serão contra o sexo e sua sexualidade corpórea. E nessa
―dança‖ incessante de busca de negação da vida, a autodomesticação da existência
humana irá além do feminino, do sexo e da sexualidade; irá reprimir também a criança. Este
singular ente vivo que será domesticado em todos os momentos para controlar, reprimir e
ter medo de sua natureza interna, introjetando assim a autodomesticação da existência
humana no período rotulado de infância – ou este período de maior arregimentação
repressiva. Neste período será preciso para a humanidade ―cegar todas as crianças para
que elas, como nós – sua Tradição Sagrada – não vejam o que estamos fazendo conosco e
com nossos semelhantes‖ (GAIARSA, 2002, pp. 82-83). E nesse processo da existência
humana ―todas as pessoas ao redor são loucas e forçam a criança a ser como elas. Elas
matam sua liberdade e lhe incutem o sentimento de que está errada, de que sempre está
errada (...). e você começa a odiar a si mesmo‖ (RAJNEESH, 1979, p. 83), a existência
humana como um todo e cada ente singular humano passa a odiar a si mesmo – a
humanidade se odeia por odiar a vida que é ―contrária‖ (na prática) a sua proposta de
domesticação. Nesse período chamado de infância, a criança irá passar pela conjugação
concreta (porque vivida em si mesma no aqui e agora para moldar um futuro) da
domesticação do feminino e da erogeneidade76 em um constante movimento de controle,
repressão e negação de sua erogeneidade. O que será próximo da representação sexual
nos movimentos e atitudes da criança perante si mesma e perante os outros será inibido ou
negado: o simples fato de se naturalizar a inexistência da erogeneidade na criança.
E a criança será além da concretude do processo de autodomesticação o momento
de completar este ciclo. Marcuse (1968a, p. 66) irá tratar tal momento como a ―filogênese‖
na origem da civilização repressiva naquilo ―que o comportamento do individuo adulto pouco
76
. Aqui se deve preferir tratar da repressão infantil como uma repressão da erogeneidade, ou, a capacidade de
qualquer parte corporal de originar alguma excitação sexual, isto é, de ser uma zona erógena. A explicação
básica é que não podemos chamar de repressão sexual ou da sexualidade infantil pela ainda latente presença
de hormônios e não sua presença efetiva, e também por ambos, menina e menino, não possuírem gametas:
óvulo e espermatozóide.
131
mais é do que uma repetição padronizada das experiências e reações infantis. Mas as
experiências da infância que se tornam traumáticas sob o impacto da realidade são pré-
individuais e genéricas‖; a repressão é abarcada genericamente na criança através,
principalmente, da família. Esta é organizada por relações de autoridade, de papéis
distribuídos por sexo e idade, de deveres, obrigações e direitos, castigo e recompensa,
sendo nesse contexto que a família realizará a repressão sexual. Não sendo nada aqui
relacionado com um sistema de parentesco que se toma como natural, mas contraditória a
este. Títulos como os de ―pai‖ e ―filho‖, ―implicam em sérios deveres recíprocos,
perfeitamente definidos‖ (ENGELS, 2006, p. 34).
Assim a família irá, como sua origem etimológica desvela, escravizar propriedades
de um mesmo homem, segundo nos elucida Engels (ibid., p. 60). Mesmo que a sua origem
como conhecemos hoje no mundo ocidental, a família monogâmica, seja recente e muito
atrelada às repressões e desigualdades vigentes, tal forma de agrupamento existencial é
duradoura, mesmo que tenha sido alterada, porém permanecendo a mesma base:
autodomesticar o grupo sexualmente, do poder de si mesmos; eliminando cada vez mais o
teor vívido das relações, tornando-as mais previsíveis e, consequentemente, menos não-
humanas. Nesse sentido que os entes singulares que irão perpetuar esta exteriorização da
vida pela autodomesticação se considerarão (e até sentirão, por acreditar que seu caminho
é o único possível) ―‗felizes‘ por seguirem um procedimento que acreditam ‗natural‘ e ‗justo‘‖
(RODRIGUES, 1986, p. 79). E esta falsa justiça é justamente a que condenará a própria
humanidade através da negação da vida, o modo de ser como estranhamento. As
autodomesticações do feminino, do sexo e da sexualidade e da erogeneidade infantil serão
segmentos de um todo que é maior do que isto, como já dissemos: a exteriorização da vida.
Porém, este processo não é o fim, mas somente o começo. O domínio da lógica e da
linguagem será outro fator importantíssimo no processo, na construção subjetiva da
racionalidade que reafirmará e dará condições de prosseguimento à exteriorização da vida,
através de padrões de comportamento simbolicamente demarcados para a perpetuação do
modo de ser que é o estranhamento.
Nas palavras de Nietzsche, ―a Terra é há muito tempo um manicômio‖ (NIETZSCHE
apud., MARCUSE, 1968a, p. 117), por aquilo que Marcuse irá explicar como sendo a lógica
uma subjugação dos instintos, ou, para sermos mais fiéis às palavras do filósofo: ―Logos é
razão que subjuga os instintos‖ (MARCUSE, 1968a, p. 118). Contudo, podemos observar
um paralelo muito importante nesse ponto de vista: primeiro, esta lógica será o momento de
dominação ―simbólica‖ dos ―instintos‖, ou do que já viemos tratando como natureza interna-
externa e/ou natureza selvagem (seja essa dominação tanto como uma confirmação do que
já fora feito quanto uma busca de organizar mentalmente e perpassar nas futuras gerações
tais controles e dominações); segundo, uma distinção entre razão e lógica, demonstrando
132
sutilmente que a lógica é posterior à razão, e apresentado também uma conotação negativa
em relação à neutralidade do termo razão. A razão parece surgir como uma condição da
vida ou de um organismo que possua organização mental para o feito, já a lógica não seria
uma evolução da razão, mas sim uma busca imaterial de ainda mais estranhamento.
Mas qual será a origem desta lógica (ou do ―lógico) na mente, ou na razão humana?
Filosoficamente, Nietzsche irá delatar que foi justamente do ilogismo, principalmente no seu
surgimento. Este ilógico é pelo que explica o filósofo:
O ilógico é justamente esta injustiça que é a luta contra nós mesmos, ou seja, uma
autodomesticação forçada dos nossos ―instintos‖, que pode ser lido como a natureza
selvagem (pré-domesticada), condicionando a existência humana. Claro que este é a
princípio um jogo de palavras, mas que nos ajudará a retratar que o lógico aparecerá no
momento em que a autodomesticação humana já está em curso de ser reproduzida; e para
buscar não somente responder a questão de quando surgiu tal lógica, vemos que a
linguagem foi talvez concomitante com o surgimento daquela. É o que Nietzsche mais uma
vez irá dizer que este homem (aqui neste caso demonstrando existencialmente a dominação
androcêntrica da humanidade) julgou ―realmente possuir na língua o conhecimento do
mundo‖ (NIETZSCHE, 2005, p. 28); então, a linguagem tornou-se a proto-ciência desta
humanidade que construiu para si um ―mundo metafísico‖, no qual as dominações tanto
internas quanto externas serão linguisticamente organizadas para se auto-perpetuar ou
auto-justificar.
Porto-Gonçalves (2006b, p. 125) irá ressaltar esta característica metafísica da
linguagem por outras vias explicativas, expondo que a humanidade buscou e ainda busca
(hoje através da ciência) dizer por via da linguagem o reflexo da realidade externa do
mundo, isto ―é não compreender que por meio da linguagem os homens criam mundos de
significação e não simplesmente o refletem‖. Ideia esta que acaba naturalizando a
linguagem, não a vendo como uma criação (abstrata) humana. A linguagem será então um
sistema de classificação, no qual o mundo existencial será construído a partir destes
códigos lógicos e linguísticos. Tais classificações demonstram a autodomesticação humana
do caos visando seu ordenamento para fins utilitaristas. Nesse sentido, o medo maior da
humanidade ―é o de defrontar-se com aquilo que não pode controlar, seja por meios
técnicos, seja por meios simbólicos‖, assim, a linguagem como expressão da lógica ―gera a
lei e a ordem, e a expectativa de organização responsabiliza-se por todo o medo à anarquia
133
77
. Cientificamente, através de pesquisas, especulações e algumas possibilidades, o dito primeiro representante
do gênero homo é o homo habilis, ou humano habilidoso que vivera há aproximadamente dois milhões de anos
antes da Era Cristã. Habilidoso por ser atrelado a este as primeiras produções de utensílios em osso, madeira e
pedra (lascada) para usufruto próprio. Os símbolos materiais nesse momento já existem, mas o sistema
linguístico parece ainda não ser utilizado, pelo menos de forma estruturada, próxima ao contemporâneo.
134
chegando-se ao seu ápice que é a descoberta (da verdade lógica) e sua justificação
(SALMON, 1969). Resumindo de modo mais ordenado o que buscou esta lógica humana:
justificar de forma abstrata toda a autodomesticação e o estranhamento – uma ordenação
intelectual do ―caos ilógico‖ da vida – ou do que é a vida. Nietzsche será um dos mais
árduos críticos deste movimento, do socratismo advindo do filósofo Sócrates (c. 470-c. 399
a. C.), difundido posteriormente por Platão (c. 428-c. 348 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.)
aquilo que seria as bases da filosofia e ciência do mundo ocidental, chamado pelo filósofo
alemão de ―déspota da lógica‖ (NIETZSCHE, s.d., p. 91). Seria Sócrates o ―homem teórico‖
que teria a postura otimista frente à teoria em contrapartida da prática pessimista. Um
grande momento para consagrar a lógica humana ocidental contra a vida, a prática
pessimista: esta é mais uma fase da exteriorização da vida de que tanto falamos. A partir
desse momento o conhecimento teórico seria incorporado à vida dominada da existência
humana. E eis o que Nietzsche (2007a, p. 106) exaspera sobre tal conhecimento: ―o
intelecto, durante muitos séculos, não criou nada além de erros‖. E para retomarmos a
nossa herança, desde mitos até religiões temos a conformação da moral, essa que ―é uma
tirania contra a ‗natureza‘ e também contra a ‗razão‘‖ (NIETZSCHE, 2007b, p. 103), é uma
antinatureza produzida pela humanidade contra a razão da vida e não uma verdade
inquestionável. Tal moralidade irá criar os costumes e a nossa aceitação dos mesmos por
um senso público comum imposto, às vezes de modo coercitivo como um ―desígnio oculto
de vingar-se da vida‖ (NIETZSCHE, 2003, p. 153). O ápice desta lógica: a aceitação destas
justificativas – sendo o vértice derradeiro desta odisseia ilógica da existência espacial
humana, a ciência, cujo surgimento e intenções já demonstramos brevemente no capítulo
anterior.
Retornando a questões práticas, afinal, em que momento da existência humana tais
experiências de autodomesticação foram tornando-se ordenadas de forma menos
esporádicas? Primeiramente, para respondermos precisamos de dois limiares: um temporal
e outro de espécies humanas. O temporal ajudará a chegarmos aos meandros desta
revolução que está por vir, e o de espécie humana por justamente delimitar qual espécie de
ente humano irá condicionar com o estranhamento a sua existência. O período do chamado
Paleolítico inferior, entre três milhões e duzentos e cinqüenta mil anos atrás, será o marco
para as adaptações do gênero homo que irão conformando as bases para o nomeado homo
sapiens sapiens (nada mais cartesiano, o penso logo existo, agora reafirmado pelo sei que
penso logo existo como humano!). Na Europa e na África de outrora, o homo sapiens irá
convivendo e se readaptando ao seu mundo até por volta de cem mil anos atrás, período no
qual irá se aparentando o homo sapiens sapiens, com uma linguagem já previamente
elaborada pronto para um dos momentos de maior diferenciação no modo de ser da
humanidade, que a partir de então somente seria alargado cada vez mais. O momento de
135
78
. Segundo Zerzan (2006, p. 68): ―Simone de Beauvoir (1949) reconheceu na equação do arado e do falo um
símbolo de autoridade masculina sobre a mulher‖.
136
mesmo processo para nos tornar alienados, como nos figura Darcy Ribeiro (2000, p. 46) em
nota para o comportamento humano com o estabelecimento da Revolução Agrícola:
dentro de cada comunidade local, os novos membros alcançam direitos iguais aos
de todos os outros, pelo mesmo processo através do qual aprendem a língua e se
tornam herdeiros do patrimônio cultural comum. A qualidade de membro do grupo é
que os faz usuários do esforço coletivo de provimento das condições de
sobrevivência e de crescimento de sua sociedade. Cada indivíduo sabe fazer o
mesmo que qualquer outro; dedica-se a tarefas idênticas – exceto os papéis já
diversificados de chefes e sacerdotes –, convivendo em um pequeno mundo social
em que todos os adultos se conhecem e se tratam pessoal e igualitariamente.
o domínio dos objetos e das instituições sociais, produzidas pelos homens, sobre os
próprios homens, escravos portanto das próprias forças que objetivamente se
tornaram forças naturais incontroláveis, mais incontroláveis do que as próprias
forças naturais (QUAINI, 2002, p. 48).
que desencadeia a alienação porque ele mesmo é alienado, pois é através do trabalho que
a humanidade produz-se a si mesma, no processo de auto-poiesis.
Como nos relembra Konder (2009, p. 40), ―esta concepção do homem como
autocriação, como ser que se produz a si mesmo pelo trabalho humano, é um dos
fundamentos essenciais da filosofia marxista‖, sendo tanto a alienação quanto o trabalho
alienado fenômenos entendidos através desta atividade criadora da humanidade. Os
fenômenos em que a humanidade ―produz os seus meios de vida e se cria a si mesmo‖.
Vejamos agora o trabalho humano alienado, mas, primeiramente separemos sutilmente o
trabalho de sua adjetivação alienada.
Engels irá condensar as ideias físicas que levarão a uma apreensão do que é o
trabalho para uma teoria geral da dialética da natureza. O termo trabalho será o resultado de
uma equação quantitativa, sendo então uma categoria de entendimento da ―mecânica
matemática‖, como medida de movimento dos corpos. O trabalho demonstrará, portanto, a
medida geral do movimento, conduzindo a idéia de que ―uma lei semelhante rege diversos
outros casos de movimento de corpos unidos em um mesmo sistema‖ (ENGELS, 2000, p.
57). Porém, como mencionamos, esta categoria de síntese – trabalho – irá ser a base para o
entendimento da transformação do movimento em uma proporcional quantidade; isto se
deve por se tratar do conceito de trabalho em seu sentido físico científico (abstrato). Logo,
Engels irá condensar esse conceito físico de trabalho como sendo ―uma simples mudança
de forma do movimento, considerando sob seu aspecto quantitativo‖ (ibid., p. 67). Dois
termos que podem passar despercebidos nessa quantificação do trabalho serão muito úteis
para o nosso entendimento, e diferenciação, entre o trabalho (ou labor) e o processo de
trabalho (trabalho humano que resultará no trabalho alienado); tais termos são: movimento e
quantitativo.
Novamente segundo Engels (ibid., p. 68), ―aquilo que aparentemente é destruído é o
movimento mecânico. Mas o movimento não pode jamais realizar trabalho (...), sem ser
aparentemente destruído como tal, isto é, sem converter-se noutra forma de movimento‖.
Retomemos ao que sintetiza a categoria trabalho: a medida geral do movimento dos corpos.
