Você está na página 1de 238

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CENTRO DE ESTUDOS GERAIS


INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

HUMBERTO GOULART GUIMARÃES

UMA ODISSEIA PARA O ESPAÇO:


proposta de análise da existência espacial humana na geografia científica

Niterói
2010
ii

HUMBERTO GOULART GUIMARÃES

UMA ODISSEIA PARA O ESPAÇO:


proposta de análise da existência espacial humana na geografia científica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Geografia.
Área de concentração: Ordenamento Territorial
e Ambiental.

Orientador: Prof. Dr. RUY MOREIRA

Niterói
2010
iii

G963 Guimarães, Humberto Goulart


Uma odisseia para o espaço: proposta de análise da existência
espacial humana na geografia científica / Humberto Goulart
Guimarães. – Niterói : [s.n.], 2010.
236 f.

Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal


Fluminense, 2010.

1.Geografia ‐ epistemologia. 2.Espacialidade. 3.Geografia –


filosofia. 4.Geografia – ontologia. 5.Geografia humana. I.Título.

CDD 910.01
iv

HUMBERTO GOULART GUIMARÃES

UMA ODISSEIA PARA O ESPAÇO:


proposta de análise da existência espacial humana na geografia científica

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Geografia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Geografia. Área
de concentração: Ordenamento Territorial e
Ambiental.

Aprovada em 15 de Dezembro de 2010

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Ruy Moreira - Orientador


Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Jorge Luiz Barbosa


Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Marcos Antônio Campos Couto


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Niterói
2010
v

A todos aqueles que no âmbito mais singular


possível, com suas pequenas ações divergentes,
buscaram e buscam mudar o mundo, mesmo sendo
dentro de si-mesmo.
vi

AGRADECIMENTOS

Num momento como esse é difícil não adotar uma postura personalista. Nossos
interesses particulares em relação com aqueles que foram mais importantes no trilhar
existencial deste pequeno recorte que fora o período de confecção do trabalho vem à tona,
tornando-se inevitável esta pequena forma de expressarmos não somente gratidão, ou de
uma obrigação piegas de retribuir para ganhar em dobro, mas de demonstrarmos os laços
criados através dos acasos e escolhas da vida.
Num primeiro momento agradeço ao professor Ruy Moreira, principalmente na sua
condição de desorientador, não somente de um ordenador lógico de dados e prazos, mas
pelas conversas informais e pelos ―toques‖ que aumentam e alimentam a experiência de
vida.
Ao professor Jorge Luiz Barbosa, pela sua relação com o trabalho desde suas
primárias agruras e propostas no Seminário de releitura crítica, na Pré-defesa e na Defesa,
contribuindo sempre com seu viés filosófico e articulado para nossas escolhas.
Ao professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, por suas inquietações críticas que são
presentes em nossa memória desde a graduação perpassando pelo contato mais próximo
no início construtivo do presente trabalho, o que instigara uma parcela de nossa postura
provocativa.
Ao professor Marcos Antônio Campos Couto, pela sua presença e compreensão na
etapa derradeira de todo o processo. Sua presença mesmo que curta foi imprescindível para
um desfecho que visava ser nada previsível.
A Elias Lopes Lima pela sua contribuição crítica, atenta e prestativa no momento de
construção da estrutura inicial da dissertação.
Aos colegas e amigos construídos durante o período do Mestrado: Débora, Rodrigo
―Cabeça‖, Alexandre, Luís ―Marola‖, Leandro, Maycon, Marcos e Eduardo. Felizmente o
contato vivido é maior do que meras formalidades acadêmicas, ajudando a superar
paradigmas mais do que qualquer discurso.
Aos amigos-irmãos construídos desde a intensa graduação: Anderson ―Hanks‖,
Marcos ―Caju‖, Leonardo ―Polga‖, Leandro ―Dadinho‖, Mateus, Paulinho, Otávio ―Ratão‖ e
Bruno ―Romário‖. Relações duradouras nos auxiliam a reconstruir a existência, e posso dizer
hoje que laços da vida nos reconstroem mais que imposições institucionalmente
construídas. Os papos ontologicamente descompromissados simbolizam o próprio devir da
vida.
Às crianças que propiciaram momentos de alegria e ―perda de tempo‖ para coisas
menos sérias, porém muito mais vivas da eterna-criança que está adormecida em cada um
vii

de nós: André ―joelho‖, Felipe ―cuequinha‖, Alan, Matheus, Andressa e Maria Eduarda
―Dudinha‖.
À Ivone pelo apoio na minha ―empreitada‖ corporal esportiva e não somente como
―sogra‖, uma instituição. Quem versa sobre o corpo e sua perda de repressão não deve
esquecê-lo, onde minha prática e/ou atividade corpórea hoje visa ser muito mais próxima do
discurso.
Ao Bruno ―o amigo‖ e não somente cunhado, também como incentivador corporal-
esportivo e por momentos de muita descontração e ironia. Pelos momentos de riso que
param o tempo em detrimento de um cotidiano que se quer sério para objetivos que não são
os nossos.
Aos ―cães-amigos‖ existenciais e não-lógicos, que em suas existências curtas,
porém de grande experiência, nos fizeram ter mais respeito e admiração por formas de ser
que não as demasiadamente humanas: Rocky, Iuli, Rambo, Samanta e Kiara.
Aos meus pais, mesmo que sendo ―instituições‖ formadas é inevitável reconhecer a
base material que nos foi propiciada. Porém agradeço principalmente a minha mãe Omarisa,
pela sua personificação de provedora da vida, a verdadeira mãe terra encarnada na
representação de uma só pessoa através do laço vivo do tênue cordão umbilical primário.
À Suzana, companheira e amiga, mais do que um simples rótulo hierárquico de
namorada. Seu incentivo prático e os diálogos tensos e questionadores do meu ser
propiciaram e ainda propiciam cada vez mais meu autoconhecimento. Meras palavras de
encadeamento lógico aqui não são suficientes para descrever laços corpóreos de uma
relação que se renova e se engrandece a cada dia.
Por fim, agradeço à vida, ou a todo o devir da existência e todos os entes vivos, não
como substituição de instituições metafísicas e sim na busca por uma harmonia que jamais
deveria ser perdida.
A tudo que se encaixa na grande poesia da vida meu eterno agradecimento!
viii

―Eu quero dizer


Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou‖
(Raul Santos Seixas).
-----------------------------------------
―A vida é um mistério a ser vivido e não
um problema a ser resolvido‖
(Bhagwan Shree Rajneesh).
-----------------------------------------
―Mil respeitos por suas opiniões! Mas
pequenas ações divergentes têm mais
valor!‖
(Friedrich Wilhelm Nietzsche).
ix

RESUMO

A presente dissertação busca auxiliar na superação do paradigma instituído nas


entidades lógicas das ciências, o baconiano-cartesiano-newtoniano, o qual a Geografia
científica tem como pressuposto. Desta problemática emerge um imbróglio lógico,
remetendo o espaço a uma abordagem epistemológica, de característica externa à
existência humana. Os frutos serão as dicotomias: homem/natureza, homem/meio e
homem/espaço, que conformarão em nosso discurso uma sobredeterminação do sujeito
pelo objeto: a fórmula espaço→homem na Geografia científica. Deste ponto de partida à
auto-avaliação do conceito moderno de espaço emerge a discussão do espaço como ser,
pelo qual iremos conceber o espaço com existência ontológica, revisitando as acepções de
espacialidade através do ser-no-mundo. Analisando espaço ontológico e espacialidade
como processo e forma buscaremos tencionar com a análise do modo de ser-estranho da
existência espacial humana, convergindo para o entendimento da cotidianidade, a
subjetividade na espacialidade, vista através do processo de estereotipagem. Através de
uma imbricada análise da existência espacial humana veremos que podemos perceber e
conceber espaço-corpo sem dicotomias e auxiliarmos na busca de uma nova odisseia para
a existência humana.
x

ABSTRACT

The present dissertation aims to help overcome the paradigm established in the
logical entities of science, the baconian-cartesian-newtonian, which the scientific geography
has as assumption. This problematic emerges a logical imbroglio, leaving the space to an
epistemological approach, the external characteristic of human existence. The fruits will be
the dichotomies: man/nature, man/environment and man/space, that will shape in our
discourse an overdetermination of the subject by the object: the formula space→man in
scientific Geography. From this starting point the self-assessment of the modern concept of
space emerges from the discussion of space as being, whereby we will design the space
with ontological existence, revisiting the meanings of spatiality through being-in-the-world.
Analyzing ontological space and spatiality as a process and form intends to seek with the
analysis of mode of being-strange of human spatial existence, converging to the
understanding of everydayness, the subjectivity in the spatiality, seen through the process of
stereotyping. Through an analysis imbricated of the human spatial existence we will see that
we perceive and conceive space-body without dichotomies and assist in search of a new
odyssey for the human existence.
xi

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................... 1

CAPÍTULO I
AUTO-AVALIAÇÃO CRÍTICA DA ACEPÇÃO MODERNA DE ESPAÇO ..................... 10
1.1. A Dicotomia (o duplo) Absoluto/Relativo: da elaboração do espaço
moderno ao espaço geográfico ................................................................................... 11
1.1.1. O espaço metafísico da espacialidade cartesiana ............................................. 14
1.1.2. O espaço absoluto-relativo e a afirmação empírica: de Newton a Kant.............. 32
1.2. O espaço geográfico: a fórmula espaço→homem na Geografia científica .................... 46

CAPÍTULO II
O ESPAÇO ONTOLÓGICO: UM AUTOCONHECIMENTO CRÍTICO DA
EXISTÊNCIA HUMANA .............................................................................................. 78
2.1. O espaço como totalidade .......................................................................................... 79
2.1.1. O espaço relacional como ponto de partida: a superação da
dicotomia ........................................................................................................... 81
2.1.2. O espaço totalidade: o ser e a essência revelada .............................................. 86
2.2. Do espaço totalidade ao espaço ontológico: construções da ontologia possível ......... 90
2.2.1. Ontologia e filosofia ........................................................................................... 91
2.2.2. Ontologia em geografia ...................................................................................... 96
2.3. O espaço ontológico e a espacialidade ..................................................................... 103
2.4. O modo de ser-estranho da existência espacial humana: o estranhamento.............. 116
2.5. A auto-alienação material humana do trabalho ......................................................... 136

CAPÍTULO III
A SUBJETIVIDADE NA ESPACIALIDADE HUMANA: O ESPAÇO DA CO-
EXISTÊNCIA COTIDIANA E AS REPRESENTAÇÕES SUBJETIVAS DO
ONTOLÓGICO.......................................................................................................... 148
3.1. A cotidianidade: inter-relação espacialidade-subjetividade ....................................... 149
3.2. Processo de estereotipagem do espaço-corpo: corporeidade como
representação ........................................................................................................... 176

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 212

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 220


1

INTRODUÇÃO
Dar um salto no escuro é jogar tudo que se
conhece contra tudo que ainda não se sabe.
Há a concentração de todas as energias, os
sentidos tornam-se hipersensíveis, gerando
um espaço-tempo denso, que se distenderá
depois. No entanto, na hora, a sensação é de
tranqüilidade e de segurança, porque se sabe
que jogou tudo. O perder é, então, parte da
resposta.
(Armando Corrêa da Silva)

O
ponto de partida e o ponto de chegada de nossa odisseia é o espaço. Tal análise
no sentido que estamos propondo em certos momentos pode parecer ―um salto
no escuro‖, como dissera Armando C. da Silva. É por isso que nosso trabalho é
uma odisseia para o espaço. As formas como o espaço fora abordado na sua acepção
moderna na ciência como um todo (em sua institucionalização) e na própria elaboração do
conceito na ciência geográfica, que se apropriará deste para formular seu objeto (o espaço
geográfico) será por nós questionada, o que em certos momentos poderá parecer uma
―radicalidade‖ do pensar e consequentemente da escrita. Porém, como dissera Douglas
Santos (2002, p. 14) em sua introdução para a polêmica lançada em torno da categoria
espaço, ―a radicalidade da linguagem não é mais que a perplexidade inerente (no meu
entender) à temática‖. E desta perplexidade crítica, com nuances de radicalidade, também
compactuamos, pois, como veremos, a odisseia que se quer para ―o conceito de espaço‖
nada mais é do que uma proposta autocrítica de mudança da existência espacial humana e
não somente do conceito.
Como podemos ver nosso título é espelhado1 na obra ―2001: uma odisséia no
espaço‖ (tanto do livro de Arthur Clarke quanto no filme dirigido por Stanley Kubrick, pois a
confecção concomitante de ambos faz com que sejam ―gêmeos siameses‖, se
retrocomplementando, e não somente como obras de pontos de vista distintos). O filme-livro

1
. Devemos deixar bem claro neste momento as nossas escolhas. O que colocamos como título e proposta
instigadora de uma odisséia não está atrelado a um dos dois principais poemas épicos da Grécia antiga,
atribuídos a Homero, cujo poema está centrado principalmente no herói grego Odisseu (ou Ulisses, como era
conhecido na mitologia romana) e sua longa viagem para casa depois da queda de Tróia. Buscamos
objetivamente (nesse aspecto traçamos essa meta) a obra ―2001: uma odisséia no espaço‖ como referência e
trocadilho propositais.
2

que inicia uma trilogia terá como ponto de partida algumas abordagens por demais frutíferas
para nossa abordagem crítica da existência humana. O começo do livro irá tratar da ―estrada
para a extinção‖ dos homens-macacos (protótipos do que seria a ―aurora da humanidade‖),
em que se desenrolará, através de percalços existencialmente hostis, o ―sopro‖ autocriador
do ente humano. O monólito que representará esta autocriação (como o surgimento da
lógica humana ou em outros momentos como insights que revolucionarão a existência
humana) será um ponto de ruptura na existência dos homens-macaco de até então para a
chegada da ―aurora humana‖. A existência de um ―novo animal‖ a caminhar sobre o planeta,
partindo da África se auto-dominando (ou domesticando) para dominar todo o mundo. O
questionamento de tal poder adquirido será uma de nossas inquietações críticas ao longo do
trabalho: a existência espacial humana. E por isso que cabe retratar a odisseia, não no
espaço como propõe o filme-livro (uma outra excelente demonstração da acepção moderna
de espaço: continente, externo e até mesmo vazio), mas uma odisseia para o espaço; uma
odisseia para reformularmos a acepção de espaço, não somente de modo que este ser se
transforme pela via epistemológica, mas acima de tudo ontológica. Podemos então dizer
que se trata de um duplo sentido subliminar. A odisseia que buscamos para o espaço é um
longo caminho árduo, de mudança da existência espacial humana; é uma odisseia para nós
mesmos que autocriamos nosso estranhamento.
Esta dissertação é mais do que um projeto de análise, imparcial e/ou com críticas
emprestadas, das quais somente iremos dissertar um apanhado delas para compor um texto
acadêmico. Mais do que isso, mais do que um projeto de análise é um projeto calcado em
anos de experiência vivida (pois, qualquer idade carrega, em si mesma, as experiências de
uma vida). Esta dissertação, escrita, é fruto das angústias e propostas geradas através
delas de tentar responder e modificar, mesmo que um pouco, a nossa existência; e propor,
porque não, a mudança da existência humana, mesmo sendo algo difícil, mas que estes
questionamentos ajudem a desmascarar a existência que está aí. O projeto é então um
projeto da vida e de continuidade para toda a vida. Durante sua confecção, leituras,
pensamentos, percalços e na redação final o projeto fora sendo construído em processo não
de forma axiomática e acabada. Do primeiro capítulo até as propostas finais, estivera em
jogo sempre a proposta de auto-avaliação crítica do caminho a ser escolhido e o caminho a
ser redigido.
No sentido desta introdução buscaremos identificar o percurso e as questões que
irão dar cabo desta odisseia. Veremos os caminhos que formaram os alicerces para a
constituição final do trabalho, perpassando desde um início até um fim, no qual o meio deve
ser muito mais do que somente um ―miolo‖ de informações, mas também não deve se ater a
especificações pormenorizadas que alongariam um trabalho que visa a concatenação de
ideias. Deste modo, a forma como tratamos alguns autores (através de citações de outrem)
3

não coloca nossa abordagem hierarquicamente abaixo de uma citação direta, pois nossos
objetivos não são de autores, pensadores ou pessoas diretamente, mas de uma construção
paradigmática que emerge a partir do ato da existência humana. Vejamos os meandros
desta odisseia como que um roteiro para um viajante interessado.
A acepção moderna de espaço aparece em nosso cotidiano (tanto no senso-comum
quanto na ciência geográfica) como sendo simplesmente dada, como um ―campo‖ ou como
um receptáculo. Hoje, cada vez mais, ―em sociedades ocidentais, essa visão de espaço é
instintiva na linguagem comum‖ (SMITH, 1988, p. 109). Forma-se na nossa coexistência
cotidiana, um uso totalmente acrítico com relação à veiculação desta opinião ―pública‖ de
espaço. Este espaço é manejado dentro de um ―grande corpo de costumes‖ que permeiam
a subjetividade cotidiana que remontam a sua formulação ao paradigma instituído de
ciência2. Os exemplos são diversos e ―pairam‖ em nossa consciência como um a priori.
Quando temos a ideia formada de que uma área construída ou não, dizemos que ―tem
bastante espaço‖. Quando temos algum terreno, saguão de prédio ou área destinada a
algum fim comercial, lá está: ―espaço de lazer‖; ―espaço de cultura‖; ―espaço verde‖; ―espaço
esotérico‖; ―espaço armazém‖; ―espaço aberto‖; ―espaço de dança‖; ―espaço de diálogo e
prática‖; ―espaço AGB‖; etc. E assim poderíamos quantificar inúmeras formas de ver esse
espaço como área, receptáculo vazio, campo: com um sentido de ser simplesmente dado. É
interessante atentarmo-nos para os dois últimos exemplos: espaço de dialogo e prática, e
espaço AGB! Pois bem, são formulações gerais explícitas em domínio ―público‖ pela AGB
(Associação de Geógrafos Brasileiros) para o XV Encontro Nacional de Geógrafos (ENG) do
ano de 2008. Quando mandamos os nossos respectivos resumos e/ou trabalhos para o
encontro, lá encontramos: ―dê dois toques de espaço para o próximo parágrafo‖. Ora, este
espaço do teclado representa um ―vazio‖ entre os caracteres, ou seja, o senso-comum que
―cospe‖ o ―corpo de hábitos cotidianos‖ simplesmente dados é de domínio público e
principalmente científico.
Necessitamos de novos ―olhares‖ acerca da acepção de espaço, que seja reflexiva
sobre sua constituição, perpassando por várias abordagens cruzando-as de modo a torná-
las uma proposta de auto-avaliação crítica, tanto da Geografia científica quanto da
emergência de tentarmos mudar a existência humana. Tal incumbência de uma nova
odisseia deve ser identificada aqui para dizer os propósitos deste estudo, que atinge ele e
vão para além dele – como que uma proposta existencial por toda uma vida. Surge a
proposta para nós de um novo campo de análise, crítico-ontológico acima de tudo,
repensando as condições humanas de existência, como sujeito, como espaço e como
ambos. Uma nova postura que vise recuperar em nós o ―gosto‖ pela Geografia enquanto

2
. Veremos isto no que propusemos como paradigma científico moderno baconiano-cartesiano-newtoniano.
4

ciência. A opinião de que o sujeito pode ser visto como espaço, o ser dos entes é o espaço
e que o ente humano pode ser um viés crítico de análise (existencial-ontológico) na
Geografia ainda é encarado como algo estranho, pitoresco e/ou de muito rebuscamento,
com ares pejorativos de metafísica3. Uma ciência que se perpetua ainda como ―terrena‖, dos
lugares e não dos homens, da empiria e não da teoria, mesmo com a ascensão de temas
compartilhados pela Filosofia na Geografia a problemática do ―homem atópico‖, como nos
fala Moreira (1987, p. 15), de um homem desespacializado, sem referência espacial no
discurso acadêmico, no senso-comum e na prática cotidiana. Estamos, mas não somos
espaço. Na Geografia oficial viemos pensando e reforçando esta concepção, na maioria dos
casos sobre uma epistemologia do espaço, acreditando ser o seu maior problema a falta de
um objeto. Na Geografia o espaço é concebido ideologicamente, como um ente ideal
produzido pela razão, como uma entidade lógica, não como uma categoria enquanto ente
ontológico (um primado da existência sobre a consciência). Reafirmamos a problemática,
este mal-estar espacial, muitas vezes sem refutar, vendo o espaço como um conceito-chave
na Geografia, em nossos ares desde os trabalhos clássicos, atrelando ao caráter científico
da Geografia o estatuto de ciência do espaço.
Na busca de uma re-ligação entre a crítica ao homem ou à humanidade como um
todo e a Geografia científica como visão holística da realidade temos a problematização do
espaço e, consequentemente, a exposição-formulação do tema.
O tema deve ser delimitado no sentido de se consolidar para trazer mais
contribuições e auto-questionamentos para dentro da ciência geográfica e não somente
mais uma dissertação com o fito de se obter um título. Construímos um novo espaço, ou
uma nova concepção do espaço, um novo ciclo que perdurará talvez por toda uma vida: a
relação prazerosa e pessoal com o tema da Ontologia em Geografia. A convicção da perda
do receio de não tratarmos de uma ―teoria teórica‖, pois não queremos e nem seria a
intenção da dissertação, uma empiria teórica que acredita mudar uma pequena parte do
recorte-do-recorte-do-recorte de um mundo limitado cientificamente, por isso também,
limitado de possibilidades. Temos em nossas convicções pessoais, que perpassaram no
―fazimento‖ do trabalho, a ideia de que ―visões de mundo‖ também podem mudar o mundo,
também podem nos auxiliar a mudar a nós mesmos, até porque num mundo onde se
concebe um ser fixo e lógico nada mais ontológico do que ir ao cerne discursivo para
reconstruir a nossa prática – concepções podem ser mais revolucionárias do que muitos
trabalhos e papéis gastos somente para fazer ciência calcada em uma ―empiria teórica‖,
axiomática. É por isso que nosso lugar da busca envereda-se pela Filosofia, tentando

3
. Mesmo entre aqueles que tratam do tema, ao falar que o espaço é inerente à humanidade não como uma
externalidade soa como algo artificial, como se não pudéssemos ser espaço, assim como nos concebemos
enquanto tempo. Não nos sentimos a vontade quando nos sentimos espaço, da mesma forma que expressamos
―naturalmente‖ que sentimos as ―marcas do tempo‖ na pele, em nosso corpo próprio.
5

superar uma relação, que como nos alerta Quaini (2002, p. 25), é muitas vezes vista pelo
geógrafo profissional ―como um fato que, no máximo, pode ter um interesse histórico‖.
Nosso interesse é de uma crítica existencial via da Geografia científica e não teorizar para
consolidar uma ciência.
Entendemos que o tema é a busca central, e, encontra-se implícito no título: um
estudo de Ontologia em Geografia. Buscando nesse sentido, apreender o Espaço
Ontológico e a existência espacial humana. Parece simplista a exposição, portanto, cabe
explicitar a sua problematização. Entendemos este Espaço Ontológico como sendo uma
movimentação do que concebemos enquanto o Espaço como Ser. Parece um jogo de
palavras, que mais complica do que sintetiza; embora saibamos que há muito, a síntese é
um problema cabal na (da) Geografia, porque perdendo seu caráter de síntese para uma
análise fragmentada dos fenômenos e por isso da realidade. Este espaço como ser segue o
sentido não como ser substantivo (ser vivo, ser humano, ―aquele ser!‖, etc.), mas, como
sentido de ser. Estamos diante de um problema de análise ontológica. Posto então que este
sentido de ser é ser-de-um-ente; e este ente que tomamos como análise é a humanidade.
Logo são duas categorias a serem tratadas na pesquisa: homem (enquanto humanidade ou
existência humana) e espaço. Quando estivermos tratando do espaço (devemos aqui fazer
esta ressalva) não se trata de uma categoria enquanto ente ontológico apartada do tempo,
pois espaço e tempo são dimensões e categorias, lógicas ou ontológicas, gêmeas, como
diria Szamosi (1988) – acrescentaríamos ainda mais a ligação, são categorias siamesas.
Este ser que tratamos é espaço-tempo em movimento, a essência metamorfoseada em
existência, contudo, para não nos alongarmos ainda mais e causar alguns empecilhos
textuais, utilizaremos o ser como espaço. Mas, esta explicação faz-se necessária ao leitor
criticamente mais atento.
O espaço emerge então como a questão ontológica, no qual se busca o modo de ser
da existência espacial humana. A frase composta parece mais uma vez como mero jogo de
palavras, remetendo a um entendimento pedante de uma escrita que se quer ―erudita‖, mas
têm-se um sentido. Veremos que a existência é constituída pelo duplo processo-forma no
qual o ser do ente existência humana é seu ser-sendo, ou então, a relação direta da
humanidade com seu modo de ser. Daí que o espaço recai como a análise dessa existência
humana; desta forma, o tema sobre estudo de Ontologia em Geografia. Buscando nesse
sentido, apreender o Espaço Ontológico e a existência espacial humana é também uma
proposta de mudança da existência espacial humana.
Em movimento com este tema é que emerge a questão primeva, onde se
desenrolarão os capítulos concomitantemente com os objetivos específicos que buscaremos
alcançar.
6

A problematização contextualiza o problema. Esta é bem direta no sentido daquilo


que já frisamos na escolha do tema, quando nos indagamos: podemos conceber o espaço
como ser? Nosso trabalho, através dos caminhos da Geografia científica sendo abordada
pelo viés de uma ―íntima‖ relação com a análise existencial-ontológica do espaço, e no
sentido de ser da existência espacial humana, buscará num casamento fecundo entre
Filosofia e Geografia ter massa crítica na busca de responder esta questão. Contudo,
sabemos que a resposta posteriormente pode ser concordante ou discordante – o que
retornaremos na parte conclusiva do trabalho. Expressaremos por hora o objetivo central, a
partir do qual derivam três objetivos específicos que, como dissemos, será os objetivos de
cada capitulo proposto. Temos então como objetivo geral: analisar o cabedal teórico para o
problema exposto, concordando com a proposta da existência espacial humana ou
refutando-a totalmente. De modo genérico, o que buscamos é analisar se o viés ontológico-
existencial é viável para apreender de forma crítica a existência humana, como uma
existência espacial. Assim poderemos saber se o espaço pode ser visto como ser ou uma
categoria enquanto ente ontológico. Sobre os objetivos específicos temos três a partir do
desmembramento do objetivo geral. São eles: 1) analisar as abordagens teóricas sobre o
espaço, na construção do conceito moderno na ciência e na Geografia, concomitantemente
com a sua institucionalização enquanto ciência, em relação com as correntes do
pensamento geográfico, buscando a crítica interna da acepção moderna de espaço. 2)
Verificar além destes momentos de superação da acepção moderna de espaço, a
elaboração através de alguns autores, a partir das concepções seminais de Armando Corrêa
da Silva, na Geografia, entrecruzando com outros autores Filósofos e Geógrafos, nossa
concepção do espaço como ser, desencadeado existencialmente na inter-relação processo-
forma, indo até a crítica da existência espacial humana – de seu estranhamento e alienação.
3) E por último observar o processo de estereotipagem como corporificação que compõe a
subjetividade na espacialidade, através da análise dos fenômenos da co-existência
cotidiana, chamada de cotidianidade. Com esse objetivo buscaremos o desfecho ontológico-
existencial do trabalho, perpassando pela averiguação crítica do fenomenológico vivido,
colocando em xeque a cotidianidade.
Este esforço dissertativo será um exercício particular de análise, não somente de
uma ―colagem‖ de autores, pois quem dará a direção e sentido do nexo ontológico tramado
somos nós; mesmo que as propostas se encontrem por hora em alguns autores e
perspectivas, quem dará movimento à temática é quem redige e acima de tudo vive o
projeto. Fizemos então uma secção de toda a análise ontológica escolhida do tema através
de três capítulos. Não são temas distintos que buscam uma ligação forçada entre si. Existe
uma relação direta entre eles, principalmente entre o segundo e o terceiro, onde o terceiro
poderia ser o primeiro em relação ao segundo, pois a existência é acima de tudo vivida, mas
7

como se trata de um esforço lógico a desconstrução (primeiro capítulo) faz-se necessária,


para perpassar para uma reconstrução (segundo capítulo), findando na perspectiva que
inter-relacionará o espaço-corpo e a existência espacial vivida num só contexto
fenomenológico. A estrutura textual poderá ser apreendida como que em duas partes
complementares: a primeira de escrutínio epistemológico (o primeiro capítulo) e a segunda
com aprofundamentos ontológico-fenomenológicos (segundo e terceiro capítulos). Assim
entendemos que o espaço é o ponto de partida para uma reconstrução ontológica que se
unirá ao corpo, não como entes separados, mas como unidades (vividas e concebidas). A
divisão nestes três capítulos traz à baila o desmembramento de uma mesma problemática, a
da existência humana e a elaboração lógica de mundo que culminará no paradigma
moderno de ciência.
No primeiro capítulo investigaremos as abordagens teóricas sobre o espaço, na
construção científica (e sua institucionalização) e na Geografia (em via de se tornar científica
até momentos mais recentes), buscando a crítica interna da acepção moderna de espaço.
Buscaremos ver que na maioria de nossos trabalhos científicos na Geografia acadêmica
utilizamos a sinonímia entre um trabalho geográfico e o espaço geográfico. Partiremos para
uma proposta de auto-avaliação crítica deste conceito, e nesse sentido passando mais do
que somente pela descrição das formulações acerca do conceito de espaço, via de uma
averiguação desde as formações científicas modernas, que influenciam os postulados da
Geografia como ciência do espaço até os presentes dias. Sugerimos que a construção do
conceito inicia-se com a ruptura moderna do modo de pensar do mundo ocidental, através
das bases do chamado Renascimento científico culminando na elaboração do paradigma
hegemônico moderno de ciência, que definimos como baconiano-cartesiano-newtoniano.
Seguindo as ―ondas‖ deste paradigma irá vir à tona a concepção moderna de espaço
através dos pensadores Descartes, Newton e Kant, consolidando-se na ―argamassa‖
científica que estava em voga, o espaço duplo absoluto/relativo, que terá adaptação para a
Geografia, que estava por se institucionalizar como ciência. Partiremos de leituras desde as
aulas introdutórias de Kant de Geografia Física no século XVIII até o movimento da
chamada Geografia ―radical-crítica‖, no qual as abordagens de espaço são proposições que
confirmarão a produção da fórmula espaço→homem na Geografia científica. Identificaremos
como uma sobredeterminação do objeto ao sujeito ocorrera em relação com a elaboração
de um espaço lógico, em detrimento do ontológico.
No segundo capítulo temos como objetivo verificar além dos momentos de
superação da acepção moderna de espaço, elaborar através de alguns autores,
principalmente Armando Corrêa da Silva, na Geografia científica, e Martin Heidegger, na
Filosofia, nossa concepção do espaço como ser, desencadeado existencialmente na inter-
relação processo-forma, que irá auxiliar a nossa crítica da existência humana e de seu
8

estranhamento e alienação. Buscaremos analisar que as problemáticas da existência


humana são fruto de sua autocriação. Com o esforço de expressar a dinâmica ontológica
viva buscamos auxiliar na superação da dicotomia do espaço absoluto/relativo através da
concepção do espaço totalidade, via do espaço relacional e do espaço como ser-essência.
Assim buscaremos fazer uma concepção própria do espaço ontológico como o existencial
da existência humana. Como dissemos, combinamos espacialidade e espaço ontológico
enquanto características da particularidade da existência, buscando destituir a abordagem
antropocêntrica. Como modo de embate iremos de encontro através da abordagem sobre o
estranhamento (relacionando aí Karl Marx e Martin Heidegger com outros autores que
acreditamos ser convenientes para tratar do tema), como exteriorização da vida e
consequentemente com a crítica da auto-alienação material humana, através do trabalho
alienado.
Finalizando, no terceiro capítulo nos deteremos na averiguação crítica da
subjetividade na espacialidade humana observando o processo de estereotipagem que irá
corporificar a cotidianidade como co-existência cotidiana. Trataremos assim o desfecho
ontológico-existencial no trabalho. Como que numa odisseia perpassamos da Totalidade até
a averiguação crítica do fenomenológico vivido, colocando em xeque a cotidianidade.
Veremos com alguns detalhes que buscamos representar cotidianamente o que já partiu
enquanto estranhamento de nossa corporeidade, almejando fazer o movimento inverso
através da cotidianidade. Inclinar-nos-emos através disto a averiguar que é a existência que
determina a subjetividade, desenvolvendo no âmbito vivido veiculado pelo senso-comum.
Encararemos alguns fenômenos singulares que denominamos processo de estereotipagem
(especismo, sexismo, racismo e modismo), como construtores de uma corporeidade
alienada dos nossos corpos e do corpo coletivo pela subjetividade alienada. Almejaremos
ver que nosso corpo-si-mesmo carrega o estigma de prisioneiro e ao mesmo tempo a
libertação de ser revolucionário, como que antagonicamente um ―rebelde subversivo‖,
incompatível com as normas dos estereótipos, porque ele também é vida, espaço em
movimento.
Nesse sentido uma proposta de análise da existência espacial humana na geografia
científica consiste, de modo geral, numa busca de reavaliar criticamente a acepção que
temos de espaço, no sentido de suscitar uma inquietude sobre o nosso modo de ser da
existência que se quer apreender como espacial, com o fito de almejarmos uma nova práxis
espaço-corporal, que não a secularmente enraizada em nosso cotidiano. A partir de agora é
com o leitor, de averiguação crítica sobre os trabalhos menos empiristas e pouco críticos na
Geografia cientifica atual. Daqui para frente o que nos espera é uma odisseia. Que ela seja
para quem for ler igualmente uma odisseia, como foi na minha autocrítica e no auxílio de um
autoconhecimento e de uma nova postura perante o mundo. Mesmo buscando nos afastar
9

da chamada empiria teórica não queremos nos aproximar do discurso lógico, mas de uma
nova aurora, assim como a proposta nietzschiana do Zaratustra, de sair de sua própria
caverna para encontrar sua nova aurora, seu novo si-mesmo. ―Assim falou Zaratustra‖,
coincidentemente, ou não, é a música do pequeno trecho descrito aqui para elucidar a
escolha de nosso título: tanto na aurora da humanidade quanto no surgimento da criança
estelar (ou uma nova humanidade) – no filme de Stanley Kubrick. Esta odisseia é o que nos
espera, vamos às propostas, pois o começo que é mais importante já fora iniciado.
Que ao final desta odisseia possamos juntos, encontrar em nós mesmos a nova
aurora humana, perdendo os velhos medos, a velha aurora, porque perder é também parte
da resposta.
10

CAPÍTULO I
AUTO-AVALIAÇÃO CRÍTICA DA ACEPÇÃO MODERNA DE ESPAÇO

É necessário cada vez mais lançar-se à


crítica desses conceitos fundamentais, para
que não possamos ser inconscientemente
governados por eles.
(Albert Einstein)

m nossos trabalhos científicos na Geografia acadêmica quase que ―instintivamente‖


traduzimos por um trabalho geográfico o que trata do espaço, ou aquilo que
tratamos como espaço geográfico. O presente capítulo busca uma proposta de
auto-avaliação crítica de tal conceito. Auto-avaliação por se tratar de um questionamento
individual no decorrer da temática de todo nosso trabalho. Não se faz uma averiguação
crítica sem ser voltada também para si mesmo, e não se percorre o caminho sem uma
retomada histórica da formulação social de tal conceito a ser questionado. Por isso, o que
buscamos passar é mais do que somente uma descrição, porque se trata de uma
averiguação (mesmo que lapidada) das formações científicas modernas, que influenciam os
postulados da Geografia como ciência do espaço até os presentes dias. O volume de
informações foi quase inevitável.
Começaremos pela construção do conceito desde a ruptura moderna do modo de
pensar do mundo ocidental. Uma passagem pelas bases motivadoras do chamado
Renascimento científico até a composição do paradigma hegemônico moderno de ciência (e
de muitas acepções que temos no senso público comum) baconiano-cartesiano-newtoniano.
Com este paradigma, também emerge a concepção moderna de espaço fundada em
Descartes, Newton e Kant. O espaço duplo absoluto/relativo sofrerá adaptabilidades para a
Geografia em via de se institucionalizar como ciência. Ciência esta de um espaço lógico, em
detrimento do ontológico. Percorreremos ao decorrer da segunda parte do capítulo algumas
personalidades da Geografia, desde as aulas introdutórias de Kant no século XVIII até ao
movimento da chamada Geografia ―radical-crítica‖ pós década de 1970 e suas abordagens
de espaço, com o fito de trazer para a discussão a produção da fórmula espaço→homem na
Geografia científica – uma sobredeterminação do objeto ao sujeito.
11

1.1. A Dicotomia (o duplo) Absoluto/Relativo: da elaboração do espaço moderno ao


espaço geográfico

Devemos, antes de tudo, adentrar na elaboração dos processos que formaram as


bases filosóficas, científicas e de visão de mundo modernas, para não corrermos o risco
cotidiano do angustiante: ―eu não sei dizer / o que quer dizer / o que vou dizer‖ 4. E para
sabermos dizer o que quer dizer filosoficamente e cientificamente sobre o espaço
geográfico, adentremos de modo basilar nessa odisseia histórica, mas alertando, sem cair
no historicismo.
Concordamos com Camargo (2005, p. 27), na afirmação de que ―cada época e cada
sociedade possuem um conjunto de verdades que dimensionam sua realidade‖. E se
recorrermos à história da existência humana, da ciência e das personalidades que fizeram
dos modos de pensar revoluções de uma época, podemos adensar a massa crítica
necessária para apreendermos a base moderna do novo paradigma do espaço. E
justamente, as bases modernas se dão na superação (ou em linguagem mais radical,
ruptura), ―num momento de transição de valores e convicções milenares para novas e
imprevisíveis situações‖ (HANSEN, 2000, p. 61), da chamada Idade Média para a Idade
Moderna; este momento e movimento de superação foi o Renascimento. Neste período
secular irão aflorar novos questionamentos, procedimentos e experimentos científicos, e
uma nova interpretação filosófica do mundo. Seria, segundo Reclus (2002, p. 109), uma
―reconstrução social interna‖ acontecida na Europa e que se costuma datar no seu momento
de emancipação intelectual dos séculos XV e XVI. Mas, tomando como parâmetro as bases
filosóficas deste processo, podemos alongar o período das situações de mudança, ―entre os
séculos XIV, XV e XVI e início do século XVII‖ (SPRINGER, 2008, p. 44), no qual teremos
novas teorias que consolidarão a Filosofia Moderna e dará corpo aos pilares da ciência que
conhecemos hoje.
Através das contradições teóricas e práticas que coabitaram o mundo intelectual
europeu naquele período, podemos observar mudanças em planos distintos da organização
social da Europa Ocidental. Com inúmeros ―descobrimentos‖ no extremo oriente, na África e
nas Índias e no dito Novo Mundo, as imaginações e vôos do pensamento aumentaram de
modo significante. A releitura dos clássicos filosóficos, a apropriação cultural greco-romana
e o novo e ampliado domínio territorial do mundo conhecido, auxiliaram na consolidação de
uma nova concepção de mundo, sustentando e sendo sustentada por processos concretos
deste momento da existência humana europeia.