Pois bem, entendendo como corpos qualquer elemento universal que exista, mesmo que
não nos exerça força ou percebamos (como os átomos e suas divisões) – qualquer micro-
elemento de matéria ou espaço, todos estes corpos estão sujeitos ao trabalho, justamente
pela contínua criação e destruição do movimento. Não é o movimento que realiza trabalho,
mas esse processo incessante de criação-destruição do movimento dos corpos – a medida
deste processo é o trabalho como categoria geral do universo material. Isto posto, temos
que a quantidade de trabalho em tal quantidade de movimento de algum corpo ou corpos irá
significar a ―sua força da vida‖; isto irá demonstrar ―a relação recíproca entre força viva e
trabalho‖ (ibid.), o que podemos remontar àquele argumento que expressamos alhures
140
sobre a concepção geral de vida, agora sendo mais abrangente ainda por reunir as
categorias vida e trabalho com o movimento da matéria.
Como pudemos reunir três coisas em uma só (vida-movimento-matéria→trabalho),
buscaremos não nos deter ao quantitativo, conforme tínhamos aberto polêmica carecendo
de explicação. Aplicando a Dialética como uma lei geral da natureza como ciência, Engels
irá co-relacionar categorias que parecem opostas: quantidade e qualidade, como uma lei de
interpretação dos contrários. Contudo, quantidade e qualidade de um corpo não são
exatamente categorias opostas, mas complementos do mesmo processo e categoria
sintética que é o trabalho. Podemos assegurar esta afirmação com o próprio Engels (ibid., p.
35, grifos nossos): ―torna-se, portanto, impossível modificar a qualidade de um corpo, sem
fornecer-lhe ou tirar-lhe matéria ou movimento, isto é, sem provocar uma mudança
quantitativa no corpo em questão‖. Nesse sentido, trabalho é uma categoria geral que
condensa o processo vida-movimento-matéria sob o aspecto conjunto quantitativo-
qualitativo – estes últimos como correlatos e não meramente opostos.
Buscando perceber a aplicabilidade desta formulação relembremos que citamos
expressão semelhante no que se refere ao movimento, relacionada a Armando C. da Silva,
o qual inter-relacionará espaço, tempo e movimento, se assim formos considerar
ontologicamente o ser. O ser-espaço é em-si ou ser-em-movimento (aqui também como
correlatos e não como opostos). Engels irá elaborar sua concepção de movimento, que
pode ser integrada a de Silva, dizendo que ―o movimento, em seu sentido mais geral,
concebido como forma de existência, como atributo inerente à matéria, compreende todas
as transformações e processos que produzem no Universo, desde simples mudanças de
lugar até a elaborações do pensamento‖ (ibid., p. 41, grifos nossos). As acepções podem
ser co-relacionadas, pois se nosso ser é espaço enquanto matéria (corpos) em-si (essência)
e em-movimento (existência), o trabalho será o processo Universal que fluirá a vida como
existente, quantitativa e qualitativamente. Podemos a partir de Silva aplicar as formulações
gerais sobre a categoria trabalho, através do que o próprio autor irá tratar como ―o natural e
o físico‖ geográfico. Deste modo, ―a força natural é entendida como o ser do trabalho
biológico, químico e físico. Há, então, um trabalho natural, que se realiza por estas
determinações. Esse trabalho natural é o agente da existência da Terra‖ (SILVA, 1991, p.
12). Aqui em Silva encontramos a força viva (natural) como pilar do trabalho, podendo ser
entendido como trabalho natural ou, como preferimos por hora, trabalho da vida, que será
agente da existência na Sub-totalidade espacial Terra. Seria o modo de ser orgânico da vida
como um todo na Terra, tendo o trabalho como forma ou medida geral de movimento da
matéria, ―como essência e modo de ser do real. Essa essência manifesta-se como corpos e
ondas, ambos gênese do movimento corpuscular e ondulatório‖ (ibid., p. 13).
141
Portanto este labor como trabalho da vida é a condição da existência humana antes
e (ainda permanecendo, queiramos ou não) durante o modo de ser estranho, fazendo deste
ente que se ―gaba‖ em ser especial, racional, divino ou humano (este último síntese destes
adjetivos anteriores) um animal laborans. Somos, portanto, nada mais que ―apenas uma das
espécies animais que vive na terra‖ (ibid., p. 95). Temos a existência do labor e da vida no
próprio ente humano, necessário à manutenção da vida, por sermos corporais, exercermos
a existência pelo movimento e estarmos inseridos na vida, logo temos este trabalho ―natural‖
que é o labor, o trabalho da vida então é um constante movimento cíclico em todos os entes,
desconhecendo a dicotomia entre vida e morte ―tais como compreendemos‖ (ibid., p. 108).
Assim, poderemos nos enveredar pelo trabalho humano, que divergindo do labor
busca romper com este ciclo vívido. Trata-se nesse momento de buscar o entendimento do
que é o trabalho humano, no que permeia não como uma atividade laborativa (do trabalho
da vida), mas da autocriação do que a humanidade se fez. O trabalho humano específico ―é
um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade‖ (KOSÍK,
1995, p. 199), o ponto onde ao trabalho da vida é acrescido o processo de trabalho humano.
142
A partir deste processo de trabalho é que o cíclico imprevisível irá buscar o teleológico, a
liberdade se converterá em necessidade, o universal no particular, o real no ideal, o interior
no exterior, o sujeito no objeto, através do qual o ente humano se converterá num objeto de
sua auto-produção – esta será a especificidade do ente humano e de sua existência. Essa
metamorfose será como esse processo de trabalho se caracterizará como um processo de
transformação e a partir disto a objetividade será o elemento constitutivo do trabalho. ―O
homem alcança no trabalho a objetivação, e o objeto é humanizado. Na humanização da
natureza e na objetivação (realização) dos significados, o homem constitui o mundo
humano. O homem vive no mundo (das próprias criações e significados)‖ (ibid., p. 203), daí
a alienação objetiva e a subjetiva, ambas criações suas. Este processo de trabalho humano
terá caráter objetivo, tornando o sujeito em sujeito objetivo, pela agora existência em seu
mundo (ou espaço ontológico, como já dissemos) de criações objetivadas provendo a
continuidade da existência humana.
O processo de trabalho humano será caracterizado por aquilo que Moreira (2007, p.
158) definiu como ―o metabolismo do trabalho‖, sendo um processo metabólico por ocorrer
―entre as esferas inorgânica, orgânica e humana de transformação do homem de parte da
natureza em homem socialmente definido‖ (ibid., p. 175). Neste metabolismo é que consiste
a auto-produção do homem, ou daquilo que Martins (2007, p. 46) irá tratar como a ―definição
de sua humanidade, da definição do seu complexo bio-ontológico, passando ser a atividade
por meio da qual, e na qual, somente o homem se torna aquilo que ele é como homem,
segundo sua essência‖. Este processo metabólico de auto-produção do trabalho será um
processo pelo qual ocorrerá a humanização do animal laborans, que converterá o trabalho
da vida (labor) em trabalho alienado como alienação do trabalho humano em específico;
como que o gatilho final de seu modo de ser estranho. Não é por acaso que a sua
interpretação por Marx e Engels irá convergir para uma ideia de humanização da
humanidade através do trabalho. Resumindo: é uma medida geral que movimenta os
homens (corpos) unidos em um mesmo sistema, que é o processo de trabalho: a
humanização do existente que será humano. Nesse sentido é que Engels irá escrever um
breve texto com o título ―Humanização do macaco pelo trabalho‖. Vejamos uma citação de
Engels por Smith que mais se aproxima da nossa idéia79: ―O trabalho, ele dizia, é a
‗condição básica primeira para toda a existência humana, e isso ganha uma tal amplitude
que, em certo sentido, podemos dizer que o trabalho criou o próprio homem‘‖ (ENGELS
apud., SMITH, 1988, p. 74).
79
. Outra citação da tradução brasileira deste texto de Engels dá outro termo para a ―existência‖ como ―vida‖, que
iremos expor aqui para meio de comparação e relação, pois como falamos sobre o trabalho da vida, existência
pode se enquadrar como vida dependendo do contexto: ―O trabalho (...) é a condição fundamental de toda a vida
humana; e o é num grau tão elevado que, num certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o
homem‖ (ENGELS, 2000, p. 215).
143
Karl Marx irá em sua obra ―O Capital‖ dedicar um capítulo ao processo de trabalho,
com isso buscará defini-lo, não fugindo de modo geral à definição metabólica que expusera
Engels, contudo irá ser mais completa, vejamos:
antes de tudo, o trabalho é um processo em que o ser humano com sua própria
ação, impulsiona, regula e controla seu intercambio material com a natureza.
Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças
naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos
recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim
sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria
natureza (MARX, 1988, p. 202, grifos nossos).
Capitalismo Industrial Europeu, mas sim com a relação básica entre a propriedade privada e
o trabalho como fonte de troca de valores-de-uso; com isto os trabalhadores deverão
sempre buscar trabalhar para conseguirem sobreviver e sempre buscar trocar tudo, que
será propriedade e valor-de-troca. Então o capitalismo pode ser visto também por este
prisma, pela relação de trabalho, troca e propriedade privada, adentrando então mais
longinquamente na história da civilização humana. Contudo, por hora nosso objetivo é
explorar o trabalho alienado e não retomarmos questões e teorias históricas que já foram
feitas por inúmeros autores mais competentes para isso. A alienação do trabalho, mas
principalmente do trabalhador, é baseada em três fatores: o capitalismo como sistema geral
do nosso modo de produção da vida; o valor-de-troca complementando o utilitarismo
humano do valor-de-uso; e complementarmente a reificação, ou objetificação da
humanidade, do produto do trabalho das relações e da vida humana. Estamos embriagados
nesta cortina que nos cega cada vez mais para a vida. E é desta alienação material da vida
humana que falaremos brevemente agora.
Segundo Marx (2006, p. 110), ―o trabalhador desce até o nível de mercadoria, e de
miserabilíssima mercadoria; que a penúria do trabalhador aumenta com o poder e o volume
da sua produção‖. Esta é a condição material de vida do trabalhador, ou qualquer pessoa
ativa dentro deste modo de produção da vida, que se torna cada vez mais pobre e
escravizado quanto mais volume de produtos, ou ―riqueza‖, produzir – temos uma
valorização cada vez maior do mundo das coisas criadas pela própria humanidade, contra
ela mesma. Esta coisa será como um objeto alienado do trabalhador, com perda de
referência. Assim, Marx (ibid., p. 112) enfatiza que ―a alienação do trabalhador no seu
produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência
externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder
autônomo em oposição a ele‖. Deste modo a produção contínua do trabalho humano se
condiciona por ser uma alienação ativa, através do produto que é tanto o objeto a ser
produzido pelo trabalhador quanto ele mesmo, o trabalhador, é um objeto do trabalho
alienado. Marx (1988, p. 205) novamente irá nos dar os caminhos para esse entendimento,
pois ―o trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. (...) O que se manifestava em
movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado
do produto. Ele teceu e o produto é um tecido‖. Isto demonstra sutilmente que o trabalhador
teceu e o produto é um tecido, deste modo o trabalhador acaba por ser também um produto,
adquire a qualidade de mercadoria ou objeto com valor-de-troca igual a do tecido.
Seguindo este viés, que seria a alienação do trabalho? Novamente Marx (2006, p.
114) irá nos amparar nessa definição, que será cabal para apoiarmos outras perspectivas. A
primeira condição desta alienação material é que o trabalho encontra-se como exterior ao
trabalhador, não sendo sua característica, mas algo imposto. Seria uma negação de si-
146
mesmo pelo trabalho alienado. O seu em-si somente será menos alienado fora da condição
imposta e cansativa do trabalho, ou do dia de trabalho. Por ser imposto não lhe será algo
voluntário, embora muitas vezes se sinta bem por estar trabalhando (mais por ter condições
mínimas de sobreviver do que necessariamente trabalhar em si mesmo), somente um meio
para criar necessidades. Este martírio diário do trabalho por fim se caracteriza por não ser
um trabalho dele mesmo, este é um trabalho de outro para ele, trabalhando o trabalhador
está trabalhando para outro. Esta é a alienação material do trabalho como perda de si-
mesmo. Assim, o trabalho como uma perda de si-mesmo irá impedir o trabalhador de se
realizar plenamente, fazer o que quiser e saber que é e quem é. Será um processo contínuo
de produção de alienação, necessidade e consumo de mercadorias inúteis para a auto-
realização plena do indivíduo. O trabalhador também será somente trabalhador, esquecendo
de si-mesmo, porém também dos outros, que serão igualmente meros trabalhadores. Deste
modo o trabalhador ―se produz a si mesmo, e o homem como trabalhador, como
mercadoria, constitui o produto de todo o processo‖ (ibid., p. 123). Teremos então o que nos
relembra Thomaz Júnior (2002, p. 10), pois ―o trabalhador além de estar alienado do
produto do seu trabalho, está também alienado da sua identidade com o semelhante (ser
social), não se reconhecendo mais como proletário, mas como bancário, motorista,
químico, professor, etc.‖. O ente humano não se identifica com o próximo, mas somente
como e com um rótulo de trabalhador – como uma miserável mercadoria humana.
Vimos então sumariamente que o trabalho humano transformou-se nessa constante
auto-alienação da humanidade. Esta miséria de estado de ―vida‖ é o que sintetiza Marcuse
(1968a, p. 108) como ―um mundo de coisas possuidas, utilizáveis e trocáveis na
propriedade privada, a cujas próprias leis inalteráveis o homem está submisso – em poucas
palavras: um universal ‗domínio da matéria morta sobre os homens‘‖ – a vida humana
transformou-se num objeto de sua própria criação, um instrumento do trabalho. Esta será
uma alienação universal, que abarcará toda a existência espacial humana. É neste sentido
que nos encontramos na reificação, como objetos com a perda de sentido em nós
mesmos80, perdendo a referência na vida que é o mais importante, ou seja, a alienação
material do trabalho humano irá em processo criar seu correlato que é a alienação
subjetiva, a alienação psicológica cotidiana que irá ser a base imaterial para a continuidade
desta alienação material. Mas isto é ―trabalho‖ para nosso próximo capítulo, por hora
esgotamos o presente discurso por aqui.
80
. Isto é o que em estilo poético vemos no Zaratustra de Nietzsche, sobre os ―pregadores da morte‖: ―e vós
também, vós que levais uma vida de inquietação e de trabalho furioso, não estais cansadíssimos da vida? Não
estais bastante sazonados para a pregação da morte?
Vós todos que amais o trabalho furioso e tudo o que é rápido, novo, singular, suportai-vos mal a vós mesmos: a
vossa atividade é fuga e desejo de vos esquecerdes de vós mesmos.
Se confiásseis mais na vida, não vos entregaríeis tanto ao momento corrente; mas não tendes capacidade
suficiente para esperar nem tampouco para a preguiça‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 53, grifos nossos).
147
CAPÍTULO III
A SUBJETIVIDADE NA ESPACIALIDADE HUMANA: O ESPAÇO DA CO-EXISTÊNCIA
COTIDIANA E AS REPRESENTAÇÕES SUBJETIVAS DO ONTOLÓGICO
81
. Queremos novamente registrar que aqui o termo reificação também terá uma interpretação a partir do nosso
ponto de vista, tendendo a uma interpretação integradora deste fenômeno, assim como buscamos fazer com o
estranhamento e com a alienação.