4
. Como nos alerta o compositor maranhense José Ribamar Coelho dos Santos (conhecido na música popular
brasileira como ―Zeca Baleiro‖), em música de sua autoria ―Lenha‖.
12

O renascimento do comércio, ou ―renascimento comercial‖, com a expansão


marítima e o domínio territorial, ascendeu e fortaleceu a burguesia, marcando então o fim
derradeiro da sociedade medieval. Em seu aspecto político e econômico, durante os séculos
XV, XVI e XVII, o capitalismo irá se consolidar como modo de produção em expansão, e
logo dominante, avançando ainda mais nas mudanças de relações existenciais cotidianas
entre os homens, e também, numa nova acepção de natureza. É com base nesses
parâmetros, que podemos analisar os suportes filosóficos do renascimento, o que unirá a
consolidação do capitalismo à nova concepção de natureza, amalgamando o método
científico moderno. Deste modo, ―com o advento e a confirmação da revolução técnico-
científica dos séculos XVI e XVII‖ (CAMARGO, 2005, p. 36), é que a mudança na visão de
mundo e principalmente de natureza alterou-se. Surge o que Engels (2000, p. 15) irá
denominar de ―a moderna investigação da natureza‖, no construto pela moderna sociedade
burguesa da base material do capitalismo.
A visão animista do universo passará pela substituição de uma nova apreensão da
natureza, como forma de atender aos interesses do modo de produção capitalista europeu
ocidental. É segundo esses parâmetros sociais concretos, que podemos viabilizar a análise
de outro momento marcante para a nova acepção de mundo e a afirmação de um novo
paradigma: o renascimento científico. A partir desse momento, do século XV ao XVII, é que
irá se afirmar o modelo de racionalidade dominante da ciência moderna. Como ―um modelo
global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que
nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus
princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas‖ (SOUSA SANTOS, 2002, p.
10).
Assim, adentramos no renascimento científico, momento no qual vai sendo
elaborado o paradigma moderno de ciência e de natureza. Este período pode ser contado
através da personificação de alguns feitos científicos, pelo qual ―diante de suas luminosas
figuras, desapareceram os fantasmas remanescentes da Idade Média‖ (ENGELS, 2000., p.
45). Este período de transição foi caracterizado, inicialmente, pela tríade de pensadores:
Nicolau Copérnico, Johannes Kepler e Galileu Galilei.
Seguindo a concatenação periódica, ou temporal, primeiramente analisemos o
polonês Nicolau Copérnico (1473 – 1543), que irá articular sua leitura de mundo a partir dos
pilares: ―matemática, geometria e os desígnios de Deus‖ (SANTOS, D., 2002, p. 91).
Segundo Moreira (1993, p. 14) ―o modo como hoje vemos e pensamos a natureza tem
origem mais remota na revolução copernicana‖, ou a ruptura com a concepção de mundo
medieval (balizada na teoria geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu) através da teoria
heliocêntrica. Este fora um ponto de ruptura de grande magnitude, no qual a teoria
heliocêntrica defendia a tese de que a Terra e os outros planetas giravam em torno do Sol.
13

Este seria um desafio ao geocentrismo (de que a Terra encontrava-se no centro de todo o
Universo), que colocava a morada da humanidade ―como apenas mais um astro, entre
muitos a girar em torno do Sol‖ (SPRINGER, 2008, p. 45).
A tarefa filosófica, dentro de uma tradição medieval apoiada no heliocentrismo,
segundo Douglas Santos (2002, p. 94), de ―deslocar o centro do Universo da Terra para o
Sol foi, sem dúvida, mais um movimento de uma tarefa de gigantes‖. Gigantes, pois,
compartilhando de tamanha magnitude e audácia com Copérnico, temos o astrônomo e
cientista alemão Johannes Kepler (1571 – 1630).
Kepler, baseando-se nas esferas do espaço, da linguagem e do movimento (ibid., p.
121), irá abalar de forma incisiva a estrutura escolástica medieval. ―Mostrando que o
movimento dos planetas não era o de uma esfera perfeita e, sim, uma órbita elíptica‖
(CAMARGO, 2005, p. 37), jogava por terra a teoria do universo divinizado e perfeito (com o
movimento esférico dos astros), rompendo então com a cosmologia medieval. Estes fatos,
que atentavam a tranqüilidade de Kepler, foram mergulhos profundos, chegando ao nível da
abstração, no que D. Santos (2002, p. 141) irá tratar como ―um passo a mais na construção
da ideia de que ‗espaço e tempo‘ são coisas em si‖, através de uma metalinguagem: a
matemática. Uma nova base teórica está lançada, em um novo plano, rompendo com as
bases metafísicas de Aristóteles, no qual, espaço e tempo passarão a ser absolutos.
O terceiro pilar da tríade renascentista científica fora Galileu Galilei (1564 – 1642). O
pensador e pesquisador versátil italiano, atuando em matemática, física e astronomia,
segundo Springer (2008, p. 45) ―exerceu papel fundamental para a criação de um novo
paradigma na relação homem-natureza‖, além de permear na astrofísica consagrando os
modelos desenvolvidos por Copérnico e Kepler efetivando-os numa espacialidade:
matemática e empírica. Galileu Galilei tornou-se o primeiro pensador a comprovar por meio
de experimentação científica os modelos matemáticos, por onde fundamentará
empiricamente inúmeras considerações teóricas (de Copérnico e de Kepler).
Desta forma, segundo explicita Camargo (2005, p. 38), ―o homem, utilizando-se de
uma ferramenta lógica, a matemática, consegue explicar a natureza e sua dinâmica‖. Assim,
temos uma nova concepção que segmenta a natureza-no-mundo, onde Galileu somente
apreenderá o que é natureza como matemático e constante. O mundo se reduz aos axiomas
matemáticos e mecânicos, logo, o mundo torna-se algo externo, circundante, onde o rigor da
objetividade científica analisa e experimenta sobre uma natureza como ser-enquanto-objeto.
O sujeito, como enfatiza D. Santos (2002, p. 135), sofrerá uma mudança de postura,
observando o objeto (o ser-enquanto-objeto) e não para o ser-enquanto-ser da metafísica
aristotélica.
Por esse arcabouço histórico-filosófico é que emerge o paradigma científico
moderno, que continuará a ser as bases de hoje. Porém, não é somente pelas mãos de
14

Copérnico, Kepler e Galileu Galilei que se firmarão os novos métodos científicos europeus
modernos, mas, sobretudo, a partir de dois fatores: um histórico da existência europeia
ocidental e outro personificado na figura de Francis Bacon (1561 – 1626). Bacon irá
condensar todas as formulações de método anteriores, enxugando o renascimento científico
e transformando o método científico e suas concepções de mundo, homem e natureza em
favor do poder reforçado do capitalismo industrial. A formulação do paradigma hodierno
científico, de natureza e da externalidade homem/natureza vão se conformando para o que
hoje temos, enclausurando as ―gavetas científicas‖ do pensamento oficial. É isto o que
veremos acontecer com o espaço, mas, antes de prosseguirmos (sobre o espaço), vamos
ao sustentáculo inicial do paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano.
Vejamos o que nos espera!

1.1.1. O espaço metafísico da espacialidade cartesiana

Como percebemos, os pilares que compõem o atual paradigma moderno de ciência


e de visão de mundo vêm de um conjunto em processo alavancado pelas revoluções do
pensamento renascentista. O renascimento cientifico, perpassando por três séculos (XV,
XVI e XVII), personificado sobre os feitos de três nomes centrais (Copérnico, Kepler e
Galileu Galilei), irá espraiar-se até o condensamento das ideias do inglês Francis Bacon.
Este como sustentáculo inicial do que temos como paradigma moderno científico, da visão
de mundo ocidental, e principalmente, de natureza e posteriormente de espaço. O
paradigma que pode ser intitulado como: baconiano-cartesiano-newtoniano. Como visamos
contemplar as ideias envolvidas e trazidas para a Geografia, sob a ―clausura‖ do espaço
geográfico, devemos averiguar as bases deste paradigma, com o fito de saber por que
temos a acepção hodierna de espaço (nas ciências e no senso comum) como externa à
existência humana.
Busquemos em Bacon o que se afirmará como método em Descartes.
Pelo que nos explicita Smith (1988, p. 27), ―mais que qualquer outro acontecimento
conhecido, a emergência do capitalismo industrial é responsável pelo surgimento das
concepções e visões contemporâneas sobre a natureza‖, sendo uma apropriação para a
lógica capitalista desta concepção. Este novo momento organizacional da existência
humana europeia, que perpassará para o mundo visando o domínio político civilizado sobre
o natural, ―é caracterizada ideologicamente por uma nova concepção de universo, de
Natureza e conseqüentemente de ciência‖ (SPRINGER, 2008, p. 47). As bases que viriam
desta ―ciência moderna‖ seriam as bases para a lógica de produção capitalista.
E assim como Ribeiro (2006, p. 47), verificamos que, nesse período de revolução
científica, ―teve por central o substituir das disciplinas literárias pelas ‗científicas‘, com novos
15

métodos e modelos‖. O cientista iria tomando o lugar do sábio, e junto a essas condições
temos a figura central de Francis Bacon.
Bacon estará no ínterim da lógica capitalista, o então Lord Chanceler da Inglaterra
afirmará os benefícios políticos de poder sobre a natureza. Segundo as palavras de
Camargo (2005, p. 38, grifos nossos), para Bacon ―sua função seria tornar a Inglaterra uma
grande potência em face das outras nações; assim, tratou de desassociar a natureza da
ideia de sujeito contemplativo e divino, tornando-a um objeto que deveria servir ao
desenvolvimento do comércio e ao efetivo progresso de sua nação‖. Bacon como
personificação científica do capitalismo industrial inglês, saiu na frente de seus
concorrentes, provando via do método científico que o progresso do tempo levaria ao
aperfeiçoamento humano.
Este aperfeiçoamento humano teria como base formulações metódicas que
constituiriam a supremacia científica no modo de pensar capitalista europeu. O que teremos
é uma oficialização da ciência, como instrumento de controle político e ideológico da visão
de mundo hegemônica. Uma nova percepção de mundo, agora objetiva e racional, no qual
―a enorme importância atribuída à objetividade, fetiche do discurso científico, vem desta
possibilidade de construir um objeto do conhecimento por intermédio do método‖ (GOMES
apud. RIBEIRO, 2006, p. 47, grifos nossos). A intenção européia de ―desmistificar‖ o Oriente
e o Novo Mundo iria influenciar Francis Bacon para o desenvolvimento da chamada ciência
experimental. Em uma das propostas de Bacon, estava a busca de sustentação da tese de
que a ciência necessitava da observação e da experimentação, que pela indução, tenderiam
formular às leis uma ordem sistemática e geral (indo dos casos particulares até as
generalizações).
Bacon, pelo que expõe Ribeiro (2006, p. 95),

proclamou o método como o modo seguro de „aplicar a razão à experiência‟,


investindo o conhecimento lógico aos dados oferecidos pelo conhecimento sensível;
enlevando a veracidade mediante o método experimental que, por seus esforços,
representou a versão pioneira do empirismo, ao prezar que todas as proposições
dependem da experiência para serem avaliadas quanto à verdade.

Estava posto como ordem de seu pensamento e prática, uma nova teoria e
metodologia para o que seria o desenvolvimento humano, por onde, a razão, seria a
condição que habilitaria o desvelar das leis da natureza. O método científico serviria como
um guia, uma regulação e auxílio ao sujeito, ―na análise e construção do conhecimento da
realidade. Buscando a verdade de modo racional‖ (ibid., p. 96). Um prólogo ao método que
dicotomiza efetivamente sujeito/objeto: o método cartesiano.
O que estamos expondo sumariamente, por via das análises de Bacon, é o
empirismo inglês, ou, a versão inglesa do método empírico indutivo. As acepções de
16

domínio da natureza, de conhecimento advindo da experiência, e, da razão como molde ao


que captamos pela experiência, condensa-se na expressão: ―a razão tem uma função muito
próxima à de um receptáculo das experiências, reproduzindo em si uma ordem que já existe
na própria natureza‖ (HANSEN, 2000, p. 61). Este seria o resumo básico do empirismo
indutivo como método baconiano de ciência. A razão como articuladora entre as ideias e
pulsões humanas, expressas no progresso e domínio europeu (o sujeito), e as ordens de
causa e efeito preexistentes na natureza (o mundo como recursos, trabalho, povos, terras,
etc. – o objeto). Assim, para Bacon, o progresso seria contínuo do homem (inglês) em
direção à natureza (base para o sustento capitalista). Deste modo, a ciência se
institucionalizou, ―sem ser apenas mais uma investigação embrionária, a ciência tornou-se
uma instituição social cada vez mais importante, com uma vida e uma lógica próprias‖
(SMITH, 1988, p. 32).
Com as bases deste método, é que a pesquisa científica, agora como uma instituição
social, pôde oferecer os caminhos e meios para se dominar a natureza e a ―natureza
humana‖. Este movimento metódico, a partir de Bacon, elaborou na ciência um tratamento
da natureza como algo exterior ao ente humano, à existência humana. A investigação
científica calcada no domínio da natureza foi, e continua sendo, uma ideologia do mundo
máquina, pela concepção de natureza mecanizada. Bacon passaria assim a reformular os
parâmetros filosóficos sobre o método, calcado em sua acepção de natureza. Uma visão de
mundo científica e renovada, que buscasse o domínio da natureza, no qual ciência e poder
humano são sinônimos, ―pois a Natureza não se vence, senão quando se lhe obedece‖
(BACON apud., CAMARGO, 2005, p. 39). É assim que conhecendo o inimigo e a si mesmo
e você obterá a vitória sem qualquer perigo, e conhecendo o terreno e as condições da
natureza você será sempre vitorioso; como na ―Arte da Guerra‖ de Sun Tzu (1997).
Através do conhecimento do inimigo, na superação pela mentalidade científica dos
ídolos5, Bacon caminhava com uma proposta racional para restabelecer o que seria o
imperium hominis (império do homem) sobre as coisas. A verdadeira filosofia não é apenas
a ciência das coisas divinas e humanas. É também algo prático: saber é poder. E este poder
do saber sobre as coisas práticas, tem uma base filosófica bastante arraigada nos preceitos
capitalista da época: o de domínio da natureza. Logo, podemos dizer que as bases da
verdade filosófica que compõe o método empirista baconiano é uma visão ontológica
excludente da natureza6, em relação à existência humana. Devemos sempre buscar uma

5
. Segundo Ribeiro (2006, p. 95), ―na tal busca pela verdade, a empreitada baconiana recebe destaque no fato
de o saber racional dever esgueirar-se dos quatro „ídolos do saber‟, que de todas as formas quer impedir-lhe de
enflorar‖. Os ídolos da ―empreitada científica baconiana‖ são: ídolos da tribo (idola tribi); ídolos da caverna (idola
spectus); ídolos do foro (idola fori); e, ídolos do teatro (idola theatri). Esta seria a busca de Bacon como a razão
indispensável ao saber para dominar ―o inimigo‖, a natureza.
6
. ―Essa visão ontológica da natureza contida em F. Bacon está alinhada com a concepção da tradição filosófica,
pois tanto para os gregos antigos quanto para a filosofia cristã a natureza possui uma ordem em si que deve ser
17

natureza humana, de causas que destinam efeitos, como se todas as ordens fossem de
essência (naturais) obedecendo à natureza humana dominadora (sujeito do conhecimento)
da natureza exterior (objeto do conhecimento). Com esta formulação filosófica, a nova visão
do mundo, nos conduz a uma distinção fundamental, tanto no desmembrar ―engavetado‖ da
moderna ciência quanto no senso comum: a de natureza (o ente natural) de um lado e a de
pessoa humana (o ente existente humano) de outro. Aquilo que Sousa Santos (2002, p. 13)
expôs como sendo a total ―separação entre a natureza e o ser humano‖.
Balizado nestes pressupostos, o conhecimento (poder) científico parte no avanço
pela observação e experimentação descomprometida, sempre rigorosa no entendimento
profundo e no domínio dos ―fenômenos naturais‖. Estes são os postulados que encontramos
no principal livro de Bacon, o Novum Organum, ―no qual propôs uma nova ciência que
pretendia dominar o meio natural e que fugia da ideologia escolástica‖ (CAMARGO, 2005, p.
39), tendo como alvo o domínio sobre a natureza que,

é tão-só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo cujos


elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; não tem
qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus
mistérios, desvendamento que não é contemplativo, mas antes activo, já que visa
conhecer a natureza para dominar e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da
pessoa humana ‗o senhor e o possuidor da natureza‘‖ (SOUSA SANTOS, 2002, p.
13).

Vamos conhecendo assim as bases filosóficas do método científico moderno, onde a


concepção de natureza se molda e é modelada pela definição de um conhecimento objetivo
e racional, de dominação do homem (civilizado, branco e europeu) sobre o que se trata
como natural (matéria inerte, existentes sem razão, dignidade e sentimento). Desde o solo,
os rios, as plantas, até os outros animais; culminando nos negros, índios, mulheres7 e tudo
que estiverem de alguma forma, externos à existência dominadora humana. Nesse
entendimento, Springer (2008, pp. 48-49), resgata Marx, Engels e Merleau-Ponty, para dizer
que a natureza tornou-se mercadoria, antes de tudo um objeto externo, feito de partes
exteriores por seres inteiramente exteriores (e inferiores) que satisfaz as necessidades
humanas. Esta visão burguesa de natureza, da externalidade homem/natureza, na busca de
obtenção de cada vez mais riqueza, e do conhecido desenvolvimento e progresso.
Como já expusemos, o método baconiano está na lógica do modo de pensar
capitalista, no qual a natureza é inesgotável fonte de recursos. Isto que ―é uma realidade

captada e contemplada pelo ser humano. A intervenção humana na natureza deve se dar sempre no sentido de
realizar a própria ordem da natureza, e nunca no sentido de contrapô-la‖ (HANSEN, 2000, p. 61, nota do autor,
possui o número 15 no original).
7
. ―De fato, sua idéia da natureza como uma mulher cujos segredos têm que ser arrancados mediante tortura,
com a ajuda de instrumentos mecânicos, sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos
de bruxas do começo do século XVII. A obra de Bacon representa, pois, um notável exemplo da influência das
atitudes patriarcais sobre o pensamento científico‖. (CAPRA, 1986, p. 52).
18

aceita por todos‖ (SMITH, 1988, p. 27), da dominação da natureza (até os dias de hoje);
espinha dorsal do que concebemos capitalisticamente por natureza. Esta natureza, mais
mecânica que orgânica, sem dignidade, razão e emoção, objeto do domínio humano, é a
base fundamental para o que temos hoje nas ciências: a dicotomia sujeito/objeto. A relação
de externalidade exposta tão veementemente por Bacon, de Homem/Natureza, será a base
lógica para o pensamento ocidental moderno elaborar o seu paradigma de ciência: o de que
o sujeito do conhecimento (cientista pesquisador) deverá sempre ter um objeto de estudo (a
ser averiguado, desmembrado, como um recurso de seu saber). Isto é o que irá chegar até
a Geografia, com os moldes do espaço geográfico: a relação de externalidade
Homem/Espaço.
Mas como nos deixamos ―embebedar‖ por esta acepção e este paradigma?
A resposta não é simples, pois a noção de domínio do objeto torna-se contrária,
como uma camisa de força, onde o sujeito será dominado pelo objeto!
O espaço estará como um feto para Bacon, que se desenvolverá no paradigma
baconiano-cartesiano-newtoniano. Deste modo, o conceito de espaço é como um pano de
fundo nas formulações baconianas, tanto que será amplamente utilizado pelo próximo pilar
do paradigma: René Descartes. ―A estruturação de um novo método científico, que irá
influenciar a ciência até os nossos dias e consolidar o domínio da natureza‖ (CAMARGO,
2005, p. 39), no qual teremos a espacialidade cartesiana de mundo, com uma acepção de
espaço totalmente metafísica. O que, segundo Moreira (2007, p. 138), ―a partir daí, todos os
entes corpóreos, humanos e não humanos estão no espaço. Não são espaço. O espaço se
torna uma externalidade radical‖. Começando a tomar corpo, a partir de afirmações
cartesianas sobre o mundo e a natureza, a externalidade na relação Homem/Espaço.
E para adentrarmos na perspectiva filosófica de espaço em Descartes, é mais do que
preciso remontar às bases metafísicas que irão compor seu pensamento e seu método de
análise do mundo. Desde as ligações basilares em Bacon, ganhando corpo pelas
formulações filosóficas cartesianas de Natureza (a base dicotômica homem/natureza),
Método (a dúvida metódica), Ciência (a dicotomia sujeito/objeto), até o seu conceito de
espaço, temos um bom caminho, para darmos sentidos ao discurso sobre o objeto da
ciência. Darmos massa crítica de análise sobre o espaço tratado na Geografia.
Seguindo os conselhos de Milton Santos (1978, p. 29), se alçamos as fontes em
busca de ―fundamentos filosóficos da ciência geográfica‖ devemos averiguar, além de outros
caminhos, a análise das bases em René Descartes (1596 – 1650). O francês também
conhecido como Renatus Cartesius (forma latinizada), foi filósofo, físico e matemático.
Alcançou notoriedade por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência, mas também,
obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria. Deste
modo, foi uma das personificações da chamada Revolução Científica, ou Renascimento
19

Científico. Descartes pode ser considerado um dos pensadores mais importantes e


influentes na História do Pensamento Ocidental (de base europeia). E, para utilizarmos mais
uma vez do alerta de M. Santos (ibid., p. 36), ―é mais que evidente a influência durável de
Descartes sobre a Geografia como sobre outros domínios científicos‖, no mundo ocidental
europeu, ou, dito ―desenvolvido‖.
A relação Bacon-Descartes, sobretudo, num desencadeamento lógico de
pensamento, tendo como ressalva o método analítico de cada um (estes pensadores
contemporâneos), conferiram uma base de consciência filosófica bastante ampla para seus
sucessores (principalmente a Isaac Newton) na Ciência Moderna. Na busca de desmistificar
a chamada Natureza e o Novo Mundo, ―para cada caravela colocada ao mar, para cada
aborígine escravizado ou morto, para cada árvore derrubada em nome da europeização do
planeta, novos outros rumos do pensar, do significado do conhecer, foram igualmente sendo
construídos‖ (SANTOS, D., 2002, p. 139). Nesse processo de colonização dos valores e
modos de pensar, de hegemonia europeia ocidental, o conhecimento científico que vai
sendo articulado e institucionalizado, irá, nas palavras de D. Santos, caracteristicamente
deslocando o sujeito: ―recolocando-o e redimensionando-o enquanto sujeito do
conhecimento‖ (ibid., p. 139, grifos nossos).
E nesse sentido que o pensamento de Descartes terá muita influencia sobre o
empirismo do próprio Bacon, pois, o empirismo não conseguirá continuar, ou ―sobreviver‖,
sem absorver o que no pensamento cartesiano será operacional, o papel da linguagem
matemática. Absorvendo assim o pensamento empirista baconiano, o racionalismo
filosófico-matemático cartesiano, amalgamará uma maior influencia sobre o pensamento
científico institucionalizado daí em diante. E isto, como fora supracitado, influenciará
amplamente a acepção de espaço nas ciências; e como consequência, na Geografia (ibid.,
p 146).
Deste modo, seguimos nossa peregrinação pelas bases do paradigma baconiano-
cartesiano-newtoniano, agora, adensando às formulações empiristas de Bacon a metafísica
de ordem matemática de Descartes. Isto que convergirá na acepção hodierna de espaço
nas ciências, no senso comum e na Geografia.
Nossa esquemática geral perpassará pelos seguintes caminhos de escrutínio crítico:
a reafirmação da base dicotômica do pensamento baconiano (e nesse sentido europeu
ocidental) na externalidade homem/natureza; a reafirmação e as bases para a
institucionalização da ciência como pilar do modo de pensar (o sujeito do conhecimento)
moderno através do método científico (do racionalismo para a dúvida metódica cartesiana);
e, com a síntese das ideias na espacialidade cartesiana, via da elaboração lógica de um
espaço metafísico, surgindo o espaço absoluto (a passagem das dicotomias cartesianas: res
infinita/res cogitans/res corporea/res extensa, para a externalidade e dicotomia científica
20

sujeito pensante/objeto pensado). A abordagem geral está posta, resta-nos seguir o


caminho. Após esta breve contextualização da importância do pensamento cartesiano na
ciência moderna, sobretudo, na constituição do paradigma baconiano-cartesiano-
newtoniano iremos às reafirmações filosóficas que, na prática e no senso comum, tornar-se-
ão os fundamentos para a aplicação a priori dos objetos do conhecimento científico, assim
como o espaço geográfico.
Primeiramente, a externalidade que se produzira sumariamente em Bacon será
reafirmada pelas formulações lógicas e antropocêntricas de Descartes. Esta externalidade
entre homem e natureza será a base para a dicotomia científica cimentada na era moderna:
a dicotomia sujeito/objeto. As premissas da filosofia cartesiana acerca da percepção do
mundo serão assentadas na dicotomia do natural/não natural. Nas palavras de Moreira
(1993, p. 17, grifos nossos), ―significa isto que neste mundo se distinguem o natural e o não-
natural, nascendo dessa distinção o moderno conceito de natureza e de homem. Natureza é
o mundo racional dos corpos submetidos à uniformidade do movimento mecânico. Homem é
o correlato do conceito do espírito, o mundo subjetivo das idéias‖.
Os respaldos tradicionais de atomismo individualista8 antropocêntrico cartesiano,
segundo Ribeiro (2006, p. 49, grifos nossos), ―considerava as relações humanas reflexas,
reflexos de estímulos, captados pela inteligência humana: a substância colocada na
glândula epífise por Deus, a diferenciar o homem dos animais inferiores‖. Esta concepção
cartesiana de inteligência e de homem auxiliará a sublevar, ainda mais, o distanciamento
entre homem e natureza.
Pois, o que temos é uma nova concepção de natureza e de homem sendo
hegemonicamente assimilada para todo o mundo científico, e não-científico: o do senso
comum. A relação de externalidade, que será uma dicotomia impossível de ser revertida no
modo de pensar capitalista científico moderno (a homem/natureza), abarcará todas as
nossas relações cotidianas da existência humana. As ideias que apresentamos de mundo,
de humanidade, de animal e de natureza, são advindas destes tempos; do conjunto de
formulações básicas perpassadas de Bacon a Descartes, assim como já realçara Capra
(1986, p. 56), ―Descartes compartilhava do ponto de vista de Bacon, de que o objetivo da
ciência é o domínio e controle da natureza‖. Assim sendo, já através dos pressupostos
baconianos de dominação da natureza, o capitalismo industrial europeu buscou se alastrar e
usurpar suas bases para a expansão; essas bases sendo apreendidas como a natureza.
Com Descartes a música toma novos acordes, mais calcados na divinização dos fatos, na
aplicação matemática e metafísica via do racionalismo, porém, a letra mantém-se a mesma,
―é o capitalismo nascendo e se instituindo ôntica e ontologicamente em sua dimensão

8
. Ver mais detalhadamente em: PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Os (Des)Caminhos do Meio Ambiente.
São Paulo: Contexto, 2006a, p. 44.
21

espaço-temporal concreta, pelo domínio fetichizado da natureza e do homem‖ (MOREIRA,


2008, p. 61).
A partir de Descartes, tem-se a consolidação do modo de pensar científico capitalista
antropocêntrico, na combinação humana de matéria, intelecto e sentimento. E para abarcar
tais fatos, Descartes, somente via na racionalidade (humana) a concepção de essência da
verdade. É isto que Porto-Gonçalves (2006a) busca elucidar com a tríade de dicotomias
ocidentais reforçadas pelo pensador francês. As oposições homem/natureza,
espírito/matéria e sujeito/objeto. Destaca ainda Porto-Gonçalves (ibid., p. 33) que, ―dois
aspectos da filosofia cartesiana aqui expressos vão marcar a modernidade: 1º.) o caráter
pragmático que o conhecimento adquire‖, no qual os conhecimentos científicos sejam
aplicados ao cotidiano e naturalizados no senso comum do ―cientificamente correto‖, onde
testes em animais não-humanos vivos não espantam ninguém, e até são sacralizados como
bens em nome do avanço científico e humano9. Esta forma de ver o natural (não-humano),
distinto do não-natural (humano), como recurso (bem material, meio para tal fim),
desemboca no segundo aspecto da marca hodierna do modo de pensar científico capitalista:
o que Porto-Gonçalves enunciará como ―2º.) o antropocentrismo, isto é, o homem passa a
ser visto como o centro do mundo; o sujeito em oposição ao objeto, à natureza‖.
O domínio do homem na filosofia cartesiana se entenderá também ao estamento
científico antropocêntrico moderno, levando às mãos do homem, a capacidade de dominar a
natureza. Este é o fundamento calcado na razão, o que segundo o próprio Descartes (1973,
p. 37, grifos nossos), ―quanto à razão ou ao senso, posto que é a única coisa que nos torna
homens e nos distingue dos animais‖. Logo, a razão como ser único e absoluto que nos
distingue dos outros entes vivos é posta como uma lei que nos dá todos os direitos de
pensar o mundo como algo feito para o homem, um objeto para o sujeito, dono da razão: o
sujeito do conhecimento.
Vamos passando então para uma próxima abordagem, a da acepção filosófica de
natureza em Descartes, ou seja, uma análise dos fundamentos metafísicos de sua visão de
mundo partindo do ponto de vista da natureza, até o fatídico momento da formulação
metódica da dúvida em relação com suas bases racionalistas. Como a busca de Descartes

9
. Estas ―forças de expressão‖ cotidianas, que usamos em nosso dia-a-dia explicita na sua base a acepção
externalizada de homem e natureza, no qual segundo Porto-Gonçalves (2006a, p. 25) explicita: ―chama-se de
burro ao aluno ou a pessoa que não entende o que se fala ou ensina; de cachorro ao mau-caráter; de cavalo ao
indivíduo mal-educado; de vaca, piranha e veado àquele ou àquela que não fez a opção sexual que se considera
correta, etc... Juntemos os termos: burro, cachorro, cavalo, vaca, piranha e veado soa todos nomes de animais,
de seres da natureza tomados – em todos os casos – em sentido negativo, em oposição a comportamentos
considerados cultos, civilizados, e bons‖. Fora estes, podemos enumerar mais alguns: papagaio à pessoa que
fala muito; toupeira ao que é ignorante ou não compreende; macaco às pessoas de pele, cabelo ou cultura
negra; de rato ao que é julgado como ladrão; de elefante e baleia aos que não se enquadram no padrão estético
de peso e beleza; de cobra à mulher que é traiçoeira. Além de outros dos mais variados, com as mesmas
intenções (pejorativas e distinguindo humanidade de natureza, entes vivos humanos e não-humanos). Qual de
nós já não fez algum comentário deste tipo, ou não falou que alguém ―parecia um bicho‖, ou exclamou: ―fulano é
um animal!‖?
22

sempre foi de ―procurar adquirir algum conhecimento da natureza‖ (ibid., p. 79), avançando
sempre neste conhecimento para ―assim nos tornar como que senhores e possuidores da
natureza‖ (ibid., p. 71), o que há de melhor para nós (nessa auto-avaliação crítica) seria
averiguar algumas de suas bases teológicas e metafísicas para o uso da razão. O ser-razão
colocado por Deus na mente humana, para que possamos compreender, dominar e possuir
o seu mundo como objeto. Esta que seria a base filosófica onto-teo-lógica no pensamento
cartesiano.
É nesse sentido que o ser-razão divinizado alçará vôo nas elaborações filosóficas de
Descartes, mas, tendo como base uma acepção muito cara de natureza: metafísica; como
uma onto-teo-logia do mundo, através do ser-razão divinizado. A base da razão como
clausura do pensamento cartesiano casa-se em grande estilo com a sua acepção de
natureza, externa-mecânica-sem razão. Assim, como nos explicita Camargo (2005, p. 40),
―a razão, então, traria ao homem uma certeza: se a natureza não sofre, não chora e não se
manifesta, então também não pensa, logo não existe como ser animado, provido de
sensibilidade e sentimentos‖. Este ser-razão cartesiano serviria tanto para mostrar a lógica
humana de pensar, quanto para distinguir, externalizar humanidade/natureza. A dicotomia
do que seria humano, racional e colocado por Deus no corpo-matéria humana, do animal,
mecânico e irracional. Colocado no mundo para servir ao mundo-do-homem.
Na visão antropocêntrica de mundo, as acepções de homem e natureza reafirmarão
o domínio humano sobre tudo o que vê. Podendo agora experimentar, dilacerar, analisar e
usufruir sem nenhum sentimento de remorso. Pois agora, cientificamente, a natureza
mecanizada pelo estatuto do irracional ou animal, não possui sentimentos, logo não sente
dor. A natureza no pensamento cartesiano, seria nada mais que ―uma maquina perfeita
submetida a leis mecânicas exatas‖ (SPRINGER, 2008, p. 49), pelo qual o saber científico
deveria operar e manipular, na busca constante da exploração dos seus funcionamentos.
Assim observamos que nesse momento do pensamento cartesiano, emerge uma
grande dicotomia lógica: a separação corpo/alma. Esta dicotomia, aliada a já elaborada
homem/natureza, auxiliaria na superação de nossos espíritos animais, buscando salvar os
homens das paixões (lembremos de algo semelhante em Bacon, a superação dos ―ídolos‖).
Um desencantamento da humanidade ―para a ciência moderna invoca a perda da
sensibilidade, da ética, dos valores, da alma enfim da consciência‖ (ibid., p. 50). Nessa
dicotomia corpo/alma, reafirma-se a externalidade homem/natureza, pois, corpo seria o
mecânico vindo da natureza, porém, contido pela alma, repleta de razão divina, algo
particularmente humano.
Esta acepção de natureza, mecanizada, irracional e desprovida de alma é a base do
que conhecemos como o especismo. A primeira forma de estranhamento humano em sua
acepção e prática de mundo. Isto será a exposição de Peter Singer (2004), através de um
23

histórico do especismo ocidental, pelo qual o estabelecimento científico cartesiano, num


―cruel‖ estamento do ser-razão cristão, irá naturalizar a dominação sem precedentes do
mundo e dos animais; do que seria a natureza. Sob a influência da nova e excitante ciência
da mecânica, Descartes afirmou que tudo o que era composto por matéria era regido por
princípios mecanicistas, como aqueles que regiam o funcionamento de um relógio. A lógica
filosófica metafísica cartesiana afirmou haver não um, mas dois tipos de coisas no universo:
as coisas do espírito ou alma e coisas de natureza física ou material (as dicotomias
homem/natureza e alma/corpo-matéria). Os seres humanos têm consciência, e a
consciência não pode ter a sua origem na matéria. Descartes identificou a consciência com
a alma imortal, que sobrevive à decomposição do corpo físico, e declarou que esta fora
criada especialmente por Deus. De todos os seres materiais, declarou Descartes: apenas os
seres humanos possuem alma. Assim, na filosofia de Descartes, a teoria cristã de que os
animais não têm almas imortais conhece a conseqüência extraordinária de eles também não
terem consciência. Eles são meras máquinas, autômatos. Não experimentam prazer nem
dor, nem nada. Embora possam guinchar quando são cortados por uma faca ou contorcer-
se na tentativa de escapar ao contato com um ferro quente, isto não significa que eles
sintam dor nestas situações. São regidos pelos mesmos princípios que regem o
funcionamento de um relógio e, se as suas ações são mais complexas do que as de um
relógio, sendo porque o relógio é uma máquina feita pelos humanos, ao passo que os
animais são máquinas infinitamente mais complexas, tendo sido criadas por Deus (ibid.).
Temos então uma síntese desse pensamento cartesiano que externaliza os homens
providos da alma racional criada por Deus, dos animais sem razão. ―Trata-se, portanto, de
uma reconstituição imaginária do homem enquanto animal-máquina, antes da inserção da
alma. Na realidade, o corpo humano nunca é uma máquina, pois está sempre unido a uma
alma‖ (DESCARTES, 1973, p. 63, nota do editor, possui número 13 no original). Deste modo
o estamento lógico cartesiano, do modo de pensar capitalista ocidental, vai se elaborando
em uma acepção metafísica de natureza. Cada vez mais reforçando sob dogmas cristãos a
condição humana de entes providos do ser-razão-alma concedido por Deus, distinguindo-
nos de ―qualquer outro animal sem razão‖ (ibid., p. 68.). E, sendo assim, podemos a partir
deste modo de pensar, sem hesitar, ―conhecer a diferença existente entre os homens e os
animais‖ (ibid., p. 69, grifos nossos), a diferença, ou dicotomia estabelecida, entre a
humanidade e os animais (homem/natureza) seria uma modalidade ontológica do ser na
lógica cartesiana, pois existiria de fato. E o ser que distingue é o ser-razão (ou ser-alma); um
ser de estatuto ontológico, ou onto-teo-lógico.
Essa busca de um estatuto ontológico é o elemento chave de toda acepção
cartesiana de mundo, de homem, de razão, de natureza e, como ―herança‖ deixada à
Geografia científica: de institucionalização da ciência, de normatização ou concatenação do
24

pensamento pelo método e da abstração de espaço, como absoluto e externo à


humanidade. Isto é o que podemos conceber como a filosofia cartesiana, buscando
ontologicamente comprovar a existência de Deus (o ser-divino-racional, ou o Ser perfeito).
Nesse caso específico de Descartes, sua filosofia se constituirá como uma Metafísica (na
concepção pejorativa do termo), ou na interpretação de Heidegger (1996): uma onto-teo-
logia.
A aspiração de vida cartesiana em comprovar a existência divina é bem próxima das
considerações postas por Heidegger (ibid., p. 192), no qual ―a metafísica é teologia, uma
enunciação sobre Deus, porque o Deus vem para dentro da filosofia. Assim se agudiza a
questão do caráter onto-teo-lógico da metafísica‖. Como na metafísica cartesiana, essa
onto-teo-logia, busca reduzir o fim do entendimento das coisas, do mundo e dos homens
como reafirmação de uma pré-existência produtora divina. Numa tentativa da metafísica de
―ultrapassar, com seu pensamento, tudo em direção de Deus‖ (ibid., p. 194), efetuando
fundamento e respaldo a todos os atos humanos por respeito às normas naturais de Deus.
Pensando essa divindade enquanto ente supremo, e que tudo regulamenta, está
conformando-se uma lógica como Téo-lógica; um fundamentalismo da razão: em, pelo e
para Deus. Este fundamento transparece nas ―Meditações‖ de Descartes, onde se busca
demonstrar, como cerne do tratado, a existência de Deus e a distinção real entre a alma e o
corpo do homem (ambas criadas por Deus, porém o corpo como algo maquínico e a alma
como um dom, uma dádiva concernida de Deus somente ao homem). Nessa expansão de
esforço teórico pós ―Discurso do método‖, Descartes, dentre pormenores, se envereda na
ideia de que a dúvida não nos leva ao pensamento, mas se duvidamos é porque pensamos,
assim existimos (somos também imaginativos e sensíveis – tanto nos sentimentos quanto
nos sentidos). Através de Deus soberano, eterno, infinito, imutável, onisciente, onipresente e
criador universal é que se pode entender a objetividade real e o sentido das coisas, e não
pela falsidade material. A razão divina estaria acima do mundo, concluindo-se que Deus
ontologicamente existe como substância infinita, perpassada essa substância para o
homem, por onde Deus se realiza, através do homem (DESCARTES, 1973).
Segundo crítica de Sousa Santos (2002, p. 14, grifos nossos), Descartes ―vai
inequivocamente das ideias para as coisas e não das coisas para as ideias e estabelece a
prioridade da metafísica enquanto fundamento último da ciência‖; esta metafísica onto-teo-
lógica, calcada em Deus que nos passa a Razão para dominar as coisas materiais, via da
ciência. Como base para essas ideias divinas estava a única chave para desvendar os
segredos da natureza (da materialidade falsa): a Matemática, através de sua Geometria
analítica. Esta seria para Descartes, como nos prova Douglas Santos (2002, p. 145), a
―única ferramenta capaz de impedir o engano‖. Este autor continua em sua exposição,
remetendo a ciência construída pelo desenvolvimento da sociedade burguesa à ideia de ―lei
25

natural‖ (da metafísica divinizada) e sua formulação matemática cartesiana (ibid., p. 152).
Nesse sentido concordamos com as palavras críticas de Moreira (1993, p. 16), de que
―estamos assim diante de um mundo rigorosamente regulado pelas relações constantes da
matemática e que o homem pode conhecer e controlar, sem que cometa qualquer
sacrilégio‖, pois, esta matematicidade perfeita do mundo produto de Deus foi concedido ao
homem como fonte de domínio e exploração, pelo poder e saber racional, advindo
novamente, como num ciclo vicioso (a ―lei natural‖), das ―mãos‖ justas de Deus 10. Justificara
na sua pessoa o consentimento divino tendo a ―certeza de que Deus lhe apontava uma
missão e dedicou-se à construção de uma nova filosofia científica‖ (Capra,1986, p. 53).
O mundo passará a ser visto como uma uniformidade mecânica universal, com a sua
feição geométrica, através do método matemático como modelo para a aquisição de
conhecimentos em todos os campos (temos a Geometria analítica). Com a justaposição de
geometria, álgebra e aritmética temos essa nova forma de análise do mundo, a acepção do
universo como uma uniformidade mecânica produzida por Deus. Essa solução de Descartes
geometriza o mundo e ―a natureza infinita de antes da revolução científica se converte nas
suas mãos no espaço infinitamente descontínuo‖ (MOREIRA, 1993, p. 20). Temos então o
que veremos posteriormente como o espaço cartesiano, como conjunto de corpos animados
mecanicamente. Deste modo que ―a natureza é geométrica e, pela primeira vez, aparece
claramente uma noção abstrata do espaço; princípio vazio e isonômico, este define posição,
pela forma e pelo movimento dos corpos que o ocupam‖ (GOMES apud., RIBEIRO, op. cit.,
p. 50), e não é por acaso que a natureza é mecanizada, a Geometria analítica emerge como
sustentáculo de negação da dúvida e que o espaço será algo externo e vazio, mas por essa
base filosófica de Descartes, calcada no Deus Ser-razão-perfeito, criador de um mundo
universalmente maquínico e doador da dádiva da Razão para os homens existirem e
dominarem o que já lhes foi dado: o mundo. Por esta formulação filosófica que tomará corpo
a institucionalização da ciência e seu método moderno de apreensão deste mundo-do-
homem.
Um dos pilares para o modelo de método científico moderno (até mesmo para os que
se dizem pós-modernos) é o método cartesiano. Tal esforço intelectual visa como seu
objetivo geral e pontual a verdade (como algo cabível de ser concebido, pois provado
metodicamente, cientificamente). Perpassando pela lógica do ser-pensante e da dúvida,
atrelando seu estatuto verídico através da matemática visando o fim comprovado através do
conhecimento, por um método único. Este esforço da dúvida é reformulado por Ribeiro

10
. Para fim de resumo e confirmação desta universalização de Deus-lei natural-geometria, temos uma citação de
Descartes (1973, p. 57): ―Ao passo que, voltando a examinar a idéia que tinha de um Ser perfeito, verificava que
a existência estava aí inclusa, da mesma forma como na de um triângulo está incluso em serem seus três
ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro,
ou mesmo, ainda mais evidente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser
perfeito, é ou existe, quanto sê-lo-ia qualquer demonstração de Geometria‖.
26

(2006, p. 58), através do próprio dito mais conhecido de Descartes: eu penso, logo existo. A
reformulação incide justamente na origem do termo pensar, que ―vem do latim pendere:
pender, suspender, pensar, examinar, ponderar, avaliar, compensar, recompensar e
equilibrar‖, sendo seu sentido equivalente ao cogitare, mergulhando em meditações sobre a
existência indubitável de algum fenômeno. Então este homem enquanto eu pensante é um
sujeito que questionava a veracidade dos fatos do mundo, da falsa materialidade.
Esta forma de questionar o mundo circundante irá fazer emergir na metodologia
cartesiana o expoente da dúvida, compondo em combinado com o próprio método como
dúvida metódica, no qual se duvida de cada ideia que pode ser duvidada. Como expressa
Morente (1970, p. 137), ―a dúvida se converte, pois, em método; e o que se tenta aqui
descobrir é uma proposição que não seja duvidosa, que não seja dubitável‖. E para ser
indubitável, somente através da razão, do pensamento, pois está fora do mundo falso da
matéria, é a dádiva divina da racionalidade, que nos remete à dúvida. Assim que como base
da ciência está a busca da evidência do verdadeiro, através desse método cartesiano da
dúvida para comprovar esta crença raciocinada. O caminho a ser seguido (método)11.
Tomado assim pela dúvida, Descartes pretende construir uma epistemologia,
negando para afirmar. Este ―ato da dúvida cartesiana tem mais um caráter paradigmático
que propriamente psíquico‖ (SANTOS, D., 2002, p. 143). Como este paradigma cartesiano
busca a verdade comprovada, racional e científica, se faz ―por meio do método especado na
álgebra e aritmética‖ (RIBEIRO, 2006, p. 49), cabendo lembrar que ―a ontologia cartesiana
parte do abstrato, limitando-se ao conhecimento derivado da matemática. Este
conhecimento apreende apenas o mais estável e permanente, recusando, no ser, o que lhe
é fugidio e mutável‖ (BRASIL, 2005, pp. 64-65). A matematização deste caminho
ensandecido em busca da verdade se faz por meio da matemática, para não esquecermos,
por dois motivos: primeiro pela leitura mecanicista, do mundo máquina, esquadrinhado
aritmeticamente por Deus, numa rede que envolve todos os corpos; segundo, pela releitura
dos clássicos gregos por Descartes, no qual ta mathema, designa completo conhecimento,
perfeito, puro e dominado totalmente pela inteligência (o nosso ―dom divino‖12).
Para ser mais perfeccionista e paradigmático em seu ato revolucionário à época,
Descartes propõe que este seja um método único, universal: a mathesis universalis13. O

11
. Seguindo a descrição da noção de método em geral por Jolivet (1968, p. 71): ―se nos colocarmos no ponto-
de-vista do conhecimento, dir-se-á, com Descartes, que o método é ‗o caminho a seguir para chegar à verdade
nas ciências‘‖.
12
. Não é de se espantar por essa relação, pois, segundo Capra (1986, pp. 55-56): ―Para Descartes, a existência
de Deus era essencial à sua filosofia científica, mas, em séculos subseqüentes, os cientistas omitiram qualquer
referência explícita a Deus e desenvolveram suas teorias de acordo com a divisão cartesiana‖. Para bom
entendedor, estavam e ainda estão calcados num conhecimento como dom divino, na busca do domínio do
mundo e da verdade.
13
. ―A tarefa é construir um único método que dê conta da diversidade de questões de forma inquestionável, que
elimine as contradições, que posicione o sujeito perante a certeza, já que o objetivo do conhecimento é eliminar
a dúvida e ambas são, por pressuposição, inconciliáveis‖ (SANTOS, D., 2002, p. 149).
27

método instituído por Descartes, na pretensão de ser universal balizado no rigor matemático
e na razão, seria o Hipotético-dedutivo, composto de: evidência, análise, síntese e
enumeração. Estas bases dar-lhe-ão comprovação da verdade, divisão das partes a se
estudar, hierarquia linear da dificuldade dos objetos e as relações metódicas entre tais.
A dúvida metódica hipotético-dedutiva cartesiana será completamente racionalista,
buscando não bases empíricas (os sentidos), mas a razão. O que Hansen (2000, p. 61) irá
explicar-nos que no Racionalismo de Descartes, ―a razão é a efetiva fonte de conhecimento,
pois é ela que dá, através da dedução que permite fazer a partir das ideias inatas, certeza e
validação àquilo que conhecemos‖. Desse modo que temos o estabelecimento e predomínio
absoluto do intelecto (da razão, da inteligência, da ciência, sobre a experiência, à vida e aos
sentidos), ―a filosofia de Descartes inaugura uma era de intelectualismo, uma era de
racionalismo‖ (MORENTE,1970, p. 175), lançado a averiguar os problemas do mundo, da
ciência e da vida. Porém, como nos alerta Ribeiro (2006, p. 117), racionalismo abstrato e
metafísico, com a matematização e logicização, é conservadorismo de pensamento; não é
por acaso que a ciência e a razão dominam sobre a vida até os dias de hoje.
A base metódica para a institucionalização da ciência moderna está posta, criando
um vinco moderno na filosofia, substituída pela ciência. A construção do pensamento
ocidental terá com este método um novo pilar de conduta, por onde emergirá a ciência
hodierna.
Como trata Moreira (2008, p. 58), o nascimento da ciência moderna é dado por
Descartes pelo acréscimo ao pitagorismo grego da matematicidade, fusão entre álgebra,
geometria e aritmética. Esses moldes são do que vimos pelo racionalismo mecanicista,
sinônimo de método científico no qual temos ―separação, hierarquização de fatos, dedução
e comprovação de hipóteses‖ (SPRINGER, 2008, p. 49). Todo esse enlace científico
moderno está enredado em três situações, do modo que Sousa Santos (2002) nos
relembrará do pensamento de Descartes: o rompimento com a ―ciência‖ aristotélica
(desconfiando da experiência; a lógica de investigação matemática, como modelo de
investigação e representação (como vimos no aspecto do que seria o Hipotético-dedutivo –
evidência, análise, síntese e enumeração dos fenômenos); e, as análises das leis como
naturais da própria acepção de natureza. Estas leis são arbitrárias, que não aparece como
um saber posto por Deus, pairando sobre os homens, por isso, Porto-Gonçalves (2006a, p.
43) relata que ―em nome da ciência, do seu rigor teórico e metodológico, tem-se justificado
toda uma prática de dominação dos homens e da natureza‖. Esta ciência moderna é
instituída, não é um modo de ser dado divinamente!
A tomada de corpo do método cartesiano, na construção de um paradigma
epistemológico, além do operacional, conflui com a imposição de valores generalizantes do
modo de ser europeu. Cabe então o retorno à Sousa Santos (2002, p. 55), no sentido de
28

que ―todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum‖, por onde ―a ciência
moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante
especializado faz do cidadão comum um ignorante generalizado‖, repetindo rotineiramente
este senso comum cimentado pela ciência, via de um modo de ser imposto pela
europeização do mundo. O que temos por noção de ciência é a busca da personificação, via
do pensamento de Descartes, do dominador europeu. Segundo Jolivet (1968, p. 76),
objetivamente a ciência é um conjunto de verdades certas e logicamente encadeadas entre
si, conformando então um sistema em corrente (um senso comum), porém, se faz
necessário o respeito às suas leis próprias, o método, tendo assim, por objeto mais geral a
generalização da verdade.
Por estes motivos a ciência moderna se institui via de seu método em busca da
verdade, o senso comum cotidiano dos fatos, não como leis naturais e divinas, mas sim
como tentativas parciais de impor certezas que fomentam atos já praticados ou em via de
serem re-praticados. A ciência tornou-se a voz da verdade; das falsas verdades14. Daí o que
veremos como o conceito moderno de espaço, advindo desse senso comum imposto pela
ciência, chegando até a Geografia científica (ou oficial, acadêmica), desde o Racionalismo
cartesiano. O espaço metafísico cartesiano, como veremos, servirá como base para o duplo
dicotômico: absoluto/relativo; tanto da física newtoniana, quanto das apropriações do
conceito ou categoria (no mais geral) de espaço pela ciência Geográfica.
Para entendermos a origem desse duplo dicotômico devemos relembrar as três
dicotomias básicas do que Heidegger (2008, p. 140) irá tratar como ―ontologia do ‗mundo‘ de
Descartes‖. Essa interpretação de mundo cartesiana trata de externalizar o mundo, como
circundante, logo, o que teremos é uma espacialidade fundada na extensão e não no corpo.
Como citamos alhures, o cabedal onto-teo-lógico do método cartesiano propicia ao francês a
primeira dicotomia ou externalização teórica: entre Deus/espírito. Ribeiro (2006, p. 48)
explicita justamente essa idéia, no qual ―a res infinita (Deus), destarte, far-se-ia a fonte para
a res cogitans (pensamento)‖. Esse Deus como coisa infinita e primordial, como uma
substância imprescindível de alguma outra para existir15 seria exterior e intermediário às
coisas finitas, como o homem-corpo, que seria alcançado pela alma, ou pensamento que
cogita ou duvida. Assim se institui para o pensamento cartesiano a dicotomia primordial,
―através de uma ontologia fundada na distinção radical entre Deus, eu e ‗mundo‘‖
(HEIDEGGER, 2008, p. 147).

14
. Não é por menos que o título completo da obra base do desenvolvimento metódico cartesiano chama-se:
Discurso do método para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências.
15
. ―Nas Meditationes, Descartes desenvolve suas investigações fundamentais no sentido de aplicar a ontologia
medieval ao ente que ele estabelece como o fundamentum inconcussum. A res cogitans é determinada,
ontologicamente, como ens e o sentido do ser deste ens é estabelecido pela ontologia medieval na compreensão
do ens como ens creatum. Como ens infinitum, Deus é o ens increatum. Ser criado, no sentido amplo de ser
produzido, constitui um momento essencial na estrutura do antigo conceito de ser‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 63).
29

Fundindo as ideias de Moreira (2009) às de Ribeiro (2006), temos um entendimento


de que a divindade se dá para Descartes como conteúdo do espaço, que por ser corpo
deste Deus é infinito, por isso extenso, que será este mundo exterior, porém, re-conectado
pelo entendimento metódico, dado da res infinita à res cogitans, buscando a verdade
(certeza) da res extensa. Assim que ―Descartes converte essa metafísica teológica numa
metafísica matemática‖ (MOREIRA, 2009, p. 124). Não é por menos que emerge a segunda
dicotomia, a que externaliza espírito (pensamento) de corpo (natureza). Heidegger (2008, p.
140), traz à baila o tratamento ontológico cartesiano sobre essa dicotomia, onde ―Descartes
distingue o „ego cogito‟ como res cogitans da „res corporea‟. Essa distinção determinará
ontologicamente a distinção posterior entre ‗natureza‘ e ‗espírito‘‖, naquilo que o próprio
Descartes irá compreender como uma distinção ontológica entre alma humana e corpo.
Para relembrarmos com as próprias palavras do criador das dicotomias, Douglas
Santos (DESCARTES apud., SANTOS, D., p.146), expõe-nos: ―noto aqui (...) que há grande
diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo (...) sempre divisível e o espírito
inteiramente indivisível‖. Este modo de pensar pernicioso do cartesianismo, não só de forma
metódica, mas em sua filosofia, prossegue para o que entendemos (não em uma
linearidade, mas como encadeamento para as ciências e o senso comum) como sua terceira
dicotomia. Esta irá colocar em lados opostos na modernidade, homem-razão (res cogitans)
de um lado e mundo-espaço (res extensa) de outro.
A distinção entre a coisa extensa e a coisa pensante vincará profundamente o
pensamento ocidental, no qual ―Descartes teria imposto sobre o ente, de forma arbitrária,
certo modo de ser, derivado de um prejulgamento segundo o qual o ser (substância) é
contínuo e permanente‖ (BRASIL, 2005, p. 64). A determinação de mundo, ou melhor, do
que viria a ser o pilar do conceito moderno de espaço, estaria calcado na extensão, ou o ser
do que apreendemos por espaço. Heidegger (2008, p. 141) encontra aí espaço para sua
crítica ontológica, dizendo que a extensão, assim como o comprimento, a altura e a largura,
constituem o ser dado da substância corpórea (externa ao homem-razão), da qual
chamamos de mundo, citando pontualmente as frases de Descartes sobre essa abstração
do conceito de espaço. Essa extensão dada do espaço o faria como meramente geométrico,
produto de Deus, como extensão corpórea infinita, no qual deveria ser apreendido (porque
pensado e não vivido) pela mente humana. É como se retornássemos ao pensamento
parmenídico da dicotomia dos mundos posteriormente explorada por Platão (com a teoria
dos dois mundos: o pensado e o vivido pela experiência), onde Descartes irá distinguir a res
extensa, como um mundo externo, da res cogito, o mundo interno do eu que pensa sobre o
mundo.
O mundo geometrizado inaugurado pelo pensamento base da modernidade é
negador do eu que seja espacial, assim, como verbaliza Moreira (2007, pp. 133-134)
30

―Descartes instaura uma ontologia que fundamentalmente se apóia na dicotomia entre


espaço e homem‖, criando o que o mesmo autor irá chamar de ―espaço como extensão
geométrica absoluta, incorpórea, vazia, contínua e infinita‖ (MOREIRA, 2008, p. 58).
Edificam-se em processo linear, no pensamento moderno cartesiano as externalidades
científicas (do pensamento) e do senso comum entre humanidade e espaço (mundo), e,
principalmente, no que tange a ciência: a dicotomia sujeito/objeto, caindo no colo dos
Geógrafos ―oficiais‖ (científicos) o imbróglio lógico homem/espaço. Ou como melhor
preferimos a fórmula espaço→homem na Geografia: no qual esse espaço sujeita o homem
de vida externa ao mundo em que ele deixou de viver e conceber como harmônico e
integrado, mas sendo percebido, sentido e concebido como algo estranho (natureza:
minerais, fungos, vegetais, animais, bactérias, etc.), tal qual uma artificialidade, produto
mundano e não algo ontológicamente ―orgânico‖.
Nasce com Descartes o sujeito moderno, observador, fora do mundo, no máximo
pensando esse (outro) mundo, não o transformando e nem sequer ainda se vendo como
mundo, tirando de si a culpa e o meio de mudança para o mundo: mudar (e não somente
conhecer) a si mesmo. A ciência é então fruto deste sujeito, tal qual um moribundo, porque
focado no objeto. É a reprodução de um sujeito inerte perante o mundo. Aquilo que Ribeiro
observou no método cartesiano hipotético-dedutivo, na sobrelevação do objeto em relação
ao próprio sujeito, com ―o real sendo descrito por meio de hipóteses e deduções‖ (2006, p.
111). O que se relembrarmos, ou como Douglas Santos (2002, p. 152) irá nos ombrear: ―o
sujeito fala, matematicamente, sobre seu objeto de reflexão‖. Essas deduções e hipóteses
calcadas num método matemático soam-nos estranhas, mas, se averiguarmos o método
científico em todas as ciências (até nas ditas humanas ou sociais), lá encontraremos:
separação, hierarquização de fatos, dedução e comprovação de hipóteses; nascido com o
método hipotético-dedutivo cartesiano. Desse método hierarquizante e fragmentador nasce
―a crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos
se reduzidos às suas partes constituintes‖ (CAPRA, 1986, p. 55), não por menos, temos a
fragmentação dos fenômenos (objetos) estudados pelas inúmeras ―ciências‖ de hoje (as
partes constituintes).
O sujeito cartesiano, moribundo para o mundo, não o é enquanto pessoa, mas
aparecendo como uma abstração última pelo intelecto, através do método calcado na
dúvida. Esta dúvida nada mais é, do que expusemos como a condição primeira, ou a priori,
do que o ato de pensar. Pela separação entre Deus e homem, alma e corpo, e, finalmente
sujeito e objetos separados. Encontramos então no pensamento (ciência para senso
comum) moderno, a separação absoluta entre sujeito e objeto. Este paradigma consolidado
legitima, nas palavras de Moreira (2007, p. 134), a relação entre sujeito e objeto; ou melhor,
entre o eu pensante e o espaço. A relação em termos de espacialidade cartesiana entre
31

homem e mundo serve para dividir e manter ambos separados, como em extremos opostos,
naquilo que veremos mais adiante na Geografia científica como ―uma relação de recíproca
externalidade em que o espaço é externo ao homem e o homem é externo ao espaço e
apenas nele ocupa lugar‖ (ibid.). Nesse ínterim emerge a acepção de espaço da qual já
estamos familiarizados (se é que o entendimento e a análise autocrítica do familiar nos
parecem ironicamente mais distante daquilo que nos é inabitual), uma noção, categoria e
conceito abstratos de espaço, somente tornado claro (iluminado) pela razão. No mundo
moderno, o que vemos e vivemos, das ditas coisas aos entes vivos, estão no plano dessa
espacialidade que abstrai existência e movimento.
O espaço encontra-se somente como ―sendo a condição de possibilidade da
ocorrência da lei científica e, assim, da existência da ciência‖ (MOREIRA, 2008, p. 58), no
qual esse espaço é um suporte tanto do que é material quanto do que é pensado pela
ciência. Concordamos com Moreira (2009) novamente, em asseverar que a visão moderna
de espaço é cartesiana, numa relação de continente e conteúdo (não são exemplos disso os
atlas que mostram os continentes com seus conteúdos, ora ambientais ora
socioeconômicos, e também não é o que encontramos na formulação do espaço forma-
conteúdo retrabalhada há algumas décadas?). O jogo que nos aparece é o do duplo
absoluto-relativo, em germe para Descartes16, depois apreendido pela física newtoniana.
Espaço como condição absoluta sendo preenchido pela empiria relativa.
Que fique bem claro das releituras feitas até aqui. Não colocamos a culpa de todos
os problemas do mundo ou da ciência humana em Descartes, mas sim, de ter sido
veiculada da filosofia ocidental, para a ciência moderna e para o senso da opinião pública
comum uma única forma de apreensão do mundo. Claro que coexistem outras, mas esta,
calcada no saber científico experimental, comprovado pelo método do especialista e que
vem à tona para o cotidiano de nossa existência, foi a considerada mais ―verdadeira‖, antes
por comprovar Deus, depois no seu processo como legitimação da ordem e do progresso da
civilização (a ilusão do evolucionismo), hoje por uma tecnociência exacerbada em que tudo
engloba para tornar rarefeito, alienígena.
Passemos para a seguinte abordagem da edificação desse modo de pensar
moderno, ocidental, europeu, colonizador e globalizante, agora através da afirmação
empírica newtoniana do espaço duplo absoluto/relativo. Será o veículo de materialização do

16
. ―Chamo absoluto tudo o que contém em si a natureza pura e simples de que trata uma questão; por exemplo,
tudo o que é considerado como independente, causa, simples, universal, uno, igual, semelhante, reto, ou outras
coisas deste gênero; chamo-o, primeiramente, o mais simples e o mais fácil, em função do uso que dele faremos
na resolução das questões.
Quanto ao relativo, é o que participa desta mesma natureza ou, ao menos, de algum dos seus elementos; por
isso, pode referir-se ao absoluto, e dele se deduzir mediante uma certa série; mas, além disso, encerra no seu
conceito outras coisas, que chamo relações; assim é tudo o que se diz dependente, efeito, composto, particular,
múltiplo, desigual, dessemelhante, oblíquo, etc.‖ (DESCARTES, 1989, p. 34).
32

espaço e da institucionalização da ciência: o desfecho do paradigma baconiano-cartesiano-


newtoniano.

1.1.2. O espaço absoluto-relativo e a afirmação empírica: de Newton a Kant

Isaac Newton (1642 — 1727) foi um cientista17 inglês de nascimento, mais


reconhecido como físico e matemático, embora tenha sido também jurista, historiador,
astrônomo, alquimista (ou ―esoterista‖), filósofo ―natural‖ e teólogo (veremos que, assim
como em Bacon e Descartes, sua busca de relacionar o conhecimento racional a Deus, era
tanto um início quanto como um fim a ser almejado). Sua obra, Philosophiae Naturalis
Principia Mathematica, é considerada uma das mais influentes na história da Ciência.
Publicada em 1687, descreve a lei da gravitação universal e as três leis de Newton18, que
fundamentaram a mecânica clássica (ou mecânica newtoniana e física mecânica). Ao
demonstrar a consistência que havia entre o sistema por si idealizado e as leis de Kepler do
movimento dos planetas, foi o primeiro a demonstrar que o movimento de objetos, tanto na
Terra como em outros corpos celestes, são governados pelo mesmo conjunto de leis
naturais (a ciência pelos padrões cartesianos deveria fundamentar leis em busca da
verdade). O poder unificador e profético de suas leis era centrado na revolução científica, no
avanço do heliocentrismo e na difundida noção de que a investigação racional pode revelar
o funcionamento mais intrínseco da natureza. Como veremos, Newton será um dos nomes
de maior influência, tanto no pensamento ocidental quanto na ciência que se
institucionalizará, com o fechamento do paradigma moderno baconiano-cartesiano-
newtoniano. E, para a ciência Geográfica, o seu viés mecanicista de análise sobre as
ciências e sua acepção de espaço, influenciará o que hoje buscamos apreender como
objeto da Geografia oficial: o espaço geográfico.
Após esse breve reconhecimento da persona de Newton, iremos sumariamente
esboçar o que, em nosso entendimento, foram as quatro bases para o desarrolhar dos
fenômenos humanos que afetaram, incisivamente, nosso modo de pensar. A primeira

17
. Pioneiro, pós as especulações metafísicas a se calcar numa linha dita científica de pensamento e
inversamente um dos últimos a ser enquadrado no Renascimento científico europeu, servindo de ―trampolim‖
para ideais iluministas e positivistas, como veremos a seguir.
18
. A forma original de escrita das leis foi em Latim, as quais seriam: Lex I: Corpus omne perseverare in statu suo
quiescendi vel movendi uniformiter in directum, nisi quatenus a viribus impressis cogitur statum illum mutare.
(Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento retilíneo e uniformes não for obrigado a
variar esse estado por forças que atuem sobre ele – lei da inércia de Galileu); Lex II: Mutationem motis
proportionalem esse vi motrici impressae, etfieri secundum lineam rectam qua vis illa imprimitur. (A variação do
movimento é proporcional à ação das forças que se movem e que se produzem na direção da força que atua –
conhecido como lei da aceleração ou princípio de ação: força = massa por aceleração); Lex III: Actioni contrariam
semper et aequalem esse reactionem: sine corporum duorum actiones in se mutuo semper esse aequales et in
partes contrarias dirigi. (A ação é sempre igual à reação, ou a ação de dois corpos um sobre o outro é
constantemente igual e de sentidos opostos – ação = reação; por exemplo: a pedra que está caindo atraia a
Terra com a mesma força com que a Terra a atrai (ENCICLOPÉDIA NOVO SÉCULO, 2002, p. 1574).
33

enunciação seria o fechamento do quadro paradigmático moderno-ocidental (do


pensamento em geral, das ciências e do senso comum) baconiano-cartesiano-newtoniano.
A segunda base seria a acepção de uma ―lei natural universal‖, calcada na lei da gravidade,
que iria normatizar o método científico e a física clássica. Outro pilar, esse mais caro à
Geografia acadêmica, o do espaço absoluto (vazio e imutável), como continente da matéria
em movimento, o espaço relativo – temos deste modo o duplo dicotômico absoluto/relativo.
Fechando esse rol, temos suas grandes influências diretas, desde os ideais Iluministas e
Positivistas até Kant e o Kantismo dele decorrente (de suas leituras filosóficas), ―caindo no
colo‖ direto dos Geógrafos oficiais na busca por um objeto que os atrelem cientificidade,
produzindo o conceito de espaço geográfico.
Adentraremos agora por mais esse vinco no pensamento moderno.
Pelas palavras de Moreira (2007, p. 138), ―uma ordem geral da organização do
mundo, responderá a filosofia que vem na esteira da tradição cartesiano-newtoniana‖. Esses
dizeres trazem implícitos os laços que foram sendo tramados desde o início do
Renascentismo científico, principalmente com Bacon, passado a Descartes e sendo
reformulado de maneira menos metafísica e mais ―exata‖ por Newton. Segundo Camargo
(2005, p. 40), ―Newton integra o empirismo de Bacon à razão de Descartes e ao
mecanicismo‖19, fechando a ―gaveta da razão‖ daquilo que seria a ―construção do que daqui
em diante será a essência da cultura de todo o Ocidente‖ (MOREIRA, 1993, p. 16).
Não poupando exageros, Douglas Santos explicita que Newton foi de fato ―o
realizador do ‗sonho de Descartes‘, isto é, Newton foi cantado em prosa e verso como a
imagem daquele que veio para unificar o conhecimento, dando a ele um corpo consistente e
irrefutável‖ (SANTOS, D.,2002, p. 161). Retirando um pouco das pitadas idealistas, Newton
viria a enquadrar o método de análise de forma mais funcional e de utilidade científica, sem
as especulações metafísicas (embora, como iremos ver, trate de relacionar o escopo da sua
física mecanicista com a acepção metafísica de Deus) cartesianas; buscando as ditas ―leis
naturais‖ que comprovariam a linearidade universal. Assim como o aspecto filosófico estrito
será colocado em segundo plano, a matematicidade cartesiana também será reformulada.
Tal abstratividade como meio, será ―transformado em corpo de ciência por Newton‖
(MOREIRA, 2009, p. 127), onde a observação e a experiência serão as vértebras desse
corpo que será a ciência.
O nome comum de Newton hoje aos nossos ouvidos no pensamento ocidental,
segundo Ribeiro (2006, p. 46), estava ―a conduzir a tocha da racionalidade adiante,
tomando-a das mãos de Bacon, Galileu, Descartes; dando prosseguimento à concepção de

19
. ―A metodologia desenvolvida por Newton compreende a combinação entre o método empírico indutivo de
Bacon e o racional dedutivo de Descartes, destacando que os experimentos necessitam de interpretação
sistemática e que a dedução deve ocorrer a partir de princípios básicos para que uma teoria seja confiável‖
(KOZEL, 2004, p. 163).
34

natureza como algo inteligível pela força da observação e experimentação atenta e racional
do homem‖. Parece fato destinado e irônico, mas, Descartes apesar de ter sido levado
adiante na formulação desse paradigma, já arriscava suas futurologias, realçando as
ciências como fim de todo o saber arbóreo, calcado na metafísica (divinizada) e na física
(explicação exata para o universo eterno e infinito), como nessa citação: ―toda a filosofia é
como uma árvore. As raízes são a metafísica, o tronco é a física e os ramos são todas as
outras ciências‖ (DESCARTES apud., KOZEL, 2004, p. 164).
Esse entrelaçamento de ideias que perpassa Bacon, Descartes e Newton irá
regimentar as acepções que estavam sendo especuladas, dentre elas: a separação entre
homem e natureza; a acepção mecanicista-inorgânica-insensível de natural e/ou animal;
regulamentação de um método científico; espacialidade do mundo como absoluto e um
sistema imutável; busca do entendimento da ―lei natural‖ através da verdade comprovada
cientificamente; fragmentação do conhecimento devido a cada fenômeno; institucionalização
do saber científico; criação da física clássica; e, dentre outros dependendo da análise, a
acepção de espaço, com um duplo dicotômico absoluto/relativo. Este será o quadro do
paradigma moderno por excelência, de um discurso que será hegemônico dentre tantos
outros, até mesmo no ocidente. Vejamos agora, o estabelecimento da física clássica como
leitura de mundo, numa teoria matemática que além de ser calcada na concepção vazia de
espaço, espelhará ideias que nós herdamos até os dias de hoje.
A correlação entre a institucionalização da ciência como reveladora da verdade, a
inauguração da física clássica e a sistematização do universo com uma mecanização
eterna, é a chave para a ―filosofia natural‖ de mundo newtoniana. A concepção advinda de
Descartes do mundo como uma máquina perfeita (como na analogia do relógio), será
consolidada por Newton, sendo seguida e acreditada pelos ramos científicos futuros e pelo
senso público comum. Nas palavras de Kozel (2004, p. 163), ―o universo Newtoniano era um
imenso sistema mecânico, que funcionava com leis matemáticas exatas, sob a força da
gravidade. Isso explica a concepção mecanicista da natureza, que é determinista, pois a
‗gigantesca máquina cósmica é completamente causal e determinada‘‖. Assim, o que é
natural passa a ser matematizado e tudo o que é explicado pela razão matemática se torna
uma ―lei natural‖. Newton irá reformular junto a matematização do universo, ―a queda livre
desenvolvida por Galileu em 1589, aliada à ideia do universo e do movimento de Kepler e
Copérnico‖ (CAMARGO, 2005, p. 40), criando assim a lei da gravitação universal. Não
haveria então criatividade na natureza, no mundo ou na generalização do universo, esse
palco seria absoluto e imutável, sem qualquer modificação. Toda essa estrutura ou lei
levaria a uma concepção mecânica do universo como sincrônico e sempre linear.
Esta nova forma (ou fórmula) de conceber o universo torna-se um modelo de
racionalidade hegemônica, através de um conhecimento que se busca veracidade calcada
35

na formulação de leis, ―tem como pressuposto metateórico a idéia de ordem e de


estabilidade do mundo, a idéia de que o passado se repete no futuro‖ (SOUSA SANTOS,
2002, p. 17). Esta é a fatídica acepção do mundo máquina newtoniano, tendo como início,
fim e meio o pernicioso mecanicismo, importantíssimo para a estruturação de um novo
método científico, fundamentador da ciência moderna, no qual pelo modelo explicativo
newtoniano, o funcionamento da sociedade seria concebido objetivamente como aqueles da
tal natureza20.
Assim, no paradigma moderno, a vida dos homens passa a ser regidos pelas leis da
razão matemática, as formas e modos são racionalmente geométricos, explicado tanto por
causa quanto por efeito pela razão experimental matemática (MOREIRA, 1993, p. 16). O
conhecimento perpassado atrelado à ideia de mundo máquina calcado na lei da gravidade
universal será a base para a consolidação da Física mecânica (ou Física Clássica), como
corpus teórico mais acabado (MOREIRA, 2009, p. 124) porque mais próximo da verdade
última do universo apreendido.
Newton poderá ser visto como o criador da física, sendo ―identificado em uníssono
como físico‖, como cita D. Santos (2002, p. 161), sendo somente ele, dentre Copérnico,
Kepler, Galileu e Descartes, como físico. Seria ele o grande responsável por em primeiro
lugar caracterizar a Física como uma ciência específica; esta não seria somente uma
disciplina, mas o retrato acabado da razão, uma verdade incontestável. Tal busca pela
verdade seria uma tentativa sistematizada para desvendar um tipo de ―Natureza da
Natureza‖ (uma essência da essência), como início e fim, nesse sentido, a Física será o
exercício da verdade, científica, por excelência (ibid.). Porém, o que encobre, menos
fisicamente e mais metafisicamente, esse modelo mecanicista newtoniano são suas três
bases de ordenamento do pensamento: a ideia de um Deus eterno e infinito (absoluto), de
um espaço absoluto, e da relação oposta entre espaço absoluto e relativo.
Como vimos, assim como Descartes, Newton buscara a afirmação da verdade para
se ter uma comprovação da onipotência, onipresença e onisciência de Deus. O primeiro
através do método da dúvida, colocada por Deus no homem para que este apreendesse o
mundo. A razão divinizada. Já Newton, parte de um viés menos metafísico, porém, com uma
mesma finalidade divina, onde através da ciência perfeita (Física), encontraria a verdade
absoluta, infinita e legislativa de todo o universo. Deus como um grande matemático21, ou
um ―arquiteto‖ (como às vezes se faz a leitura hoje em dia). A base seria de que por meio da
linguagem matemática, dando a certeza, o homem conseguiria conhecer e explicar

20
. ―Os resultados podiam naturalmente ser generalizados aos eventos materiais na escala social, da mesma
forma que a lei da gravidade de Newton podia ser aplicada ao corpo humano tanto quanto à maçã, mas, em
ambos os casos, os produtos e os eventos sociais ilustram os princípios científicos não como fenômenos sociais,
mas sim naturais‖ (SMITH, 1988, p. 31).
21
. ―Deus era o gênio da matemática a Newton e que todos os mistérios do „livro da natureza‟ escritos em
linguagem matemática ao homem tornavam-se inteligíveis‖ (RIBEIRO, 2006, p. 46).
36

cientificamente tudo que houvesse na natureza, como num retorno à onisciência de Deus
através da própria benção da razão, que tanto falara Descartes.
Para retratar tal credo newtoniano, nesse Ser que governa todas as coisas, nada
melhor que dar-lhe a palavra e depois fazermos as relações:

ele é eterno e infinito, onipotente e onisciente; isto é, sua duração se estendo da


eternidade à eternidade; sua presença do infinito ao infinito; ele governa todas as
coisas e conhece todas as coisas que são ou podem ser feitas. Ele não é eternidade
e infinitude, mas eterno e infinito; ele não é duração ou espaço, mas ele dura e está
presente. Ele dura para sempre, e este presente em todos os lugares; e, por existir
sempre e em todos os lugares, ele constitui a duração e o espaço. Desde que toda
partícula de espaço é sempre, e todo momento indivisível de duração está em todos
os lugares, certamente o Criador e o Senhor de todas as coisas não pode ser nunca
e estar em nenhum lugar (NEWTON apud., SANTOS, D., 2002, p. 172).