150
que a própria reificação se apresenta aos indivíduos da vida cotidiana como a realidade
(LUKÁCS, 1976, p. 659). Esta reificação emergirá para a existência humana como potência
subjetiva inconscientemente (em alguns momentos conscientemente) criada pela própria
humanidade e que tem sobre ela mesma um domínio prático, de sua práxis.
A auto-reificação humana das coisas e das ideias, principalmente desta, pode ser
interpretada pelo que Konder, apoiado em Lukács, irá dizer-nos como ―um processo
mediante o qual uma determinada relação concreta entre homens é dissimulada por uma
‗objetividade ilusória‘ e assume a feição de ‗coisa‘‖ (KONDER, 2009, p. 40). A reificação
seria esta objetividade ilusória subjetiva da existência humana, através do qual esta
objetivação faria com que as representações fossem coisas com os sentidos transferidos.
Uma contraposição ob-jetiva – esta seria a função da subjetividade na espacialidade, a
objeção ilusória das representações humanas. Podemos compreender também a faceta
subjetiva da alienação como vendabilidade universal, não somente a ―alienação material‖ ou
do trabalho, pois, seu viés de representações é calcado na vendabilidade (tanto na condição
de ato ou efeito de vender, vendagem, vendição; quanto no sentido figurado de estar
ofuscado, incapaz de perceber a realidade). A vendabilidade universal da subjetividade está
no ato da mercadoria e do ofuscamento do sentido, por isso seu caráter de reificação ou
objetivação, pois, segundo nos alerta Mészáros (1981, p. 53), a humanidade é dominada
―pelas suas instituições, a tal ponto que o tipo de vida que leva nas condições de
institucionalização não pode ser chamado por qualquer outro nome senão escravidão‖.
Somos, portanto, nascidos numa escravidão universal, não só do nosso corpo (via do
trabalho alienado), mas também da nossa mente (pela alienação subjetiva, ou pelo que
tratamos como subjetividade).
Seguindo esta linha de pensamento é que devemos compreender a vendabilidade
universal da subjetividade humana, sob o aspecto do ―efeito de vender‖ – como mercadoria.
Se formos ao encontro das ideias de Marx veremos que ―a mercadoria é, antes de mais
nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades
humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estomago ou da fantasia‖
(MARX, 1988, p. 41, grifos nossos). Como podemos apreender, nesta síntese do que seria a
mercadoria, seu aspecto principal é de um ―ob-jeto externo‖, ou de sentido transferido, não
próprio ao indivíduo consciente. Sua consequência não menos importante é que sua
característica principal é de tentar satisfazer uma necessidade (mesmo que seja criada,
subjetivamente isto é muito provável) tanto palpável quanto abstrata. A subjetividade
humana é vendável como uma mercadoria por este sentido de criar uma ilusão e ser
―comercializada‖ externamente pelas instituições tendo a característica de dominar seus
―vendedores‖ (de ideias): os próprios indivíduos escravos desta subjetividade. A
151
82
. Preferimos utilizar aqui as aspas por evidenciar o que já havíamos debatido no capítulo anterior, a busca de
uma não utilização impensada da dicotomia vivo/morto.
153
estabelecida como verdadeira, acabamos por tratar este senso-comum não como um
veículo de reprodução da subjetividade alienada, mas como uma resistência ao que busca
se manter hegemônico. Em nossa apreensão, o senso-comum além do veículo, como já
frisamos, pode ser visto pelo seguinte prisma: é a concepção de mundo resultante da
herança perpassada pelas instituições (que citamos alhures) segundo seus interesses em
manter, justificar e continuar efetuando o estranhamento como modo de ser da existência
humana, em trajes atuais, que continuam sendo efetuados. Este senso-comum será a venda
posta pela Filosofia de outrora, pelas Religiões que se cimentaram e resistem ainda hoje,
pela lógica de verdade última alcançada pela Ciência na era moderna, e, principalmente no
espaço-tempo hodierno através da fábula da Mídia. As crenças e proposições impostas por
estas instituições humanas aparecem como normais (normas, valores da moral a ser
seguida), sem depender de uma investigação crítica detalhada (um desvelamento) para
alcançar a fonte dos ―cacos‖ que compõem esta existência humana. Deste modo, o senso-
comum irá permitir aos entes humanos singulares a sentir uma realidade menos detalhada,
menos profunda e imediata e vai do hábito de realizar um comportamento ditado pela moral
que, quando instalada, passa de indivíduo para indivíduo, como se fosse uma ―carga
genética instintiva‖. Os entes singulares, apesar de serem singulares, perderão sua
singularidade, se tornarão comuns no seu cotidiano, através da naturalização e simplificação
de entender os fatos pela consciência (que é uma má-consciência coletiva), fazendo estes
entes pensarem que seus atos são verdades eternas e imutáveis, e que lhe traga resultados
práticos herdados pela moral.
Novamente retomemos ao diálogo com Nietzsche para darmos prosseguimento ao
texto, no que se refere à conformação do ente singular em indivíduo do todo comum que é a
existência espacial humana. Desse modo, cada ente singular parece ―ouvir com satisfação
que a sociedade está prestes a adaptar o indivíduo às necessidades gerais e que a
felicidade assim como o sacrifício de cada um consiste em considerar-se membro útil e
instrumento de um todo‖ (NIETZSCHE, 2007c, p. 104). Esta adaptação do indivíduo às ditas
necessidades gerais é um retorno ao controle, à repressão; e essa submissão automática e
quase total a este senso-comum é fruto da força do hábito, a rotina. E como nossa rotina é
imposta diariamente pelas instituições de que falamos, a moral veiculada pelo senso-comum
será uma opinião pública, através da qual todos os indivíduos terão obrigações específicas
uns com os outros dentro dessas normas, e ―essas obrigações são cumpridas em parte
devido à opinião pública e ao interesse próprio: é compensador, sob vários aspectos, agir
como se deve, e, se não for assim, haverá perda de benefícios materiais e da estima social‖
(SCHAPERA apud., BOTTOMORE, 1978, p. 213). A vantagem individual é o que motiva o
ente singular a se manter nas acepções de senso-comum, pois terá benefício com sua
estabilidade junto ao todo, estabelecendo o que podemos chamar de uma tirania do
155
costume. Essa tirania formará o que muitos chamarão de uma ―sociedade de massa‖
(BOTTOMORE, 1978, p. 215), uma massa de manobra das instituições. Manobra porque a
quantidade de indivíduos que recebem o senso-comum é muito maior do que os que
expressam (aqueles sendo manobrados por estes), estas instituições são organizadas de
modo que se torna difícil ao indivíduo responder a qualquer efeito, a transformação deste
senso-comum como opinião pública em ação está no controle dos que dominam as
instituições, e essa massa não possui a autonomia em função destas instituições. Nesse
sentido, que os meios de comunicação de massa da Mídia estão no controle da propagação
da alienação subjetiva hodierna, por terem uma abrangência incrivelmente ampla e por
condensarem as ideias antes já veiculadas pelas outras instituições.
Como dissemos nossa apreensão aqui não é de ver o senso-comum com olhar
admirado e ingênuo ou, como uma contrapartida crítica à existência humana vigente. Uma
breve citação de Heidegger irá nos auxiliar, mesmo que o próprio filósofo esteja buscando
um olhar ―romântico‖ sobre o senso-comum. Segundo o pensador alemão:
o senso comum tem sua própria necessidade; ele defende seu direito usando a
única arma de que dispõe. Esta é o apelo à ―evidência‖ de suas pretensões e
críticas. A filosofia, por sua vez, jamais pode refutar o senso comum porque este não
tem ouvidos para sua linguagem. Pelo contrário, ela nem deve ter a intenção de
refutá-lo porque o senso comum não tem olhos para aquilo que a filosofia propõe
para ser visto como essencial.
Além do mais, nós mesmos nos movimentamos no nível de compreensão do senso
comum, na medida em que nos cremos em segurança no seio das diversas
‗verdades‘ da experiência da vida, e da ação, da pesquisa, da criação e da fé. Nós
mesmos participamos da revolta do ―evidente‖ contra tudo o que exige ser posto em
questão (HEIDEGGER, 1996, pp. 153-154, grifos nossos).
Para o leitor que se fizer mais atento, perceberá que Heidegger irá nos ajudar em
dois momentos. Primeiro quando trata do senso-comum como uma auto-afirmação,
apelando à evidência dos fatos que ele próprio veicula, como no trecho grifado. O segundo
momento irá demonstrar que a Filosofia não pode deixar de lado o senso-comum, até
porque foi através dele que se propagou a lógica filosófica, mesmo que esta Filosofia tenha
uma abertura para a crítica da existência humana, assim como a ciência. Sintetizando,
temos que em todos os nossos atos, da pesquisa até a fé, participamos do senso-comum
em nossas rotinas – este acaba por governar nossas consciências e nos dar as bases para
interpretar as fragmentações do mundo.
Assim, este fenômeno subjetivo na espacialidade ―é coletivo, eminentemente
retrógrado e dogmatista‖ que irá construir indivíduos medíocres, sem personalidade, com
um amplo ―fardo de rotinas, preconceito e domesticidade‖ (IGENIEROS, s.d., p. 48). Temos
então através desta mediocracia a ação cotidiana rotineira de dar cara subjetiva à
domesticação, através de uma roupagem mais engrossada da repressão: a mais-repressão.
Segundo Marcuse (1968a, p. 51), mais-repressão seria ―as restrições requeridas pela
156
83
. ―E disse Deus: Façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes
do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre
a terra‖ (Gen. 1:26).
158
pela capacidade naturalizada do ―dom divino‖ de humildade e sacrifício. Esta seria uma base
secular de representações e práticas relativas à posição das mulheres na existência
humana. O marianismo é tão presente quanto o machismo, mas ele é menos percebido
pelos próprios indivíduos. E como algumas características desta forma velada de
subjetividade alienada temos: papéis masculinos e femininos, representações e
normatizações sobre a sexualidade, expectativas conjugais e familiares, e uma vida privada
em face da vida pública, assim como todas as anteriores, desfavorecendo as mulheres. Esta
é a face da representação do mundo-do-homem dando o devido lugar das mulheres na
existência humana.
Contudo, através do velamento de nossa porção feminina, não é somente a mulher
em si que sofre com esta dominação e repressão. Como vimos a porção masculina também
sofre com esta desfeminização de cada ente singular e mais amplamente de uma inibição
do feminino na própria existência humana como um todo. A xenofobia (ou desconfiança,
temor ou antipatia por pessoas diferentes daqueles que as ajuíza, ou pelo que não é
rotineiro, não somente pelo que vem de fora do país) irá desencadear uma aversão teórica
ou vivida tanto de forma internalizada quanto direta com conflito e violência sobre aqueles
que não se comportam de acordo com a subjetividade alienada vigente. Um caso particular,
muito comum e mundialmente difundido de xenofobia é a homofobia. Este que é um
fenômeno que demonstra ódio, aversão ou a discriminação de uma pessoa contra
indivíduos homossexuais ou que possam demonstrar alguma característica desviante do
―macho padrão‖ ou da ―mulher padrão‖ e, consequentemente, a homossexualidade (ou o
que se considera como), que pode incluir formas sutis, silenciosas ou violentas de
preconceito contra homossexuais. Muito além de ser somente uma discriminação por
indivíduos que tenham relações sexuais e/ou afetivas por outros do mesmo gênero é
incorporada na complexidade do fenômeno uma aversão aberta por qualquer manifestação
que se espera como sendo feminina para um indivíduo do gênero masculino e vice versa.
Um dos motivos para a manifestação e disseminação deste fenômeno é a base
fundamentada nos dogmas judaico-cristãos, altamente paternalistas, defensivo da família
privada e da hierarquia social em que a principal fórmula que justifica tal fenômeno grotesco
é o ―crescei e multiplicai-vos‖ – definindo, justificando e reproduzindo a repressão sexual,
base do estranhamento, que será contra a sexualidade não reprodutiva inibidora da
existência humana tal qual vivemos.
Outro fenômeno que aparece com expressão de naturalidade, mas que é
existencialmente marcado por atos de dominação, repressão, violência, genocídio, etnocídio
e preconceito, velado ou com conflito direto, é o racismo. Porém, a origem e derivação desta
subjetividade alienada perpassada pelo senso-comum, de outrora até o de hoje, como
racismo é o etnocentrismo. Este é um preconceito estabelecido segundo o qual a visão ou
159
avaliação que um indivíduo (ente singular) ou grupo de indivíduos (existência humana) faz
de um grupo social diferente do seu é apenas baseada nos valores, referências e padrões
adotados pelo grupo, ao qual o próprio ente singular ou a existência humana fazem parte.
Este conceito tem somente um pólo específico como ponto de vista, no qual neste
posicionamento um dado grupo considera-se como superior ao outro. Isto irá dificultar uma
práxis em diferenças, no ver e viver o mundo não somente de um único ponto de vista,
mesmo que este seja prejudicial a um grupo ou qualquer outro indivíduo. Segundo um dos
grandes antropólogos sociais do século XX, Claude Lévis-Strauss, o etnocentrismo seria:
a atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos
sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados
numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas
culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que
nos identificamos (LÉVIS-STRAUSS, 1952, pp. 19-20).
84
. Aqui, segundo a abordagem heideggeriana, como escolhemos anteriormente, buscamos entender o dasein
como existência humana, portanto, a subjetividade está expressa no construto (como construção mental coletiva)
da existência espacial humana.
161
85
. Este ponto de vista é resumido com uma frase muito conhecida, principalmente pelos chamados filósofos de
postura existencialista como no caso específico do autor desta Jean-Paul Sartre, um dos mais importantes
filósofos do século XX de perspectiva existencialista (com influência também da teoria crítica marxiana): ―a
existência precede a essência‖ (SARTRE, 1998, p. 93).
162
É fato que a nomenclatura utilizada por Marx e Engels não segue o mesmo
balizamento etimológico da nossa, porém, se buscarmos compreender atividade material e
comportamento material sob a analítica ontológica, podemos lhes dar o sentido do
existencial, tratando-o como a espacialidade da existência humana. Já a produção das
ideias, representação e consciência, podemos apreender como subjetividade alienada (ou a
inter-e-intrasubjetividade), esta que é-na espacialidade. Nessa intrincada relação vivida,
cada ente singular humano irá interiorizar as ideias como objetos, via da experiência
cotidiana, fazendo com que a espacialidade seja uma subjetividade-objetivada, como tratara
Silva (2000, p. 15). Com isso temos para melhor entendimento teórico, por hora, deste
processo vivido a cotidianidade. Este processo que nos é mais familiar pela experiência e/ou
proximidade é o que Cantoni (1968, p. 3) irá tratar como ―a vida cotidiana, ou seja, a
existência vivida‖. Esta existência vivida ocorrerá no ―espaço nosso de cada dia‖, no espaço
ontológico humano que terá a esfera de um espaço cotidiano, ou naquilo que Merleau-Ponty
(2006, p. 579) tratou como ―mundo vivido‖. Contudo, nesse momento veremos um pouco
dessa esfera vivida da práxis, como processo ontocriativo, na forma da cotidianidade, assim
como fizemos ao separar para fim de maior entendimento: espaço ontológico e
espacialidade.