Esta referência é primordial para entendermos a passagem de conceitos,


principalmente no que vai dar alicerces para sua Física. A idéia de infinitude divina e
onipresença são sinonímias para Newton da acepção de espaço absoluto. Pois Deus
constitui a duração (tempo) e o espaço (infinito; absoluto). Pelas palavras de Smith (1988, p.
33), ―Newton veio cada vez mais a identificar espaço absoluto com Deus, e ele insistiu até o
final de sua vida que todas as suas descobertas em Física estavam subordinadas à sua
concepção filosófica de espaço absoluto‖. Esta nada mais era do que o meio, o fim e o
começo de toda a ciência, ora como saber cartesiano ora como espaço absoluto
newtoniano, ou seja, algo inevitável para a humanidade, porque seria seu destino atrelado a
Deus. Tudo que se move nesse espaço absoluto era do conhecimento de Deus para
Newton, pois manifestação de sua presença. Daí, temos uma construção tendenciosa de
uma das categorias mais falaciosas da modernidade: o espaço. Trata-se de uma ideologia
da natureza do espaço!
Falarmos sobre a natureza do espaço (não é ―trabalho de Geógrafo‖ somente) seria
comprovar seu estatuto ontológico, porém o que acontece desde os primórdios da ciência
moderna é um grande impasse, ou melhor, um imbróglio lógico, uma confusão que sempre
remete a uma lógica do espaço, uma construção do pensamento acerca do que ele é. Esse
espaço absoluto newtoniano seria a busca de um conceito para dar suporte à fundação da
física (MOREIRA, 2008). Nas palavras de Camargo, ―a ideia de espaço absoluto associa-se
ao mecanicismo e ao determinismo‖, um determinismo físico. Nesse espaço vazio, estava a
capacidade de recipiente, passivo às ações e movimentos dos corpos, independente de
qualquer outro fator, permanecendo inalterado. Esse receptáculo vazio do conceito lógico de
espaço apresentou-se como simples abstração, ou algo em si mesmo. Seria algo anterior à
natureza, independente e separado da matéria, a separação newtoniana de espaço absoluto
físico e matéria (SMITH, 1988, pp. 111-115). Faz-se pertinente ressaltar que, hoje, quando
tratamos de falar espaço físico nos remetemos ao que é geométrico, natural ou mesmo
37

somente pela forma, os três com características materiais. O desacordo é tanto que
realmente a física clássica está balizada por um espaço vazio e imaterial, algo confuso, pois
o que podemos conceber como matéria? Qual dimensão de partícula? Essas indagações
retomaremos posteriormente. Esta formulação do conceito de espaço físico absoluto
transformou-se numa ortodoxia, científica porque social, por isso necessitava de uma
materialidade, para poder se cimentar de vez. Daí emergiu as maiores confusões.
Segundo ironia de Milton Santos (1978, p. 31), ―foi Newton quem santificou a ideia de
um espaço absoluto e imutável, do qual o espaço relativo apenas seria uma medida‖, ou se
preferirmos citação mais direta, porém com a mesma conotação, temos Smith (1988, p.
112), no qual ―foi somente com Newton que a distinção entre espaço absoluto e espaço
relativo se tornou explícita‖. Para entendermos uma parte curiosa do pensamento
newtoniano, iremos retomar à sua obra mais influente Princípios matemáticos da filosofia
natural. Nela acontecem confusões lógicas de identificações e objetivos, com uma lista de
dualidades, como: absoluto/relativo, verdadeiro/aparente e matemático/vulgar. Tem-se a
distinção entre o vulgar (aparente-relativo) e o matemático (absoluto-verdadeiro) (SANTOS,
D., 2002, p. 164).
Dessa confusão acaba por emergir a dicotomia absoluto/relativo para o espaço
newtoniano. Por esse motivo o que estava posto por seus antecessores, como Descartes,
de que o absoluto era condição para o relativo, foi um elo para o segmento ante os
problemas metafísico e dualista das idéias de Newton. Ocorrera ―um redimensionamento da
relação entre o res-extensa e o res-cogito cartesiano‖ (ibid., p. 173), aquilo segundo Moreira
(2007) de que a física newtoniana é o veículo de materialização do mundo espaço
geométrico cartesiano. O mundo não aparece como espacial nessa trama, ele está no
espaço. A relação que surge entre absoluto e relativo para a física de Newton seria de
continente e conteúdo, o que na leitura de Moreira seria:

o espaço absoluto é o espaço vazio, contínuo, finito e isotrópico; o relativo é o


espaço absoluto em sua empiricidade do preenchido pelos corpos, por isso, por
referência a eles, cheio, descontínuo, infinito e diferenciado. Há o espaço-continente
e o que ele se torna quando é ocupado pelo conteúdo (MOREIRA, 2008, pp. 59-60).

Ou, se quisermos ―beber da fonte‖ do próprio Newton em suas especulações:

o espaço absoluto, em sua própria natureza sem relação com qualquer coisa
exterior, sempre permanece semelhante e imóvel. O espaço relativo é uma
dimensão ou medida em tanto mutável dos espaços absolutos, que nossos sentidos
determinam por sua posição em relação aos corpos (NEWTON apud., SMITH, 1988,
p. 111).
38

Como se pode perceber a influência newtoniana na acepção moderna de espaço é


crucial. Mas, outras foram as influências desse físico, que carregou consigo a ―gaveta
fechada‖ do paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano. O determinismo mecanicista,
utilitarista e funcional da mecânica newtoniana, como um dos pilares da idéia de progresso
irá dar suporte ao Iluminismo e ao Positivismo, com seu modelo de racionalidade
perpassado do ―natural‖ para o social. Temos então ―o grande projeto iluminista em construir
uma sociedade baseada na razão, o qual possuía como pilar a liberdade do pensamento e o
progresso, estruturou-se na certeza matemática newtoniana‖ (CAMARGO, 2005, p. 43,
grifos nossos), o que irá acontecer com o positivismo, de assentar ―seus postulados na
coisificação física e biológica das partes que compõem o mundo, uniformizando as
diversidades e criando um projeto que garanta uma natureza ao alcance permanente de seu
controle e domínio‖ (ibid.).
Para a Geografia científica, em especial, além das influências claras do Positivismo e
do Iluminismo, outro fator forte foi a absorção das acepções de espaço newtonianas por
Kant e posteriormente, através de suas leituras, no Kantismo. M. Santos (1978, p. 31) nos
dá um breve apontamento, quando fala que ―se assemelham a noção newtoniana de espaço
absoluto e as de espaço absoluto e espaço continente de Kant e seus herdeiros
intelectuais‖. Esses herdeiros sendo os leitores de Kant na Geografia, interpretando alguns
de seus tratados e aulas sobre o espaço, a metafísica e a Geografia física.
Concordamos novamente com as palavras de Moreira (2007), sobre a não
neutralidade desses acontecimentos, pela transição capitalista em relação com a religião e a
ciência. As intencionalidades existem e deixam seus rastros. Esse espaço como
externalidade ou distinto do real é consequência de um ―ardil da razão‖ (ibid., p. 138) e ainda
hoje no senso comum é o conceito que prevalece. Ele é ―simplesmente um dado universal
da existência‖ (SMITH, 1988, p. 111). Mas, a natureza desse espaço é produzida
socialmente pelo pensamento fruto da existência humana como a conhecemos e assim
acaba influenciando nossas relações cotidianas com o termo, noção, conceito ou categoria.
Veremos agora a apropriação kantiana desse conceito em sua metafísica, e que nas
ciências que aos poucos foram emergindo das gavetas cartesianas, a necessidade de um
conceito-chave foi tornando-se uma obsessão. Até nas que, como a Geografia, ―migraram‖
do rol natural para social tiveram influências. E mesmo o espaço tido como social, produzido
ou arranjado de hoje na ciência Geográfica, nada mais é do que essa problemática lógica de
um espaço social subjugado a um espaço físico, e um objeto sobredeterminando um sujeito.
Vejamos agora uma pouco dessa história em Kant.
Em um de seus aforismos impetuosos e corajosos, o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche (2007a, p. 60) coloca-nos o seguinte ponto de vista crucial para adentrarmos no
debate iluminista, kantiano e geográfico: ―o homem agora é mais maldoso do que nunca. (...)
39

Porque agora tem, necessita ter, uma ciência!‖. O que nos remete ao entendimento seria
que após a institucionalização do conhecimento científico enquanto tal, via do que
entendemos como paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano, na chamada ―era
moderna‖, fora algo que aproximara o homem mais de uma existência estranha a si mesmo,
e principalmente, através da ciência (como verdade instituída), justificar, cimentar e propor
as atitudes perniciosas em prol do progresso humano e contra a vida. Nesse sentido é que a
ciência toma os ―ares de malícia humana‖, num círculo vicioso de estranhamento22 e
necessidade científica. E o novo modo de pensar hegemônico-europeu-ocidental será
calcado em algumas premissas científicas, de método e de condução do pensamento, das
bases paradigmáticas das quais expusemos.
Este novo modo de ser (mais do que um modo de pensar) é o Iluminismo. Ele
encontra-se baseado em premissas do paradigma científico supracitado, principalmente,
pelas repercussões européias das idéias e práticas newtonianas. Para Capra (1986, p. 63),
―a teoria newtoniana do universo e a crença na abordagem radical dos problemas humanos
propagaram-se tão rapidamente entre as classes médias do século XVIII, que toda essa
época recebeu o nome de Iluminismo‖. Tal movimento, da ―Ilustração‖ ou ―Século das
Luzes‖, é calcado na filosofia barroca do século XVII, que assumiu em sua característica
particular, um estado de divulgação em consonância com o crescente aburguesamento do
modo de ser europeu-ocidental. Acompanhou-se então o crescimento econômico
protagonizado pela burguesia. A concepção de mundo, já pré-formatada, é estabelecida
como um conjunto regulamentado no pensamento newtoniano e o antropocentrismo
balizado na razão (algo também cimentado pelo pensamento cartesiano), onde se tentou
representar a diferente forma do pensamento iluminista, uma nova ciência em nome da
natureza, da razão e da humanidade (três frutos do pensamento baconiano-cartesiano-
newtoniano). Kant culmina a vertente de pensadores iluministas como: Herder, Wolff, Hume,
Locke, Voltaire, Bentham, Montesquieu, Benjamin Franklin, Rousseau, Diderot, Adam Smith,
entre outros (ENCICLOPÉDIA NOVO SÉCULO, 2002, p. 1159).
Immanuel Kant (1724 – 1804) nasceu, estudou, lecionou e morreu em Königsberg.
Jamais deixou essa grande cidade da Prússia Oriental (somente se ausentando na época
em que atuou como preceptor, após a morte de seu pai, em famílias nobres), cidade
universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de
nacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. Kant sofreu duas influências
contraditórias: a influência do pietismo, protestantismo luterano de tendência mística e
pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi
a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, além da influência do racionalismo: o

22
. Retomaremos a discussão sobre estranhamento no segundo capítulo deste trabalho.
40

de Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da Aufklärung (a Universidade de


Königsberg mantinha relações com a Academia Real de Berlim, tomada pelas novas ideias).
Acrescentemos a literatura de Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a
literatura de Russeau, que o sensibilizou em relação do poder interior da consciência moral,
com a ciência física-matemática de Isaac Newton. Estes homens, ―donos‖ de pensamentos
iluministas e vanguardistas à época, fundamentam a filosofia crítica kantiana23. Kant se
embasa nos caminhos da indubitável verdade física de Newton, assim como do valor das
regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado. Estando no período do
Iluminismo, todos os ―bons espíritos‖, de acordo quanto à verdade das leis de Newton, Kant
adentrará nas formulações mecanicistas newtonianas (tendo um rompimento somente mais
tarde, no período maduro, na obra chamada de ―terceira crítica‖), incorporando ―fielmente a
tradição do pensamento‖, como nos esclarece Douglas Santos (2002, p. 181).
O filósofo alemão dará prosseguimento em sua obra a influencia da conjuntura
científica, na qual estava inserido segundo Martins (2003, p. 55). Já em 1755, publica
História geral da natureza e teoria do céu, baseado nos princípios físicos mecanicistas de
Newton, defendendo a teoria denominada Kant-Laplace. Conforme cita D. Santos (2002, p.
185), após o legado de leitura de mundo do séc. XVIII, Kant fará a síntese do que seria o
mundo como cenário. Essa leitura dará prosseguimento às idéias dicotômicas de mundo,
como ressaltam Quaini (1992, p. 65): ―na base do criticismo kantiano, existe, de fato, a
separação entre natureza e historia ou sociedade humana‖, e Moreira (1993, p. 27): no qual
Kant deixara a experiência na relação homem-mundo, ou sujeito-objeto; e da dicotomia
sustentada por Kant espírito/natureza por força de na base de seu sistema filosófico estar a
Física newtoniana. Temos a linearidade dos paradigmas advindos de outrora com diversas
nomenclaturas, chegando à Kant como: homem/natureza; pensamento/mundo;
sujeito/objeto; e, o mais caro à Geografia científica, homem/espaço. M. Santos (1978, p. 31)
dirá que Kant fará uma noção rediviva do espaço receptáculo newtoniano, como um
continente, e por isso de nossa escolha de sua leitura finalizando essa parte, pela sua
influência tanto na institucionalização da ciência geográfica, quanto na acepção que temos
de ―espaço‖. Aquilo que podemos sintetizar na frase de D. Santos (2002, p. 175), em que
―Kant é a síntese maior da vertente hegemônica do pensamento burguês, e sua influência
sobre todos os campos do conhecimento científico – e, particularmente sobre a geografia –
é inegável‖. Também temos a confluência de um impasse com um paradigma geral; o
―impasse aristotélico-kantiano‖ aberto para discussão por Armando Corrêa da Silva24 e o

23
. Veja algumas abordagens também sobre o histórico de Kant em: CLAVAL, 1995; ENCICLOPÉDIA NOVO
SÉCULO, 2002, p. 1303. Ou consulte o sítio eletrônico www.mundodosfilosofos.com.br/kant.htm.
24
. Para Silva (1988, p. 6) ficava a dúvida de ―como resolver o impasse aristotélico-kantiano?‖, este que trata
segundo Martins (2003, p. 41) de: ―o fundamento lógico seria a lógica formal (Aristóteles) e a concepção de
espaço advinda de Kant‖.
41

paradigma de ciência baconiano-cartesiano-newtoniano, que irá render o ―fruto do pecado


geográfico‖: o espaço cartesiano-newtoniano-kantiano – que gestará a fórmula
espaço→homem na Geografia25.
Nesse momento, que antecede a formulação do espaço geográfico, teremos uma
abordagem da filosofia de Kant, no qual dividiremos em três etapas de escrutínio crítico
sumariado (pois não é nossa intenção adentrar em detalhes nas obras kantianas, mas
mostrar suas influências na ciência geográfica) acerca da acepção de espaço do filósofo
alemão. Perceberemos a passagem de uma abordagem do absoluto, em si, para o duplo
absoluto/relativo, por parte de Kant com o passar dos anos e das suas obras.
Na primeira etapa, temos o que fora reunido como sendo uma coletânea de textos
encadeados, chamados pré-críticos, por antecederem cronologicamente as obras intituladas
críticas (o período crítico reúne as três obras consideradas bases de seu pensamento
tratado como ―Criticismo – idealismo transcendental‖ (MORENTE, 1970, p. 433), do qual
abordaremos a ―primeira crítica‖), mais especificamente na obra Em torno do primeiro
fundamento da distinção das regiões do espaço, do ano de 1768.
Segundo Martins (2003, p. 42, grifos nossos), nessa obra de 1768,

encontramos o filósofo preocupado em construir uma prova evidente, presente nos


juízos intuitivos relativos à extensão, da existência de um espaço absoluto, ou seja,
um espaço que seja independente da existência de toda a matéria, admitindo-lhe,
com isto, uma realidade própria.

Conforme as partes que destacamos, a influência sofrida por Kant remete ao que
fora dito por Descartes (com a natureza do espaço sendo a extensão) e por Newton, através
de seu conceito de espaço absoluto. Essa concepção kantiana do espaço como
universalmente absoluto e exterior às coisas, é o que Kant quer demonstrar, segundo a
elucidação de Martins (ibid., p. 43), de ―que o fundamento da determinação da forma
corporal não está exclusivamente na relação e na situação das suas partes umas com as
outras, mas, também, principalmente, na situação que mantém com o espaço absoluto em
geral‖. Seria, grosso modo, que os corpos ou matérias corpóreas, assim como nós, não são
espaciais, mas sim estão em relação uns com os outros situados no espaço absoluto (uma
prévia do absoluto/relativo).

25
. Queremos deixar bem claro que não viemos fazer totalmente uma crítica das ―críticas‖ de Kant ou de sua
―malévola influência‖ à Geografia científica contemporânea. O que deve ser apreendido (e iremos expressar em
outras circunstâncias) é que a problemática dessa leitura de espaço foi exatamente de quem a leu e como ela foi
tomando ―corpo‖ científico, não puramente por Kant, mas através de sua leitura em certos momentos, engessada
de apenas algumas obras por certos Geógrafos com o passar dos anos. Queremos expressar também que a sua
leitura do espaço absoluto, como coisa em si, anterior a qualquer experiência humana, sendo um a priori,
combina em parte com nossas aspirações da problemática do ser e do espaço, que serão abordadas no próximo
capítulo, claro que sem prendermos o olhar fixado em Kant.
42

A conclusão kantiana admite que o espaço, como absoluto, ―não é objeto de uma
sensação exterior, mas um conceito fundamental‖ condicionando-lhe a possibilidade.
Somente se diz respeito dos corpos em ―sua relação com o espaço puro‖ (KANT apud.,
MARTINS, 2003, p. 44). Temos então a prévia do que viria, na próxima obra que
analisaremos, a ser o espaço absoluto, ou a priori – o espaço puro.
A obra tomada agora para a segunda etapa de análise é a ―famosa‖ Crítica da razão
pura de 178126, será o foco de seu esforço filosófico em elaborar a chamada Estética
Transcendental. Na ―primeira crítica‖ será justamente ―quando Kant coloca os primeiros
movimentos de todo o seu ‗sistema‘‖ (SANTOS, D., 2002, p. 175), o que segundo Hansen
(2000, p. 62), será o ―percurso no sentido de dar conta das questões que são fundamentais
para a espécie humana‖, como: que posso saber?; que devo fazer?; e, que me é permitido
esperar? Busca então Kant, com essas inquietações, a demonstração dos limites por onde
dos quais o conhecimento torna-se possível. Será uma forma de medida kantiana, onde seu
esforço será de ―permitir à razão ter medida de verdade em relação aos objetivos da
realidade. Sem o que, nenhuma ciência seria possível‖ (MARTINS, 2003, p. 45). Um esforço
gnosiológico para a razão percorrer e ter certeza da verdade (novamente temos a idéia de
verdade nos modo de pensar europeu-ocidental), tendo como base para seu esforço a física
(clássica newtoniana) e a Metafísica, através de juízos sintéticos a priori.
Através do que o próprio filósofo alemão irá tratar como Filosofia transcendental, via
do apriorismo da sensibilidade, temos a estética transcendental. Assim forma-se a intenção
de Kant em ―tornar científica‖ a metafísica.
Essa estética seria uma teoria das formas da sensibilidade a priori. Esta seria uma
nova ciência, que trataria ―das duas formas puras da intuição sensível, como princípios do
conhecimento a priori: o espaço e o tempo‖ (BRASIL, 2005, p. 25). O parâmetro dessa
ciência metafísica kantiana seria da construção do conhecimento, relembrado as bases
dicotômicas, na ―forma pela qual o sujeito relaciona-se com o objeto‖ (SANTOS, D., 2002, p.
176), buscando a tal verdade com precisão!
Essa ciência da sensibilidade a priori está calcada nas dicotomias que foram sendo
conformadas e cristalizadas no modo de pensar científico. Vejamos alguns exemplos.
D. Santos (ibid., p. 176) explicita o esquema kantiano, que irá dar continuidade às
dicotomias científicas, como: ―objetosujeito (sensibilidadeintuiçãoconceito), isto é, o
sujeito ao se relacionar com o objeto o faz pela via da sensibilidade e, com base nela, intui o
que é o objeto para depois construí-lo mentalmente, na forma de conceito‖. Temos
novamente o enclausuramento da razão através da construção mental do objeto culminando
no conceito. Percebemos então a fórmula: sujeito do conhecimentoobjeto a ser

26
. Martins (2003) ressalta que tal trabalho fora feito em ―duas versões‖ (uma em 1781 e a outra em 1787), sendo
a segunda fruto do amadurecimento da forma de passar as idéias filosóficas de Immanuel Kant.
43

conhecido→conceito. Nas palavras do próprio Kant (2001, p. 87), temos: ―o efeito de um


objeto sobre a capacidade representativa, na medida em que por ele somos afetados, é a
sensação. A intuição que se relaciona com o objeto, por meio de sensação, chama-se
empírica. O objeto indeterminado de uma intuição empírica chama-se fenômeno‖.
Assim, nos deparamos com o a posteriori, relacionando objeto e sensação empírica
do sujeito. Para o a priori, como aquilo que independe de qualquer relação ou existência do
sujeito, ou de qualquer matéria com o fenômeno, como uma intuição pura, vejamos uma
passagem posterior de Kant (ibid., p. 88):

chamo puras (no sentido transcendental) todas as representações em que nada se


encontra que pertença à sensação. Por conseqüência, deverá encontrar-se
absolutamente a priori no espírito a forma pura das intuições sensíveis em geral, na
qual todo o diverso dos fenômenos se intui em determinadas condições. Essa forma
pura da sensibilidade chamar-se-á também intuição pura.

Esta distinção entre phaenomena e noumena, entre fenômeno e coisa em si, irá
posteriormente balizar as proposições do duplo espaço absoluto/relativo kantiano e suas
influencias para a ciência geográfica. Por ora, nos detemos com o que prossegue na
tentativa de calcar a Metafísica com o paradigma científico, suas dicotomias, entre sujeito e
objeto. Ainda mais, provocando um idealismo através da elaboração do conceito: que será a
acepção de espaço como lógico e não ontológico.
Através da análise de Brasil (2005, p. 26), podemos apreender que Kant, escolhera o
exame racional sobre a natureza do espaço, pois essa problemática estava em voga na
ciência base do modo de pensar ocidental, a Física. Desta forma, como Kant pretendia
fundar com a filosofia transcendental uma Metafísica científica, necessitava uma veracidade
das ciências. Por isso o esforço sobre o espaço, assim como as bases e problemas das
ciências de seu tempo. Na exposição metafísica do conceito de espaço, em sua primeira
expressão Kant (2001, p. 89) exclama que ―por intermédio do sentido externo (de uma
propriedade do nosso espírito) temos a representação de objetos como exteriores a nós e
situados todos no espaço‖. Desse modo irá enumerar o conceito de espaço segundo sua
acepção metafísica, ou a priori, em si: ―1) O espaço não é um conceito empírico, extraído de
experiências externas (...) a representação de espaço não pode ser extraída pela
experiência das relações dos fenômenos externos‖; dessa forma o espaço kantiano somente
existe enquanto representação externa, não no sujeito, sendo então as coisas dispostas no
espaço. ―2) Consideramos, por conseguinte, o espaço a condição de possibilidade dos
fenômenos, não uma determinação que dependa deles; é uma representação a priori, que
fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos‖; temos aqui a independência
recíproca entre matéria e espaço, entre o ontológico e o em si. ―3) O espaço não é um
conceito discursivo ou, como se diz também, um conceito universal das relações das coisas
44

em geral, mas uma intuição pura (...) uma intuição a priori, com uma certeza apodítica‖; aqui
tal concepção de espaço exterior à matéria é apresentando com uma natureza evidente e
indubitável. ―4) O espaço é representado como uma grandeza infinita dada (...) é assim que
o espaço é pensado (pois todas as partes do espaço existem simultaneamente no espaço
infinito). Portanto, a representação originária de espaço é intuição a priori e não conceito‖;
nessa última assertiva, o espaço é algo ainda mais abstrato que o próprio conceito, pois é
metafísico, anterior como uma essência infinita. É anterior ao próprio conceito (KANT, 2001,
pp. 90-92).
Para o Kant da ―primeira crítica‖, assim como o espaço não pode ser algo interior ao
sujeito, o espaço se dá como uma função da sensibilidade que permite colocar em forma ou
ordenar (arranjar) os sentidos externos. Isso fica bem claro em sua exposição
transcendental do conceito através da frase: ―o espaço não é mais do que a forma de todos
os fenômenos dos sentidos externos‖ (ibid., p. 93). Segundo as explicações de Martins
(2003, p. 55), o espaço (assim como o tempo) em Kant tornou-se atributo a priori em sua
representação empírica. Deixou de constituir modo de existência do ser. Essa forma do
sentido externo do espaço, o torna aparato da razão que torna possível o próprio
conhecimento; assim o espaço emerge ―como organização externa‖ (HANSEN, 2000, p. 63),
elemento que arranja espacialmente as constituições e planos da razão humana – o arranjo
espacial.
Partiremos agora para a terceira e última etapa desta análise sumariada do ―Kant
filosófico‖, para posteriormente ver sua ―atuação‖ nos primórdios da Geografia como ciência.
Tal etapa consiste nas implicações que Kant irá desdobrar de sua ―primeira crítica‖. A
obra seria: Princípios metafísicos da ciência da natureza; que fora realizado no ano de 1785,
portanto, entre as duas edições de sua Crítica da razão pura. O que importa para o
segmento de seu modo de pensar é que viria quatro anos após a obra anterior (com seu
processo de elaboração concomitante à Crítica da razão prática – ou ―segunda crítica‖),
tendo como base as aplicações dos conceitos e métodos já explicitados. Martins (2003, p.
55) utiliza-se de Mourão para afirmar que o propósito de Kant com os ―princípios‖, ―era ser
um complemento à Crítica‖, colocando assim ―a serviço da ciência da natureza todas as
categorias desenvolvidas na Crítica‖.
Entrando na obra de Kant via de Martins27, no capítulo inicial de seus ―princípios‖,
denominado de ―Primeiros princípios metafísicos da foronomia‖, sua consideração será
elaborada em série, de cinco definições. Estas que serão ―sobre o movimento da matéria no
espaço‖ (ibid.). Nesse momento podemos ver o surgimento da relação entre materialidade e

27
. Que fique clara a nossa leitura das idéias de Martins (2003) sobre a obra kantiana, especialmente nos
―Princípios‖. Como se trata apenas de um segmento para um encadeamento sumariado, suas observações e
citações foram de bom grado para nosso objetivo por ora.
45

espaço relativo, e também a dicotomia newtoniana chegando até Kant: a do espaço


absoluto/relativo. Vejamos nessa passagem: ―o espaço, que é também móvel, chama-se
espaço material, ou ainda o espaço relativo; aquele em que, por fim, se deve pensar todo o
movimento (...) chama-se o espaço puro ou também absoluto‖ (KANT apud., MARTINS,
2003, p. 56). O que nos chama atenção é justamente como expusemos a relação entre
materialidade e espaço relativo, acrescido do movimento dos corpos para gerar a relação,
no espaço absoluto, como um continente ou receptáculo dessa matéria em relação
(movimento) – a dicotomia está posta!
Para um esclarecimento ainda mais embasado, vejamos novamente as palavras do
filósofo alemão:

o espaço seria apenas a forma de toda a intuição sensível externa (...). Em toda a
experiência, algo deve ser sentido e isso é o que há de real na intuição sensível;
portanto, também o espaço, em que devemos estabelecer a experiência dos
movimentos, deve ser suscetível de sensação, isto é ser designado pelo que pode
sentir-se; e este, enquanto complexo de todos os objetos da experiência e ele
próprio um objeto da mesma, chama-se espaço empírico. Mas, enquanto material,
também é móvel. Um espaço móvel, porém, se é que seu movimento se deve
percepcionar, supõe, por seu turno, um outro espaço material alargado, em que ele
é móvel, este (supõe) um outro, e assim por diante até o infinito (ibid.).

É de suma importância destacar a solução que Kant faz para poder dar corpo em sua
obra metafísica ao duplo espaço absoluto/relativo newtoniano. Sendo esse espaço absoluto
a priori (como vimos na ―primeira crítica‖ e no começo desta citação), ele deixa-se habitar
por um espaço em que os movimentos da própria experiência sensível lhe dão
materialidade. Esse espaço palpável de relações é um complexo e nesse sentido unido ao
absoluto tem-se sua porção relativa, o chamado por Kant de ―espaço empírico‖. A dicotomia
está posta em Kant, e a relação entre o imaterial infinito do espaço absoluto (a priori) e o
material do espaço empírico relativo (a posteriori) perpassarão ao pensamento da ciência
geográfica como seu objeto. Martins (2003, p. 58, grifos nossos) sintetizará esse ponto de
vista na frase, ―mediante o espaço absoluto, podemos nele pensar os espaços relativos, e,
por conseguinte, não devemos tomá-los como partes constitutivas do espaço absoluto‖.
Temos aí a percepção de que o espaço absoluto não pode ser apreendido como objeto,
mas coisa em si e anterior à existência; a partir dele podemos pensar cientificamente o
objeto material, que seria nosso espaço relativo. A Geografia científica herdará por meio
dessas acepções kantianas, e de sua prática letiva de ―Geografia física‖, as leituras das
dicotomias científicas: sujeito/objeto; homem/espaço (ou homem/meio); sociedade/natureza
(e também paisagem cultural/paisagem natural) – esta síntese perniciosa e linear tornar-se-
á a fórmula espaço→homem na Geografia científica.
Para Ribeiro (2006, p. 52), foi pela concepção de espaço cartesiano-newtoniano-
kantiano que,
46

o espaço geográfico burguês fez-se configurado como palco geométrico à exterior


natureza-máquina que se tenta decompor analiticamente com vistas a que na
posterior remontagem se tenham em mãos as leis mecânicas dos movimentos
causal e gravitacional de que ―os homens‖ devem prático-racional-instrumentalmente
tirar proveito.

E assim, na geografia científica, tivemos uma ―domesticação espacial‖ por essa


clausura, no qual todos os atos civilizatórios do ocidente europeu foram justificados e postos
como verdade conceitual absoluta. Ciência e ―sociedade‖ (ou existência humana) não
caminham separadas, mas de mãos dadas e unidas pelos mesmos interesses. Esse ―legado
kantiano do idealismo espacial transcendental‖, nas palavras Soja (1993, p. 153), a nosso
ver, irá abarcar os pilares iniciais da ciência geográfica, na sua institucionalização e busca
de objeto, e complementar as dicotomias e interesses do seio da sociedade burguesa,
culminando na ―explosão‖ do Iluminismo. Nesse sentido a leitura de Kant faz-se
imprescindível, e agora, a partir destas premissas partiremos para o derradeiro fato, que é a
análise das idéias dos Geógrafos profissionais, que fizeram da Geografia científica uma
clausura de estudo do espaço (lógico) geográfico – como objeto apartado do sujeito e da
existência, e se formos analisar a fundo, a maioria de nós está embaraçado nesta ―camisa
de força científica‖.

1.2. O espaço geográfico: a fórmula espaço→homem na Geografia científica

Em seu artigo ―A noção do espaço em Geografia‖, Reynaud (1986) observa que,


para se poder compreender a noção de espaço presente no pensamento geográfico,
devemos retomar as ideias de Kant. Este mesmo autor cita Hartshorne, que em seu artigo
rotula Kant como um dos fundadores da Geografia como ciência do espaço. Em suas
palavras, ―Kant, foi o primeiro alemão que, de longe, estabeleceu o conceito que estamos
considerando‖ (HARTSHORNE, 2006, p. 31).
Para dois outros Geógrafos, a ligação da herança kantiana de espaço e a relação
entre a Geografia científica e seu objeto é fato, e deve ser averiguada. O primeiro é Martins
(2007, p. 37), afirmando que ―é recorrente observarmos a associação entre espaço e
Geografia‖, sendo que ―o que temos aí é a velha e tradicional herança kantiana‖. Este fato é
visível em vários trabalhos contemporâneos em Geografia (veremos isso em breve) que
chegará a ser apreendido como objeto de estudo da Geografia científica, desde sua
institucionalização ou gênese com os Geógrafos alemães dos séculos XVIII e XIX. O
segundo autor é D. Santos (2002, p. 188), que nos alerta, para o fato de que ―pensar a
geografia que hoje conhecemos sem levar em consideração as bases em que ele a
constituiu seria, no mínimo, temeroso‖; também expõe que esse espaço kantiano, mesmo
47

sendo elaborado e cultivado bem antes do próprio Kant (o que vimos alhures trazido a Kant
por Newton) fora o filósofo alemão que lhe dará o corpo teórico definitivo, chegando até aos
dias de hoje na Geografia científica.
Esse espaço kantiano, do duplo absoluto/relativo, mesmo que não tão explícito como
no próprio Kant, irá permear quase toda a ciência geográfica, desde os ―primordiais‖
Humboldt e Ritter até chegarmos à Geografia ―radical-crítica‖, de influência marxista ou não,
como veremos posteriormente. Para Camargo (2005, p. 90), tal fenômeno ocorre ―porque a
efetiva ideia do espaço absoluto associa-se à própria concepção da lógica e, portanto, da
realidade‖; acrescentamos a este espaço absoluto o relativo, pois tanto as idéias de análises
regionais, diferenciação de áreas, paisagem cultural e espaço socialmente produzido, dão
ao absoluto as relações materiais que caracterizam a empiria deste a priori, que passa do
em si para o lógico.
Para repensarmos a gênese da Geografia moderna, devemos antes de adentrar em
Humboldt, Ritter e Hettner, averiguarmos as ―atuações em Geografia (física)‖ de Kant. Para
D. Santos, e concordamos com tal exposição, ―Kant é a marca da institucionalização do
discurso geográfico enquanto tal‖ (2002, p. 174), sendo nesse sentido ―lato sensu, o primeiro
responsável por sua institucionalização‖, no qual temos duas idéias do que seria essa
―institucionalização da ciência geográfica‖ (ibid., p. 183): 1) ―identificar os primeiro
movimentos na transformação da geografia em disciplina acadêmica‖; 2) ―evidenciar o fato
de ser Kant que, ao fazê-lo, procura identificar e sistematizar um corpo teórico metodológico
que dê à geografia um estatuto epistemológico específico‖ (ibid., nota do autor com número
14 no original).
Tais fatos serão expostos pelo texto reproduzido de seus cursos ministrados durante
as férias escolares, na Universidade de Königsberg na qual era professor de Filosofia e de
Geografia. Buscaremos, na breve análise da introdução deste texto, entender o porquê da
Geografia ter se tornado uma ciência do espaço, apreendendo-o em sua descrição lógica
em contrapartida de uma posição ontológica da realidade.
Neste texto, teremos as notas da atividade de docência do ―que hoje chamamos
‗geografia física‘‖ (MOREIRA, 1994, p. 23), mais precisamente na conferência introdutória da
qual Kant encarregar-se-á de contrastar História e Geografia sob o ponto de vista das
chamadas ciências sistemáticas, ―cada uma se definindo em termos de categorias e
fenômenos‖ (HARTSHORNE, 2006, p. 13). Kant propriamente não publicará essas notas de
aulas. Segundo Tatham (1959, p. 205), tais aulas foram ministradas ―de 1756 a 1796,
durante cujo período deu cursos quarenta e oito vezes‖ (no mínimo); sendo Kant em sua
prática o que de costume se trata como ―geógrafo de gabinete‖, e seus discursos não eram
sobre um debruçamento empírico da natureza Terrena e sim de ―pesquisa filosófica de todo
48

o ramo do conhecimento empírico‖ (ibid.). Buscava assim a definição da natureza e


metodologia da Geografia, e sua relação com as chamadas Ciências Naturais.
Vamos agora à Introdução à Geografia física (uma aula introdutória) de Kant, ―aquilo
que foi considerado a herança por excelência deixada por este filósofo para a ciência
geográfica‖ (MARTINS, 2003, p. 58). É ressaltada sempre a discussão sobre o próprio título
desse breve texto-aula importantíssimo. Temos o dilema entre os termos ―introdução à
geografia física‖ e ―introdução à descrição física da Terra‖. Segundo Arantes, autor da
tradução que utilizaremos, a tradução do vocábulo Geographia se apresentou de duas
maneiras na língua alemã. Tal dubiedade pode ser traduzida para o idioma português como
Geografia ou Descrição da Terra, sendo seguido pelo adjetivo physisch-, que pode remeter
tanto à física ou natureza (de acordo com o vocábulo grego physis)28. Podemos perceber
então já uma relação entre Geografia e descrição física da Terra; uma ciência que em sua
gênese vai tomando ares descritivos, e, como veremos, espaciais.
Martins (2003, p. 59) ressalta que ―Kant estabelece as fontes do nosso
conhecimento‖ tomando ―um duplo sentido, um externo e um interno, mediante os quais é
dada, respectivamente, de um lado a Natureza e de outro a alma ou o Homem‖. Seria a
síntese de nosso conhecimento ―do mundo‖, a dualidade homem/natureza cientificamente
encontrará seu leito na Geografia, no qual ―sobre o Homem nos ensina a antropologia e
sobre a natureza nos é dado saber pela geografia física‖ (ibid.). Podemos encontrar tal
observação em Tatham (1959, p. 205), onde o autor sumaria a análise kantiana da seguinte
forma:

o mundo, visto através da percepção subjetiva, é a alma (Seele), ou o homem,


(Mensch), (isto é, o eu); através da percepção objetiva é a natureza. A antropologia
(Kant faz uso da antropologia segundo a concepção moderna da psicologia) estuda
a alma do homem; a geografia física (Physische Geographie oder Erdbeschreibung)
estuda a natureza. Assim, a geografia física é a primeira parte do conhecimento do
mundo (Weltkenntnis) na verdade é a preliminar essencial (Propaedeutic) para a
compreensão de nossas percepções do mundo.

Assim nesse discurso de Kant, como explica D. Santos (2002, p. 184), ―identifica o
posicionamento do homem em contraposição ao posicionamento da Natureza, do mundo ou
da Terra‖, a dicotomia básica sendo reforçada na Geografia pela contraposição ―entre o
sujeito que pensa a si mesmo e o sujeito que identifica sua alteridade e, efetivamente, o
mundo, a natureza, é sua alteridade‖. Para confirmarmos tal externalidade, nada melhor que
as exposições do próprio Kant (2007, p. 122), vejamos:

28
. Para maiores detalhes sobre a publicação e traduções deste texto, consultar Arantes (2007, pp. 177-119). Os
comentários sobre a terminologia do texto por aqui apresentados encontram-se na nota do tradutor, página 121
no original.
49

as experiências que nós temos da natureza e do Homem constituem juntas os


conhecimentos do mundo. O conhecimento do Homem nos é ensinado pela
Antropologia [Anthropologie]; devemos à geografia física [physschen Geographie] ou
descrição da Terra [physischen Erdbescheibung] o conhecimento da natureza.
(...)
A descrição física da Terra [physische Erdbescheibung] é, então, a primeira parte do
conhecimento do mundo. Ela pertence a uma idéia, a qual se pode denominar de
propedêutica no conhecimento do mundo.
(...)
A outra parte do conhecimento do mundo trata do conhecimento do Homem. O
contato com os homens amplia nossos conhecimentos. No entanto, é necessário
fazer um exercício preliminar para todas as experiências futuras desse tipo, e isso é
realizado pela antropologia.

Esse posicionamento de que a Geografia seria uma ciência cujo estudo é uma
preparação ao estudo de outra ciência (propedêutica ou essencial), inicia os caminhos
descritivos dessa ciência em germe. Martins (2003, p. 60) colocará também que ―Kant
desenvolve a preocupação de que é necessário que tenhamos uma perspectiva da
totalidade do mundo. (...) Pois crê que no sistema, o todo está entre as partes‖. Nesse
sentido vai formando-se um posicionamento enciclopédico descritivo na metodologia
geográfica, onde a experiência somente pode ser passada (ou narrada) através dessa
descrição da totalidade do mundo através das partes, por onde se encontra o todo. Temos
então aí a fatídica distinção das ciências descritivas: Geografia e História. Kant (2007, p.
124) então explica em uma observação que ―o discurso aqui é o do conhecimento do
mundo, logo, de uma descrição do conjunto da Terra. O nome geografia [Geographie] não
será tomado aqui, portanto, em nenhum significado diferente do habitual‖. Emerge no
discurso kantiano uma concatenação de classificação dos conhecimentos empíricos, de
acordo com o espaço ou o tempo.
Vai surgindo na exposição de Kant os conceitos de Geografia e História, no qual ―a
Geografia são notícias dos acontecimentos que passam um ao lado do outro no espaço.
Enfim, a História estabelece uma narrativa e a Geografia uma descrição‖ (MARTINS, 2003,
p. 61, grifos nossos). Nas palavras do próprio Kant:

mas nós podemos denominar ambas, história e geografia, do mesmo modo, como
uma descrição, mas com a diferença de que a primeira é uma descrição no tempo
[Zeit] e a segunda, uma descrição no espaço [Raume].
História e geografia ampliam, portanto, os nossos conhecimentos em relação ao
tempo e ao espaço. A história [Die Geschichte] se refere aos acontecimentos que,
em relação ao tempo, sucederam-se um após o outro [nacheinander]. A geografia
[Die Geographie] se refere aos fenômenos que, em relação ao espaço, acontecem
ao mesmo tempo [zu gleicher Zeit] (KANT, 2007, p. 125).

Mais adiante é tomada a síntese desses argumentos em dois momentos. No


primeiro, Kant (ibid., p. 127) resumirá que ―o nome geografia designa, logo, uma descrição
da natureza, e, é certo, [uma descrição da natureza] de toda a Terra. Geografia e história
ocupam toda a extensão do nosso conhecimento; a geografia, a saber, a do espaço, a
50

história, a do tempo‖. O segundo momento subseqüente resume ainda mais: ―a geografia é,


logo, o substrato‖; substrato essa da história. Assim fecha-se o circulo de gênese kantiana à
Geografia científica, desde seus textos ―pré-críticos‖ até a exposição introdutória de suas
aulas de geografia física. Vai conformando-se aquilo que Martins (2003) e Silva (1988)
detectaram como impasse aristotélico-kantiano, e, unido ao paradigma moderno de ciência
baconiano-cartesiano-newtoniano (que relatamos alhures), conformará o espaço lógico-
geográfico (absoluto/relativo – também podendo ser tratado como espaço cartesiano-
newtoniano-kantiano).
A fórmula espaço→homem vai se expressando como máxima da Geografia
científica. A Geografia como uma ciência descritiva, corológica, que descreve os fenômenos
ocorridos no espaço, uma associação direta entre o espaço empírico-relativo com a
Geografia, que o descreverá de maneira enciclopédica: ―enfim, os objetos se deslocam no
espaço‖ (MARTINS, 2003, p. 63)29; assim temos as categorias espaciais (categorias de
categorias) por excelência da Geografia científica, ou princípios lógicos, como localização,
distribuição, distância, extensão, posição e escala, como explica Moreira (2007, pp. 116-
117). Assim veremos daqui por diante que realmente ―o espaço tem sido o conceito
organizador em torno do qual geografia se desenvolveu‖ (CORRÊA, 1982, pp. 25-26),
através da interpretação dos ―Geógrafos clássicos‖ alemães Humboldt e Ritter, depois
dando prosseguimento cronológico e por ―vertentes‖ fragmentadoras da Geografia
acadêmica. Nessa passagem do século XIX ao XX, os estudos geográficos têm variado
como: relação homem-meio, diferenciação de áreas, estudo da paisagem, organização ou
produção do espaço pelo homem; porém a base fora acima mencionada, o seu
entendimento científico pouco foge à fórmula espaço→homem30.
Vejamos como isto tomas as dimensões que conhecemos hoje na Geografia
acadêmica. Comecemos com a chamada ―Geografia clássica‖ (ou tradicional) e seus
progenitores.
Corrêa (2003, p. 17), afirma que ―o espaço, em realidade, não se constitui em um
conceito-chave na geografia tradicional‖. A primeira vista, desacostumados com a leitura da
Geografia tradicional, parece que o espaço não emerge ao debate, mas os pilares que irão
constituir o discurso da Geografia científica, implicitamente, perpassam pelo conceito de
espaço. Segundo Moreira (1994, p. 25), as aulas (que analisamos brevemente) de Kant,
―deram origem a livros que servirão de ponto de continuidade de sua ‗epistemologia da
geografia‘ (isto é, os fundamentos gerais do saber geográfico)‖ volvendo tais princípios

29
. ―Justifica-se assim o por que do filósofo relacionar o espaço com a categoria de quantidade. A quantidade
estabelece o movimento contínuo do ser num espaço, igualmente contínuo e invariável. O deslocamento
mecânico deve supor a invariância do ser e do espaço onde este se desloca‖ (MARTINS, 2003, p. 64).
30
. Porém existem possibilidades de leitura dos Geógrafos em todos os momentos que fujam a essa clausura do
espaço. Mas esta é uma proposta a ser averiguada em outro momento, o que por hora não interessa aos nossos
objetivos.
51

epistemológicos a Humboldt e Ritter. Esta seria a sistematização ―moderna‖ da Geografia


científica, no que Moreira irá tratar como a ligação ―Kant-Humboldt-Ritter‖. Tal ligação lógica
entre os três alemães precursores dessa Geografia será dada principalmente pela
concepção de natureza da Geografia, sendo permeada indiretamente pela acepção de
espaço kantiana; no que cabe à Geografia descrever os fenômenos no espaço. Para Leal
(2009, p. 2) ―coube a Alexander Von Humboldt e Karl Ritter, no século XIX, o trabalho da
sistematização da geografia no âmbito das ciências modernas‖, amalgamando o que
fora posto em germe por Kant.
Alexander Von Humboldt (1769 – 1859) será um seguidor das ideias de Kant, e
apoiar-se-á também na filosofia de Schelling. Temos assim então um prosseguimento e
não um rompimento com a epistemologia da Geografia herdada de Kant (MOREIRA,
1994, p. 25). Hartshorne (2006) nos explica que mesmo sendo Humboldt formado em
cursos de Economia e Finanças de Governo, seu principal interesse pessoal era no
enfoque dos estudos da natureza, voltados mais especificamente para Botânica e
Geologia. Com esses ideais em mente, Humboldt realizou diversas viagens, na busca
de justificar e explicitar a sua proposta de natureza da Geografia (MORAES, 1993). Tais
fatos se condensaram ―nos cinco volumes do Cosmos, o extensivo levantamento do
universo, esboçados, anteriormente, em aulas ministradas em Berlim, no inverno de 1827‖
(TATHAM, 1959, p. 213).
Nesse momento de Humboldt, a Geografia ganha força acadêmica e escolar, pois a
base de seus Cosmos não era somente uma descrição da superfície terrestre e sim uma
descrição do mundo, uma ciência do Cosmos, essa era a natureza da Geografia em
Humboldt, como afirma Tatham (ibid.), ou uma Geognosia, nas palavras de Hartshorne
(2006). Seus interesses eram de construir uma base lógica para a distinção da Geografia
para as outras ciências. Com a sua compreensão e comparação dos fenômenos da vida
através de uma experimentação harmônica com a ―natureza‖, a delimitação do ―objeto da
Geografia‖ seria: ―a contemplação da universalidade das coisas, de tudo que coexiste no
espaço concernente a substâncias e forças, da simultaneidade dos seres materiais que
coexistem na Terra‖ (HUMBOLDT apud., MORAES, 1993, pp. 47-48). A Geografia científica
além de seu caráter corológico, como estudo da distribuição dos fenômenos no espaço
empírico, assume na postura de Humboldt, também, mais a herança kantiana do que iria se
conformar como uma ―ciência de síntese‖. Portanto, temos que o espaço aparece como pilar
nas idéias humbodltianas, pois era como vimos um leitor atento dos escritos filosóficos e das
publicações sobre as aulas de Geografia física de Kant.
Mesmo que Humboldt não tenha um caráter ―espaciólógico‖ tão fortemente
demonstrado como de seus futuros ―companheiros‖, arrolam-se ao seu nome o de outro
52

alemão, também responsável pelo assentamento científico da Geografia: Karl Ritter. Tal
ligação fora feita principalmente pelo método comparativo, adotado similarmente por ambos,
chamando atenção para a organização do pensamento geográfico baseada no legado
kantiano (LEAL, 2009, p. 4). Para Moreira (1993 e 2007), embora Humboldt e Ritter dessem
pesos diferentes para natureza e homem, atribuem à geografia uma totalidade das coisas
onde os homens vivem, entrecruzando assim os conceitos, que hoje são atuais, de espaço e
meio ambiente. Nas palavras de Tatham (1959, pp. 218-219), os dois alemães
diferenciavam-se bastante quanto ao âmbito de trabalho, no qual Humboldt trabalharia com
o sistemático (Geografia geral ou sistemática) e Ritter com a Geografia regional. Mas, seus
trabalhos se entrelaçavam, como um complemento, tendo juntos, empreendido quase que
um completo e moderno programa de Geografia.
O alemão Karl Ritter (1779 – 1859) tinha formação em Filosofia e História, sendo
também tutor de uma família de banqueiros, como podemos ver em Moraes (1993).
Recebeu assim, as bases de seus ensinamentos calcados nos princípios de Rosseau e
Pestalozzi. Nesse momento surgira o seu interesse pela Geografia, através do sistema de
Pestalozzi em ―despertar o entusiasmo pela natureza‖ (ibid., p. 207) em longos trabalhos de
campo. Outro elemento importante era o das ―relações espaciais‖,através das relações entre
as coisas, numa regionalização dos fenômenos distribuídos no espaço empírico; ia-se da
vizinhança imediata até o mundo inteiro. Tais ensinamentos ebuliram o ―espírito geográfico‖
em Ritter, que, como cita Andrade (1984, pp. 12-13), Ritter ―em seus cursos na Universidade
de Berlim, procurava fazer análises comparativas entre regiões diversas, procurando
explicar as formas de ocupação do espaço territorial‖. Tais fatores comparativos foram
advindos da base prática de formação deste Geógrafo tradicional. Demonstrou nesse
sentido a importância de métodos empíricos e comparativos na pesquisa geográfica.
Indicando ―o caminho da análise da relação do homem com o meio‖ (TATHAM, 1959, p.
212).
Fato interessante ao pensamento de Ritter é de uma não distinção clara entre
História e Geografia. E segundo Hartshorne (2006, p. 20), ―não faz nenhuma tentativa para
mudar a posição da Geografia em relação ao campo inteiro do conhecimento‖, expressando,
―muitas vezes, a comparação entre a Geografia e a História‖; tal fato faz lembrar alguma
influência kantiana, como nesta citação: ―assim, pois, a geografia e a história devem sempre
andar inseparáveis. A terra tem influência sobre os habitantes e estes últimos sobre a terra‖
(RITTER apud., TATHAM, 1959, p. 209). Mas a metodologia de análise ritteriana aborda um
aspecto que será perpassado para o campo da Geografia científica: o método comparativo.
Realmente se teria uma ciência corológica, deixando de lado uma ―corologia‖ que era mais
corográfica, enciclopédica ou catalográfica. Na metodologia de Ritter ―toda geografia que
ultrapassava a mera descrição tornava-se comparativa‖ (LEAL, 2009, p. 6); uma corologia
53

como uma análise comparada dos fenômenos em várias escalas do espaço empírico da
Terra. Ritter vê dessa forma uma totalidade entre o natural e o humano, mas, o porém, vem
tanto de sua formação antropológica quanto de sua concepção religiosa. A imbricação serve
para sistematizar o seu pensamento teleológico da natureza, onde ―ela existe com a
finalidade de servir ao homem‖ (MOREIRA, 1994, p. 26); nada muito diferenciado do
paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano de ciência. Desse modo que a obra elaborada
por Ritter difere da de Humboldt, pois no primeiro a atenção é voltada para o homem que
seria o senhor da natureza, faz parte de sua teleologia, já Humboldt buscava a
compreensão das relações entre a superfície terrestre e a atividade humana (CAMARGO,
2005, p. 93)31. Vejamos a seguinte exposição, que sumaria tal particularidade ritteriana.

a trajetória teórica e narrativa de Ritter orientava-se à teologia cristã, amparado em


enunciados pregadores duma totalidade que representava a idéia de conexão
homem-Deus através da Terra; conciliando ciência e religião, ao pensador caberia a
busca das conexões Homem-Deus-Terra, que deveriam ser apreendidas de forma
completa e universal mediante o estudo analítico e comparativo das diversidades
regionais do globo terráqueo, pois a visão ritteriana enxergava as regiões como-
partes do todo-orgânico-terrestre criado por Deus, como se a Terra se
assemelhasse a um palco cuja atuação humana durante a existência permitiria a
aproximação do Criador (RIBEIRO, 2006, p. 65).

Nesse sentido a Geografia de Ritter aparece como ―regional e antropocêntrica‖. O


homem seria o principal elemento (como sujeito), sendo o objeto, o estudo dos lugares, de
maneira empírica e comparada. Não é sem motivo que pelo seu método comparativo, sua
obra máxima a Erdkunde tinha como ―um subtítulo, Allgemeine vergleichende geographie
(geografia comparativa geral)‖ (TATHAM, 159, p. 211). A partir desse método comparativo
dos ―lugares‖ (ou espaços empíricos) que temos o espaço implícito no pensamento de
Ritter, porém mais claro e perceptível do que em Humboldt. A corologia da Geografia
ritteriana centrava-se no homem, e seu objetivo o estudo do espaço superfície (a chamada
superfície da terra), empírico, e como era antropocêntrica esta empiria partia das relações
entre a subordinação da natureza ao homem, a sua história (não distinta da geografia), o
solo, ou o lugar como espaço criado.
O que Ritter buscava era elaborar a terminologia das relações espaciais: das
relações espaciais universais. Podemos ver isso claramente nessa tradução livre de seu
trabalho:

com efeito, quanto mais avançamos no conhecimento de distribuição espacial (dos


fenômenos) na superfície terrestre, e quanto mais nos interessamos – para além de
sua desordem aparente – pela relação interna de suas partes, mais simetria e
harmonia descobrimos nela, e uma medida cada vez maior as ciências naturais e a
história podem ajudar-nos a compreender a evolução das relações espaciais. De

31
. Encontra-se como nota do autor, nota 9 no original.
54

fato, graças à meteorologia e à física, foi possível a realização, até agora, de


32
grandes progressos em matéria de conhecimento da ordem espacial .

É perceptível então desde sua metodologia até sua prática de análise que Ritter
possui a influência clássica do espaço dicotômico absoluto/relativo herdado de Kant. As
relações espaciais empíricas sobre um espaço teleológico absoluto que deve ser estudado e
dominado pelo homem. Temos aí o imbricamento dos imbróglios: o paradigma baconiano-
cartesiano-newtoniano e a fórmula espaço→homem como objeto de estudo (e domínio!) da
Geografia científica. Tal ciência cumprirá seu papel de dominadora de um espaço que
logicamente sujeita o homem e o Geógrafo acadêmico.
Agora passemos para dois nomes que reforçarão a espaciologia, principalmente na
Geografia dita humana.
Iniciaremos então a segunda faze da sistematização ―moderna‖ da Geografia
científica, ou que irá tomando os ―ares‖ de ciência institucionalizada. Mais especificamente
com a composição de idéias dos atuantes no início do século XX Ratzel-La Blache-Hettner-
Hartshorne relatada por Moreira (1987, p. 14). Veremos que aos dois primeiros nomes,
temos muito mais do que a simples dicotomia epistemológica ―determinismo‖ (relativo a
Ratzel) e ―possibilismo‖ (La Blache), principalmente dos seguidores de suas dimensões
propositivas para a Geografia científica, como veremos sumariamente em Jean Brunhes e
Max. Sorre.
A relação que evidencia a passagem dos ideais ritterianos para Ratzel nessa
Geografia do século XX, está clara segundo Moreira (1994, pp. 29-32) dizendo que ―já existe
embrionariamente em seus antecessores, mais visivelmente em Ritter‖ as propostas
epistemológicas de constituição da Geografia como ciência. Mais a frente, o mesmo autor,
relacionará a conhecida ―teoria do espaço vital‖ ratzeliana com os ideais teóricos da
chamada ―geografia pura‖ (ou teleológica) de Ritter. Outro Geógrafo que encontrará
relações evidentes entre Ritter e Ratzel será Tatham. Em sua visão, no primeiro volume da
obra Antropogeographie de Ratzel, existe uma ―repetição do tema tratado por Ritter na
Erdkunde, e o próprio Ratzel salientou o fato de estar desenvolvendo as idéias de Ritter‖
(TATHAM, 1959, p. 223).
Para elucidarmos tais semelhanças, mostraremos através das próprias palavras de
Ratzel, algumas bases de suas propostas e constituintes do pensamento geográfico. Em
sua Antropogeographie, na ―evolução dos conceitos relativos à influência que as condições
naturais exercem sobre a humanidade‖, vemos uma admiração prévia a Ritter, que se
expressam assim: ―recordemos, na expressão escultural de Karl Ritter, ‗ser o Estado cingido
à natureza do seu território‘‖ (RATZEL, 1990, p. 33); ou, no segmento em que Ratzel dedica

32
. O texto ―A organização do espaço na superfície do globo e sua função na evolução histórica‖ encontra-se
disponível no sítio eletrônico: <//www.ufjf.br/nugea/files/2010/09/ritter.pdf&gt>.
55

exclusivamente a Ritter, destacando o mérito que este último teve em reforçar o ―laço
insolúvel‖ entre Geografia e História, dando abertura para um amplo campo de estudo na
Geografia científica. Mais adiante, vemos uma ligação das idéias de Ritter com as propostas
de espaço em Ratzel, vejamos a citação na íntegra:

mas os espaços terrestres, considerados como ‗habitação do gênero humano‘, não


permaneceram imutáveis, especialmente porque o homem, mediante novos meios
que busca para si (por exemplo, as comunicações), modifica suas relações com
eles, e também pelo efeito das transformações que a Terra por si própria sofre (ibid.,
p. 47).

Para concretizar ainda mais essa relação entre Ritter e Ratzel, nas ―tarefas e
métodos da geografia do homem‖, em relação ao método, Ratzel irá creditar suas idéias às
propostas ritterianas, no qual sua superação da natureza puramente descritiva da Geografia
daria um caráter sistemático a esta como ciência, sendo essa a ―verdadeira natureza da
geografia‖ (ibid., p. 96). O método, as propostas da natureza geográfica, e sua acepção de
espaço serão reformulados por Ratzel, principalmente em seus novos contextos e
metodologias.
Friedrich Ratzel (1844 – 1904), essa personalidade, também alemão e prussiano,
teve formação como naturalista, atraído que fora pelos ideais evolucionistas e seletivos
darwinianos trazidos para a discussão metodológica da vida nas ciências na segunda
metade do século XIX, porém, suas obras foram voltadas para as ditas humanidades (não
que fossem sem intervenção do evolucionismo seletivo e ―naturalizado‖), dos processos
civilizatórios e de suas relações história das populações humanas-história da Terra (a
relação fatos culturais-fatos telúricos), como cita Carvalho (2004, p. 72). A Geografia
ratzeliana será balizada no problema-chave da relação homem/natureza (perpassado como
homem/meio), atrelando assim à etnografia os princípios que justificassem a ecologia
evolucionista na sua aplicação social (o evolucionismo de disputa natural trazida para o
social – a sua ―naturalização‖ como supracitamos).
Dentro de seu contexto histórico-científico estava a leitura do sociólogo Herbert
Spencer da obra darwiniana A origem das espécies, no qual terá uma redução
(principalmente das ―leituras‖ feitas a partir desse dito ―evolucionismo‖) a um evolucionismo
linear da história, tanto da chamada natural quanto da social (atrelada somente ao humano).
Nesse momento a tão aclamada dicotomia homem/natureza tem uma ―harmoniosa‖ união,
mas como já citamos, somente para justificar e embasar cientificamente o modo de ser
capitalista em momento de engrandecimento como algo natural e que seleciona o mais
forte, apto e evoluído. Tais leituras foram feitas, sobretudo por Spencer e ―o nosso‖ Ratzel,
tratando a sociedade como um organismo perfeito e imutável de evolução linear e mecânica
56

– salve o retorno às ideias mecânicas da natureza de Descartes!33 Não é a toa que as


analogias orgânicas eram comuns aos postulados ratzelianos (CAMARGO, 2005, p. 95),
pois as mesmas leis que irão governar a vida desde os vegetais até os outros animais serão
as mesmas para a nossa instituição social. A vida humana do moderno capitalismo que está
emergente é naturalmente explicável. Por isso que no pensamento ratzeliano ―a ‗geografia é
antes de tudo uma ecologia‘‖ (RATZEL apud., CARVALHO, 2004, . 74).
Mas, para não sermos totalmente descartadores do pensamento de Ratzel
(pessimistas?), o atrelamento dos fenômenos humanos em Geografia como algo científico
faz de Ratzel um de seus inauguradores. Aquilo que Carvalho irá chamar de ―um dos pais
fundadores‖ (2004, p. 71), trazendo em sua dimensão propositiva a busca para o debate
geográfico, os temos políticos e econômicos, no qual o homem seria o centro de discussão
e análise, mesmo que se encararmos seu ponto de vista ―naturalizante‖ (MORAES, 1993, p.
60). Vejamos isso na citação do próprio autor, onde ―a nossa ciência tem que estudar a
Terra unida, como ela é, incluindo o homem, por isso não pode afastar-se do estudo da vida
humana, e nem mesmo do da vida vegetal e animal‖ (RATZEL apud., CARVALHO, 2004, p.
75). Duas são suas principais obras, a primeira Antropogeografia (ou Geografia do Homem)
de 1882 e a Geografia e Política de 1897. Nas palavras de Moraes (1993, p. 55), em sua
obra de 1882 ―pode-se dizer que esta obra funda a Geografia Humana. Nela, Ratzel definiu
o objeto geográfico como o estudo da influência que as condições naturais exercem sobre a
humanidade‖. Seu método, como vimos, além de manter a tradição inspirada em Ritter, da
Geografia como uma ciência de síntese, para além da corografia, uma verdadeira corologia,
calcado na observação e comparação, tratou-a como ciência empírica. Tanto que explicita
claramente que ―a geografia do homem é uma ciência descritiva‖, assim como toda a
Geografia antecedente. Uma continuação do método corológico, de descrição e sinterização
do espaço empírico de Ritter. Mas falando em espaço, onde está em sua abordagem?
Vamos a ele.
Carvalho (2004, p. 79) expõe que existe uma crítica de Ratzel às perspectivas dos
pensadores que excluem o fator espacial das explicações científicas. As idéias darwinianas
de luta pelo espaço e as acepções do Estado e sua relação com a natureza atribuem ao

33
. As bases das ideias contidas nesse parágrafo sintético encontram-se em Moreira (1994, p. 30). O mesmo
autor fará uma leitura das ideias de Darwin que concordamos plenamente e resolvemos aqui transcrever na
íntegra: ―A obra de Darwin coroa a prodigiosa evolução das ciências naturais, da biologia em particular, nos
séculos XVII ao XIX. Embora represente um salto extraordinário no conhecimento humano e na sua libertação
das influências escolásticas (religiosas) e idealistas, a obra de Darwin apóia-se numa visão mecânica da
evolução natural das espécies‖ (ibid.). Sendo assim, o evolucionismo mecânico competitivo naturalizado pelo
darwinismo spenceriano acaba por reforçar o criacionismo, numa camisa de força lógica onde a vida tem uma
finalidade e em ambas as explicações (tanto criacionistas como evolucionistas) o ―topo‖ de toda a cadeia da vida
seria a obra final, a magnum opus (divina ou natural): o homem. Nada melhor para coroar o pensamento
mecanicista cartesiano da natureza e da dádiva divina dada ao homem através da razão; agora, sabendo
cientificamente que ele é o ―mais evoluído‖ e que necessitam (é natural!) ter uma competição entre os povos do
mundo; não ouvimos nos esportes o velho lema: ―o importante é competir‖.
57

pensamento de Ratzel a noção do tão afamado ―espaço vital‖. Este ponto será privilégio de
sua Antropogeografia, a relação Estado e espaço, no qual elabora sua idéia de território que
representa as condições de trabalho e existência de uma sociedade, sua perda seria fatal
para a manutenção ou evolução de uma espécie. Nesse sentido o espaço seria ―vital‖.
Assim a Geografia do Homem de Ratzel abriu caminho para uma discussão do espaço em
seu aspecto histórico e político, porém, ―encravou‖ na camisa de força lógica do espaço
também a Geografia Humana que estava em germe nas suas propostas. Nas palavras de
Corrêa (2003, p. 18) ―o domínio do espaço transforma-se em elemento crucial na história do
Homem‖, no qual ―a preservação e ampliação do espaço vital‖ será a ―própria razão de ser
do Estado‖. Desse modo, ―o espaço transforma-se, assim, através da política, em território,
em conceito-chave da geografia‖34.
Temos então uma pequena fórmula através das propostas de Ratzel. Seria a
seguinte: espaço base para a vida→natural humanizado→território+espaço vital. Os dois
conceitos-chave da Geografia Humana moderna vão conformando-se através da acepção
de espaço moderno, como base para as formulações de algum saber que deseja tornar-se
científico. A clausura lógica do espaço que ―atenta‖ a Geografia científica através da fórmula
espaço→homem. Por isso se esse espaço é vital, não é somente ou como algo
ontologicamente vital que ele se realiza como modo de ser, mas sim como uma busca de
afirmação epistemológica para a Geografia, o espaço como estruturação do pensamento
geográfico científico; por isso, se remetermos à herança kantiana, temos que o espaço é
uma categoria de ordenação, como uma síntese ritteriana do espaço empírico.
Para confirmarmos, citaremos algumas passagens do próprio Ratzel sobre essa
clausura do espaço como ordenador do pensamento geográfico científico. Nos ―limites da
geografia do homem‖, sua proposição é bem clara, pois ―a geografia é base e premissa da
geografia do homem‖ (RATZEL, 1990, pp. 100-101); o que se encontra nas entrelinhas não
é o que está explícito na dicotomia Geografia Física/Geografia Humana, mas sim a
passagem do espaço base para a vida humana, o finito dado, como absoluto da natureza
passado e humanizado para o espaço vital e o território: o espaço empírico (relativo) dos
artefatos humanos. Na ―variedade das influências que a natureza exerce sobre o homem‖,
além de atrelar as relações evolucionistas competitivas tidas como naturais ao mundo
humano, reforça o que seria de caráter estritamente geográfico, e assim afirma a
espaciologia e seus conceitos-chave, vejamos: ―este estudo contempla uma questão de
espaço e é portanto um problema meramente geográfico. E, ao mesmo tempo, cabe à

34
. Camargo (2005, pp. 96-97), expõe brevemente a acepção do espaço vital, onde ―na concepção ratzeliana,
como o espaço da Terra nunca cresce, ou seja, é finito, ocorre um grande paradoxo, que se origina na luta por
espaço vitais, pois as nações se desenvolvem economicamente e, logo, tecnologicamente, tendem a querer
ampliar seus territórios. (...) O espaço vital passa a ser, então, uma área geográfica onde os povos são
representados por Estados que estão acima das classes sociais e que devem defender sua população contra os
inimigos comuns‖.
58

geografia o exame das formações políticas nas quais os conquistadores se dividem no


momento em que se estabelecem em um novo território‖ (ibid., p. 58, grifos nossos). E para
sintetizar cabalmente esse contexto Geográfico atrelado à analise espacial temos mais um
discurso de Ratzel (ibid., p. 90, grifos nossos):

entretanto a tarefa mais importante da geografia continuará sendo sempre a de


estudar, descrever e representar a superfície terrestre. Porém, mesmo atribuindo à
história o estudo dos acontecimentos que se sucedem no tempo, à geografia as
condições de fato do território, não se pode esquecer que todo acontecimento se faz
no espaço, e por isso toda história possui seu teatro.

Esta citação é altamente esclarecedora, sumariando no próprio Ratzel a passagem


de Kant e Ritter (de ciência corológica descritiva e de síntese, além da delimitação
geográfica em detrimento da histórica, atribuindo ao território, espaço empírico humanizado,
o objeto de análise geográfico – o teatro da história humana) para seus postulados.
Academicamente a reformulação da Geografia, onde o que era uma Geografia física nas
aulas de Kant será uma Geografia humana do espaço vital e do território. Temos a fórmula
espaço→homem sendo formada através de Ratzel.
A partir desse momento não mais adentraremos em pormenores de métodos e
contextualizações (mesmo que breves para os volumes e influências das obras) dos
Geógrafos, mas sim rememorando suas acepções de espaço, que vão tomando corpo como
objeto da Geografia científica. Para além da discussão entre ―determinismo‖ (atribuído pelas
leituras de Ratzel) e ―possibilismo‖ (atribuído à escola lablacheana), ou de seus contextos
sociais cronológicos, vejamos um pouco da natureza geográfica em La Blache.
Paul Vidal de La Blache (1845 – 1918), francês e historiador de formação, porém
trabalhando desde intensos estudos de geologia e geografia física até como formador (ou
fundador) da Geografia clássica francesa (ANDRADE, 1984, p. 14), mudando assim o eixo
alemão da gênese geográfica. Tais abordagens de Geografia na França tornaram-se base
assim como posteriormente os de Hettner na Alemanha (CHRISTOFOLETTI, 1982, p. 12).
Veremos que, assim como constataram Moreira (1982) e Camargo (2005), o espaço
encontra-se implícito em La Blache, principalmente em argumentações teóricas acerca da
construção de um objeto; mas, mesmo que não se demonstre dessa forma, se torna visível
se formos relacionar com as idéias perpassadas pela ciência que havia se formulado há
pouco. Assim como em Ratzel as propostas do espaço empírico a se descrever é
encontrada, assim como um ―pontapé‖ na concepção de um espaço humanizado.
Embora tenha inspirações mecanicistas no método lablacheano, sua
contextualização ―espacial‖ chega bem próxima de uma idéia complexa, de uma totalidade
do espaço empírico e algumas subtotalidades regionais e das formas. Devemos, antes de
prosseguir, deixar claro que a formulação de uma Geografia francesa científica é balizada
59

principalmente no antagonismo da Antropogeografia ratzeliana (ou Geografia do Homem),


através de sua formulação de uma Geografia Humana. Ribeiro auxilia neste debate
afirmando que fora La Blache quem ―formulou a expressão de Geografia Humana‖ (2006, p.
68). Então, as bases humanas de Ratzel serão reformuladas no discurso de La Blache em
sua ―Geografia Humana‖.
Nas palavras de Aldo da Silva (2004, p. 135, grifos nossos) ―a geografia vidaliana se
caracteriza por uma forma de olhar as coisas, uma geografia da Terra, uma fisionomização
da superfície, uma paisagização do mundo‖. Temos aí um preâmbulo para o que seria a
Geografia em La Blache, uma ciência que observa e descreve as formas em movimento do
espaço superfície da Terra. Tal afirmação ganha consistência no que coloca Aldo da Silva
(ibid., pp. 136-137), ―à geografia cabe a repartição das sociedades humanas na superfície
da terra e as marcas que elas imprimiram na paisagem‖. Assim o objeto da Geografia se
mostra ao cientista observador, dando também sua natureza de ciência sintética (de
síntese), conectados de forma complexa na região. A região não seria algo nem natural nem
somente fator geográfico das ações humanas, mas a síntese dos diferentes fenômenos em
uma parcela da superfície terrestre, aí se encontra o conceito de região. Nesse mesmo
momento emerge o objeto da Geografia, que seria a superfície da terra. Para confirmarmos
temos as palavras do próprio La Blache: ―o campo de estudo, por excelência, da geografia é
a superfície‖ continuando sobre o ―interior da terra‖ no qual ―esta obra subterrânea só se
torna um objeto geográfico porque, pela ação combinada dos soerguimentos e das
desnudações, ela aparece na superfície‖ (LA BLACHE, 1982, pp. 41-42).
Agora veremos rapidamente a idéia de espaço passada por La Blache. Será claro
que embora a sua Geografia Humana relacione a Terra e o Homem, este como fator
geográfico (LA BLACHE, 1921), o objeto da Geografia lablacheana é o ―espaço‖, como
todos os ―lugares possíveis‖ da superfície terrestre. Isto será bem frisado em sua conhecida
frase na sua distinção entre a Geografia (sua ―nova ciência‖ como visão de mundo) e a
História (sua formação), na qual ―a Geografia é a ciência dos lugares e não dos homens; ela
se interessa pelos acontecimentos da História à medida que acentuam e esclarecem, nas
regiões onde eles se produzem, as propriedades, as virtualidades que sem eles
permaneceriam latentes‖ (LA BLACHE, 1982, p. 47).
Temos então um esquema lablacheano de análise geográfica, tendo como objeto o
―espaço‖, no seguinte sentido: paisagem (o mundo das formas em movimento na superfície
terrestre35)→o meio (a articulação do espaço humanizado com os fenômenos36)→a região

35
. Para verificarmos esse espaço superfície como um receptáculo pronto para a ocupação, vejamos o próprio La
Blache: ―Na base da geografia política há uma questão que podemos considerar capital - trata-se da repartição
das populações humanas na superfície terrestre. Nada é mais desigual: algumas partes relativamente restritas
do globo apresentam enormes aglomerações; a Índia e a China sozinhas compreendem perto da metade da
humanidade; são massas humanas cimentadas pelo tempo, contra as quais se exercem as guerras, as
60

(como conceito síntese da análise descritiva da Geografia). Portanto, em todos os passos o


Humano permeia, mas, não é o objeto, este é o ―espaço‖, como absoluto-receptáculo
expresso na acepção de superfície terrestre, como relativo humanizado no conceito de meio
e sinteticamente na complexidade da região, abrangendo: natureza-homem-espaço; embora
estes apareçam apartados em seu modo de ser.
Vimos então a carga espacial do objeto de estudo geográfico enfatizado por La
Blache, agora também enredado na Geografia Humana que estaria por vir. Mesmo com
suas críticas ao mecanicismo da Antropogeografia ratzeliana ao tratar a relação homem-
natureza, seu trabalho, apesar de buscar uma complexidade dos fenômenos terrestres, não
é enfático de forma crítica às relações entre homens, principalmente em suas
desigualdades, nesse sentido a carga espaciológica (não meramente naturalista) é mantida.
Junto a isto está o mero aspecto descritivo da Geografia como sendo uma ―ciência
essencialmente descritiva‖ (LA BLACHE, 1982, p. 45). Mas, o que buscamos enfatizar é a
abordagem lógica do espaço em detrimento da ontológica e vivida atrelada à conformação
da Geografia como ciência. Passemos agora para mais uma personalidade importante neste
aspecto espacial.
O próximo nome da lista será Alfred Hettner (1859 – 1941), ele irá compor a
concatenação de ideias do século XX na Geografia científica, na sistematização Ratzel-La
Blache-Hettner-Hartshorne. Hettner ―havia estudado Filosofia tão bem quanto Geografia‖
(HARTSHORNE, 2006, p. 27), foi um dos geógrafos mais influentes dentro dos ramos do
pensamento geográfico da primeira metade do século XX, sendo aclamado como ―o mestre
alemão da metodologia da Geografia‖. Segundo Etges (2009, p. 137), sua ―influência
manifestou-se não somente entre os geógrafos alemães, mas também entre geógrafos de
outros países, como da França e dos EUA, com destaque para Hartshorne‖. Porém, o que
mais interessa por hora será sua utilização do espaço como base organizadora dos
fenômenos, no qual reafirmará a velha herança kantiana.
O geógrafo alemão irá propor como método e classificação da Geografia científica no
que Moraes (1993, p. 84) chamará de ―Geografia Racionalista‖, por possuir menor base
empírica do que havia sendo especulado, principalmente por La Blache. Esse seria o
terceiro caminho em contraposição aos métodos antropogeográficos de Ratzel e de
geografia humana lablacheana. Seu pensamento será influenciado em grande parte pelo
neokantismo (grande parte devida sua grande atenção dada à Filosofia). Nesse ínterim de
racionalismo e neokantismo temos o que expõe Moreira:

epidemias e a fome. Ao contrário, existem vastos espaços novos que o homem, numericamente, mal começou a
ocupar‖ (LA BLACHE, 2002, p. 89).
36
. Podemos tomar esse sentido, pois nas palavras de Aldo Silva (2004, p. 145), ―a noção de meio, que compõe o
arcabouço teórico de Vidal, não pode ser entendida sem a noção de ação humana (...), a natureza torna-se
‗meio‘ à medida que a ação humana intervém em sua dinâmica. Nesse sentido, a noção de meio está
relacionada com a intervenção humana, que lhe dá uma forma particular‖.
61

trata-se de encontrar no mundo da razão a categoria da universalidade capaz de


resgatar para o pensamento o mínimo da unidade discursiva perdida. A solução
positivista, de unificar o pensamento, da natureza à sociedade e ao homem, a partir
das leis físicas, é rejeitada pelos alemães. Estes optam pela solução do
entendimento kantiano, operando-se um movimento de retorno a Kant (2000, p.
141).