Como fizemos referência ao processo ontocriativo que é a espacialidade, nada
melhor do que nos referenciarmos no discurso crítico de Kosík para apreendermos um
pouco o que seria essa cotidianidade. O processo ontocriativo em seu aspecto vivido de
inter-e-intrasubjetividade tem a forma de uma metafísica cotidiana, da vida cotidiana. Isto
pode ser entendido da seguinte forma: mesmo que qualquer um de nós, entes singulares
humanos, busquemos ler, pesquisar ou questionar esta cotidianidade devemos nos dar
conta de que já vivemos nela, nascemos embebidos desta metafísica cotidiana. Nada é
novo e nos escapa, pois, esta cotidianidade tem a cara de uma ―práxis no seu aspecto
fenomênico alienado‖ (KOSÍK, 1995, p. 74). A forma desta cotidianidade é fenomênica
porque vivida, porém através da subjetividade alienada, que veicula a moral estabelecida via
do senso-comum (como vimos alhures), no qual o mundo material é ambientado por um
mundo de ―significados traçados pela subjetividade humana‖ (ibid., p. 76). Segundo estes
pontos de vista é que Kosík irá conceituar o que seria a cotidianidade. Façamos aqui um
apanhado sumariado de seu raciocínio sobre este processo vivido:
neste momento ainda é fenomenal o ser-com, pois a cotidianidade nos faz ―respirar este ar‖
de não estarmos sozinhos. É como uma vivência mediana de um com o outro, onde ―o outro
é um duplo de si mesmo‖ (ibid., p. 181), como que num jogo de espelhos, no qual o outro
nos reflete por estarmos projetados no outro, seja por controle, auto-controle ou,
simplesmente, por rotineira mediocridade. Isto tudo pode ser sintetizado mais uma vez pelas
palavras de Heidegger, que diz ser a co-presença a comprovação do modo de ser próprio
dos entes (singulares) que se encontram e vem ao encontro dentro do mundo (espaço
ontológico, vivido como espaço cotidiano); porque a existência espacial humana ―é, ela
possui o modo de ser da convivência‖ (ibid., p. 182) como fundamento básico de sua
manutenção. Esta constante convivência cotidiana com os co-pre-sentes que nos espelham
e refletem acabam por nos mostrar que o aspecto fenomênico do mundo é impessoal.
Todos nós, enquanto entes singulares, somos impessoais, porém não como uma soma, mas
como uma ―ditadura nesta falta de surpresa e de possibilidade de constatação‖ (ibid., p.
184).
Para darmos prosseguimento a esta apreensão existencial-fenomenológica da
cotidianidade, evitando darmos um ―salto quântico‖, nos referenciamos por hora em
Lefebvre. A primeira constatação do filósofo francês que utilizaremos, para relacionar com a
proposição de Heidegger sobre a ditadura do impessoal, é de que a cotidianidade se
aparenta como um ―lugar social de uma exploração refinada e de uma passividade
cuidadosamente controlada‖ (LEFEBVRE, 2004, p. 129). Mesmo trazendo mais para o
―concreto‖ do que Heidegger, Lefebvre irá resumir o que vimos com o filósofo alemão e
também com Kosík, de que o aspecto fenomênico da práxis utilitária cotidiana é a
passividade da rotina, o controle e manutenção da exploração (alienação material – do
trabalho), como que numa ditadura reproduzida na convivência de entes singulares que
fetichizadamente são ―espelhos medíocres‖ uns dos outros. É isto o que Lefebvre irá tratar
como sendo o mundo vivido em movimento com a cotidianidade: o espaço (cotidiano)
―estaria essencialmente ligado à reprodução das relações (sociais) de produção‖
(LEFEBVRE, 2008, p. 48); isto é, cotidianidade-espaço cotidiano (vivido), assim como
processo-forma, reproduzem as relações sociais (ou se preferirmos aqui existenciais
humanas) de produção – esta produção como manutenção da alienação material, do
processo de trabalho humano que aliena sua referência em si-mesmo. Levando ―fé‖ nesta
proposta crítica, não é por menos que Lefebvre irá redigir duas obras desvendando a
cotidianidade; em que ambas podem ser vistas como complementos uma da outra. São
elas: ―A re-produção das relações de produção‖ e ―A vida cotidiana no mundo moderno‖.
Ambas em tom de denúncia, ambas questionando os aspectos materiais e ideais da
cotidianidade.
165
Na primeira obra que citamos, podemos encontrar claramente a relação feita pelo
pensador entre reprodução e repetição. É como que um ciclo vicioso que não é encarado
como vício na manutenção da alienação material e subjetiva, mas como uma garantia.
Vejamos nessa brilhante relação tramada teoricamente pelo filósofo francês:
Segundo Lefebvre, o que ocorrera nessa reprodução não é uma reprodução material
em si, ou dos meios de produção, mas também das relações sociais (subjetivas). E para
elucidar esta passagem o pensador francês cita Marx e o ―capítulo inédito‖ d‘O capital, no
qual ―neste capítulo, ele limita-se a estabelecer que as relações de produção são o
‗resultado incessantemente renovado‘ do processo de produção e que a reprodução é
também ‗reprodução das relações‘‖ (ibid., p. 52). Seguindo está lógica, Lefebvre irá se
indagar de como que é possível com o passar de gerações – a mudança dos entes
singulares até acontece –, a base ―estrutural‖ da vida cotidiana permanecer. E ainda mais:
onde se produz esta reprodução, que é da parte para o todo, ou melhor, da singularidade
relacional do ser-com-outrem para a existência espacial humana em geral86. É nesse sentido
que podemos verificar que a cotidianidade enquanto processo vivido é uma reprodução das
relações sócias de produção (produção da existência), que incide sobre a espacialidade,
sobre o processo desta existência espacial humana ao nível global. O ―cotidiano‖ enquanto
fenômeno de cotidianidade-espaço cotidiano será o imediato e a mediação para a
reprodução das chamadas relações essenciais, ou noutros moldes, das relações que são a
capacidade da existência humana (em geral até o período contemporâneo, não só do
capitalismo) para manter-se cimentada em bases sólidas, mesmo em momentos de alguma
reforma ou crise. Assim, segundo Lefebvre (ibid., p. 97), ―as relações de dominação que
originariamente subtendem, reforçando-as, as relações de exploração, tornam-se
essenciais, centrais‖ – não há ingenuidade na reprodução das relações essenciais, mas
uma enorme intencionalidade utilitarista, que faz alastrar ainda mais as contradições
fundamentais, centrada na manutenção da dominação e da exploração, da alienação.
Finalizamos esta abertura para o entendimento da re-produção das relações de produção,
com o entendimento de que ―as contradições também se re-produzem, não sem
modificações. Antigas relações há, que se degeneram ou se dissolvem (...). Outras há que
se constituem de maneira que há produção de relações sociais no seio da re-produção‖
86
. Uma citação de Lefebvre mostra que do familiar eclode a base para o geral, que ao ―pé da letra‖ seria: ―no ‗lar‘
familiar entrevê o centro onde se produzem e reproduzem as relações globais‖ (LEFEBVRE, 1973, p. 56).
166
corpo é espacial e por ele, através dele e para ele criamos nosso fardo da alienação,
subjetiva e material.
A forma em seu aspecto fenomenológico é o espaço cotidiano, ou ―o espaço do
cotidiano‖ que Silva (2000, p. 18) nos diz ser o vivido-percebido ―como agradável,
desagradável, onírico, pesado, leve, base, conteúdo, atributo, mágico, feio, bonito, vazio,
repleto, ocupado, desocupado, livre, aberto, etc.‖, sendo uma imbricação entre real e
imaginário. Por isto que este espaço está no âmbito do vivido, ou do que Brasil (2005, p. 79)
irá tratar, com base em Heidegger, como ―espaço fenomenológico‖ – ou como sumariza
Certeau (2002, p. 202), um espaço como ―um lugar praticado‖. Mas, como já vimos no caso
da ―práxis viva‖ que é a cotidianidade, este espaço cotidiano não é somente esta descrição
que mostra um lugar segundo o qual ―se distribuem elementos nas relações de
coexistência‖, como podemos abstrair novamente de Certeau (ibid., p. 201), ele abarca a
alienação da práxis fetichizada que permeia a cotidianidade. O espaço fenomenológico
cotidiano é o ―mundo da pseudoconcreticidade‖, como que ―um claro-escuro de verdade e
engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao
mesmo tempo, a esconde‖, tal qual nos denuncia sensatamente Kosík (1995, p. 15). Este e
neste mundo fenomênico as representações comuns se configuram, como que projeções
dos fenômenos da subjetividade alienada humana, sendo na espacialidade como práxis
fetichizada da existência humana.
Como vimos anteriormente, no caso da cotidianidade, Lefebvre irá nos auxiliar para o
entendimento crítico do espaço cotidiano. Não sendo propriamente a reprodução das
relações essenciais, mas como forma que ―reproduz activamente as relações de produção e
contribui portanto para a sua manutenção e para a sua consolidação‖ (LEFEBVRE, 1973, p.
96). Isto significa que a concretude factual, como palpável-ocorrente, do espaço cotidiano
reproduz as relações de produção da existência humana em si, mantendo-a em alienação e
consolidando na rotina o estranhamento. Seria o lócus da re-produção desta vida
exteriorizada, da produção material. O espaço cotidiano seria o existencial vivido em que
eclode o Poder, que está em toda parte, sendo ―omnipresente e predestinado a sê-lo. Por
todo o lado no espaço‖ (ibid., p. 98). Este Poder é a dominação humana, utilitarista e
domesticadora, que é-no espaço cotidiano por ocorrer factualmente através das relações
advindas por este existencial.
Seguindo outra vertente em que podemos analisar o espaço cotidiano, mas sem
perder a posição crítica, porém, com uma faceta menos filosófica embora não perca o
âmbito do vivido é a análise do Lugar. Se trocarmos os termos lugar por espaço cotidiano
podemos verificar em Carlos (2004, p. 48, grifos nossos) que este ―é que assegura a
materialização do processo que se realiza no plano do imediato, portanto, é no plano do
lugar e da vida cotidiana que o processo ganha dimensão real e concreta‖. Se verificarmos o
168
que fora dito podemos interpretar da seguinte forma: o espaço cotidiano assegurará a
materialização do processo que é a cotidianidade, ganhando dimensão factual, tanto no
plano da forma quanto do processo; contudo, não podemos dizer ao pé da letra que é no
plano do lugar e da vida que o processo ganha dimensão concreta, pois, por via da
existência fenomenologicamente vivida (aqui como reforço do fenômeno da vida) é que todo
processo abarca a espacialidade e a existência humana como um todo, ocorrendo um efeito
contrário em movimento, não linearmente. Seria como se no nível desta ordem próxima
ocorresse a produção da ordem distante que reforçaria ainda mais a ordem próxima como
manutenção do processo que está consolidado. Nesse espaço cotidiano são criados
modelos comportamentais, que serão impostos rotineiramente sendo contemporaneamente
veiculado pelo senso-comum disseminado pela mídia (que como vimos sintetiza as
instituições passadas, sem eliminá-las em suas atuações particulares). É isto o que tenta
passar Carlos (ibid., p. 59), com a firmação de que ―o universo da vida cotidiana se
transforma abruptamente, novas relações, mas também novos objetos e valores. A invasão
da TV que aos poucos vai assumindo lugar importante na vida das pessoas ocupando o
lugar de ‗honra‘ na sala de visitas, torna-se o centro de todas atenções e cuidados‖. E nesse
sentido torpe da mídia, que veicula pelo senso-comum a alienação com naturalidade através
do processo vivo, de signos e sinais, a mídia não somente se instala no espaço cotidiano e
na cotidianidade, é dele que surge esta problemática – pois, como vimos, não há nada mais
factual e fenomenológico que o espaço cotidiano e seu processo. A relação da existência
humana com seu mundo será um duplo caminho, com a produção da alienação humana que
reproduz os próprios entes singulares humanos e com a reprodução contínua,
habitualmente, do mundo humano, seu espaço ontológico. A dita ―produção espacial‖ é
realizada ―no plano do cotidiano‖ (CARLOS, 1996, p. 26), não no plano de uma escala global
pura e simplesmente, hierarquicamente de cima para baixo (do geral para o banal).
Este espaço cotidiano é um composto sem distinções estanques, mas sim tênues. É
como um mundo que abrange tanto nossa vida individual quanto coletiva. Este espaço seria,
retornando ao fenomenológico para não perder o foco existencial, um horizonte vivido no
qual ocorre percepções, valores entre os entes singulares deste mundo vivido; através da
subjetividade e da materialidade. Não podemos separar ou isolar este ente (corpo, mente,
emoção, vontade) do mundo, pois ―estão engajados nos processos e padrões observáveis
no comportamento evidente‖87 (BUTTIMER, 1982, p. 176). É com esta passagem
fenomenológica de apreensão, porque principalmente vivida, que podemos nos respaldar
87
. Segundo esta mesma autora, ―cada pessoa está rodeada por ‗camadas‘ concêntricas de espaço vivido, da
sala para o lar, para a vizinhança, cidade, região e para a nação‖ (BUTTIMER, 1982, p. 178). Portanto, não
escapamos escalarmente do que chamamos do espaço ontológico da existência humana nem de alguma forma
do espaço cotidiano, estas ―camadas‖ persistem na vida do ente singular porque o mesmo nasceu inserido nesta
existência, corrobora com ela e se encontra embebido na rotina mesmo que não se enquadre em aspectos de
grande influência coletiva.
169
em M. Santos, quando este citando Morin nos fala ―que ‗hoje cada um de nós é como um
ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo que o contém‘‖
(MORIN apud., SANTOS, M., 2006, p. 314). Não pensamos que somente hoje tal fato
ocorre, mas que hoje isto é mais intenso e perceptível, pois o espaço cotidiano além de ser
a práxis vivida será o ―intermédio entre o Mundo e o Indivíduo‖ (ibid.). Em cada porção deste
espaço cotidiano temos a seu modo o mundo (espaço ontológico). Através desta esfera são
construídos os valores da chamada moral veiculada pelo senso-comum: numa interação
incessante do eu-pra-mim mesmo com o outro-pra-mim e do eu-para-o-outro (ibid., pp. 315-
316); temos essa constante sensação ou estado de vigília, como uma condição constante
de vizinhança de um espaço cotidiano repetitivo com uma cotidianidade de massa. É assim
que podemos observar, muito mais em momentos atuais como cita M. Santos, que o espaço
cotidiano será essa imbricação material-vivida de um ente singular humano com outro – por
este motivo que cabe averiguar este ente singular como corpo-espaço, como uma
materialidade construtiva, reprodutiva e factual, mas como um singular pertencente à
particularidade.
Segundo Velho (1981), devemos ter certo contato com a sociedade (existência
humana se preferirmos) pra conhecer as dimensões ou ―camadas‖ desta mesma. Para isto
necessitamos de uma maior empatia sobre o vivido, buscando pôr-se no lugar do outro. E
nos colocar no lugar do outro é um exercício de rever as bases que no cotidiano irá pelo
senso-comum criar a dicotomia familiar/exótico. Mesmo no exercício científico, o pré-
conceito de que um posicionamento ou ação é exótico ou familiar existe. Disto é que
devemos nos livrar nessa análise fonomenológica-existencial do ente singular humano em
seu espaço cotidiano. Devemos então transformar o que nos parece exótico em familiar e
vice versa. Por sermos existencialmente entes singulares que se interagem na expressão
fenomenológica do espaço cotidiano, estamos deste modo habituados com a familiaridade
dos fatos. Isto demonstra que somos entes integrantes do todo fenomenal que é o espaço
cotidiano, porém, embora auto-contidos em nosso si-mesmo não demonstramos que esta
familiaridade é conhecida ou aceita, muito pelo contrário se fugirmos da rotina
fastidiosamente imposta. A dicotomia exótico/familiar que nos angustia factualmente será a
base das nossas relações entre indivíduos enquanto espaço-corpo. Através do que é
concebido como exótico ou familiar ao senso-comum se constrói a esfera hierárquica dos
estereótipos, como que um mapa mental de todas as espaço-corporeidades cotidianas, e
nesse sentido, diferente da postura crítica de não rotular como familiar ou exótico,
acabamos por nos sentir como os outros ao rotularmos e agirmos sobre estes entes
singulares de forma punitiva, discriminatória e até agressiva (passiva ou ativa de
enfrentamento).