A acepção do neokantismo reafirmará ainda mais as dicotomias do mundo, agora na


própria Geografia científica (o que herdamos até os dias de hoje), na distinção entre
Geografia Física e Geografia Humana. Seria a distinção entre ciências nomotéticas e
ideográficas, onde as nomotéticas comporiam o corpo de ciências centradas na ―natureza‖,
ou que teriam ―leis gerais‖ (como não lembrar aqui da busca da Física clássica newtoniana!)
– deste campo herdou a Geografia Física; e as ideográficas, com base em fenômenos
humanos e por isso mesmo individualizados – dessa ―fatia do bolo‖ herda a Geografia
Humana com seus estudos de casos, individuais, distintos de acordo com tal fenômeno. O
que temos por parte do neokantiano Hettner para solucionar a problemática dicotômica é a
colocação da ―geografia no plano de encontro do nomotetismo e do ideografismo, centrando
a referência unitária no conceito de região (ibid., p. 142); este conceito terá a capacidade de
fornecer a visão de síntese espacial do mundo para a Geografia, através da pluralidade de
fenômenos tanto humanos quanto naturais. Assim surge a ―identidade metodológica‖
moderna de ciência de síntese por Hettner através do conceito de região, uma reformulação
da ciência corológica.
Essa unidade de espaço através da corologia será o maior esforço de Hettner,
através da idéia de interpretação e descrição dos fenômenos sobre a superfície terrestre.
Temos então a velha idéia de inter-relação dos fenômenos no espaço terrestre. O espaço
como categoria lógica de ordenação dos fenômenos. Para demonstrarmos a natureza da
Geografia em Hettner, como ciência corológica, nada melhor do que sua citação, na qual ele
relata existirem duas ciências corológicas:

uma delas se ocupa do ordenamento das coisas no espaço universal: é a


astronomia, que no passado se entendeu indevidamente como uma mecânica
aplicada, isto é, como uma ciência de leis abstratas, quando seu verdadeiro objeto é
a constelação e a natureza dos distintos astros. A outra ciência corológica é a
ciência do ordenamento do espaço terrestre, ou, posto que não conhecemos o
interior da terra, da superfície terrestre. Uma ciência corológica deste tipo é
necessária por razões muito parecidas às que justificam a ciência cronológica da
história. Se não houvesse relações entre os distintos pontos da superfície terrestre e
se os diferentes fenômenos situados em um mesmo lugar fossem independentes
entre si, não seria necessária nenhuma concepção corológica. Porém a existência
destas relações, que as ciências sistemáticas e históricas aludem ou apenas podem
tratar, torna necessária uma ciência corológica especial da terra. Essa ciência é a
geografia (HETTNER, 2000, pp. 145-146, grifos nossos).
62

Como pudemos ver em destaque, a Geografia enquanto ciência corológica deve


buscar o ordenamento do espaço terrestre, este é seu objeto, como uma ciência especial
(acrescentaríamos espacial) da terra. A Geografia então partirá do seu ponto de vista, ―de
suas variações espaciais‖ (HETTNER apud., HARTSHORNE, 2006, p. 10), como uma
ciência do espaço, ocupando seu lugar, na modernidade, no campo das ciências.
Temos então uma relação cabal em Hettner que será de suma importância para
apreendermos o porquê de a Geografia ter se tornado uma ciência do espaço, um esforço
teórico-lógico sobre o espaço geográfico: uma espaciologia. Desde a herança kantiana da
lógica, da descrição e da acepção de espaço até o paradigma de ciência numa incessante
busca de afirmar a Geografia enquanto ciência, a concatenação não se desfaz, mas sim se
perpetua e toma os moldes das metodologias e personalidades dessa ciência. Assim o
espaço vai sendo conformando como um sujeito, pois sujeitará o homem e o cientista
através da fórmula espaço→homem. E como vimos já no começo do século XX o que
conhecemos hoje como um ―senso comum geográfico‖ já tomava corpo; e ainda no século
XX temos como base tais heranças, dos séculos XVI ao XVIII: de Descartes a Kant.
Podemos então, com auxílio do próprio Hettner, resumir a Geografia como ciência do
espaço, onde,

podemos afirmar que não se deve renunciar à concepção, historicamente válida, da


geografia como ciência corológica da superfície terrestre, ou ciência dos espaços
terrestres, que se organiza com base em suas diferenças e nas relações entre os
seus diferentes pontos, não só porque a lógica sistemática de outras concepções
não resulta nem historicamente comprovada e nem praticamente realizável, mas
porque, pelo contrário, constitui a exigência de uma sistemática das ciências
logicamente completa (HETTNER, 2000, p. 146, grifos nossos).

Então, será que continuamos a obedecer ao âmago das intenções científico-lógicas


de Hettner? Será mesmo a Geografia uma ciência do espaço? Realmente é uma exigência
lógica das ciências?
Tais questões buscaremos responder após averiguarmos se tal herança perdura em
nossos caminhos. Passemos agora ao maior seguidor e difusor das metodologias de
Hettner.
O nome que fechará o quadro metodológico da Geografia como ciência do espaço
será Hartshorne. Richard Hartshorne (1899 – 1992), fora geógrafo de formação, nascido nos
Estados Unidos, autor do principal trabalho de unificação epistemológica da geografia norte-
americana em 1939, a sua The nature of Geography. Lecionando na universidade de
Winsconsin, realizando uma vida de reflexão sobre a natureza científica da Geografia e seu
objeto conceitual de estudo. Através de suas propostas as abordagens de Hettner passaram
a ser discutidas, mas sem somente reproduzi-los e sim os desenvolvendo segundo sua
ótica. A produção científica de Hartshorne encontrará grande repercussão por seu caráter
63

amplo, na busca de uma teoria geral em geografia, uma Geografia Geral de caráter
metodológico (MORAES, 1993). O seu trabalho de 1939 supracitado, fora mundialmente
discutido, tratando longamente o processo do pensamento geográfico, abordando em
especial a ―escola alemã‖.
Nas palavras de Corrêa (2003, p. 18), o trabalho de 1939 sobre a natureza da
Geografia ―por sua vez, admite que conceitos espaciais são de fundamental importância
para a geografia, sendo tarefa dos geógrafos descrever e analisar a interação e integração
de fenômenos em termos de espaço‖. Nesse sentido, caberia à análise geográfica dos
diferentes espaços através da descrição de seus elementos singulares, interconectando o
físico e o humano. Reafirma-se a Geografia como uma ciência de síntese, no qual o espaço
absoluto (isotrópico, continente) seria onde as relações ocorreriam (o espaço relativo).
Assim a ciência geográfica teria o caráter ―de perceber a localização espacial e a sua
distribuição‖ (CAMARGO, 2005, p. 98). Tal inspiração de Hartshorne viera de Hettner em
segmento às idéias de Kant, como observado claramente em seu artigo de 1958
conceituando a ―Geografia como uma ciência do espaço, de Kant e Humboldt para Hettner‖
(HARTSHORNE, 2006). Nesse artigo o geógrafo norte-americano buscará a afirmação para
suas idéias das características intrínseca da Geografia, dando os contornos finais nas
acepções de Hettner, onde ―esse conceito não pode ser considerado como uma invenção de
um homem qualquer‖, mas como um ―reconhecimento consciente da incontável quantidade
de geógrafos que procuraram uma estrutura comum de referência para seus trabalhos‖
(ibid., p. 32).
Agora buscaremos o terceiro trabalho, em que Hartshorne fará a síntese
metodológica de suas propostas para a ciência Geográfica e seu objeto. Trata-se da obra de
1959 intitulada de Perspectives on the nature of Geography, que terá sua tradução de 1978
com o título ―Propósitos e natureza da Geografia‖. Segundo Moraes (1993, p. 87), será
apresentado por Hartshorne ―o conteúdo final de sua proposta. Esta vai ser a última
tentativa de agilizar a Geografia Tradicional, mantendo-lhe a essência de busca de um
conhecimento unitário, e dando-lhe uma versão mais moderna‖. Em nota à edição brasileira
que utilizaremos, Armando C. da Silva alerta que em seu trabalho, Hartshorne tem uma
concepção singular do objeto, visto através do método, colocando o problema do espaço e
do lugar, consubstanciados na idéia de área.
Nos primórdios de seu tratado sobre a natureza da Geografia, um entendimento é
cabal: ―o propósito da Geografia consiste em buscar a compreensão do caráter variável das
áreas‖ (HARTSHORNE, 1978, p. 22). A este aporte de método emerge o conceito de
―superfície terrestre‖, adotando uma idéia próxima a considerada por Carol, de ―crosta da
terra‖, através da integração dos cinco domínios diferentes: litosfera, hidrosfera, atmosfera,
biosfera, antroposfera – a sua síntese seria a ―geosfera‖ enquanto realidade concreta. Assim
64

temos a dicotomia afirmada, das variações de áreas (o espaço absoluto) versus a geosfera
(enquanto espaço relativo), no qual a Geografia tem como importância primordial a
―obtenção de conhecimentos sobre o espaço exterior‖ (ibid., p. 26). Esta será ―a meta da
Geografia‖, numa ―compreensão da superfície da terra‖ como ciência de síntese dos
fenômenos inter-relacionados (ibid., p. 38).
Essa combinação integrada de fenômenos inter-relacionados no mesmo lugar e
através do espaço será medida na Geografia pela significância, ou importância, humana. A
Geografia é uma ciência antropocêntrica, pois construída por entes humanos. Isto faz
Hartshorne afirmar que ―o objeto da Geografia, o mundo – até mesmo nas partes desse
mundo em que não há homens – é encarado como o mundo do homem‖ (ibid., pp. 47-48).
Tal afirmação é altamente sintética e esclarecedora, reafirma o paradigma secular
(moderno) de ciência como antropocêntrica e dominadora da ―natureza‖ (externa e interna –
da própria humanidade), além de condensar na acepção do objeto da Geografia o ―mundo
do homem‖, este não seria o espaço geográfico como produto humano? Não seria o objeto
atual da Geografia? Assim temos a medida humana em Geografia humana através desse
objeto, onde se transpõe da dicotomia absoluto/relativo para a produção humana a idéia de
espaço externo, uma camisa de força científica37.
Ao final de sua obra, Hartshorne se pergunta e induz-se a responder qual tipo de
ciência é a Geografia. E dessa forma chega à síntese de seus problemas, dos quais citamos
alguns; seria assim: ―o estudo que busca proporcionar a descrição científica da terra como o
mundo do homem‖ (ibid., p. 181), uma descrição cognitiva dos fenômenos espaciais, sejam
eles ―naturais‖ ou humanos, pois estão consubstanciados no conceito de mundo do homem.
A Geografia se define como ciência descritiva, corológica e antropocêntrica. Tal corologia
lógica daria o lugar da Geografia na classificação das ciências; no estudo das relações
através do espaço, neste ―mundo extraordinariamente variado que é a morada do homem e
o único espaço que ele é capaz de observar diretamente a maravilhosa diversidade dos
seres vivos‖ (ibid., p. 185). Temos aí o espaço enquanto morada do homem, alguma
coincidência com o discurso contemporâneo, mesmo na chamada ruptura ―radical-crítica‖?
No discurso metodológico de Hartshorne se conforma a Geografia dentre as ciências
do espaço, corológica, estudando a superfície terrestre com os fenômenos tendo valor para
o homem numa concatenação espacial lógica. Este é ―o complexo mundo da superfície da
terra‖, o seu método geográfico de análise: a ―compreensão e interpretação das variações
espaciais de lugar a lugar‖ (ibid., pp. 191-192). Então acreditamos que uma análise do
espaço geográfico pode ser crítica por ser lógica, e por termos a segurança científica de um

37
. Como não apreendermos isto através da proposta de Hartshorne (1978, p. 51, grifos nossos): ―a Geografia é a
disciplina que procura descrever e interpretar o caráter variável da terra, de lugar a lugar, como o mundo do
homem‖.
65

objeto de estudo. Não será mais uma prisão do objeto e da ciência contra a crítica e a
mudança do sujeito? Não buscando dar respostas fechadas e prontas prosseguimos para
ver se realmente este espaço não é uma ―camisa de força‖ para a Geografia científica.
Antes de darmos prosseguimento à ruptura metodológica da Geografia científica,
abarcaremos dois nomes de grande importância no tratamento da Geografia Humana: Jean
Brunhes e Max. Sorre (ambos da Geografia tradicional francesa). O que citaremos
brevemente será a relação do discurso com o espaço e a Geografia enquanto ciência,
demonstrando que nessa vertente ―humana‖ da Geografia a análise do espaço será algo
que se reafirmará com o tempo.
Jean Brunhes (1869 – 1930), fora um dos seguidores da proposta de Geografia
Humana lablacheana, desenvolvendo ―propostas próprias de definição do objeto‖. E em sua
maior obra ―Geografia Humana‖, fizera a proposta de uma ―classificação positiva dos fatos
geográficos‖ (MORAES, 1993, p. 74). Tal proposta será a fonte das críticas de M. Santos
(1978), que relaciona a obra de Brunhes ao positivismo marxista; da leitura do geógrafo
francês no fim do século XIX das obras de Marx entrelaçado com o positivismo, na busca de
creditar a Geografia enquanto ciência. Porém, em nossa leitura, não encontramos somente
essas problemáticas ressaltadas por M. Santos. Além de uma visão complexa do fenômeno
geográfico (através do princípio de conexão) temos uma pequena ligação do discurso de
Brunhes atrelada ao espaço enquanto conceito. Porém, em sua obra resumida, na última
seção, destinada ao ―espírito geográfico‖, encontramos lá uma breve discussão espacial;
não somente atrelado ao termo espaço, mas de suas características, como foram traçadas
cientificamente.
Na busca da adaptação humana às condições geográficas, nas palavras de Brunhes,
―alguns fatos geográficos vêm a ser, cada vez mais, os senhores absolutos do homem. Tais
fatos, que tendem a influenciar cada vez mais o destino dos grupos humanos – estes fatores
tirânicos da Geografia Humana do futuro‖ (BRUNHES, 1962, p. 446). No afã epistemológico
de Brunhes, tais fatos são os seguintes: o espaço; a distância; a diferença de nível. Brunhes
irá definir espaço como a superfície ocupada, mas também por ocupar, como base correlata
material na conquista do espaço. Tal acepção aproxima-se do ―espaço vital‖ ratzeliano,
porém com outras conotações. A distância seria o obstáculo a ser vencido; a diferença de
nível seria a tradução da luta econômica das sociedades, das suas riquezas em potencial a
serem conquistadas.
Podemos resumir a idéia, que chamamos espacial, de Brunhes na seguinte
expressão: ―o espaço, a distancia, a diferença de nível são condições e fatores do trabalho e
do povoamento humano (...) e não tomam lugar na geografia do homem, a não ser quando
animados pelo espírito do homem e entrosados com a nossa vida‖ (ibid., p. 448). O que
desejamos resumir é que Brunhes irá dar alguns indícios do que apreendemos com o
66

espaço geográfico da Geografia Humana contemporânea. Este, na teorização lógica da


Geografia científica, elaborou o espaço como fator tirânico da vida humana (é só voltarmos
os olhares para os trabalhos do início dos anos 1970), transformado em uma materialidade
que é produzida e habitada pela humanidade, assim como sendo também sua clausura.
Esse espaço será uma elaboração do que temos em germe em Brunhes, um espaço tanto a
priori quanto como algo produzido, uma espacialidade que remete à distância e às fontes de
recursos econômicos, além de ser fonte do trabalho humano, entrosados e entrelaçados
com seus interesses sociais. Tal similaridade do discurso será ainda maior quando nos
remetemos ao entendimento de Sorre, nele a relevância social do espaço será o ponto de
partida.
Maximilian Joseph Sorer (1880 – 1962), ou somente Max. Sorre, fora assim como
Brunhes discípulo de La Blache, o que identificará seu discurso teórico metodológico com o
termo gênero de vida. Nas palavras de Moreira (2003, p. 135), a ―Geografia Humana da
tradição é a que vamos encontrar em Max Sorre, talvez o seu último representante, antes de
aparecer a geração de Pierre George‖, prosseguindo explicando que ―Sorre tem em mente
uma geografia ecológica (...). A visão ecológica de Sorre casa-se com a dos gêneros de
vida, habitat e ecúmeno, dos clássicos da Geografia‖. Além de ter uma postura pouco usual,
até o momento, encontraremos também em Sorre uma interpretação espacial calcada no
homem e na sociedade: o espaço em Sorre será o espaço morada do homem; por isso da
ligação com o homem habitante. O caráter humano do estudo geográfico será ressaltado,
tornando-se a Geografia Humana algo mais próximo de uma ciência social, e, claro, o
conceito de espaço migra para essa proposição social.
Em nossa concepção, existe uma distinção no discurso de Sorre acerca do espaço.
Em seu texto de 1957, sobre a distinção entre o espaço do geógrafo e do sociólogo,
aparece sua acepção de espaço geográfico, na qual faremos uma contraposição ao espaço
humanizado, ou o ecúmeno. No início de sua dissertação Sorre (1984, p. 140) comenta que
―todas as noções relativas ao espaço, nas ciências da natureza e do homem, classificam-se
em três chaves: configuração, localização, divisão‖, tratando-se de um espaço terrestre e
não um abstrato. Tal acepção remete à geodésia, como localização base ás outras. Assim
em seu entendimento, ―o espaço geográfico é primeiramente este espaço geodésico‖ (ibid.,
p 141), sendo a noção de espaço ―consubstancial ao geógrafo‖ (ibid., p. 147). Tal espaço
geográfico, base de localização, configuração e divisão aparece como uma a priori em
Sorre, não mais como um a priori absoluto, em si, de Kant a Hartshorne, mas um a priori
material de localização como superfície terrestre. É tal acepção que apreendemos na frase:
―a localização de uma firma no espaço geográfico só tem interesse técnico‖ (ibid., p. 149); a
idéia de no espaço remete ao a priori material localizável da superfície terrestre.
67

Para frisarmos a ideia de que em Sorre, mesmo que com discussões sociais e
ecológicas dos fenômenos humanos, a base de sua proposição é de ―uma ciência dos
lugares‖ está em sua introdução de L‟homme sur La terre, onde ―entre as ciências da
natureza e do homem nenhuma outra situa em primeiro plano a localização dos fenômenos.
A Geografia é a disciplina dos espaços terrestres. Sua originalidade reside na natureza dos
objetos que descreve‖ (SORRE, 2003, p. 138, grifos nossos). Assim o pensamento da
Geografia como uma ciência social humana em Sorre dá-se pela união dessa acepção
espacial com o homem habitante, temos o espaço ecumênico, habitado (a morada do
homem). A inter-relação homem-espaço geográfico é sumariada na expressão: ―o ecúmeno
incorporou espaços proibidos aos homens‖ (ibid., p. 143); estes espaços enquanto
localização e configuração remetem ao espaço geográfico, agora incorporado ou
transformado pelo homem em sua morada, o espaço ecumênico (humanizado). A Geografia
Humana enquanto parte da Geografia Geral tratando da distribuição humana no espaço
superfície (geográfico), tratará de descrever cientificamente o espaço humanizado
(ecúmeno) – não é esta a herança que parecemos ter mesmo hoje com a ―adoção‖ de uma
postura mais ―crítica‖, de descrever o espaço geográfico produzido? Isto se encontra
embrionário em Sorre, no sentido de ―que as características essenciais da espécie humana
atuam em uma diversidade de meios, que se transformam com a diversidade dos modos de
vida, para desembocar na formação das paisagens humanas, isto é, no ecúmeno‖ (ibid., p.
141).
Fechamos nesse momento a Geografia Clássica e suas influências espaciais, com
Brunhes e Sorre tendo uma relação bem próxima com o que apreendemos hoje como o
conceito de espaço geográfico (mesmo que suas obras não sejam muito divulgadas, mas
como veremos, através de suas leituras chegaram até nós com outra ―roupagem‖). Agora
veremos rapidamente os movimentos de transformação na Geografia científica; de um lado
uma vertente chamada de ―pragmática‖ (da Geografia quantitativa e da Humanística), de
outro a vertente ―radical-crítica‖, com o que temos de mais usual atualmente na
epistemologia do espaço geográfico.
No primeiro momento dessa ―ruptura‖ encontramos a chamada ―geografia teorético-
quantitativa‖. Tal nomenclatura fora contestada por Moraes (1993, p. 105), pois atribui o
termo ―teorética‖ a má tradução do termo inglês ―theoretical‖, que remete ao teórico, então
temos o movimento do que tratamos como ―Geografia teórico-quantitativa‖. Seu movimento
fora intensificado nas décadas de 1950 e 1960, balizado nas idéias propositivas do
positivismo lógico, ou neopositivismo38; trazendo assim mudanças bruscas ao método

38
. O positivismo lógico fora um dos movimentos mais importantes do pensamento filosófico analítico, conhecido
também por ―neopositivismo‖ e por ―empirismo lógico‖. Tendo surgido nos anos 1920 com o Círculo de Viena, o
positivismo lógico manteve uma vasta influência durante cerca de trinta anos (influenciando assim o novo
68

científico da Geografia clássica ou tradicional de até então. Troca-se então um empirismo de


análise e observação direta por uma metodologia abstrata, com bases estatísticas.
Segundo M. Santos (1978) a busca dos defensores dessa ―nova geografia‖ era por
novos paradigmas e novos métodos, colocando em xeque a ―geografia tradicional‖, que se
encontrava ultrapassada, ou seria algo como uma ―não geografia‖. Dentro de tal movimento
de reformulação, encontramos duas vertentes que na base se confluem: a Geografia
quantitativa e a Geografia de modelos e sistemas. Nas palavras de Christofoletti (1982, p.
16), tal movimento de revolução quantitativa e teórica teve seus indícios desde a década de
1940, mas principalmente, tomando corpo com Schaefer (1953) e Burton (1963), além da
proposta dada por Bunge (1966), ―afirmando que a geografia devia ser vista como uma
ciência espacial‖ (CORRÊA, 2003, p. 20). Duas afirmações passam a ser uma constante na
Geografia científica: a Geografia como uma ciência social e do espaço; claro que distinto do
que temos hoje, mas dando os seus princípios de análise. Tal visão de social e espacial era
muito mais de intervencionismo acrítico do que ativo politicamente. Vejamos então algumas
metas básicas desse pensamento aplicado.
São cinco mais especificamente segundo Christofoletti (1982): 1) rigor maior na
aplicação da metodologia científica, calcado no positivismo lógico de uma metodologia
aplicável à execução da pesquisa científica, com a definição de seu objeto claramente
definido, sendo o da Geografia as organizações espaciais; 2) o desenvolvimento de teorias
relacionadas com as particularidades da distribuição e arranjo espaciais dos fenômenos,
através das teorias dispostas em outras ciências, nada diferente das propostas de Hettner e
Hartshorne, porém agora com o deslocamento do foco para o das organizações espaciais;
3) o uso de técnicas estatísticas e matemáticas para a análise das distribuições espaciais
dos fenômenos, por isso as denominações de ―Geografia Quantitativa‖, seria então uma
análise estatística, seriada e espacial; 4) a abordagem sistêmica servindo como instrumento
conceitual facilitador aos conjuntos da organização espacial, através das ideias de
ecossistemas e geossistemas; 5) o uso e a construção de modelos para estruturar as idéias
relacionadas ao funcionamento do sistema da organização espacial; assim esse modelismo
seria o instrumento de trabalho científico para se utilizar na análise dos sistemas das
organizações espaciais: um método de análise, do modelo, para o objeto, o sistema da
organização espacial.
Assim o conceito de espaço será cada vez mais o objeto-chave da Geografia
científica. Sendo esse espaço nesse movimento considerado ora como planície isotrópica,
ora como representação matricial. Temos então as idéias de Bunge e Harvey, no qual o

movimento geográfico dos anos 1950). Os elementos deste movimento, unidos por uma postura radicalmente
empirista e anti-metafísica (apresentada como a ―concepção científica do mundo‖), procuraram revolucionar a
filosofia através do uso dos recursos da lógica simbólica na análise da linguagem científica – assim fora atribuído
ao novo pensamento na Geografia cientifica uma ―verdadeira‖ ciência, pois calcada em tais parâmetros vigentes.
69

segundo tratará o espaço relativo, como relação entre os objetos; já Bunge analisaria os
fenômenos sociais e naturais pelo viés espacial comum. Essa acepção de Geografia como
ciência do espaço fornece uma idéia falsa de unidade. O espaço geográfico seria
representado pela matriz topológica do grafo, uma representação lógica não-ontológica.
Algo ainda como uma clausura de nosso modo de pensar; porque não um modo de ser,
vivido.
Dois autores podem servir de exemplo para essa acepção espacial da Geografia
teórico-quantitativa. O primeiro é Taaffe, que em seu artigo irá propor uma ―visão espacial
em conjunto‖, fazendo uma análise desde a visão ―homem-terra‖, passando pelo ―estudo de
área‖ até a ―visão espacial‖. Tal perspectiva é reforçada por Taaffe (1975, p. 19) na seguinte
afirmativa: ―atualmente, no início da década de setenta, a força e o momentum da visão
espacial é nítida no volume contínuo, diversidade e relativamente alta qualidade do trabalho
teorético, descritivo e matemático‖. Porém, é do Geógrafo francês Paul Claval, numa
contribuição não muito comentada da Geografia teórico-quantitativa39. Seu trabalho é
intitulado de ―A nova Geografia‖, lançado em Frances no ano de 1977. Utilizaremos a versão
portuguesa do ano de 1982 para apontar algumas questões pertinentes ao que já
verificamos na acepção de Geografia relacionada ao espaço lógico (geográfico).
No capítulo três de sua obra, Claval irá tratar dos fundamentos teóricos referentes ao
homem, a sociedade e ao espaço, explicando que ―a nova geografia debruça-se sobre o
papel do espaço na vida de cada um e no funcionamento da sociedade‖, no qual ―a
organização do espaço traduz o jogo destes factores‖, complementando sintéticamente que
―a teoria geográfica determina as dimensões espaciais da acção humana e dos mecanismos
de ajustamento das vontades sem os quais a vida social seria impossível‖ (CLAVAL, 1982,
p. 57). Nos subitens de número um e dois desse capítulo, o Geógrafo francês irá tratar de
forma direta, literalmente, o indivíduo e a sociedade como estando no espaço, e não como
sendo espaço. A fórmula epistemológica espaço→homem na Geografia científica já está
sendo cimentada, agora a formulação para apreender o homem e a sociedade humana é
pela ―prisão espacial‖, onde tal sociedade encontra-se arranjada. Vejamos os exemplos.
Primeiro: ―o universo em que o homem se desloca é limitado (...). o individuo opta no espaço
que a sua experiência anterior lhe fez conhecer‖; cabendo assim ao Geógrafo, ―interessado
em compreender a organização do espaço, a interrogar a sociedade‖ (ibid., pp. 64-68).
Quanto à sociedade no espaço, temos que estudar a sociedade e sua organização espacial,
através do qual ―o geógrafo define o papel do espaço neste funcionamento‖ (ibid., p. 77).

39
. O autor assume ter trabalhado com a chamada ―Nova Geografia‖ na década de 1960, em uma entrevista
concedida à Revista eletrônica dos estudantes de Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina:
Expressões Geográficas em novembro de 2008.
70

Assim temos a formação do espaço geográfico como espaço meramente lógico,


apartado da existência humana, sendo somente seu receptáculo e também como uma
camisa de força teórica, pelo qual somente esse espaço epistemológico conduz a um
discurso meramente geográfico; e, a Geografia se cientificizando torna-se somente um
discurso e não algo vivido. Tal relação de externalidade e sobredeterminação iremos
encontrar também nos dois movimentos mais recentes da Geografia: a chamada
Humanística (ou do comportamento) e na Geografia ―radical-crítica‖. Vejamos sumariamente
o que seus autores-base expuseram.
A chamada Geografia Humanística, ou como trata M. Santos (1978) da percepção e
do comportamento, será uma das novas correntes que a partir da década de 1970 surgem
como uma crítica ao ―modelo neopositivista de espaço‖ (CAMARGO, 2005, p. 100), assim
como o movimento da chamada Geografia ―radical-crítica‖. Este movimento da Geografia
Humanística será acompanhado de uma retomada da Geografia cultural segundo Corrêa
(2003). Suas bases teóricas estão na fenomenologia existencial, e de alguns filósofos base
desse ponto de vista como Edmund Husserl, Martin Heidegger, Maurice Meleau-Ponty,
Jean-Paul Sartre, entre outros. Nesse sentido ―a Geografia Humanística procura valorizar a
experiência do indivíduo ou do grupo‖ (CRISTOFOLETTI, 1982, p. 22), sendo o fundamento
dessa abordagem o ―fato de que cada indivíduo tem uma maneira específica de apreender o
espaço, mas também de o avaliar‖ (SANTOS, M., 1978). Os principais precursores desse
novo discurso geográfico foram de Yi-Fu Tuan, Anne Buttimer, Edward Relph, Augustin
Berque, entre outros. Veremos agora brevemente algumas proposições acerca do conceito
de espaço, que embora carregue uma herança das tradições geográficas, científicas e
filosóficas apresentam algumas perspectivas ―rompedoras‖ com o paradigma vigente.
Os principais focos de análise da Geografia Humanística perpassarão pelo espaço
vivido, pelo espaço social e o lugar. Nas palavras de Corrêa (2003, p. 30) ―o lugar passa a
ser o conceito-chave mais relevante, enquanto o espaço adquire, para muitos autores, o
significado de espaço vivido‖ – tal temática, a do espaço vivido, será vinculada, dentre
outras coisas, à Geografia francesa lablacheana. Camargo (2005) irá nos explicar que o
espaço vivido será uma relação com a dimensão da experiência humana dos lugares (uma
forma de o sujeito perceber o objeto). Assim, essa corrente de pensamento irá privilegiar a
experiência do grupo ou do indivíduo, através do contexto no qual tal indivíduo valoriza e
organiza (muitas vezes afetivamente antes de ser efetivamente) seu espaço, assim se
relacionando. É assim que Tuan (apud., CHRISTOFOLETTI, 1982, p. 23) analisa que
―espaço e lugar estão no âmago da nossa disciplina‖; que não deixa de ser a Geografia
científica, mas pelos moldes ―humanísticos‖.
O espaço não deixará de ser, mesmo com pontos de vista altamente inovadores para
a tradição geográfica, um ―conceito-chave‖ que define a Geografia enquanto ciência: o seu
71

objeto lógico. Serão ―ideias a respeito do espaço e do lugar‖ (TUAN, 1982, p.144, grifos
nossos). Em Buttimer podemos perceber uma grande tendência ao espaço social, com
grande influência de Sorre (BUTTIMER, 1986), ou de uma ―experiência humana do espaço‖
(BUTTIMER, 1982, p. 173). Vejamos os termos, mesmo o foco humano ter sido aumentado,
tal proposta ainda é presa à lógica (idéia) e ao espaço (espaço vivido e social, e lugar); a
fórmula espaço→homem se mantém, mesmo que de forma tênue. Vejamos o que isto irá
ser encontrado também na chamada Geografia ―radical-crítica‖.
A tendência de uma nova ruptura contra as bases e paradigmas científicos vigentes
é o nosso último patamar de análise sobre o espaço, como objeto geográfico por excelência.
Apesar da maior contribuição dada a Geografia científica, em nosso ponto de vista, através
da postura de julgamento ideológico, de engajamento político e de contestação ao
cientificismo; este novo movimento (não único, mas de um corpo geral de questionamento
social e interno da própria Geografia) também se depara com a fórmula espaço→homem,
pois apesar de sua proposta crítica da sociedade burguesa a reformulação se dá no corpo
metodológico de uma ciência, que tem até então o espaço como objeto. A reformulação
deste objeto faz-se urgente no sentido de uma mudança do real social e do teórico
concebido; este espaço (objeto) fora reformulado para dar cabo das propostas críticas de
apreensão e mudança do mundo, tal qual estava sendo reproduzido. Nesse sentido
partiremos para uma sumariada averiguação de como algumas dessas bases foram sendo
reformuladas e também reproduzidas.
Elegemos a terminologia Geografia ―radical-crítica‖ (entre aspas, pois não se
formulou um consenso genérico sobre esta postura, devido seus diferentes parâmetros de
interpretação crítica), pois relaciona a ―tendência esquerdista e a postura contestatória de
seus praticantes‖ (CHRISTOFOLETTI, 1982, p. 26), com a postura de cunho metodológico
de elaboração marxiana, crítica à sociedade vigente e suas conjunturas atuais, e ao
paradigma científico da própria Geografia até então. A ―ruptura‖ científica fora dada às duas
tendências até então atreladas à Geografia: a Geografia tradicional e a Geografia teórico-
quantitativa. E juntos na busca desta mudança estavam geógrafos tanto marxistas quanto
não-marxistas (CORRÊA, 2003). O período do movimento é processual, onde foram
percorridas as décadas de 1960 (algumas irrupções radicais), de 1970 (com o amalgamento
crítico), e de 1980 em diante (período relativo às mudanças brasileiras).
Na década de 1960, a proposta será mais voltada para as mudanças nos ―ares‖ da
Geografia tradicional francesa, principalmente com o grupo, que intitulará um livro
homônimo, da Geografia ativa; principalmente dos autores Pierre George e Yves Lacoste.
Embora George tenha introduzido ―pioneiramente alguns conceitos marxistas na discussão
geográfica‖ (MORAES, 1993, p. 119), sua abordagem não será próxima da que se
desenvolverá pós-década de 1970. Seu capítulo na obra supracitada, intitulado ―Problemas,
72

doutrina e método‖, trará claramente o seu entendimento do objeto e do método da


Geografia. Segundo George (1973, p. 16), ―a geografia aparece assim como uma ciência do
espaço, em função do que ele oferece ou fornece aos homens e como uma ciência da
conjuntura e do resultado das sucessões de conjunturas‖, dando prosseguimento a esta
afirmação de que ―como ciência do espaço ela é chamada a fazer balanços do que
representa globalmente este espaço para os homens que aí vivem‖ 40. Outra fonte de
renovação nessa década encontra-se nos Estados Unidos, através da circulação da revista
Antipode: a radical journal of Geography41, desde 1969.
Os anos 1970 além de uma repercussão do que estava sendo germinado será
também um enveredamento no materialismo histórico-dialético, tratado futuramente como
um materialismo histórico-geográfico. Fora dessa tendência encontra-se o papel de
continuar a postura radical e ativa da década anterior que emerge o papel ativo das obras
de Lacoste, principalmente de seu artigo A Geografia e de seu livro, daí desmembrado e
aprofundado, A Geografia serve antes de mais nada para fazer a guerra. Ambos, segundo
Moreira (2007), irão causar grande reboliço dentre os Geógrafos e os estudantes, pelo
caráter contundente dos temas que estavam em voga na conjuntura ideológica vigente. No
seu artigo, Lacoste irá demonstrar que o espaço é o objeto de análise crítica da Geografia,
devendo esta distinguir o espaço real do espaço objeto do conhecimento, mas por quê?
Pois a conceituação e o controle deste espaço é político. Então o papel social do geógrafo
seria desmistificar tal espaço, para que se torne o conceito de espaço um objeto de reflexão
coletivo. Assim Lacoste irá dar o desfecho de seu artigo, como uma proposição, da
―construção do conceito de espaço‖, resumido na seguinte afirmativa: ―o desenvolvimento da
crise global da nossa época faz com que seja cada vez mais indispensável empreender a
construção metódica dos instrumentos conceptuais que permitam apreender o espaço, em
que se enredam as múltiplas contradições que fazem a crise‖; assim, ―o futuro da geografia
está em constituir-se verdadeiramente como ciência, que pode fornecer os meios de melhor
compreender o mundo agindo aí mais eficazmente‖ (LACOSTE, 1977, p. 242, grifos
nossos). Tais propostas serão retratadas n‘A Geografia serve..., com a intenção de
denunciar o modo de pensar o espaço como função do raciocínio geográfico. Afinal, deve-se
―saber pensar o espaço para saber nele se organizar, para saber ali combater‖ (LACOSTE,
1988). Esta proposta de Lacoste atrela novamente o papel da Geografia ao espaço
40
. Em outra obra de George, esta publicada individualmente, trata em um de seus temas ―o espaço‖, visto como
―o tema principal para a geografia‖. Dentre outras citações, o geógrafo francês expõe que ―o espaço geográfico é
espaço com três dimensões, contendo unidades desigualmente propícias à instalação humana‖, já o espaço
―produzido‖ pela ação humana é o ―espaço ordenado‖, que é ―o espaço humanizado‖, onde ―a ordem podendo
ser o efeito de evolução empírica ou de vontade de organização passada ou presente‖ (GEORGE, 1969, pp. 30-
41) – veja que o tempo aparece no espaço humanizado, porém o que buscamos ressaltar é a relação entre
espaço e Geografia, a externalidade entre homem e espaço e a sobredeterminação do objeto em relação ao
sujeito.
41
. O sitio eletrônico da revista está disponível em: <www.antipode-online.net>. Encontra-se disponível, dentre
outros artigos, alguns ―clássicos‖ da revista.
73

pensado, apreendido, lógico. Porém, agora com a função política de criticar o espaço real-
vivido, mas, mesmo assim temos as relações vistas na Geografia científica. Outra influencia
de Lacoste seria a inauguração da revista Hérodote, editada desde 197642.
As influencias da década de 1970 foram mais amplas e serão calcadas além das
propostas de Marx e Engels, em pensamentos externos à Geografia, como Manuel Castells
e Henri Lefebvre. Castells com sua obra de 1975 A questão urbana fará um longo debate
atrelando à estrutura urbana o debate sobre a teoria do espaço. As propostas de espaço
como produto material humano e como estrutura organizada, serão expressas
sinteticamente como a ―organização social do espaço‖ (CASTELLS, 1983, p. 158). Além
desse debate, estava em voga a descoberta do importante filósofo marxista acerca da
discussão do espaço: era Henri Lefebvre. A sua leitura marxista de certo modo também
influenciou a busca aos clássicos de Marx e Engels, assim como outras leituras clássicas da
teoria marxiana. Livros como A revolução urbana e A cidade do capital, apontam para a
discussão urbana do espaço, mas seu principal trabalho será A produção do espaço, de
1974. Nele serão desenvolvidas as idéias contidas no Espaço e política, sobre ―essa teoria
do espaço social‖ (LEFEBVRE, 2008, p. 17), no que o filósofo pretendia como uma ―ciência
do espaço‖ através do método da ―economia política do espaço‖. Assim que a Geografia de
cunho ―radical-crítico‖ vai reformulando suas bases, e vemos surgir dentre as influências de
Castells e Lefebvre trabalhos como o de Bunge em 1971, Anderson em 1973 (publicado no
Brasil em 1977), e Peet em 1978. Porém, temos duas fundamentais ebulições internas na
Geografia: o trabalho A justiça social e a cidade de David Harvey em 1973 e Por uma
geografia nova de Milton Santos de 1978. A grande curiosidade está em Harvey, por dois
motivos, o primeiro por ele ter participado da chamada ―Geografia teórico-quantitativa‖ e
segundo por ter sido ele ―o precursor na análise do ‗espaço criado... como o princípio
supremo da organização geográfica‘‖ (SMITH, 1988, p. 139). A leitura de Harvey é
justamente através da dicotomia absoluto/relativo, no qual o espaço criado (produzido, ou
humanizado) domina o espaço efetivo (físico, ou a natureza dada). O que podemos ver é um
aprisionamento no debate geográfico, e até não estritamente, em Harvey ao espaço43. Mas
isso não foge muito ao que vimos em M. Santos.
Milton Santos irá construir em Por uma geografia nova uma sistematização de ideias
em que ele irá levar e desmembrar para toda vida, assim como a cooptação da chamada
Geografia ―radical-crítica‖ brasileira de tal discurso. Desde o início da década de 1970, M.

42
. Ver também no sítio: <www.herodote.org>.
43
. Em três livros amplamente divulgados mais recentemente por Harvey, A condição pós-moderna (1989);
Espaços de esperança (2000); e A produção capitalista do espaço (2001), a prisão espacial está presente em
alguns de seus temas. No primeiro, expressa ideias de experiência espacial e compressão espaço-tempo (esta
amplamente difundida), no segundo constrói seu discurso através do que poderiam ser espaço utópicos de
esperança urbanos, e no último trata da produção da organização através da dicotomia processo social e infra-
estrutura física, um teoria em busca sempre do ajuste espacial.
74

Santos trabalhara com a questão relativa ao espaço. De 1975 é seu artigo ―Espaço e
dominação‖ de cunho marxista e descobridor das idéias lefebvreanas. Em 1977 publica na
Antipode o altamente difundido artigo ―Sociedade e espaço‖, de onde podemos trazer a
citação: ―o espaço é a matéria trabalhada por excelência. Nenhum dos objetos sociais tem
uma tamanha imposição sobre o homem, nenhum está tão presente no cotidiano dos
indivíduos‖ (SANTOS, M., 1977, p. 18, grifos nossos). Grifamos aqui justamente para
mostrar a relação entre espaço e produção social, e a sobredeterminação do objeto (tanto
do conhecimento, através dessa própria idéia difundida, quanto do ―real‖) em relação ao
sujeito. No seu livro coletânea de artigos Pensando o espaço do homem, temos ―Da
sociedade à paisagem‖ de 1978, no qual irá dar os primeiros passos em prol das categorias
espaciais, como forma, função e estrutura; além de propor uma epistemologia do espaço
(SANTOS, M., 2004), aquilo que seria uma espaciologia, ou o papel da Geografia enquanto
ciencia do espaço. Em sua obra máxima de 1978, Por uma geografia nova, irá atrelar à
problemática científica da Geografia a sua ―viuvez do espaço‖, pois ―é por isso que tantos
geógrafos discutem tanto sobre a geografia – uma palavra cada vez mais vazia de conteúdo
– e quase nunca do espaço como sendo o objeto, o conteúdo da disciplina geográfica‖
(SANTOS, M., 1978, p. 91, grifos nossos). Os grifos somente reforçam o que fora também
grifado na citação anterior. No prosseguimento de sua obra irá tratar de reconstruir o seu
conceito de espaço, como social, o espaço humanizado, sendo este o espaço geográfico, ou
de interesse da Geografia. Assim define também este espaço tanto como um fator social
como uma instância, um condicionante condicionado, através do qual o último de uma
instância como uma estrutura ou o espaço organizado será altamente perigoso no que se
relaciona com a sobredeterminação, ou na fórmula que aprisiona o homem ao espaço.
Essa problemática surge sutilmente em duas ocasiões. Primeiro no artigo ―O espaço
como categoria filosófica‖, onde irá expor que ―o espaço é uma estrutura social dotada de
um dinamismo próprio e revestida de uma certa autonomia, na medida em que sua evolução
se faz segundo leis que lhe são próprias‖ (SANTOS, M., 1988, p. 15, grifos nossos), ou de
seu livro Espaço e método, no qual trata o homem como um ―elemento do espaço‖, assim
como as firmas, as instituições, o meio ecológico e as infra-estruturas (SANTOS, M., 1985,
p. 6). Afinal o homem está submetido às leis externas a ele como nas propostas de
Descartes a Newton? O espaço é algo que é dominador do homem, possuindo um caráter
de entidade acima do mundo e por isso coloca a humanidade como simples elemento seu,
apartado existencialmente? São questões que parecem envolver mais uma problemática de
definição lógica do que ontológica e este parece ser o maior imbróglio para a acepção de
espaço: o não tratamento ontológico. O que M. Santos tentara fazer em sua Natureza do
espaço fora um resgate tardio, com discussões menos dicotômicas, mas que não dão cabo
75

(ou não deram tempo de dar por seu falecimento) do espaço ontológico; este espaço
continua sendo lógico.
Na Geografia brasileira, especificamente, tivemos alguns movimentos de renovação.
Moreira (2007) irá dar como exemplo o 3º. ENG de 1978 junto ao Por uma geografia nova
de M. Santos. Podemos perceber também nos textos do livro organizado pro Moreira,
Geografia: teoria e crítica de 1982, assim como outra organização, essa de M. Santos,
também de 1982, Novos rumos da geografia brasileira44. No livro organizado por Moreira
encontramos textos ―clássicos‖, inclusive um dos que demonstram a concatenação de suas
próprias idéias. O seu ―A geografia serve para desvendar máscaras sociais‖, Moreira (1982)
irá tratar o espaço como o objeto da geografia, ou seu ―chão‖, porém como a Geografia é
uma ciencia social tal espaço é socialmente produzido: um espaço social. Moreira traz à
baila a idéia de espaço como instância e seus arranjos espaciais, semelhante às idéias
(como vimos até certo ponto perigosas) de M. Santos. É dessa coletânea o texto de Porto-
Gonçalves enaltecendo a Geografia por seu movimento de crise e de postura crítica. Seu
posicionamento é contagiado pelo momento nas suas palavras: ―torna-se, portanto, mais
que necessário pensar o objeto da geografia. O espaço deve ocupar o centro dos debates
dos geógrafos‖ (PORTO-GONÇALVES, 1982, p. 110). O posicionamento desses dois
autores, ícones do movimento brasileiro de renovação, demonstra a centralidade de se
redefinir o espaço epistemológico para poder se combater o real social. Atualmente a
postura de ambos é contrária a este ponto de vista, tanto que reutilizaremos os mesmos na
releitura que faremos dos clássicos, pois os colocamos nessa categoria por motivos que
explicitaremos depois. Por hora, mesmo sabendo que existem inúmeros exemplos
nacionais45 dessa espaciologia, ficamos por aqui, somente dando mais três exemplos da
Geografia que dará prosseguimento aos pensamentos de Harvey.
Soja será o principal seguidor das ideias propostas por Harvey em sua obra
Geografias pós-modernas. O geógrafo irá relacionar Geografia com espaço, História com
tempo, logo em seus primeiros apontamentos do trabalho; algo próximo da herança kantiana

44
. Para uma perspectiva mais ampla desse processo de renovação na Geografia brasileira consultar o artigo de
Armando C. da Silva (1983), intitulado ―A renovação geográfica no Brasil – 1976/1983 (as geografias crítica e
radical em uma perspectiva teórica)‖. É curioso constatar, em estudo sobre as categorias de análise utilizadas no
período por Silva, que os termos: espaço, espaço geográfico, arranjo espacial, forma espacial, formação
espacial, organização espacial, espaço social, espaço produzido, espaço-tempo e produção do espaço, ganham
conotações relevantes no debate crítico; por ser uma reformulação do conceito de espaço, que apesar da crítica
muitas vezes contundente, acaba por ser uma teoria em volta dela mesma.
45
. Podemos citar o texto do livro organizado por Moreira, de M. Santos, ―Marxismo e subdesenvolvimento‖, no
qual o autor coloca as relações entre a Geografia (entendida por ele como espaço) e marxismo. O texto de
Moreira, no livro organizado por M. Santos os Novos rumos..., numa continuação das análises teóricas sobre os
arranjos espaciais; ou, no texto de Corrêa voltado especificamente para o espaço geográfico através de sua
própria leitura, dado a grande importância que este termo alcançou no debate geográfico. Corrêa (2003)
retomaria a centralidade do espaço em seu artigo ―Espaço, um conceito-chave para a Geografia‖, demonstrando
as diferentes leituras espaciais pelas correntes da Geografia científica. Andrade (1984), outro nome importante
para a Geografia brasileira, também teorizará sobre o espaço geográfico, caracterizando-o como produto da
ação humana, sendo necessária para a Geografia a análise da ação humana do processo de produção do
espaço geográfico no modo de produção capitalista.
76

que vimos alhures. Além desta correlação, Soja reafirmará o debate lefebvreano em relação
com Harvey, do espaço criado diretamente inter-relacionado com a base social da produção
deste espaço. O espaço como uma materialidade externa ao homem, sua produção social
que o aprisiona, pois ―o espaço socialmente produzido é uma estrutura criada‖ (SOJA, 1993,
p. 101). O outro autor é Smith, que em uma única frase elucida-nos sobre sua acepção de
espaço geográfico, que embora tenha uma postura crítica quanto à construção social do
conceito (e não somente material), acaba por aderindo ao debate pelas heranças que sofre
de Harvey. Então a sua ―preocupação é com o espaço geográfico que podemos considerar,
no seu sentido mais geral, como o espaço da atividade humana, desde o espaço
arquitetural, numa escala mais baixa, até a escala de toda a superfície da Terra‖ (SMITH,
1988, p. 110). Veremos que também Soja e Smith, assim como o precursor Harvey, têm
idéias que podem ser exploradas de forma fecunda pela nossa proposta ontológica e não
meramente espacial ou de definição científica, mas, acima de tudo de cunho crítico.
O espaço é realmente o objeto de estudo da Geografia científica? Devemos
realmente nos prender a essa incessante definição meramente conceitual (discutir em
pormenores o que é o objeto ou sujeito geográfico) ou realmente mudarmos o que
discordamos, ou ajudarmos pelo menos mudando a nós mesmos? A Geografia deve ser a
perpetuação desta ―espaciologia‖, como alarmava Souza (1988)46, onde há claramente uma
sobredeterminação do objeto para com o sujeito? As respostas não são fáceis de serem
dadas, principalmente porque ―descobre-se agora que não é tão fácil falar do sujeito na
geografia‖ (MOREIRA, 2007, p. 33). O espaço sempre aparecera perigosamente com o
papel de sujeito. Este é o real fetiche, científico, do espaço – e será que transformado em
senso comum? –, no qual tal sujeito, o homem, aparece sujeitado ao que ele chama de
objeto, o espaço geográfico, que nada mais é do que o espaço lógico (de uma proposta
epistemológica secular). Cabe discutir uma questão ou um objeto geográfico em meio a
tantos problemas de inúmeras ordens, na maior parte causada pela forma como se conduziu
a humanidade? Afinal o aspecto antropocêntrico de estranhamento da humanidade (a
externalização entre o que o homem se considera para com a sua acepção paradigmática
de ―natureza‖) não conduz a esse entendimento ou mudança, pois sabemos que o mundo
não é divinamente posto ao nosso serviço, e justificável pela ciência47. Não pretendemos
aqui dar prosseguimento a este imbróglio lógico do espaço geográfico, porque assim como

46
. Marcelo Lopes de Souza em seu artigo fará uma crítica contundente a esta incessante tendência dos
geógrafos de serem ―cientistas espaciais‖ – os ―espaciólogos‖. Concordamos com Souza no sentido de que o
espaço aparece muitas vezes ―para os espaciólogos e alguns outros, contudo, esse palco é ao mesmo tempo
‗ator‘‖, assim, ―o Espaço interfere no devir dos homens‖ segundo esta proposta (SOUZA, 1988, p. 23).
47
. A problemática aqui não é de Fé em divindade ou não, mas sim do paradigma instituído através da civilização
ocidental através do qual a concepção de Deus e a institucionalização da ciência se inter-relacionaram para as
justificativas que observamos no senso público comum – seja para ratificar o que já fora praticado, seja para
embasar o que deverá ser feito; através de um antropocentrismo sem precedentes, que assola o que o próprio
Homem elegeu como Natureza (tudo o que lhe é oposto).
77

Silva (1986) o vemos, nessa produção conceitual secular, como um ente ideal produzido
pela razão, uma entidade lógica. Buscamos a partir de agora o espaço como ser (o espaço
ontológico), num primado da existência sobre a consciência, através do qual a categoria
espaço deva ser considerada como ente ontológico: modalidade ontológica do ser.
Assim damos prosseguimento, e desculpamos o leitor por alguns pormenores por
nós até aqui explicitados, que embora pareçam desnecessários são de cabal importância
para o entendimento de todo esse aprisionamento lógico, que é fruto de um estranhamento
existencial (uma externalidade da vida que veremos no próximo capítulo). É por respeito ao
leitor e a nós, que aqui escrevemos, o motivo de perdurarmos nessa abordagem, para
buscar as bases em que se formulam a nossa critica ao pensamento vigente – e ao modo
de ser. Libertemo-nos destas amarras e partamos para a nossa construção.
Vejamos agora, alguns pontos de ruptura e algumas contra-correntes que assim
como a nossa pretende além de uma nova forma de ver o mundo, uma nova existência para
a humanidade e sua relação com o ser.
78

CAPÍTULO II
O ESPAÇO ONTOLÓGICO: UM AUTOCONHECIMENTO CRÍTICO DA EXISTÊNCIA
HUMANA

Não se trata de pessimismo, mas daquele


realismo que afirma que a raiz dos problemas
humanos reside no próprio homem.
(Armando Corrêa da Silva)

nossa principal busca neste capítulo será de co-relacionar realismo e um


autoconhecimento crítico. Como dissera Armando Corrêa da Silva, não se trata de
pessimismo, pois a realidade que nos assola deve ser averiguada de forma crítica,
principalmente com o intuito de um autoconhecimento. E repitamos o que será perpassado
por todo este capítulo: as problemáticas da existência humana são autocriação dela mesma
– não existe um culpado externo. Desta forma daremos prosseguimento ao nosso trabalho
que continuará parecendo desgastante e árduo, principalmente para a leitura, mas, o que
iremos buscar retratar de modo conceitual pode ser explicado em boa hora pela frase de
Martins (2007, p. 41): ―esse ir e vir não é mero jogo de palavras, nem forma prolixa vazia,
mas sim a dificuldade da expressão escrita de uma dinâmica viva‖.
Através desta tentativa de expressar a dinâmica ontológica viva, primeiramente
trataremos de buscar superar a dicotomia do espaço absoluto/relativo através da concepção
do espaço totalidade, no qual o espaço relacional será o ponto de partida e o espaço como
ser-essência será o ponto de chegada. Prosseguiremos com a passagem para o espaço
ontológico como o existencial da existência humana, para isso veremos as construções de
uma ontologia possível na Geografia científica, perpassando pela Filosofia. O ponto-chave
desta primeira parte será a análise combinada entre processo e forma, espacialidade e
espaço ontológico como características da particularidade da existência, não somente
humana. O segundo momento será oposto, este irá distinguir as características particulares
da existência humana na Sub-totalidade Terra. Primeiramente através de uma abordagem
um pouco mais longa sobre o estranhamento, como exteriorização da vida e posteriormente
com a análise crítica da auto-alienação material humana, através do trabalho alienado.
79

2.1. O espaço como totalidade

Adentramos neste debate com a citação de Armando Corrêa da Silva (1994, p. 80),
onde ―a Terra é pequena mas o espaço é infinito‖. Tal assertiva parece-nos referenciada
num modo de pensar o espaço segundo o modelo cartesiano-newtoniano-kantiano, porém
tal infinitude espacial não remete ao paradigma dominante, mas, ao que veremos, a uma
dissolução de uma parcela deste modelo teórico vigente. Tal dissolução, como um
eufemismo para a busca de uma ―ruptura total‖, irá ter eclosões de diversas correntes e em
diversos períodos históricos. Vejamos sintéticamente algumas formas de conceber a ciência
e o espaço, divergindo do paradigma dominante baconiano-cartesiano-newtoniano da
civilização ocidental.
Podemos começar simplesmente com a dicotomia civilizacional (em processo de
cooptação pela chamada globalização empreendida pelo ―mundo‖ ocidental às demais
humanidades – e vidas, em geral – do planeta Terra) entre ocidente/oriente. Apesar de
terem muitas características perniciosas também no seu modo de existência, como
machismo e classismo de castas, as noções espaciais (não exatamente a formulação de um
conceito) orientais tendem mais a um holismo do que meramente a uma dicotomia. Embora
a presença do Yin-Yang seja um exemplo básico dicotômico, sua posteridade tende a um
inter-relacionamento, algo próximo de uma espacialidade provida pela acepção da mandala.
Esta é uma palavra de origem sânscrita, que significa "círculo" e em geral designa toda
figura organizada ao redor de um centro, sendo uma representação geométrica da dinâmica
relação entre o homem e o Cosmos. Não se trata de uma geometria de propósitos
euclidianos, nem de uma ideia cósmica apartada entre divindade/homem/natureza, tal como
concebemos no ocidente, mas de uma exposição estético-visual, de retorno à unidade de
um espaço sagrado. É uma representação do inter-relacionamento entre o macrocosmos e
o microcosmos, no qual o círculo representa o Cosmos e a eternidade, já o quadrado o
mundo construto humano. Tal círculo tenta passar a forma básica do universo, uma ―ordem‖
de totalidade da natureza. Nesse sentido, milenarmente e em oposição aos parâmetros
científicos do mundo ocidental existe uma acepção próxima de um espaço como totalidade:
a mandala – com noções distintas das que presumimos ser ―natureza‖, ―humanidade‖,
―cosmos‖, ―divindade‖, etc48.

48
. Para algumas curiosidades a mais sobre a mandala, consultar o sítio eletrônico:
<https://studybuddhism.com/pt/budismo-tibetano/tantra/tantra-budista/o-que-e-uma-mandala>.
80

Figura 1: ―Durgatiparishodhana‖, uma típica mandala tibetana.

No ocidente tivemos desde as abstratividades matemáticas até a biologia,


dissidências teóricas com o paradigma moderno de ciência. As geometrias não-euclidianas
do espaço como métrica da forma em George Riemann que irá influenciar na Relatividade
Geral eisnteniana do espaço-tempo contra o espaço absoluto de Newton. A monadologia de
Leibniz contra o espaço newtoniano-kantiano, relacionando corpo material com espaço.
Algumas pinturas e litogravuras de Mauritis Escher e Salvador Dalí, em uma confluência
entre as partes retratadas, dando uma espacialidade relacional onde a própria obra é uma
totalidade sem limites, dependendo do visualizador. O próprio Immanuel Kant, na sua
―terceira crítica‖, alterando sua acepção de espaço vinculada ao espaço absoluto da física
newtoniana. A proposta do ―paradigma de complexidade‖, envolvendo alguns nomes
diversos da ciência do mundo ocidental como Morin, Capra, Prigogine, Stengers, Maturana,
entre outros49. A teoria de Gaia, vendo a Terra como um superorganismo vivo segundo
Lovelock. A teoria dos fractais, onde tais fractais seriam a substância caótica e complexa do
universo, uma contracorrente à ordem humana do heterogêneo através da ordem universal
do homogêneo (uma espacialidade como uma mônada contida na formação interligada das
coisas). Ou na radicalidade da biologia filosófica de Monod, no qual o universo se fez
através do acaso e da necessidade, sem nenhuma lei divina ou natural – uma ruptura com
os parâmetros científicos e religiosos que buscam um início, um fim e um meio para todas
as coisas. Nessa teoria Manod (1976, p. 96) afirma que ―apenas o acaso é a origem de cada
novidade, de cada criação da biosfera‖; assim pode-se tentar esquecer o evolucionismo

49
. Para alguns detalhes do processo histórico desta ‖teoria de complexidade‖, consulte Almeida (2004), em seu
artigo, que serve de introdução ao livro Geografia: ciência do complexus, ―Mapa inacabado da complexidade‖.
81

mecânico e o criacionismo divino como objetividades últimas ligadas à humanidade –


principalmente a ocidental-androcêntrica-branca-judaica-cristã.
Mais especificamente, o que nos ocupa por hora são as acepções divergentes de
espaço, algumas ―heterotopias epistemológicas‖ através do qual emergirá o espaço
relacional, o espaço como totalidade e o espaço como ser. Averiguemos o espaço relacional
para criar um ponto de partida de mudança desta tópica – do lógico para o ontológico, do
fragmentado para a totalidade.

2.1.1. O espaço relacional como ponto de partida: a superação da dicotomia

Nessa abordagem propositiva escolhemos o espaço relacional, justamente por


seguirmos alguns passos já trilhados por Armando Corrêa da Silva. Em dois momentos,
Silva (1978 e 1982) irá fazer uma proposta do espaço como ser a partir do ponto de ruptura
encontrado em Harvey (1980). Apesar de não tratar explicitamente do ser, Harvey apontará
para uma complementação (mais do que uma superação) da dicotomia absoluto/relativo. No
caso específico de Silva a proposta é mais inquietadora, de reformular a acepção de espaço
fugindo da dicotomia, principalmente da ideia comum de um espaço receptáculo, vazio e
imaterial. Tal acepção do espaço relacional emerge mais como um ponto de partida do que
uma ―ruptura‖, porém urge tal heterotopia – uma nova tópica diversa da que concebemos.
Podemos citar dois autores que contemplaram esta abordagem heterotópica: Lefebvre
e Harvey. O primeiro, através de seu discurso sobre a forma urbana. Esta forma entendida
não como forma em si, como um ente ―geométrico ou plástico‖, mas como ―uma disposição
espacial‖ (LEFEBVRE, 2004, p. 109). A análise de Lefebvre sobre forma urbana abarca a
apreensão tanto da forma quanto do conteúdo; se ligando ―de um lado, à lógica da forma, e,
de outro, à dialética dos conteúdos‖ (ibid., p.112), aproximando-se assim da análise do
processo e da forma50. Mas, para nosso interesse atual, a sua ―abertura‖ se dá através das
Heterotopias, que o autor chama de ―ordem distante‖, ou o ―outro lugar‖ (ibid., p.120); são
possibilidades de rupturas da forma. O segundo autor a reutilizar este termo é Harvey. Este
busca a ―raiz‖ do conceito, que fora elaborado por Foucault no ano de 1966 em sua obra ―As
palavras e as coisas‖. Neste ínterim, emerge uma citação de Foucault, por intermédio de
Harvey, com a intenção de explicitar a primeira abordagem das heterotopias pelo filósofo, no
qual: ―as heterotopias são perturbadoras, é provável que devido a solaparem secretamente
a linguagem‖ (FOUCAULT apud., HARVEY, 2006a, p. 241). Outra fonte que Harvey irá
remeter-nos é Hetherington, que irá resumir o conceito ―como espaço de ordenação fluida‖,
sendo ―um exemplo de maneiras alternativas de fazer as coisas (...). Logo, a heterotopia

50
. Posteriormente faremos uma discussão da inter-relação processo-forma como espacialidade e espaço
ontológico.
82

revela que o processo de ordenação social é justamente processo, em vez de coisa‖


(HETHERINGTON apud., HARVEY, 2006a, pp. 241-242).
Como podemos ver, estas abordagens de Harvey em referência a Hetherington e
Foucault caminham basicamente no sentido do discurso, mais das palavras do que das
coisas; sendo as heterotopias possibilidades de mudança dos entes lógicos. Lefebvre irá
pensar como vimos, de forma menos rígida, porém não avança muito no conceito, o que irá
fazer Foucault ―numa palestra proferida em 1967‖ (HARVEY, 2006a, p. 241), sendo
publicado somente em 1986, em um artigo intitulado ―Outros Espaços‖. Nesta abordagem
Foucault irá recorrer às formas plásticas e geométricas, como o cemitério, os navios e os
motéis. Entendemos que Foucault faz uma análise audaciosa sobre o espaço, não somente
no âmbito epistêmico, mas, principalmente no âmbito existencial, experimentado e vivido.
Foucault (2001) trata como simultaneidade: próximo-longínquo ou, lado-a-lado-disperso,
buscando em sua explanação estas diferentes formas através das relações. Este é o ponto-
chave, a superação através do relacional. Outro Geógrafo que irá travar um diálogo entre as
Heterotopias de Foucault e a acepção de relacional é Soja. Segundo o autor ―o espaço
heterogêneo e relacional das heterotopias de Foucault não é nem um vazio desprovido de
substância, a ser preenchido pela intuição cognitiva, nem um repositório de formas físicas a
ser fenomenologicamente descrito em toda a sua resplandecente variabilidade‖ (SOJA,
1993, p. 26, grifos nossos).
Como podemos ver, o discurso sobre o espaço – sobre outros espaços –, é um fato
complexo, mas não impossível por ser complexo!
As heterotopias devem buscar a superação tanto do discurso quanto da existência
espacial, pois a existência espacial humana não é somente processo em vez de coisa; é a
relação processo e forma. Cabe a nós auxiliar na superação (em linguagem mais radical
caberia o termo ruptura) deste modo de ser hegemônico do pensamento e da práxis
ocidental, este enraizamento da existência espacial humana em um único discurso
dominante (a abordagem espacial presa ao discurso do ―duplo‖: absoluto-relativo), através
da concepção relacional do espaço; este pode ser outro espaço como ponto de partida. Por
este sentido, entramos no campo de análise do relacional, ou mais precisamente: do espaço
relacional; este que será trabalhado por Harvey e revisto por Armando C. da Silva. Antes
temos algumas propostas, não necessariamente relacionadas com o espaço relacional
diretamente, que visam outras alternativas ao modelo dicotômico absoluto/relativo.
Immanuel Kant, como ressaltamos, teve uma acepção de espaço, que a nosso ver
foi não-interpretado. Escolhemos o não em lugar do mal para dar ênfase ao sentido de que
a sua ―terceira crítica‖, tanto no âmbito da filosofia quanto no das ciências (em nosso caso,
principalmente da Geografia), não foi levada a cabo de interpretação do espaço. Somente
foi exaustivamente analisado o espaço a priori e externo da ―Crítica da razão pura‖, não o de
83

sua ―Crítica da faculdade do juízo‖, sua obra de 1790. Nesse sentido é que Kant não foi
interpretado.
Comecemos pela releitura de Kant. Para tal, citemos uma das passagens finais de
sua obra:

(...) considere-se que a força motora que atribuo é uma força de repulsão. Nesse
caso o corpo recebe (enquanto eu ainda não coloque ao seu lado nenhum outro
corpo contra o qual ele exerça essa força) um lugar no espaço, mais ainda, uma
extensão <Ausdehhnung>, isto é, espaço nele mesmo, e além disso o
preenchimento do mesmo através das forças repulsoras das suas partes. E
finalmente recebe também a lei deste preenchimento, que consiste no seguinte: a
razão da reclusão das partes tem que decrescer na mesma proporção em que
cresce a extensão do corpo e aumenta o espaço que este preenche com as mesmas
partes através desta força (KANT, 2008, p. 322).

Atentemos para as seguintes palavras: corpo, espaço, extensão, preenchimento e


partes. Nessa reformulação da acepção kantiana de espaço, o corpo, recebe um lugar no
espaço, mas é também extensão, ou melhor, tem-se a relação espaço-corpo. Corpo é
espaço-extensão nele mesmo. A abstração do espaço em relação ao corpo é desconstruída,
pois a cada extensão do próprio corpo (pois não é mais o espaço externo que é extenso)
aumenta-se espaço. Esse espaço kantiano é homem(-corpo)-espaço. Não há apartamento
nem dominação, a extensão do corpo é a do espaço e vice-versa. Porém, a problemática do
homem como sujeitado pelo espaço ainda não é resolvida. Outro caso de mudança é
atribuído a George Riemann (1826 – 1866). O matemático alemão de vida e obra curtas,
fora altamente impactante na matemática, abrindo novos rumos para o entendimento do
espaço. Nas palavras de Smith (1988, p. 115), ―o século dezenove viu o desenvolvimento
das geometrias não-euclidianas, especialmente com Riemann‖. Tal geometria baseia-se no
postulado dos espaços curvos, diferente da geometria euclidiana do espaço plano. Na teoria
de Riemann o espaço era conceituado como múltiplo n-dimensional, ou seja, o espaço seria
uma métrica da forma. Porém tais construções eram puramente abstratas, teorias sem
materialidade. Será isto o que fará Einstein com sua Relatividade Geral.
O físico alemão Albert Einstein (1879 – 1955) fará justamente a referência material
da matemática riemanniana. Seu espaço n-dimensional terá uma aplicação material.
Segundo Sousa Santos (2002, p. 23) a profunda crise do paradigma dominante será dada a
partir da revolução científica de Einstein e a mecânica quântica. Isto é o que Moreira irá
tratar como uma quebra do conceito de espaço na ciência, no qual ―Einstein reformula as
bases da física de Newton introduzindo a subjetividade do olhar como conteúdo efetivo da
percepção e conceito do espaço que leva a física clássica a ser substituída pela física da
relatividade‖ (MOREIRA, 2008, p. 63). Em dois artigos de 1905, Einstein (até então
desconhecido) introduziu a tendência que seria a base para a Relatividade Geral, a teoria
especial da relatividade – este passará a ser chamado de Annus Mirabilis, ou ano
84

miraculoso. Carlos Santos (2009, p. 14) irá explicar que o espaço passa a não ser mais
concebido como um vazio, mas um ―manancial de energia e matéria (...) como algo inerente
a tudo que se possa imaginar‖. O espaço tridimensional dará lugar ao espaço-tempo tetra-
dimensional, recombinando espaço e matéria, onde a curvatura do espaço-tempo é causada
pela presença da matéria. Não existe então movimento espacial sem movimento temporal.
Isto é, no espaço-tempo não é possível a um corpo se mover nas dimensões espaciais sem
se deslocar no tempo. Mas mesmo quando não nos movemos espacialmente, estamos nos
movendo na dimensão temporal (no tempo). Portanto, no espaço-tempo estamos sempre
em movimento. Tal é a base espaçotemporal para a Relatividade Geral, porém, a luta de
Einstein contra os postulados newtonianos não foram totais, pois o espaço continua a ter
prioridade sobre a matéria. Uma subordinação da matéria ao espaço, não possuindo uma
recombinação desejada entre os dois. Isto parece estar filosoficamente mais próximo das
acepções de Leibniz.
O alemão Gottfried Leibniz (1646 – 1716) irá contra o pensamento de Descartes, e
será também opositor ao seu contemporâneo Newton. A base de seu pensamento é a
―teoria das mônadas‖51. Surge com esta teoria o espaço-monadológico. Contudo, ele está na
contramão do pensamento científico, que vai tomando como base o rigor matemático do
espaço-geométrico (absoluto/relativo) cartesiano-newtoniano; ora, por esse motivo Leibniz
torna-se esquecido. Na filosofia de Leibniz, na sua verdadeira metafísica, nega-se a
existência da matéria por si mesma, assim como a do espaço e do tempo. Para Leibniz o
mundo é constituído por entidades fundamentais, as mônadas, que existem totalmente
isoladas umas das outras, não estando em interação nem sequer em termos causais. Cada
mônada contém na sua natureza uma imagem completa de todo o universo, o que explica
como, sem interação, as mônadas possam exibir uma evolução coerente ao longo do
tempo.

51
. Basicamente, Leibniz irá formular sua teoria com base em um ser indivisível, um átomo. Esta seria uma visão
de essência geral e monista, que não abarca a existência. Fato este que irá criticar Silva (1982), como veremos
posteriormente. Citemos a leitura de Heidegger sobre esta metafísica da substância de Leibniz: ―a palavra que
Leibniz escolhe para identificar a substancialidade da substância é característica. A substância é mônada. A
palavra grega monas significa: o simples, a unidade, o um, mas também: o separado o solitário‖ (HEIDEGGER,
1996, p. 203).
85

Figura 2: Ilustração da curvatura do espaço-tempo causada pela presença da matéria.

O espaço leibniziano é relacional por existir somente através das relações dos
corpos entendidos enquanto matéria. Existem coisas e relações espaciais entre elas, mas
não há qualquer espaço com existência independente, o espaço em si, tal como não há um
"espaço relacional" com existência independente. Segundo Myrce Gomes (1994, p. 90),
Leibniz afirma que, ―se não houver objetos não haverá espaço‖, nesse sentido Leibniz irá
afirmar que o espaço é infinito, semelhante à afirmação de Armando C. da Silva, pois não há
uma porção espacial que não seja ocupada por um objeto; não existe o espaço vazio (o
vácuo), não existindo assim, lugar que não seja ocupado pela matéria. Para citar o próprio
Leibniz: ―eu não digo que a matéria e o espaço são a mesma coisa; eu digo apenas que não
há pontos no espaço onde não haja matéria; e que o espaço em si mesmo não é uma
realidade absoluta‖ (LEIBNIZ apud., GOMES, 1994, p. 93).
É por esses motivos que Armando C. da Silva irá tomar da abordagem de Harvey,
pois este irá discorrer sobre o espaço relacional em dois momentos: o primeiro em uma
análise sobre a ―natureza do espaço‖ (visando sua essência); e o segundo, através de uma
conclusão ontológica52. No primeiro momento o Geógrafo destaca que a sua proposta de
espaço relacional é do ―espaço tomado, a maneira de Leibniz, como estando contido em
objetos, no sentido de que um objeto existe somente na medida em que contém e
representa dentro de si próprio as relações com outros objetos‖ (HARVEY, 1980, p. 5). O
autor cita Leibniz, por estar inter-relacionando a essência mesma do espaço com a
―monadologia‖, ou a teoria das mônadas.