170
retroalimentação do indivíduo com o mundo, o que o faz ser esta excentricidade do si-
mesmo.
O termo si-mesmo é muito conhecido através do pensamento jungiano.
Segundo esta corrente de pensamento o principal arquétipo88 é o si-mesmo (ou Self). O si-
mesmo é o centro de toda a personalidade. Dele provém todo o potencial energético de que
a psique dispõe. É o ordenador dos processos psíquicos. Integra e equilibra todos os
aspectos do inconsciente, devendo proporcionar, em situações normais, unidade e
estabilidade à personalidade humana. Assim, o si-mesmo representa o objetivo do homem
inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua
vontade (JUNG, 2000). Já segundo o ponto de vista ontológico-existencial heideggeriano, o
si-mesmo não designa nem consciência, nem o inconsciente e nem a personalidade, mas
sim se refere ao processo ontológico de comunhão e individuação, universalidade e
singularidade (autenticidade). Contudo, este si-mesmo tem dois modos gerais de
ocorrência: sua facticidade é dicotômica. Existe o ser si-mesmo cotidiano e o impessoal
(HEIDEGGER, 2008, p. 170). O que em um sentido lato explicita a complementaridade de
uma para com outro. O impessoal é um fenômeno constituinte da existência humana,
principalmente na cotidianidade – pois, o si-mesmo da cotidianidade é o impessoalmente-si-
mesmo. Como podemos ver, cotidianidade, si-mesmo e impessoalidade fazem parte de um
mesmo movimento de facticidade. Uma terceira via, que iremos arrolar com as outras duas,
é de Nietzsche. Segundo o filósofo, ―por detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu
irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido. Chama-se Si-mesmo. Habita
no teu corpo; é o teu corpo. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria‖
(NIETZSCHE, 2008, p.44, grifos nossos). Esta crítica do pensador alemão, sob a máscara
do lendário sábio persa Zaratustra, aos que desprezam o corpo, irá demonstrar que o corpo
é o limite do Eu, ou melhor, o corpo próprio de cada ente singular é o limite material do si-
mesmo. É por isto que há mais razão no corpo que na lógica humana, é artificial qualquer
dubiedade construída pela subjetividade alienada, pois na existência singular de cada ente
humano, se o corpo próprio é ferido, ―naquele momento você não sente que é dois. Você
sente que é um com o corpo. Somente depois, quando começar a pensar a respeito, você
dividirá‖ (RAJNEESH, 1980, p. 60, grifos nossos). E é nesse sentido que podemos dizer que
―o corpo fala‖ em suas mais variadas formas de expressão (nós é que não sabemos senti-
lo), pois se dá como unidade do ente, tal qual nos esclarece Weil e Tompakow (1988).
88
. Eles são as tendências estruturais invisíveis dos símbolos. Os arquétipos criam imagens ou visões que
correspondem a alguns aspectos da situação consciente. Os arquétipos se originam de uma constante repetição
de uma mesma experiência, durante muitas gerações. Funcionam como centros autônomos que tendem a
produzir, em cada geração, a repetição e a elaboração dessas mesmas experiências. Eles se encontram
isolados uns dos outros, embora possam se interpenetrar e se misturar.
172
Podemos então sintetizar, sem simplificar por demais, essa relação imbricada entre -
si-mesmo e corpo. Não como relação, diga-se para esclarecimento, mas ambos sendo
referência para o outro, no qual o corpo será o si-mesmo na experienciação factual cotidiana
forjando assim a individuação do si-mesmo, mesmo que perceba que este Eu pareça estar
pairando como uma consciência sem matéria, o que podemos dizer como corpo. Através de
nosso corpo enquanto unidade entitativa que vamos experienciando o mundo, formando um
uno-composto corpo-si-mesmo como centro de uma personalidade, porém, conjugando a
individualidade (singularidade) com a universalidade imediata (cotidianidade). Por isso
podemos falar que esta unidade entitativa corpo-si-mesmo sofre com a impessoalidade,
mesmo que a materialidade corpórea seja o limite de nosso contato com o mundo. Mas,
evitando esforçadamente uma dicotomia e fechando este debate por hora, tratemos esta
unidade entitativa como corpo próprio (como uma redução terminológica de espaço corporal
do si-mesmo) e vejamos que o corpo próprio pode ser mais uma perspectiva que se esforça
em evitar outra dicotomia: a corpo/espaço. O corpo próprio seria somente a já citada
unidade entitativa, um corpo-espaço, no qual a separação é impossível, dado que por nosso
prisma a matéria (em suas mais variadas formas, efeitos e movimentos) é espaço, assim
como a ―não-matéria‖ (se é que podemos comprovar factualmente este ―nada físico‖!); logo,
se o corpo é material... nos poupemos de mais este esforço lógico, vejamos o
fenomenológico!
Como abrangência do espaço-corpo fenomenologicamente temos, principalmente, as
abordagens de Merleau-Ponty. Segundo Lima (2007a, p. 66) que trabalhará com a noção do
―espaço como experiência do corpo‖, a qualidade de cada ente singular é sua espacialidade
(a sua singularidade, como interpretamos), no qual se pode entender esta espacialidade
―como corporeidade de corpos‖ (ibid.). Esta seria como que uma aglutinação entre vários
corpos que entrecruzam as variadas percepções do corpo-si-mesmo. Um espaço-corpo
através de uma perspectiva corpórea. Dessa forma, com o imbricamento espaço-corpo-si-
mesmo já está subentendido uma relação de reciprocidade lógica, implicando mutuamente
corpo-espaço, contudo, existencialmente, ou se preferirmos na existência vivida na
cotidianidade, como já citamos alhures, já existe a unidade entitativa espaço-corpo – seria
redundante tentar relacionar ontologicamente algo que só está dicotomizado na consciência.
É seguindo esta perspectiva que Merleau-Ponty (2006, p. 205) pode tratar a unidade
entitativa como ―corpo próprio‖, pois nosso corpo não está no espaço, ele é espacial. E
todos os corpos têm uma veracidade perceptiva: ―que a percepção do espaço e a percepção
da coisa, a espacialidade da coisa e seu ser de coisa não constituem dois problemas
distintos‖ (ibid., grifos nossos).
173
se meu braço está posto sobre a mesa, eu nunca pensaria em dizer que ele está ao
lado do cinzeiro do mesmo modo que o cinzeiro está ao lado do telefone. O contorno
do meu corpo é uma fronteira que as relações de espaço ordinárias não transpõem.
Isso ocorre porque suas partes se relacionam umas às outras de uma maneira
original: elas não estão desdobradas umas ao lado das outras, mas envolvidas umas
nas outras.
89
. Aqui tratamos como caminho inverso porque Merleau-Ponty irá ir do corpo para a espacialidade, criando a
possibilidade de inverter a interpretação que fizemos até aqui, ajudando assim a fazer uma releitura
fenomenológico-existencial do tema através de outra perspectiva e/ou percepção.
174
90
. Para alguns pormenores consultar: TORRES, A. M. A. O. La sexualidade em Merleau-Ponty. Revista de
Sexologia, nº 33. Madrid: IN.CI.SEX, 1988. Torres demonstrará que foi especificamente na cultura cristã
ocidental que se deu a construção de um ―dualismo estrutural‖. Dualismo este colocado como algo óbvio e
natural, tornando-se então o esquema hegemônico de interpretação, compreensão e tratamento do ser humano.
Assim passaremos a ―perder‖ nosso corpo próprio, moldando nossa forma de viver e sentir o corpo através das
experiências que tivemos, da subjetividade alienada fundamental de nossa família, e respectivas Instituições
existenciais. Dicotomizamos o ente humano entre: o corpo e o que tem sido chamado de alma, espírito,
essência, logos, pensamento.
175
quase impossível apreender ou perceber uma corporeidade de corpos sem corpos, sem
espaço-corpo – este é o caminho para o que vem posteriormente e não o contrário) temos
acesso ao mundo (CARLOS, 2004, p. 51). Porém, este acesso ao mundo é condicionado
cumulativamente através da cotidianidade. Mesmo que o uso existencial do corpo mude
com cada geração, influindo no gestual, nas expressões significantes, o corpo não se
metamorfoseia (LEFEBVRE, 1991, p. 69); o que ocorre é uma metamorfose no corpo
coletivo. E nesse sentido o que realmente importa é o comportamento humano perante o
espaço-corpo. O condicionamento que produzirá um corpo coletivo como fonte espacial
enquanto unidade entitativa e representação. Através disso podemos perceber que o
espaço-corpo é um lócus de/dos valores estabelecidos pela subjetividade alienada.
Segundo Harvey (2006a, p. 135), ver o corpo como lócus, de forma irredutível, da
determinação dos valores humanos, significados e significações fazem dele um significante-
significado, como uma estratégia para a acumulação capitalista. Acrescentando ainda mais,
de que ele, o espaço-corpo, é estrategicamente significante-significado da subjetividade
humana alienada, através do qual se materializa no limite, unidade entitativa, do si-mesmo a
exteriorização da vida precedente e re-produzida em sua essência, nas relações cotidianas
– não somente do modo de ser segundo o capitalismo, mas da doença humana como um
todo. O corpo será para Harvey (ibid., p. 136), medida de todas as coisas, como
determinação e modalidade de construção dos valores e sentidos, como medida de todas as
coisas – ou, como já dissemos: medida da alienação (material-subjetiva) e do
estranhamento. Isso demonstra que o espaço-corpo internaliza o processo, os processos –
de modo geral, a espacialidade, e cotidianamente como práxis utilitária cotidiana. É a partir
desta internalização do processo que o corpo será ―base de toda a práxis e de toda a
reprodução‖ (LEFEBVRE, 1973, p. 102). O corpo carnal, vivido, terrestre e cotidiano é base
e começo em-si-mesm(ad)o do que tratamos no capítulo anterior como exteriorização da
vida: é uma exteriorização de nossa própria corporeidade relacional, no qual através disto
faz da corporeidade de corpos um meio para criar corpos comportamentalmente
padronizados. Assim, o corpo não é nem produto passivo nem reflexo condicionado
somente dos processos cotidianos, pois estes processos não são externos ao espaço-corpo,
é inerente a sua qualidade enquanto corporeidade de corpos. Essa corporeidade busca um
conglomerado de corpos dóceis, como num ―projeto inacabado do corpo humano‖ (ibid., p.
144), pois este projeto do espaço-corpo coletivo deve ser sempre reafirmado e tido como
imutável na e para a existência humana.
O que vimos nessa passagem fora não somente um escalonamento escalar
geográfico, do cotidiano para o corpo (ou corpos), mas, novamente o surgimento da
espacialidade diferencial existencialmente demonstrada. Porém, o movimento que
apreendemos não é das diferenciadas e diversas formas de espacialidades
176
91
. Como veremos a seguir, não trataremos este processo de estereotipagem tão somente como o estereótipo
em si, com os estigmas e representações pré-estabelecidas pela subjetividade alienada. Iremos da margem ao
cerne do problema, que é a própria corporeidade como fonte, meio, e fim do processo.
177
Estamos então perdidos nessa falta de maravilhamento, até porque nada mais é
novo, e até o que parece novo é somente a repetição daquilo que já foi planejadamente
tornado obsoleto. Através dessa rigidez habitual, de cada espaço-corpo-si-mesmo, vamos
ficando assustados e/ou angustiados perante algo que foge à superburocracia rotineira,
178
como que acuados e estressados por não sabermos mais lidar com eventualidades da
espiral da vida. Estamos somente mantendo-nos mortificados, reafirmando com o hábito
corpóreo próprio a exteriorização da vida. As possibilidades são sempre anuladas, ou
buscam sempre ser anuladas, numa ―imbecilização‖ que se caracteriza como hipocrisia. É o
mundo da mentira, das representações, das máscaras existenciais, da personalidade. A
existência humana tal como foi conformando-se se deu por meio de mentiras, evitando os
fatos, os fenômenos tal qual ocorrem. Só que estas mentiras servem como ―amortecedores‖,
protegendo da auto-sensação de que nos encontramos em alienação. Assim as mentiras se
tornam agradáveis a nossa consciência, porém nos protegem também de nosso si-mesmo,
cria a corporeidade alienada. Vivemos através de máscaras que nos revestimos, uma
construção da nossa personalidade, uma palavra que ―se origina da palavra persona.
Persona significa ‗máscara‘. Nos dramas gregos, os atores usavam máscaras, faces falsas
eram chamadas personae. E foi dessa palavra que se originou a palavra ‗personalidade‘‖
(RAJNEESH, 1993, pp. 107-108). Agimos então como personagens, hipócritas, atores de
uma corporeidade alienada que usam máscaras falsas – falsas porque não o que realmente
somos ou pensamos.
A corporeidade de corpos seria essa representação (aqui como ato de representar
personagens) lícita, que nos fazem ―marionetes‖ movidas por ―fios‖ externos. Essa ―zona
lícita‖ da hipocrisia é o que nos explica Cantoni (1968, p. 190), ―a da representação normal e
inevitável‖ que complementa e dá vida a domesticação primordial. Somos então
personagens impessoais, com papéis previamente descritos no qual somente deve-se
repetir em si mesmo um esquema genérico. E por essa força do hábito acabamos muita das
vezes por aderir passivamente ao pré-julgamento já feito, vivendo na inércia factual do
preconceito. Através dessa forjada atitude de auto-representação que através de nossa
escolha dos ―fios externos‖ a seguir que acabamos por escolher o outro. Moldamos nosso
espaço-corpo-si-mesmo na busca incessante de manipular a corporeidade de corpos, de
decidir o caminho do mundo. Aquilo que fora existencialmente construído será incorporado e
através dessa corporeidade repassada para os outros. O movimento não é cíclico, é um
círculo fechado e vicioso da doença humana do estranhamento. É isto que Sartre (1998, pp.
95-96) irá definir como a humanidade, em que cada ente humano não é antes de mais nada
um projeto, pois, ―ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens‖. Numa
reinterpretação particular, podemos apreender que assim que cada ente humano se
escolhe, singularmente, enquanto personagem estará escolhendo a corporeidade do(s)
outro(s). Este ato não é individual, embora pareçamos autônomos, mas a toda a
humanidade na escolha do caminho. E é nesta escolha da humanidade por esta intra-e-
intercorporeidade que temos o processo de estereotipagem, uma situação previamente
organizada em que cada ente humano propriamente ―está implicado; implica pela sua
179
escolha a humanidade inteira, e não pode evitar o escolher‖ (ibid., p. 116). Assim que
podemos julgar moralmente o outro, porque já se faz como um processo previamente
organizado.
O que podemos sentir e perceber é uma micropolítica de domesticação do espaço-
corpo. A corporeidade é política, pois a política do corpo não existe fora das relações com
outros corpos, principalmente com a intencionalidade de nos tornar passivos, dóceis e
quietistas. Esse quietismo ―é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo
que eu não posso fazer‖ (ibid., p. 109), embora só haja práxis com ação. Mesmo que
pensemos que em nossa postura quietista estamos isentos e inertes de ação política, este
ato de ―lavar as mãos‖ já é a política do corpo agindo pelas linhas externas que nos fazem
marionetes. Afinal, nossa práxis utilitária cotidiana já se encontra em nossa corporeidade
alienada. É por isso que o espaço-corpo é início, fim e medida de todas as coisas, do estado
de coisas; ele ―é uma relação interior e, por conseguinte, aberta e porosa com respeito ao
mundo‖ (HARVEY, 2006a, p. 178), porque de sua auto-exteriorização da vida parte-se para
o existencial mundo que retornará através da corporeidade segundo o processo de
estereotipagem. Este processo encontra-se como termo em Harvey (ibid., p. 168): ―processo
de estereotipagem‖; mas que podemos dar uma nova roupagem de percepção
fenomenológica do espaço-corpo como corporeidade de corpos como escolha do outro,
embebido de hipocrisia e rotinas. Este não é somente o estereótipo ou a estereotipia,
porquanto se encontra nestes e os reproduz, mas é mais do que eles.
O estereótipo geralmente é tratado como uma imagem preconcebida de determinado
indivíduo, coisa ou fato. Sendo usados principalmente para definir e limitar entes individuais
ou grupo de indivíduos de forma genérica e generalizante. Sua aceitação é ampla e
difundida/veiculada pelo senso-comum, sendo grande estopim de preconceito e
discriminação. Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, podemos tratar o
estereótipo como: ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo,
resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações; padrão,
geralmente formado de idéias preconcebidas e alimentado pela falta de conhecimento real
sobre o assunto em questão; e, aquilo que é falta de originalidade; banalidade, lugar-
comum, modelo, padrão básico. Guardemos esta abordagem para irmos sumariamente à
origem do termo e depois retornemos a esta definição junto ao que vimos com o espaço-
corpo. Segundo Diniz (2007, p. 137),
Seguindo essa perspectiva originária, por extensão, o estereótipo acaba por ser
apropriado e compreendido para definir uma opinião pronta, uma idéia ou expressão muito
utilizada, banalizada, um lugar-comum na produção do senso-comum. Daí podemos
entender porque da associação com a chapa de chumbo originária, pois cada página a ser
impressa será igual a seguinte, toda a materialidade dali produzida será uma cópia da outra,
original, como uma fo(ô)rma para o padrão desejado. Assim temos o engessamento
comportamental, perceptivo e consciente de cada unidade humana entitativa – o que
importa é seguir fielmente o padrão matriz, o estereótipo. E é a isto que remete sua
etimologia, advindo do grego stereos e typos compondo impressão sólida, que irá dar
sentido tanto ao objeto utilizado de forma maquínica e rotineira quanto ao comportamento
rotineiro e padronizado de cada um de nós. Essa supergeneralização é uma estratégia
discursiva e também factual na práxis utilitária cotidiana, funcionando muita das vezes como
elemento capaz de sintetizar conceitos, sendo cada vez mais utilizado na corporeidade e no
discurso cotidiano, principalmente após o advento da mídia como modelo sintetizador da
moral pretérita da existência humana como citamos alhures no começo do capítulo.
Contudo, ao mesmo tempo em que garante a sintetização de uma moral cristalizada,
produzindo um efeito de objetividade, também estabelece uma dimensão produtora de
efeitos de uma subjetividade alienada. Isto faz com que o indivíduo que expressa e
apreende o estereótipo se confunda hora como um ente genérico que somente reproduziu a
supergeneralização, hora como um ―sujeito‖ que teve uma ideia original, criativa e própria.
Podemos então abordar o estereótipo por duas vias complementares: a primeira enquanto
um modo da percepção, de forma particular que influencia, tal qual um ―esquema‖, como
nós percebemos e recordamos de experiências e pessoas; a segunda numa perspectiva
existencial enquanto fruto da interação cotidiana humana, neste caso o conteúdo do
estereótipo deve ser averiguado em sua fonte.
Iremos ao encontro então do inter-relacionamento das duas vias, que acabam por
gerar somente uma, que será o processo de estereotipagem. Do ponto de vista da
percepção, um dado estereótipo é existencial, pois se refere à representação corpóreo-
linguística expressa cotidianamente, mais especificamente por um determinado ―grupo
social‖; porém, com o advento da mídia a construção, reprodução e propagação de diversos
estereótipos acabam por serem repercutidos como um senso-comum de abrangência muito
mais ampla do que a local. Principalmente se dado estereótipo for veiculado por um país ou
grupo de grande influencia política e midiática (o que acontece com nossos enlatados
estadunidenses de filmes, comédias, telejornais e programas de auditório, entre outros).
Esta representação irá construir indivíduos que expressam papéis criados de forma genérica
criando assim, uma consciência alienada sobre determinado padrão de indivíduo em relação
a seu suposto ―papel‖. Desse modo acabamos por elaborar e disseminar pacotes de
181
representa aquele que não cheira como deveria cheirar um indivíduo civilizado; rato é o
ladrão. E assim sucessivamente como o tratar de bicho ou simplesmente animal (aquilo que
todos nós somos) um ente humano que esteja fazendo algo que fuja dos comportamentos
esperados para um humano enquanto tal. Estes rótulos e adjetivos demonstram o processo
de estereotipagem em seu aspecto linguístico como formação de um padrão fixo, do qual
nem o chamado de ―melhor amigo do homem‖ (por ser um dos primeiros a serem
domesticados, adestrados e usurpados pela dominação humana e que, mesmo assim, ainda
continuam sempre ao nosso lado) escapa. Quem nunca ouviu ou esbravejou para outrem
que era um cachorro, para demonstrar sua atitude de ―canalha‖ (mas não era amigo?), ou o
cão, como representação direta para o maligno, a satanização, como o oposto de Deus92.
A satanização dos outros animais é algo muito comum no processo de
estereotipagem especista, e da margem para que possamos entrar na veiculação das
imagens que depois trataremos com a romantização. Outro animal que fora satanizado é o
bode, principalmente após a construção simbólica do Bode de Sabbath ou Baphomet, ainda
conhecido como bode de Mendes, desenhado por Alphonse Louis Constant, o abade
ocultista francês do século XIX, de alcunha Eliphas Levi93. O ocultismo seria perseguido pelo
clero de até então, denominando todas as práticas religiosas que vão para além da teologia
teocêntrica e antropocêntrica como ocultismo, animismo ou somente satanismo. Mas,
realmente por hora o que nos importa é o Bode, que desde então ficará registrado como
estereotipia do diabo, maligno oposto da bondade divina.
92
. É curioso observar que em inglês o termo dog é escrito de forma oposta a god, respectivamente cão e Deus.
Será que não existe nenhuma semelhança linguística nessa representação e oposição entre os termos em nossa
língua? Cabe em outra hora e trabalho averiguar.
93
. Para alguns detalhes consultar: <http://www.priscilaemaxwellpalheta.com/2012/03/personalidades-satanicas-
parte-4.html>.
185
Para finalizarmos a romantização veiculada pela mídia dos animais não humanos em
suas propagandas, é a estereotipia dos alimentos de origem animal. Leites e derivados,
carnes bovinas, suínas, aviárias, em sua maioria, quando mostram, os animais encontram-
se sempre numa condição alegre, livre, sem sofrimento aparente e muitas das vezes,
também como no caso dos animais para crianças, com expressões humanizadas. Os porcos
sorriem nas vitrines dos açougues especializados na venda de carne de porco e embutidos,
mostrando muito bem que o seu papel, a sua vocação íntima, a sua ―natureza‖ instintiva e
sagrada, é virar presunto. Um excelente exemplo dessa romantização é o mascote da
empresa Sadia (que atualmente se fundiu, por meio de troca de ações, com sua antiga
concorrente Perdigão, formando a Brasil Foods), que desde sua primeira aparição até os
dias de hoje, ―o franguinho‖ de óculos de motoqueiro e sempre dançante busca demonstrar
para os consumidores com sua ―simpatia‖ as novidades da Sadia nos anúncios e comerciais
de televisão em que aparece – cabe lembrar também com um sutil toque de nacionalismo
―verde-amarelo‖ que um bom-consumidor-cidadão-de-bem foi induzido a gostar.
188
O intuito claro é a venda do produto, mas também para nós, fica muito clara a
romantização e a construção de um estereótipo especista na nossa alimentação. Desse
modo terminamos aqui o processo de estereotipagem especista, através da análise crítica
sobre a romantização veiculada pela mídia como senso-comum deste estereótipo.
Partiremos para outro, não menos importante e não menos duradouro na existência
humana: o sexismo, em que além de demonstrar a dominação do homem enquanto gênero
e padrão genérico para a existência humana em geral, romantiza todas as relações em
função do estereótipo naturalizado da condição feminina: submissa, frágil, zelosa, ―pura‖ e
fruto do ―pecado‖ (como objeto sexual masculino). Assim como vimos com o processo de
estereotipagem especista, não é uma abordagem redundante àquela já feita outrora, mas a
demonstração cotidiana da discriminação reproduzida (estereotipia) e formação de um tipo-
fixo corpóreo (estereótipo) baseado no gênero ou ―sexo‖ (o que é masculino e o que é
feminino, como modos de ser distintos) privilegiando os integrantes masculinos da espécie
humana, enaltecendo sempre comportamentos e caracteres que se consideram como
masculinos (de forma explícita, com conflito e repressão direta – ou implícita – de modo
romantizado). Com o intuito de sintetizar o que na cotidianidade encontramos como
estereótipo-estereotipia sexista veremos alguns aspectos que se complementam. Não
adentraremos no conflito explícito, do qual parte já fora tratada anteriormente, mas sim de
forma pontual na romantização sexista, onde o processo de estereotipagem é mais atuante
para conformar e reproduzir idéias e padrões espaço-corporais acerca deste fenômeno.
Se fosse solicitado para homens e mulheres denominarem dois adjetivos ao seu
sexo oposto, provavelmente alguma resposta ou mesmo a maioria delas incluiria palavras
189
94
. Frases retiradas dos sítios eletrônicos: coisasdehomem.com/frases-engracadas/frases-machistas; e:
www.aspiadas.com/piadas-curtas/machistas.html.
190
95
. As Instituições que se condensaram na e através da mídia irão perpetuar o processo de estereotipagem
sexista. Na Filosofia, a mulher não participava das discussões lógicas; na Religião, como vimos no caso judaico-
cristão, a mulher é inatamente submissa aos desígnios do homem e de Deus; na Ciência, repetindo todo o
arcabouço sexista de outrora, as mulheres ficam por séculos longe do discurso, quando não são
biofisiológicamente buscadas comprovações que concretizem o ideal machista; e a Mídia veiculando o processo
de forma condensada das outras instituições, e ainda com outros adendos que se respaldam na imparcialidade.
191
p. 43). E assim seguimos aprisionando de forma incisiva por séculos as mulheres que
tratamos como nossas (mães, irmãs, filhas), que estereotipamos seu ilogismo, sua
inabilidade em dirigir, sua condição primeva de pecadora e, em contrapartida lhes
atribuímos outros valores: lides do lar ou marginalizadas ao âmbito do privado, objetos e/ou
mercadorias a serem usadas pela virilidade do ―macho-alfa‖ (lembre-se que a mulher do
outro, filha, mãe, irmã, sempre do outro que delas tome conta contra a impetuosidade
penetrante do ―macho‖), expostas à própria sorte e vistas como ―lixo humano‖ pelo próprio
homem que a ―consumiu‖96; e, também romantizadas, como vimos no especismo e através
das palavras de Smith, onde as mulheres são vistas como puras, frágeis, meigas, que não
gostam de sexo, não ouvem ―palavrões‖, vivem em um ―mundo cor de rosa‖ e, que segundo
Rodrigues (1986), na gramática dos sexos uns exibem orgulho de seu órgão sexual e
também podem ceder o lugar no ônibus – outros escondem ―suas vergonhas‖ e se
acostumam com um cavalheirismo que mascara o machismo com(o) marianismo.
96
. Vale lembrar que, segundo Marx (2006, p. 139, nota do editor, possui número 2 no original), ―a prostituição é
somente uma expressão específica da universal prostituição do trabalhador, e uma vez que a prostituição
constitui uma relação que acolhe tanto aquele que é prostituído como aquele que prostitui – cuja mesquinhez é
ainda maior –, também o capitalista entra nessa categoria‖. Tratando de modo geral, o ato de prostituição é uma
prostituição da existência humana em geral, homens ou mulheres, agentes ou coagidos, no qual a busca é
sempre de exteriorizar a vida humana.
192
estereotipados, em uma corporeidade que não é sua. Desde a infância ao iniciar sua fala, as
primeiras palavras que aprendemos são mamãe e papai, compreendendo que uma
denomina o masculino e outra o feminino. A partir desta compreensão, a criança identificará
sumariamente as formas fixas já engessadas na existência humana, para meninas e para
meninos. Com a criação-adestramento dos filhos vão se reafirmando as distinções: com um
filho homem, acontecerão brincadeiras como ―meu filho é macho, tem um pintão‖ ou ―vai
pegar todas quando for mais velho‖; coisas inconcebíveis para meninas como exaltação do
órgão sexual e muita sexualidade e troca de parceiros. Outra característica que romantiza o
feminino é através dos termos de chamamento: para meninos garotão, lindão, fofão; para
meninas: bebezinhas, pequeninas, fofinhas. O que parece somente forma terna de
chamamento irá demonstrar que meninos são maiores (aumentativo) e mais fortes que as
meninas, que por sua vez são menores (diminutivo) e frágeis, devendo ser zelosamente
guardadas no âmbito privado. Quanto às brincadeiras, também separamos rotineiramente
com frases tipo: ―menino, deixa essa boneca‖, ou ―menina não joga futebol‖. É possível notar
a diferença, até mesmo ao indivíduo mais distraído de sua postura crítica, das brincadeiras.
Enquanto os meninos se interessam por carros, aviões e armas, as meninas brincam de
atividades voltadas à vida no interior do lar e o sustento do âmbito privado (familiar) como
lavar, passar, cozinhar, deixando claro que quando adultas deveriam desenvolver este
papel. O brincar com bonecas está ligado à maternidade, como se fosse estipulado que
somente as mulheres possuem o ―dom‖ de cuidar de um recém nascido, mesmo que os
meninos venham a tornar-se pais destes bebês, o ato de zelar pela segurança e
desenvolvimento da criança será ligado à mãe.
194
todo o alvoroço das atividades do dia, ajuda a controlar a mente, a ter clareza de ideias e a
ser criativo. Quanto aos caracteres associados ao uso da cor azul, e não da cor em si,
estão: inteligência, comunicação, confiança, eficiência, serenidade, dever, lógica, reflexão,
calma, ausência de emoções, ausência de simpatia. Já o rosa é associado com estereótipo
desejável pelo gênero feminino que pode ser associado com comportamentos
emocionalmente descontraídos, que influi nos sentimentos convertendo-os em amáveis,
suaves e profundos. O uso desta cor faz-nos sentir carinho, amor e proteção. Também nos
afasta da solidão e nos converte em pessoas sensíveis. O rosa estria relacionado ao amor
altruísta (passividade, emoção, sentimento condicionado) e verdadeiro. Segundo este
mesmo ponto de vista as palavras chaves da cor rosa são: inocência, amor, entrega total,
ajudar ao próximo. Assim como a cor azul, a cor rosa possui caracteres associados ao seu
uso como: alimento, calor, feminilidade, amor, sensualidade, sobrevivência da espécie,
inibição, claustrofobia emocional, fraqueza física, desmasculinização (castração).
Como vimos alhures, na citação de Lévi-Strauss, esta é uma atitude que repousa,
sem dúvida sobre fundamentos subjetivos sólidos, tendendo a reaparecer em cada ente
humano quando colocado numa situação rotineira de confronto, direto ou indireto, com o
outro. E dessa forma não são somente os fundamentos subjetivos alienados que aparecem
como sólidos, o estereótipo construído para que possamos reagir de frente ao outro também
197
são formas consolidadas, corporeidades alienadas porque fixadas de acordo com pontos de
vista intencionalmente invertidos. Este processo de estereotipagem que se encontra em
caráter quase universal irá criar uma heterofobia (fobia da diferença), com inúmeras formas
e/ou estratégias geradoras de diversas formas de preconceito, por exemplo, o racismo.
Segundo J. C. Carvalho (1997, p. 182), referenciado em Taguieff, são elas: a antropofagia
dialógica (forma de englobar o outro pelo discurso persuasivo, sendo uma estereotipia bem
utilizada pela mídia); antropofagia digestiva (racização repressiva da assimilação dos outros
a si mesmo); antroponemia genocida (racização terrorista da destruição dos outros); e
antroponemia da tolerância (racização específica do desenvolvimento ―em separado‖: em
aparência, respeita-se tanto o outro, tolerando-o, o que na realidade, acaba-se por isolá-lo,
não se dando aos trabalhos dos enfrentamentos de diferenças). Podemos com estes
exemplos perceber que o etnocentrismo enquanto ação que cria estereótipos e
consequentemente discrimina o outro por conceitos pré-estabelecidos será uma
(re)produção (produção do estereótipo em constante reprodução da estereotipia) do outro;
uma prova de que o outro que tanto nos incomoda está dentro de nossos próprios
preconceitos98 e estereótipos: nos incomodamos na verdade com nós mesmos. Assim
vamos efetuando nossas discriminações, segregando pela distinção do outro, de forma
naturalizada, no qual é algo da natureza humana discriminar ou de que não somos
obrigados a gostar da presença do outro. E nessa negação e exclusão do outro, ou
simplesmente aceitação pelo discurso (não pela prática) que vamos convivendo e
desempenhando o racismo enquanto processo de estereotipagem naturalizado na
cotidianidade.
Segundo Pierucci (1999, p. 26), o racismo não pode ser somente delimitado como a
recusa do outro, da diferença, como uma heterofobia, isso acarretaria em ―meias verdades‖
úteis para um discurso intelectualizado. O processo de estereotipagem racista cria uma
representação de mundo (da corporeidade inclusive) sob a ótica da diferença, pondo-a em
foco como que uma ―obsessão pela diferença, seja ela contestável, ou apenas suposta,
imaginada, atribuída‖. Nessa incessante busca por criar diferenças que podemos com
auxílio de Pierucci (ibid., p. 27) envolver o racismo segundo duas formas: a rejeição da
diferença e a afirmação enfática da diferença, sendo que primeiramente afirmamos a
diferença para depois rejeitá-la e, consequentemente fazer esta diferença funcionar através
do processo de estereotipagem, centrando o argumento sobre a certeza das diferenças, que
serão anunciadas como inevitáveis.
98
. Segundo Hannah Arendt (2002, p. 28-30), os preconceitos são compartilhados em nosso ser-com, que se
demonstram naturais para nós, no qual em uma conversa podemos utilizá-los sem explicações ou detalhes (para
maior entendimento via estereótipo), com um papel extraordinário no cotidiano, não sendo assim, somente,
idiossincrasias pessoais. Em nossa existência humana, nenhum estado de coisas do que dizemos ser a
―sociedade‖ deixa de se basear em preconceitos. Desta forma, alguns entes singulares são permitidos em
detrimento da exclusão de outros, via do estereótipo formado.
198
99
. Nas palavras de Quijano (2005, pp. 246-247): ―Eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de
conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de mediados do século XVII,
ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes
se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa‖.
199
100
. No século XIX (1855) houve uma tentativa cientifica para explicar a superioridade racial através da obra do
conde Arthur Gobineau, intitulada Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Nesta obra é sustentado
que através da raça ariana nasceu a aristocracia que dominou a civilização europeia e cujos descendentes eram
os senhores naturais das outras raças inferiores.
200
são artistas e jogador de futebol. Se fracassam, lhes jogam na cara a suposta razão do
fracasso a cor da pele‖.
moral europeia veiculada por um senso-comum engessado agora pelo neocolonialismo que
nos venda cotidianamente.
Figura 13: Amostra do estereótipo atribuído aos negros, no caso o piloto de Fórmula
1, Lewis Hamilton, para que cumpram seus ―papeis‖ esperados e pré-estabelecidos,
caso não cumpram é ―jogado-lhes na cara‖ a generalização da pele negra.
A instituição da mídia irá dizer-nos todos os dias que quem são os mais belos
esteticamente e bons eticamente são os brancos. Vemos estereótipos de propaganda que
reproduzem a concepção do ―cabelo ruim‖. Então, o negro, o neguinho, o negão, o pardo, o
mulato, o moreninho, o jambo, o café-com-leite, o sarará, o nego-aço, o crioulo, o preto, o
"você não é negro, é moreninho", esses se não tiverem o ―famoso‖ cabelo liso, ou devem
fazer alisamento japonês, a escova progressiva, a chapinha, o relaxante ou então devem
passar a "maquina zero"; para se conformarem na co-existência cotidiana. Continuamos a
classificar ―as pessoas quanto à sua ‗aparência‘, habilitando-as ou não a determinados
empregos, e nos surpreendemos quando uma pessoa ‗bem apresentada‘ é identificada
como transgressora das normas sociais e considerada criminosa‖ (RODRIGUES, 1986, p.
46). Sempre que vamos ao restaurante a maioria dos garçons é da cor branca, o oposto de
que encontramos quando o caso é de ―seguranças‖, a maioria não-brancos. Isto nos remete
ao que novelas e filmes sempre relatam: negros são sempre ―maus e feios‖, aquilo que
aprendemos a temer desde a infância; rotulamos o que é eticamente errado de ―feio‖ e que
repete estes atos de mau, logo o negro é segurança por ser mau e feio, por isso podem
cumprir o ―serviço sujo‖ de agredir, matar e gritar. O oposto ocorre com a imposição de outro
discurso desde a infância: ―você está preto de sujeira‖ (SANTOS, J., 1984, p. 20), no qual a
criança irá crescendo com a concepção de que quem é preto será igualmente sujo (já sendo
também mau e feio) por isso não podendo ser os garçons dos restaurantes, principalmente
202
o das elites, que vão preferir serem atendidos por entes humanos brancos e
estereotipadamente limpos, já que ao lidar com comida exige-se uma política asséptica.
Na mídia encontramos diariamente uma cota para brancos, até o herói clássico
africano é branco, o Tarzan. Esta cota encontramos, para reforçarmos a política asséptica
de nossa existência, também nos produtos destinados aos bebês, principalmente os
referentes à higiene. Nas propagandas televisivas, de ―outdoors‖ e revistas, os bebês
brancos são maioria esmagadora, aqueles não-brancos entram na maioria das vezes por
uma postura hipócrita cotista, no qual qualquer espectador criticamente mais atento percebe
a inclusão de um ente humano negro compondo a cena – geralmente com aspectos ou
pitorescos do negro ou branqueado, nas ditas ―feições finas‖ de um ―negro bonito‖. A
Johnson e Johnson, marca que atua na venda de produtos infantis, veicula regularmente em
suas estampas para atrair consumidores, bebês brancos. A expressão massificada ―bebê
johnson‘s‖ para rotular a beleza de uma criança geralmente é atrelada a um bebê branco. É
perceptível no logo da campanha a expressão: ―por um mundo mais bonito‖, por isso mesmo
deve ser um mundo de bebês brancos, para que tenhamos um futuro de entes humanos
todos em via de branqueamento101.
101
. Para maiores informações sobre o concurso ―bebê johnson‘s‖ ver o sítio: <www.bebejohnson.com.br/>. O site
não se encontra acessível constantemente, pois a própria campanha acabou, retornando somente em 2016 de
forma sazonal. Principalmente, pela proposta branqueadora de sua campanha. Era perceptível que os eleitos
para cada mês, como bebê mais bonito, sempre eram brancos, até os elegíveis eram em sua maioria brancos.
Uma breve reportagem mostrando o retorno da campanha de forma ―adaptada‖ às questões atuais,
supostamente contra o racismo. A imagem da reportagem, que mostra essa nova proposta da empresa, veicula
um bebê com sua mãe, agora ambos negros. O sítio da reportagem: <http://oglobo.globo.com/economia/o-bebe-
johnsons-esta-de-volta-agora-em-versao-digital-19831054>.
203
Assim vamos percebendo que pela mídia o padrão ético e estético do mundo vai
sendo conformado via de cada processo de estereotipagem. Um mundo humano, de
homens brancos dominando. E esse mundo será recriado cotidianamente a partir de um
processo constante de estereotipagem do modismo. Neste modismo não estão
enquadrados negros, mas acima de tudo não estão enquadrados também aqueles que
esteticamente estão fora dos padrões de etiqueta. A modelização dos corpos é a
estereotipagem que faltava para nos convencer do que devemos ser, enquanto corpos, e de
como devemos nos comportar enquanto seguidores de etiquetas.
Faremos agora, nesta porção final do capítulo um movimento que consideramos
inverso. Perpassaremos da estereotipagem que assola a corporeidade de corpos à
subjetividade alienada, caminho oposto de que viemos percorrendo desde o segundo
capítulo. E para iniciarmos esse caminho devemos ir ao que para nós é algo banal, rotineiro,
principalmente pela massificação alienada da mídia: a moda. Não se resume somente à
moda o processo de estereotipagem modista, mas a um complexo imbricado entre moda-
etiqueta-estética, no qual a finalidade deste processo de estereotipagem é o juízo ético,
através do padrão estético, não somente uma coerência do que denominou ―belo‖ pura e
simplesmente. Esta será uma moda que modela o corpo e não o corpo que faz a moda.
Devemos ficar magros para caber na roupa e nos transportes públicos. Devemos estar
magros para sermos ―bem vistos‖, estarmos assim ―de bem com nossa aparência‖, que se
confunde com nosso si-mesmo. Deve haver o homem médio, em altura, pesos e medidas
para compor a moda. Encontramo-nos moldados em padrões médios estranhos a nós, que
204
E esta acaba por ser a moda, de forma ingênua (ou posta pelo senso-comum como
uma subjetividade alienada) como maneira, gênero, estilo prevalente (de vestuário,
conduta), mas, que se analisados criticamente a expressão conduta, de que a moda são
modos de agir, viver e sentir coletivos, aceitos por determinado grupo humano, podemos
relacionar com o posicionamento de Lefebvre. O filósofo destaca que a moda, ―elimina ao
mesmo tempo o corpo como sujeito físico e o apropriado como sujeito social‖ (LEFEBVRE,
1991, p. 176). Somos assim, estereotipadamente, consumidores da moda como uma
mercadoria fetichizada; qualquer corporeidade será estereotipada para que nos tornemos
consumidores e manequins ambulantes. Somos símbolos dessa cotidianidade consumista,
e, acabamos por não perceber se os manequins de vitrine sempre em promoção são nossos
estereótipos ou nós que somos deles, pois criamos as estereotipias que somente
despersonalizamos (sem rosto, sem diferenças nos rostos, tamanhos e até mesmo sem
cabeças – para nos identificarmos e quem sabe não nos identificarmos enquanto auto-
críticos reflexivos) através dos bonecos sem vida, porque nos demonstram nossa
exteriorização da vida. Deste modo, como falamos que o processo de estereotipagem
modista é uma tríade imbricada, partiremos agora para a passagem justamente (ou
confusão talvez) do juízo ético para o estético e vice-versa. Através do estereótipo
construído pelo padrão estético da moda, atribuímos junto a estes padrões, outros que dão
movimento. Sendo este o juízo ético da etiqueta. Será uma moda de conduta dos corpos em
relação aos outros, dando complementaridade e ao mesmo tempo suporte ao estereótipo da
moda.
Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, etiqueta seria dentre
outras definições, um conjunto de regras de conduta, especialmente as de tratamento,
seguidas em ocasiões geralmente formais, e que revelam, sobretudo, a importância social
das pessoas envolvidas. Contudo, apesar de tratar das hierarquias que convivemos
―distraidamente‖ na cotidianidade, esta definição abarca somente a ponta do iceberg que é a
206
etiqueta. Utilizaremos duas definições de etiqueta para prosseguirmos com nossa análise
crítica. Segundo Ferrari, em seu ―Manual prático de etiqueta‖, que a autora se refere com o
subtítulo como sendo ―um guia para seu cotidiano‖ (demonstrando explicitamente que a
etiqueta compõe o padrão de conduta da cotidianidade), a etiqueta, ou regras, ―existem para
facilitar a vida das pessoas. São formas de comportamento que vão se modificando através
dos séculos para que as pessoas possam conviver de forma mais harmoniosa‖ (FERRARI,
s.d., p. 3). A outra definição é do Instituto Costarricence de Eletricidad, que veicula uma
cartilha sobre ―Etiqueta Social‖, dizendo em nota introdutória:
102
. Se quisermos dar uma averiguada nessa etiqueta à mesa que faz parte da estereotipagem humana, que
repudia nossa ―natureza selvagem‖, em via constante de ser domesticada, podemos encontrar vários exemplos
no sítios eletrônicos que nos brindam com essas dicas. A própria empresa Sadia que, como vimos, é um
exemplo também da romantização do especismo, como outro processo de estereotipagem, já veiculou em suas
páginas esse serviço. O próprio sítio da empresa não veicula mais essas informações, contudo, outros sítios
utilizaram suas recomendações, como, por exemplo:
<//bellbuffet.webnode.com.br/artigos/etiqueta%20%C3%A0%20mesa/>. Outros sítios eletrônicos são totalmente
destinados a isto, como: <//www.dicasdeetiqueta.com.br/etiqueta-a-mesa/>.
207
Mas, nessa relação intricada de bem e belo associada pela lógica humana, o estético
padronizado (estereótipo) da moda e da etiqueta se converte em um padrão
comportamental de julgo ético. Como ramo da Filosofia que busca estudar e indicar o
melhor modo de viver no cotidiano. Contudo, diverge da moral, pois enquanto esta se
fundamenta na obediência a normas, costumes, hierarquias; a ética, busca fundamentar o
bom modo de viver pelo pensamento humano. Isto podemos novamente perceber na ―Ética
a Nicômaco‖, de Aristóteles, que irá, dentre outras coisas, definir ―o que é o Bem para o
homem‖. Atualizando o tema, o que muitos poderão utilizar como defesa da fixação humana
na ética é de que o ente humano vive em sociedade, convive no seu ser-com-os-outros e,
logo, cabe-lhe pensar e responder à seguinte pergunta: ―como devo agir perante os
outros?‖. Esta situação leva ao apelo fundamental do comportamentalismo imposto pela
etiqueta, via de uma ética que valorize a convivência, de forma harmoniosa (mesmo que não
seja), igualitária (mesmo que seja cada vez mais desigual) e natural (mesmo que estejamos
com isso reprimindo cada vez mais o que podemos tratar como ―naturais‖) – afinal, ainda
tem muitos que se julgam éticos, com a vida (biocentrismo?), ou somente para com os
outros animais (veganismo?) e que se respaldam no argumento de que o ente humano é um
animal da ética; mais um especismo teórico assim como o da racionalidade, da política, do
social, da alma, entre outros. Nessa hipocrisia do juízo ético, de como fazer o bem, vamos
reajustando à etiqueta como ―código de boas maneiras para a vida em sociedade‖ o que
seria uma forma de deixar ainda mais ética a vida estética humana; pois estamos sempre
em busca do que nos defina enquanto bons e belos. Não é por menos que ajustamos ao
discurso, geralmente das crianças, a etiqueta à moda da ética através das ―boas maneiras‖.
Sempre buscamos educar através das chamadas ―palavrinhas mágicas‖. Ensinando a
ordem certa de entrar em sala de aula, não brigar corporalmente (somente através do
discurso que aprendemos desde a infância, articular as palavras, para evitar ―perder a
razão‖), sentar-se ―corretamente‖, não falar palavrão. E com isso vamos atribuindo valor
ético, aquele que cumpre é bom, imbricado com estético, e também belo, em detrimento dos
feios e maus.
209
CONSIDERAÇÕES FINAIS
C
hegamos ao que seria o fim desta odisseia. Fim ou desfecho seria uma
terminologia muito ―dura‖, axiomática, para este trabalho que fora percorrido com
tantas idas e vindas e proposições contrárias ao fechamento de ideias. Como já
dissera Albert Einstein, vivemos numa época onde é mais fácil desintegrar um átomo do que
um preconceito. É por essa via ou odisseia que percorremos: derrubar preconceitos,
principalmente da Geografia científica, que se aproximou mais de uma auto-definição
científica, objetiva, do que de uma postura autocrítica e de superação (ou ruptura) de teorias
pré-concebidas e da própria existência humana. Queremos mais uma vez nessa parte
derradeira provocar uma união, de outra dicotomia, a existente entre a abertura de ideias
(considerações finais) e o fechamento conclusivo (posicionamento perante o trabalho feito).
O que queremos é exercitar o movimento, o devir que deve ser este momento, e não
somente demonstrar a dicotomia e/ou provocar uma insegurança quanto ao tema tratado. A
provocação é de tirar o conforto das ideias pré-concebidas e ao mesmo tempo fazer com
que este momento seja de mais reflexões do que somente de conclusões.
Arriscamo-nos a dizer que chegamos ao fim deste trabalho, mais precisamente ao
fim desta dissertação e não do trabalho como um todo, pois se trata como já frisamos de
uma empreitada para toda a vida. Deste modo é que não pretendemos dar por encerrada a
odisseia, mas somente parte efetiva dela. A abertura de futuros aprofundamentos deve ser
uma premissa para um diálogo que visa ser mais fecundo ainda. Assim é que a dissertação
em si é o fechamento de um ciclo de estudos, pesquisas e principalmente de escolhas
vividas. Porém, tal momento como que num rito de passagem adquire a característica de
acúmulo necessário para prosseguirmos na odisseia ininterrupta da relação existencial
vivida com a Geografia e com as pretensões singulares de evitar a instauração e/ou
manutenção de velhas verdades e velhos medos, no sentido de auxiliar na superação dos
paradigmas já denunciados sumariamente nos capítulos precedentes para uma existência
humana mais harmônica.
É nesse sentido que devemos encarar a presente odisseia. Como uma busca que
fora calcada no tema da Ontologia em Geografia, sob o viés de análise crítico sobre a
acepção de espaço, e consequentemente buscando remodelar segundo nosso prisma,
213
Corrêa da Silva e sua proposta instigante de (re)ver o espaço. Sua iniciação no debate
quanto ao tema da ontologia, do espaço como ser e do espaço ontológico permeou e
interligou em muitos momentos nossa proposta individual. Silva fora o ponto de partida de
algumas inquietudes tanto na ciência geográfica brasileira quanto em nossa postura
intelectual. Como vimos, escolhemos para o debate da Ontologia, dentre outros que não
foram meras ―colchas de retalhos‖ (pois tiveram nexo em nosso posicionamento e escolhas
em toda a linha do trabalho), o filósofo Martin Heidegger, com sua particular compreensão
do ser e do que viria a ser uma análise ontológico-existencial com postura fenomenológica
posicionada frente à cotidianidade que abordamos já no terceiro capítulo. O diálogo que
encontramos fora entre a Ontologia na Geografia de Armando C. da Silva e a Ontologia
como tema da Filosofia de Heidegger. O que pareceu, como dissemos, mera ―colcha de
retalhos‖ teórica fora uma aquarela da qual tomamos partido no que permeou o diálogo
fenomenológico (averiguado em certos momentos na Filosofia de Maurice Merleau-Ponty), o
existencialista (de Jean-Paul Sartre) e a crítica contundente da teoria marxiana, de Karl
Marx até a filosofante análise de Karel Kosík, que nos referenciou no efetivo de nossa
abordagem da espacialidade. Vimos que a re-ligação entre a perspectiva filosófica
heideggeriana e a crítica marxiana é um projeto possível, como constatamos no segundo
capítulo. Outra abordagem possível que perambulou bastante, recortando e cozendo,
durante esta dissertação fora o pensamento de Friedrich Nietzsche. Com ares de uma
proposta para uma nova ciência, com contornos heurísticos, suas setas e sentenças foram
extremamente diretas para percebermos que nosso modo de ser está em estranhamento e
que necessitamos de uma ciência filosófica realmente libertadora. Necessitamos de uma
reconciliação existencial entre a nossa forma de conceber o espaço na Geografia e na
existência e ao mesmo tempo um novo modo de ser que não este que está-aí.
Estas e outras abordagens foram fundamentais para constituir o corpo de nosso
trabalho. E por falar em corpo, poderíamos ter abordado o corpo de uma forma mais
científica e menos subjetiva do que exemplificamos no terceiro capítulo, com cada processo
de estereotipagem, mas da forma que referenciamos o corpo, como espaço e ao mesmo
tempo uma corporeidade produzida pela consciência e perpassada pelo senso-comum,
concluímos que quando representamos estes corpos estamos representando espaços
singulares, o corpo próprio que falara Merleau-Ponty, no sentido de um espaço-corpo sem
identificação e/ou reafirmação da dicotomia espaço/corpo. Não há relação espaço-e-corpo,
pois ambos são um só, o corpo através da acepção do espaço como ser não pode ser outra
coisa senão espaço. O recurso da hifenização é somente uma estilística para frisar a
inseparabilidade ontológica de nossa perspectiva. Então quando falamos da estereotipia e
do estereótipo estamos falando da corporeidade (espacialidade ao nível de análise do
corpo) ontológica conformada e perpetuada pela representação cotidiana de nossas vidas.
217
É nesse momento que podem surgir as dúvidas quanto à geograficidade do tema (ou
o que torna o trabalho científico uma análise geográfica), principalmente no campo do
processo de estereotipagem, que parece ser tema da Antropologia Social ou da Psicologia.
Aqui concluímos igualmente que a geograficidade não é inerente ao tema e sim à vida, ao
movimento em constante devir da existência. Uma concepção da geograficidade como o vir-
a-ser enquanto modos de haver da materialidade. Esta geograficidade não está atrelada
somente à Sub-Totalidade Terra, mas nela contém, ela está contida e por ela perpassa a
geograficidade enquanto haver sincrônico e caótico da materialidade. Este haver é ter,
possuir, ser, estar senhor de, conter, encerrar, abranger, exibir, existir. O haver é impessoal,
é a existência, é tanto temporal quanto espacial, é a ocorrência de um fenômeno; é a forma
de expressar inúmeros fatos geográficos que são indizíveis, por isso a geograficidade é o
vir-a-ser constante do haver da materialidade. Este vir-a-ser é o devir de que falamos
através do pensamento de Heráclito, onde tudo flui, tudo se move, como uma ―lei universal‖
do haver da materialidade103. Cabe ressaltar que este ponto de vista não deverá ser
aprofundado por aqui, mas surge como uma proposta de análise futura com o fito de dar
continuidade ao tema aqui abordado em uma tese futura. Essa forma de se conceber a
Geografia, não como uma ciência vai ao encontro do que pretendemos no primeiro capítulo,
de superar o paradigma atual de ciência, principalmente da geográfica, que ―mistifica‖ como
científico somente o que é relativo aos ―lugares‖ (espaço, paisagem, território, região, lugar)
e não à humanidade, aos corpos próprios. Desta forma é que cabe re-significar o espaço e
re-significar o corpo, como em uma existência única, sem reforço de dicotomias.
Reiteramos então que existe um nexo entre os capítulos, não como conclusão
objetiva a ser alcançada somente, mas na ótica do espaço enquanto corpo, no espaço
ontológico enquanto existencial da existência humana. As capitulações foram formalidades
que buscaram não somente subdividir objetivos, mas demonstrar realidades que estão em
constante movimento vivo, no qual ciência alguma consegue esquadrinhar ou engavetar.
Nesse momento deve surgir a pergunta que foi a questão primeva: podemos conceber o
espaço como ser? E ao mesmo tempo podemos inquirir, concordando com Smith (1988, p.
116) se ―é o espaço, ‗em si mesmo‘, uma base para a realidade, ou é o conceito abstrato de
espaço que é um fundamento para o modo em que vemos a realidade?‖. Põe-se uma
questão para a questão como uma dúvida que nos alcançou já no final deste trabalho. Será
que o espaço é ontologicamente ser ou somente um ser enquanto ideia? Segundo Biteti
(2007, p. 71), no pensamento grego antigo encontramos um dualismo metafísico entre o ser
e o devir, pelo o conflito entre os pensadores deste período. Nos chamados pré-socráticos,
103
. O devir é a lei universal que move os entes. Os fenômenos se repetem, mas não se repete o mesmo
fenômeno: o que é hoje sempre será a unidade entitativa, mas concomitantemente não é aquele de ontem. Os
entes viventes que vivem hoje não são mais aqueles do passado. Aliás, cada coisa jamais é a mesma, dia-a-dia
perde-se e conquista-se algo, mesmo quando a nossa percepção parece desaparecer para sempre.
218
o que tratamos aqui como ser era como uma substância originária, respondendo ou
buscando responder ao questionamento sobre a origem do mundo, a arché. No pensamento
de Heráclito o ser é um vir-a-ser incessante sem um estado estático dos entes; já para
Parmênides (como vimos no primeiro capítulo) o ser é substância: imutável, eterno e infinito,
e principalmente imóvel, sem vir-a-ser (pois esta seria negação do ser, o movimento).
Temos então a dicotomia do ser (de um lado) e o devir (do outro o ser-essência), porém,
que será de domínio da concepção linear tomada pela existência humana ocidental, do ser
imóvel. Mas, caberá a Platão, discípulo de Sócrates (aquele que Nietzsche acusara de ser o
déspota da lógica, primando pelo otimismo da teoria em contrapartida de uma visão
pessimista da prática), criar a relação entre este ser imóvel e ideia, e dissociar o ser da
phýsis. Em Platão phýsis será o mesmo que idea, o ser torna-se a partir de então razão, não
encontraremos a verdade no Ser, na phýsis desde então, mas sim na theoria. É por este
motivo que fica difícil atrelarmos ao ser uma emanação do ser, algo como a phýsis em
relação com o vir-a-ser. Mesmo este espaço como ser, será um espaço concebido como ser
e jamais vivenciado, experienciado, praticado e sentido-percebido como ser, pois nosso ser
é a teoria, e por esse motivo devemos ter um cabedal de referências e explicações para
concebermos outra teoria, um novo paradigma (parádeigma) – outra referência exemplar
permanente para sustentar nossa existência. Esta pode ser uma das conclusões
alcançadas, contudo jamais fechada, pois não pretendemos um axioma filosófico na
Geografia científica, mas um auxílio de análise heurística que possa desvendar o
estranhamento da existência humana e concorrer mesmo que minimamente para superá-lo.
Toda esta superação, do ser ideal concebido pela razão e do ser enquanto
modalidade ontológico-existencial deveria ocorrer em nosso cotidiano na ligação da nossa
teoria com nossa práxis, assim como nos fala Mao Tsé-Tung (2006, p. 26): ―todo aquele
que, em palavras, se coloca ao lado do povo revolucionário, mas age de maneira diversa, é
um revolucionário de boca‖. É por isso que se faz mister em nossa vida um
autoconhecimento e na ciência geográfica uma ―autoconsciência refletida‖, como ―o
momento do conhecimento em que o homem concentra a sua atenção sobre si mesmo,
sobre as próprias ações, sobre os próprios atos, sobre o próprio ser‖ (MONDIN, 1980, p.
100). Desta forma desviaremos o olhar do outro e de objetos externos, pois a partir de uma
heurística de nossos atos e palavras deixaremos de ser hipócritas e revolucionários de
boca. Cabe isto aos Geógrafos oficiais, cabe a nós essa autocrítica e auto-mudança para
podermos mudar o mundo e nossa existência humana. Pensemos afirmativamente neste
momento conclusivo e propositivo junto com Harvey, pois:
estar preparado, em termos tanto mentais como físicos, para alterar a si mesmo?
Inversamente, como poderemos transformar a nós mesmos sem transformar nosso
mundo? (HARVEY, 2006a, p. 307).
Devemos nos mudar para mudar o mundo, a Geografia científica deve mudar
primeiramente em nossa práxis. Devemos refazer esta postura geográfica, sem um objeto
pensado, mas um objeto enquanto heurística crítica sobre nós mesmos (sujeito) e sobre o
mundo. A odisseia para o espaço é uma falácia proposital para demonstrar que o longo
caminho a ser percorrido é para a existência humana, e que não se trata somente de uma
análise, mas de uma mudança da existência através de uma autoconsciência refletida – a
começar pela mudança de nosso próprio relacionamento com o si-mesmo, nosso espaço-
corpo. Se o espaço é ser ou não, pode depender da teoria, do paradigma, porém o mais
importante é nossa práxis. E que a Geografia acadêmica encontre o seu ―lugar da busca‖
para um mundo de mais respeito à alteridade de modo autêntico e respeito à singularidade
em relação à Totalidade. Em nossa busca particular, daremos prosseguimento, como
dissemos, em uma proposta de continuidade no doutorado, estendendo para o tema da
geograficidade, porém sem ser somente um doutor, um especialista que visa ser útil para
outros doutores, profissionais e estudantes ou instituições científicas, mas acima de tudo
visando contribuir existencialmente para mudar a nós mesmos, para buscarmos superar os
paradigmas que aí estão. Contribuindo para que esta Geografia seja uma arte, uma arte de
desvendar (heurística) as máscaras existenciais do mundo humano, sendo uma ciência
filosófica realmente libertadora (como gostaria Nietzsche), mas também para que ao mesmo
tempo esta Geografia mude sem ficar a mesma coisa, como já propusera antes M. Santos
(2005). E assim como Zaratustra, poderemos nos afastar da nossa caverna, ―ardente e
vigoroso, como o sol matinal que surge dos sombrios montes‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 268),
em uma nova Aurora – uma nova percepção da Geografia e uma nova odisseia para a
existência humana.
220
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