52
. Outro motivo que suscitamos para a utilização da escolha do espaço relacional de Harvey (tomado ao modo
de Leibniz) por Armando C. da Silva é por ter sido este o tradutor da versão original do livro. Dando assim uma
maior proximidade com o tema e a proposta.
86

Em uma primeira abordagem, Silva (1978) irá encontrar no espaço relacional de


Harvey, uma implicação ontometodológica. Entendendo neste espaço relacional de Harvey
o espaço como ser. Posteriormente, em uma auto-avaliação crítica, percebe que ―no
entanto, essa solução apresenta um problema, ou seja, o espaço não se põe como ser‖
(SILVA, 1982, p. 77), pois sendo comparada à monadologia de Leibniz, está envolto numa
solução monista, ―na consideração do espaço como uma única substância, irredutível a
qualquer outro aspecto do real‖ (ibid., p. 82). Então, o espaço não se coloca como ser; pois
não vai da totalidade à particularidade: o ser como essência-movimento-existência. Sendo
ser, deve se mover. Indo ao encontro da segunda assertiva sobre a acepção do espaço
relacional, Harvey, nos dará um caminho mais significativo e de estatuto ontológico para seu
conceito. O autor irá utilizar da categoria totalidade, e se expressará do seguinte modo:
―uma conseqüência que se segue é que cada elemento (assim como as mônadas de
Leibniz) reflete dentro de si todas as características da totalidade porque ele é o lugar de
uma série de relações dentro da totalidade‖ (HARVEY, 1980, p. 250). A categoria totalidade
recebe a conotação de essência, e cada elemento como existência: o ser em ato. Podemos
caminhar em direção do entendimento do espaço como ser, agora, abarcando a categoria
totalidade. Deste modo, duas visões críticas de mundo aparecerão para o diálogo: a
dialética e, a mais recente, a teoria de complexidade. Ambas contribuem para a análise do
ser, com a totalidade e a relação parte-todo.
Assim, o espaço relacional é somente um ponto de partida – ou, de forma mais
radical e menos imparcial: um ponto de ruptura.

2.1.2. O espaço totalidade: o ser e a essência revelada

Armando C. da Silva propusera ―o espaço geográfico como totalidade‖ (1988, p. 9);


nossa proposta perpassa essa abordagem, pois entendemos o espaço geográfico como um
esforço de definição teórica do objeto científico, um modo de ser epistemológico – não
ontológico. Pensamos o espaço enquanto totalidade, ou melhor, o espaço totalidade que se
mostra como ser-essência do universo. Tal abordagem da ―totalidade‖ pode ser lapidada
para a ideia de que ―o todo é a parte e a parte é o todo‖ (SILVA, 1992, p. 131). Essa
proposta segue a tendência do paradigma de complexidade, através da recursividade, no
qual a totalidade não é o todo, não é o conjunto (ou a soma das partes) e nem é somente
mais do que a soma das partes, e sim uma característica (ou qualidade) de um organismo
complexo – uma essência revelada. Nossa proposta é de um espaço como ser-essência,
mas para chegarmos até esta forma de pensar, vejamos alguns olhares sobre o olhar da
totalidade.
87

Na chamada teoria de complexidade, ou como Morin (1990, p. 210) explicita


―paradigma de complexidade‖, abre-se um debate epistemológico recursivo e que visa a
conexão. Sabemos que não devemos confundir totalidade com sistema (MOREIRA, 1980), e
nem mesmo tentar simplificá-la, pois é ―insimplificável‖ (MORIN, 1990, p. 211), contudo, as
bases esquemáticas da totalidade, via teoria de complexidade, são de grande credibilidade
e auxílio didático. São os pares recursivos: uno-múltiplo e todo-partes; além de recorrer a
uma abordagem de que o todo é mais do que o todo (nas retroações de todo-parte-todo-
parte-...). Seria algo como uma macro-unidade, porém sem fundição entre as partes, ou
mesmo sem confusão entre elas. A recursividade do todo às partes e vice-versa, assim
como do uno ao múltiplo (como diverso) sugere uma acepção do Todo que tem como
característica o Uno, enquanto uma essência indivisível, porém tal essência encontra-se na
diversidade de suas partes, daí o Múltiplo que não se conflui com o Todo, mas em que cada
parte tem sua característica, ou Particularidade.
Esta exemplificação é um dinamismo vivido, orgânico, porém não como máquina,
assim como Morin (ibid., p. 202) explica que ―temos de compreender o ser, a existência, a
vida como qualidades emergentes globais (...). a vida é um feixe de qualidades emergentes
resultantes do processo de interações e de organização entre as partes e o todo‖. Desta
forma, por ser algo vívido e complexo torna-se algo impossível de axiomas mentais, com
simplificações e reduções; nesse sentido as noções classicamente dicotomizadas no
pensamento ocidental sofrerão uma conjunção através da recursividade: uno-essência-todo-
universo-mundomúltiplo-existencialidades-particularidades-partes. Não há disjunção
sistêmica, mas algo integrado onde cada parte pode ser um todo para outra parte e assim
consecutivamente. Esta forma de apreensão pode casar-se com a teoria de Gaia: o planeta
Terra como um Todo parte do Todo-universo, compostos pelo mesmo ser-essência. Seria a
própria Terra então um macroorganismo vivo. Assim, Lovelock (apud., BOFF, 1995, p. 36)
define ―a Terra como Gaia, porque se apresenta como uma entidade complexa que abrange
a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo‖. Temos uma visão de totalidade, no qual ―a
complexidade nos organismos vivos se mostra pela presença do princípio hologramático‖
(BOFF, 1995, p. 47), como uma totalidade orgânica, em que este princípio hologramático
apresenta o paradoxo dos sistemas em que a parte está no todo assim como o todo está na
parte – temos o que expressou Armando C. da Silva. É a totalidade como ser-essência
presente em cada parte do universo.
88

Figura 3: ―Gala desnuda mirando al mar‖, de Salvador


Dalí – um exemplo em sua arte do princípio
hologramático.

Já a abordagem totalizante por via da dialética encontra algumas premissas


basilares também de suma importância para o debate, como por exemplo: ―a totalidade é
mais do que a soma das partes que a constituem‖ (KONDER, 1992, p. 37); ―a modificação
do todo só se realiza, de fato, após um acúmulo de mudanças nas partes que o compõem‖,
o ―que assinala a transformação qualitativa da totalidade‖ (ibid., p. 39). O método dialético
visa principalmente à realidade concreta, logo, todo movimento teórico de totalização é com
o intuito de mudar o real, o que Kosík veio a chamar de totalidade concreta (KOSÍK, 1995)53.
Essa totalidade concreta não é somente algo pensado, onde se atribui um conteúdo ao todo,
com a qualidade das partes (ou particularidades) é um infinito processo de auto-criação, no
qual o todo recria a si mesmo na interação das partes54. Então não temos uma Totalidade
vazia, nem de significado, nem de movimento (processos). Como fala-nos Campos (2001, p.
87) que uma parte não pode ser desvinculada do todo que a caracteriza.
Estas duas acepções distintas de se apreender a totalidade, formam uma base geral
para o entendimento do ser, da essência, do movimento e da existência. Relacionando as
partes e o todo, principalmente na Geografia acadêmica, que perdeu seu caráter de síntese

53
. ―Sem a compreensão de que a realidade é totalidade concreta – que se transforma em estrutura significativa
para cada fato ou conjunto de fatos – o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou a coisa
incognoscível em si‖ (KOSIK, 1995, p. 44).
54
. ―Creio ser tão impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, como conhecer o todo sem conhecer
particularmente as partes‖ (PASCAL apud., GOLDMANN, 1967, p. 6).
89

(mas virou um recorte-do-recorte-do-recorte de estudos de caso distribuídos em espaços


lógicos). Podendo agora retornar com a abordagem da Ontologia em Geografia.
Através de duas premissas, uma de Armando Corrêa da Silva e outra nossa,
buscaremos tornar inteligível este outro espaço pensado e praticado pela analítica da
ontologia.
Temos que: o todo é a parte e a parte é o todo.
A Totalidade é o ser como potência. A essência universal dos entes55, de todas as
partículas vivas (não por terem atestado de vida pela ciência, mas por serem um complexo
orgânico – um modo de ser orgânico) do universo.
Assim, a qualidade do Todo é de ser-essência – esta é a totalidade. O uno por
essência, porém, todo ser é uno e múltiplo. Este múltiplo como as possibilidades de ser em
ato. Temos então a divisão aristotélica do ser, no qual deveremos compreender este ser-
potência e ser-ato, cabendo ressaltar que, ―é pela distinção da essência e da existência que
melhor seremos levados à divisão em potência e ato‖ (JOLIVET, 1968, p. 273). Então temos
o ser enquanto essência (uno e potência) e o ser enquanto existência (múltiplo e ato). A
essência é aquilo pelo qual uma coisa é o que ela é. Troquemos então o ser por espaço,
teremos então que qualquer ente presente em nosso universo é espacial, resumindo: o
espaço é a totalidade, como essência universal dos entes! A existência é o que confere à
essência o ato de existir. Emerge então o espaço ontológico, a existência espacial que cada
ente-em-ato de ser criou para si. Neste momento, faz-se mister, duas abordagens de suma
importância para o debate da Ontologia em Geografia, o que irá debater o próprio sentido
primeiro desta ―disciplina‖ – será lógica ou ontológica? Existe somente nas ideias ou como
modo de ser da(s) existência(s), dentre elas a humana? –, a relação entre: Totalidade,
Subtotalidade Geográfica e Particularidade.
Assim partimos para a nossa questão principal, começando por esse breve ponto de
partida dos outros espaços, inspirados que fomos à acepção de Foucault: no qual espaços
podem ser outros, concebidos e vividos; mudando a tópica de método paradigmático do
pensar, da lógica. A ontológica é outra desde o primado da existência, mas que somente foi
concebida de outra forma, por outra tópica (ou paradigma) do pensamento, separando os
entes do espaço.
Mudemos nossa existência e nossa Geografia, neste momento, pois partiremos mais
bem situados à ideia de que: a Terra é pequena, já o espaço, é infinito!

55
. ―Chamamos de ‗ente‘ muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que falamos dessa ou daquela
maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 42). Nesse sentido também,
ente pode ser tanto uma categoria lógica (das ideias e do conhecimento – epistemológico) quanto, ontológica,
existencial.
90

2.2. Do espaço totalidade ao espaço ontológico: construções da ontologia possível

Primeiramente, gostaríamos, antes de adentrarmos nas questões mais específicas


do ser e do ser geográfico, de fazermos duas ressalvas. A primeira, breve, e de autocrítica
das ciências, principalmente da Geografia ―oficial‖ (acadêmica). A segunda reafirmando a
análise do todo na parte e da parte no todo.
Para tal, utilizamos do fragmento de um dos aforismos de Nietzsche (2005, p. 47,
grifos nossos), onde o filósofo diz que ―a partir da arte, pode-se, depois, passar mais
facilmente para uma ciência filosófica realmente libertadora‖. Partindo da profundidade
reflexiva, podemos tratar as palavras grifadas de outra maneira: arte, pelo modo de ser da
existência (seja ela humana ou não, neste caso, a humana pode ser ressaltada), que se dá
pela prática experimentada, que não deixa de ser uma arte, de refazer a vida, assim como
nos lembra Fromm (1964, p. 26): ―viver é em si mesmo uma arte (...). na arte de viver, o
homem é simultaneamente o artista e o objeto de sua arte‖; e, ciência filosófica, por
Geografia Filosófica, uma proposta audaciosa de analítica ontológica, via da Filosofia, para
que possamos realmente nos libertar, e não somente na ideia, mas acima de tudo na vida
realmente em ato. Assim é que ―a Geografia não tem por que continuar a ser um ‗pequeno
mundo‘ no qual vivem apenas professores, geógrafos profissionais e estudantes, olhando
circunspectos e orgulhosos o seu próprio umbigo‖ (SILVA, 1983, p. 134).
Para a segunda ressalva, vamos explicar brevemente (em termos mais ―palpáveis e
Geográficos‖) ―esta totalidade do infinito‖ (SARTRE, 1966, p. 35) que é a relação recursiva
parte-todo.
Assim, temos que estabelecer basicamente uma distinção no que queremos tratar
como a relação essência (totalidade) com existencialidade (particularidade). O Ser-essência
aqui tomado como substância, enquanto substância primeira, acepção em que o termo
denota o fundo essencial interno das coisas, em oposição à sua forma e ao processo. Aqui,
a essência é o Ser próprio ou verdadeiro das coisas, que produz, sustenta e torna possível a
forma e o processo aparente (aparente como aparecimento e não externalidade somente)
das mesmas. Como Totalidade, aferimos o seu caráter de ser como essência dos entes,
mas num âmbito abstrato dos fatos Geográficos, para tal, utilizaremos, visando à
aproximação para a Geografia, a idéia de ―Subtotalidade Geográfica‖ (SILVA, 1980, p. 269),
que em nosso entendimento, aparece como recorte do ser em essência universal, por ser
uma totalidade expressa como recorte específico: o do Planeta Terra; por isso da Sub-
Totalidade Geo(Terra)-Gráfica (ato do ser Terreno)56. Temos então o Espaço-Terrestre
como esse recorte do ser, na qual a espaço-essência aparece como possibilidade de se

56
. Utilizamos a palavra Terra não como terra-chão ou superfície terrestre, mas como o recorte do ser (espaço)
em essência do Planeta Terra.
91

tornar ato através das particularidades. Neste momento surgem as existências Terrestres. É
o Um (uno) manifestadamente múltiplo através de cada particularidade, como expressão da
totalidade. Assim, as partes são os entes orgânicos do nosso planeta, sob o Espaço-
terrestre como essência, onde, neste momento de análise tomemos uma das partes: o
homem, ou melhor, a humanidade (para eliminar o caráter ―machista‖ e androcêntrico da
ciência e da espécie humana). O Todo, como forma da existência, o espaço humano, mais
especificamente o espaço ontológico humano, o que podemos tratar como mundo, ou
mundo-da-humanidade (evitando novamente o termo homem – como mundo do homem). E
agora entendemos o porquê do todo na parte e da parte no todo, pois, o todo sendo o
mundo e a parte a humanidade (―homem‖), ―o mundo do homem é aquele que nós fazemos
e que nos faz, onde fazemos a partir de nós, a partir do que fizemos‖ (SARTRE, 1966, p. 3).
Partimos agora para o entendimento deste ser da existência espacial humana. Esta
particularidade que tem um modo de ser peculiar como ser-no-mundo heideggeriano. Para
tal façamos uma regressão ontológica até os termos tratados na Geografia, visando
apreender e mudar este processo recursivo, que se constitui como nosso ser-no-mundo
(processo que se inter-relaciona como construção da forma). Mas primeiro, trataremos de
dar um breve histórico da construção do tema da Ontologia na Filosofia, como um dos
alicerces do modo de pensar do mundo ocidental. Em seguida trataremos do tema da
Ontologia em Geografia, com algumas propostas que permearam e ainda ocupam lugar no
debate da Geografia científica.

2.2.1. Ontologia e filosofia

A análise acerca do tema da Ontologia toma quase sempre uma conotação de difícil
entendimento, tanto na Filosofia quanto na Geografia. A ciência geográfica, principalmente,
por estar calcada num ―espírito que se quer ‗terra a terra‘‖ (LACOSTE, 1977, p. 198),
empírico e nos moldes de método do paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano como
vimos alhures. Este breve fator, não impede uma discussão de tal análise na Geografia,
como propusemos: filosófica! Deste modo, buscaremos expor da seguinte forma a
sequência de análise deste item: primeiramente, fazendo uma regressão quanto à
Ontologia, seu ―surgimento‖ e sua análise na Filosofia; segundo, listaremos alguns autores
(de modo geral) que trataram sobre a Ontologia; e finalmente, buscaremos estabelecer os
parâmetros dos quais utilizaremos para nossa abordagem, em específico.
92

Como já dissemos, e cabe sempre ressaltar, a Ontologia é um tema, parte ou


tratado, proveniente da Filosofia57, sendo necessário, antes de adentramos na análise
proposta, fazer uma breve regressão sobre Ontologia na Filosofia.
Ontologia58 é um tema proveniente da Filosofia. Muitos consideram Parmênides de
Eléa (nascido por volta de 530 antes da era cristã) como o ―iniciador‖ da Ontologia.
Principalmente em seu poema Sobre a Natureza (ou Acerca da Natureza), onde distingue
entre o Ser e o Não-Ser, fundando as bases da metafísica ocidental. Seu pensamento
estabelecia ―a necessidade de tomar as coisas em geral enquanto são, as coisas enquanto
entes. E o ente não foi nem será senão o que é, ou seja, o seu ser‖ (MARTINS, 2007, p. 34),
como a essência de todos os entes. Em Aristóteles (nascido em 384 antes da era cristã), o
que chamou de ―filosofia primeira‖ sendo depois chamado de Metafísica, buscou dois temas
de estudo: o ser como ser (ou ente enquanto ente) e o ser ou ente por antonomásia, ou o
ente ao qual estão subordinados os demais entes. Este como Deus (objeto geral da
Teologia)59. Em alguns momentos, a disciplina ―geral‖ de caráter formal foi novamente
denominada ―filosofia primeira‖ e, no início do séc. XVII (da era cristã) começou-se a se
propor um nome para esse tipo de metafísica: seria a Ontologia. Indo à história deste termo,
temos que o primeiro a usar na sua forma grega foi Rudolf Goclenius (1613), o que vinte e
três anos depois passou a ser usado com mais frequência na transcrição latina, agora
empregada por Abraham Calovius (Calov). Segundo este autor, a scientia de ente é
chamada Metaphysica no que se refere à ―ordem das coisas‖ e chama-se mais
apropriadamente ontologia, quando diz respeito ao próprio tema ou objeto. Em 1642 J.
Caramuel discorreu sobre o objeto da metafísica, que é o ens e chama-se ontologia porque
é ontosophia, ou seja, entis scientia. A ontologia foi introduzida como termo técnico em
Filosofia por Jean Le Clerc (ou Ionannis Clericus), no segundo tratado, intitulado ―Ontologia

57
. A fim de dar um entendimento sobre o termo filosofia, buscamos três definições gerais. Filosofia é proveniente
da palavra grega philosophía, e segundo Jolivet (1968, p. 20), ―entre os antigos gregos, a Filosofia era a ciência
universal; abarcava quase todo esse conjunto de conhecimentos que agrupamos sob os nomes de ciência, de
arte e de Filosofia‖; já Morente (1970, p. 26), abarca desde a estrutura verbal da palavra, versando que ―é
formada pelas palavras gregas philos e sophia, que significam ‗amor à sabedoria‘. Filósofo é o amante da
sabedoria‖. O próprio filósofo diz que a palavra vai se modificando já a partir de Heródoto, ―de modo que, já nos
primeiros tempos da autêntica cultura grega, filosofia significa, não o simples afã ou o simples amor à sabedoria,
mas a própria sabedoria‖. Como nossa terceira opinião, Heidegger, irá dissertar, dentre uma longa abordagem
sobre o que é filosofia, no sentido de que ―a filosofia é epistéme tís, uma espécie de competência, theoretiké, que
é capaz de theorien, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta. É por isso
que a filosofia é epistéme theoretiké‖, indo mais adiante dizer que, o que a filosofia perscruta é: o ente, ―a saber,
sob o ponto de vista do que ele é, enquanto é ente‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 33-34).
58
A Ontologia aflora então como uma busca pelo sentido-de-ser do ente-homem sem ser dado ou absoluto. O
entendimento da existência humana é fruto de um questionar ontologicamente o ser do homem; sem a abstração
metafísica. Contudo, como nosso viés de análise é calcado nas observações de fenômenos cotidianos, faz-se
necessário a abordagem fenomenológica, ou melhor, uma análise fenomenológico-existencial da coexistência
humana. Estes encraves dados pelas abstrações metafísicas serão analisados através e como fenômenos
cotidianos, do processo de estereotipagem.
59
. A Metafísica oscilou desta forma, tradicionalmente entre ambos os temas de estudo. A primeira seria a
―metafísica geral‖ que estudaria o ser ou ser ―comuníssimo‖. A segunda chamada de ―metafísica especial‖
estudaria temas como Deus, a alma, etc. Desta forma a necessidade de se distinguir esses dois temas de estudo
(com nomes distintos) fez-se no séc. XVI.
93

sive ente in genere‖ (1772). Le Clerc pode ser considerado um verdadeiro precursor de
Wolff, este último foi quem sintetizou e popularizou a ontologia em 1730. A Ontologia foi na
chamada escola Leibniz-Wolff, a primeira ciência racional por excelência. Deste modo, por
meio do nome ontologia, designava-se o estudo de todas as questões que afetam o
conhecimento dos ―gêneros supremos das coisas‖. Nesse caso, a sobreposição da ontologia
à metafísica geral já representaria, um primeiro passo em direção àquele processo
mencionado de divergência das significações nos vocábulos: metafísica e ontologia.
A ontologia (ou ―metafísica geral‖) ocupar-se-ia só de formalidades, embora de um
formalismo distinto do exclusivamente lógico, aceitas, sobretudo por tendências neo-
escolásticas do séc. XIX, que de algum modo tiveram contato com o ―wolffismo‖. Immanuel
Kant faz referência aos transcendentais, no sentido de sua ontologia, chegando a concebê-
la como o estudo dos conceitos a priori que residem no entendimento e têm seu uso na
experiência. Mora diz que a mesma imprecisão que vige na questão dos transcendentais faz
que a ontologia seja entendida de maneiras diferentes: por um lado concebida com ciência
do ser em si (último e irredutível em que todos os demais consistem ou dependem), nesse
caso sendo necessariamente metafísica (ciência da realidade ou existência); por outro lado,
a ontologia parece ter como ―missão‖ às determinações daquilo em que os entes consistem
e daquilo em que consiste o ser em si (sendo assim uma ciência das essências e não das
existências, precisamente como uma teoria dos objetos). Alguns autores ratificam esta
separação entre metafísica e ontologia, outros, argumentam ao contrario, considerando que
a divisão é inaceitável, e até deplorável, pois quebra a unidade de investigação do ser
(esse), tema da metafísica-ontologia.
Partindo para o século XX, temos alguns autores como Feibleman, que apresenta
uma ―ontologia finita‖ destinada a mediar entre a atitude metafísica e a atitude positivista,
trata-se de um positivismo ontológico. A ontologia converte-se assim numa serie de
postulados que, embora primariamente de caráter formal, são capazes de constituir uma
rede conceitual que apreenda a realidade. A ontologia é entendida então como uma
―construção‖ dentro da qual se adquirem sentidos certos conceitos metafísicos fundamentais
como: realidade, essência, existência, etc. Quine entende por ontologia a ―ontologia de uma
teoria‖, em que dada uma teoria, cabe perguntar por sua ontologia e também por sua
―ideologia‖ (pelas ideias que podem expressar-se nela). Não há correspondência simples
entre ontologia de uma teoria e sua ideologia (podendo as duas teorias ter a mesma
ontologia e uma ideologia distinta). O ―renovado uso do termo ontologia‖ também se
apresenta em outros autores contemporâneos, entre eles: Ernest Nagel e Gustav
Bergmann. Este último assinala que ―o há (existe)‖ quantificado não tem muito a ver com a
―existência‖ de que fala a ontologia tradicional e propõe um ―padrão ontológico‖, constituído
por uma linguagem ideal, suscetível de esclarecer muitos problemas filosóficos. Carnap
94

ataca o problema das chamadas questões ―falsamente ontológicas‖, mediante uma distinção
entre ―questões internas‖ e ―questões externas‖. As ditas questões internas são como: o
mundo das coisas, o sistema de números, etc. com indagações sobre ―se há um número
primeiro maior que 100?‖ são das ditas questões internas. São questões externas,
referentes aos questionamentos sobre: ―Existe o mundo real?‖, ou melhor, ―Existe a própria
‗coisa mundo‘?‖. Estas questões deveriam ser respondidas mediante uma investigação que
transcendesse os objetos internos. Porém, não é esse o caso, segundo Carnap, no qual as
questões externas referem-se a assuntos desprovidos de conteúdo cognoscitivo e não são
propriamente teóricas, é uma decisão que o filósofo toma sobre o uso de uma ―linguagem‖.
Estas questões seriam pseudo-ontológicas, porque não implicam nenhuma asserção acerca
de uma realidade. E argumenta que somente as ―asserções internas‖ podem ser
justificadas, quer empiricamente, quer logicamente. Sendo assim, todo o erro consistiria,
pois, em tratar as ―questões externas‖.
Edmund Husserl será uma personalidade de grande influência para a investigação
ontológica do século XX. Husserl considerava a ontologia tanto como formal quanto
material. A ontologia formal trata das essências formais (daquelas essências que convêm a
todas as demais essências); a ontologia material trata das essências materiais e, constitui
um conjunto de ontologias a que se dá o nome de ontologias regionais. A ontologia formal
seria o fundamento de todas as ciências e a material, o fundamento das ciências dos fatos;
mas, como todo fato participa de uma essência, toda ontologia material estaria fundada na
ontologia formal. É a partir desse momento que tomamos as ideias de Martin Heidegger.
Discípulo do pensamento de Husserl60 (tendo outros dois filósofos por ele influenciados:
Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty), irá basear-se no método fenomenológico de
investigação, através do qual iria buscar a formulação de sua ontologia fundamental. A sua
base é a ―questão do ser‖, mas tendo como base o método fenomenológico, sua ontologia
será fenomenológica (DARTIGUES, 2008), ou melhor, uma analítica fenomenológico-
existencial do Dasein61, por isso existencial, pois somente o ―Dasein humano‖ existe62.
A Ontologia veio a se estabelecer então, como uma ―disciplina‖ filosófica, das quais,
segundo Morente (1970, p. 29) são: ―a ontologia, a metafísica, a lógica, a teoria do

60
―Fundador‖ da fenomenologia através dos estudos do ―sistema total dos atos possíveis da consciência, das
possíveis aparições, das significações que se relacionam precisamente com esses objetos‖, como uma
―investigação transcendental‖ do mundo ―no qual vivemos, nos movemos e estamos‖ (HUSSERL apud.,
DARTIGUES, 2008, p. 65).
61
A tradução deste termo cabal para a ontologia fenomenológica heideggeriana será explicitado brevemente
depois, cabendo comentar que seus sentidos são dos mais variados e cabíveis de inúmeras confusões e
conflitos de pensamento.
62
. Este referencial é fundamentado no verbete Ontologia do dicionário filosófico de Ferrater Mora (1996, pp. 523-
532) veio a chamar de ―pré-história‖ do termo ontologia, e permite compreender, entre outras coisas, o que é
notório: os autores que utilizaram ―ontologia‖ ou ―ontosofia‖ tenderam a destacar o caráter ―primário‖ dessa
ciência, em face de qualquer estudo ―especial‖. Por isso, se a ontologia pôde continuar sendo identificada com a
metafísica, o foi com uma metafísica geral e não com a ―metafísica especial‖.
95

conhecimento, a ética, a estética, a filosofia da religião, a psicologia e a sociologia‖,


formando parte da diversidade das abordagens de análise filosóficas. Podemos dividir
historicamente a Filosofia em dois grandes ―ramos‖: a Gnosiologia e a Ontologia. A primeira,
se dedicando ao que ―será o estudo do conhecimento dos objetos‖ e a segunda ―teoria dos
objetos conhecidos e cognoscíveis‖ (ibid., p. 31), porém a Ontologia se aprofundará em uma
abordagem própria: a teoria do ser, em detrimento da teoria do saber, da Gnosiologia. Esta
denominação da ontologia como ―teoria do ser‖ pode ser contestada em seu sentido estrito,
se retornarmos a sua etimologia. ―Formada pelo genitivo ontos, que é o genitivo de to on; o
genitivo tou ontos não significa ser, mas significa o ente, no particípio presente‖ (ibid., p.
275). Além desta problemática, o verbo ser, possui inúmeras significações, e neste
intrincado ―jogo intelectual‖, a Ontologia surge como teoria de cada tipo de ente, com a
finalidade de definir o que e porque cada ente é, e também como teoria do ser em geral,
daquilo que os entes têm em comum. Assim, como a Ontologia vai buscar o ser mais geral
de todos os entes e o ser de cada tipo de ente, podemos através desta formulação
discursiva, analisar duas vertentes do ser: a primeira una, indivisível ou em-si; a segunda
múltipla, divisível em potência e ato. Como já discorremos alhures, a segunda visão de
análise, num sentido pluralista, colabora com nosso desencadeamento de raciocínio. No que
poderemos abarcar o ser como potência e como ato: o par essência-existência que já nos
referimos.
Finalizamos então nosso panorama sumariado do histórico sobre o tema Ontologia
em Filosofia, cabe agora fazer uma breve passagem também de alguns autores que
trataram deste tema.
Uma dos autores modernos mais lidos e analisados sobre a temática ontológica é
Martin Heidegger (2008), principalmente sua obra ―Ser e Tempo‖. O filósofo irá de maneira
peculiar tratar o ser, ou modo de ser, na busca do ser mais geral. Para Heidegger, o
existente fundamental a ser analisado é o Dasein (que será traduzido de inúmeras
maneiras, desde presença, até homem, existência, Ser-aí e existência humana – iremos
preferir o último por motivos posteriormente exemplificados), buscando o ser-no-mundo em
geral do Dasein. Emmanuel Lévinas (1998) abordará principalmente a Ontologia em seu
livro ―Da Existência ao Existente‖, no qual buscará uma ligação nas ideias de Heidegger
para traçar seu objetivo, mais voltado para o mundo subjetivo que comporta a existência do
existente humano. Maurice Merleau-Ponty (2006), em inúmeras obras vislumbrará uma
redução fenomenológica do mundo, mas em nossa abordagem, especificamente, ficamos
com seu livro ―Fenomenologia da Percepção‖, por dois motivos basilares: a sua abordagem
corpórea do espaço, e de sua análise sobre o ser-no-mundo. Em trabalhos mais voltados
para a leitura marxiana da ontologia, temos Herbert Marcuse (1968b), em seu livro-
coletânea: ―Materialismo Histórico e Existência‖, cujo autor irá buscar o entendimento
96

concreto do modo de ser da existência humana no Heidegger de ―Ser e Tempo‖. Karel Kosík
(1995), em seu ―A Dialética do Concreto‖, também buscará uma leitura de Heidegger, mas
também voltado para uma visão ontológica da práxis. István Mészáros (1981), com seu
―Marx: a teoria da alienação‖; resgatará a partir dos Manuscritos de 1844 (assim como parte
do livro supracitado de Marcuse) a ontologia do ser social de Marx. Alain Badiou (1996) com
seu ―O ser e o evento‖, traçará um debate de articulação rara, numa ontologia com
seguimentos de Heidegger, mas também com algumas alternativas. Será o prevalecimento
do matema sobre o poema, através de um panorama teórico no qual temos a conjugação da
matemática, da arte contemporânea e da política. Seu ponto de partida é o um e o múltiplo
como a priori da Ontologia.
Duas últimas análises ontológicas, curiosas, porém frutíferas, são de Nietzsche, em
seu afamado ―Assim Falou Zaratustra‖, no qual o Filósofo, principalmente na dissertação
sobre ―O convalescente‖ buscará retratar uma regressão existencial-ontológica como, por
exemplo: ―Tudo vai, tudo torna; a roda da existência gira eternamente. Tudo morre; tudo
torna a florescer; correm eternamente as estações da existência. Tudo se destrói, tudo se
reconstrói, eternamente se edifica a própria casa da existência‖ (NIETZSCHE, 2008, p.
188)63. Outra abordagem é a de Michel Foucault (2000). Este Filósofo em sua obra ―As
Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas‖ buscará, através de um
discurso bem elaborado sobre a linguagem, resgatar o ser do homem, através do discurso
(por isso a colocação do título). O discurso sobre o mundo, este ser da linguagem, acaba
sendo o ser da humanidade enquanto discurso das ciências humanas.
Passemos então, para uma exposição dos autores que veicularam, e ainda veiculam,
a análise ontológica na Geografia.

2.2.2. Ontologia em geografia

Buscaremos trazer para análise, alguns Geógrafos que trataram diretamente com o
tema da Ontologia na Geografia científica. Verificamos também que tais geógrafos são
vinculados principalmente com o movimento de renovação, mais especificamente com a
chamada Geografia ―radical-crítica‖, pós década de 1970. Primeiramente, como já citamos,
o principal autor na Geografia que enveredou pela análise ontológica no Brasil fora Armando
Corrêa da Silva. Em inúmeros artigos, alguns não publicados, em livros, e em palestras e
aulas diversas, seu nome figura como a vanguarda da temática na Geografia brasileira. Sua
ontologia analítica se constituía de uma ―abstração que passa pela aparência, o ser e a

63
. Fica exposto que para Nietzsche, a existência, ou o ser em ato, se movimenta com a vida. É uma busca de
regressão ou solução do ser em geral através da vida, na ideia do eterno retorno por ele elaborada – algo
tomado de seu apreço pelo devir, num vir-a-ser constante do heraclitismo antagônico ao somente ser de
Parmênides.
97

forma. Daí a abordagem: uma fenomenologia-ontológica-estrutural‖ (SILVA, 1992, p. 131). A


tarefa que Silva (1988, p. 127) considerava primordial naquele momento era ―‗pôr de pé‘ a
reflexão filosófica a partir da preocupação do espaço como ser‖, que seria a base de uma
Geografia Teórica. O ―pontapé‖ inicial data por volta de 1975, onde seu questionamento
acerca do objeto geográfico surgia com ares de uma meta. Em seu ―Espaço geográfico
como totalidade‖, do ano citado, Silva (ibid., p. 9) colocará que ―do tratamento do espaço
como uma categoria do pensamento geográfico decorreu então a ideia de uma ontologia
desse espaço‖. Assim suas primeiras indagações são acerca do ser enquanto objeto
geográfico, que se depara com o impasse aristotélico-kantiano como herança para a ciência
geográfica (do qual fizemos menção no capítulo anterior). A solução pode ser viabilizada, diz
Silva (ibid., p. 3), ―quando o ser é proposto desde logo como não sendo separável do tempo,
do espaço e do movimento‖; até esse momento o autor ainda não se depara com a redução
do ser ao espaço somente, mas relaciona o ser como sendo inseparável do espaço-tempo-
movimento, tentando remover a possibilidade da dicotomia ser-em-si e ser-em-movimento
(essência/existência) – o que também buscamos evitar com nossa proposta.
No terceiro encontro nacional de geografia (ENG) do Ceará, no ano de 1978, Silva
traz para discussão o texto ―O conceito de espaço de David Harvey – implicações
ontometodológicas‖. Este será uma introdução de outro texto que irá fazer uma proposta
maior em relação ao espaço como ser, que veremos adiante. Como já nos referimos, a
relação ou familiaridade de Silva com o livro de Harvey, e sua acepção relacional de espaço,
se dá principalmente pela tradução do texto pelo geógrafo brasileiro. Novamente temos o
impasse já mencionado e trazendo consigo a ―consideração de espaço, tempo e movimento
como modos de ser da materialidade‖, sendo ―o ser ele próprio espaço, tempo e movimento
desde logo‖ (SILVA, 1978, pp. 355-356). A partir deste momento, o caminho ontológico será
traçado por Silva. No ENG seguinte, de 1980, seu discurso trará à baila a ―subtotalidade
geográfica‖, através da busca de uma ―construção dos fundamentos ontológicos do
conhecimento geográfico‖, pelas ―categorias reais que justificam um recorte do ser‖ (SILVA,
1980, p. 269), esta seria a subtotalidade em seu entendimento. No texto de 1982, intitulado
―O espaço como ser: uma auto-avaliação crítica‖, Silva terá duas intenções, além de sua
máxima de elaborar as ideias para o espaço como ser: 1) a proposta da disciplina geografia
teórica (algo já implícito em seu livro coletânea de 1978, ―O espaço fora do lugar‖, onde será
questionado que na Geografia científica não havia lugar para as ideias); 2) e a indagação
sobre o que é o espaço. Silva dividirá sua ordem de exposição com o espaço ontológico,
espaço e movimento, e espaço da particularidade. Partindo da análise do espaço relacional
de Harvey, Silva encontra a problemática de que tal acepção de espaço não se põe como
ser, principalmente pela não clareza se a estrutura (não como um sistema fechado
condicionador) é um componente ideológico ou um atributo do objeto. Silva tenta a solução
98

através da espacialidade diferencial de Lacoste, mas percebe que o espaço se põe como
ser, mas um ser ideal, por via epistemológica. Dentre outras proposições bem atípicas e
plurais (e por isso muito frutíferas), Silva descreve ser seu ponto de vista pluralista, e não
monista, do ser, pois o espaço não é irredutível, mas sim múltiplo. A sua principal ideia é:
―tanto os corpos como o lugar vazio constituem manifestações da materialidade do espaço‖
(SILVA, 1982, p. 82), no qual o espaço (como ser) é sujeito e objeto ao mesmo tempo.
Em um pequeno artigo para o livro ―Espaço interdisciplinar‖ de 1986, intitulado ―As
categorias como fundamentos do conhecimento geográfico‖, Silva irá consolidar mais sua
proposta teórica, trocando o termo estrutura por modo de ser, ou forma, onde irá tratar as
categorias como entes ontológicos, dando primazia à existência, em relação à consciência.
Nos anos de 1991 e 1992, terá mais algumas contribuições, dentre elas uma proposta da
―Ontologia analítica‖, como teoria e método do ser. Este texto imbricará parte e todo, além
de citar sua fenomenologia-ontológica-estrutural. Fará também em outro breve artigo
considerações acerca da dicotomia sujeito/objeto, no qual através de sua ontologia analítica
construirá o sujeito e sincronicamente reconstruirá o objeto – um reflexo do que já expusera
do ser como sujeito e objeto ao mesmo tempo. Em seu livro ―Geografia e lugar social‖ de
1991, com uma variada coletânea de inúmeros autores, fará uma grande contribuição
ontológica para a Geografia, principalmente nos seus ―pressupostos‖. Silva inter-relacionará
via do espaço-terrestre como lugar possível, o natural e o físico, o humano e o espaço
geossocial analítico, sintetizando o debate com sua acepção de processo e forma (da qual
utilizaremos a seguir alguns fatores importantes para o prosseguimento de nossas
propostas). O que está em pauta para Silva é a conscientização do modo de ser espacial
desde o inorgânico, perpassando pelo orgânico até a humanização espacial; a analítica
espacial é ontológica porque este é o ser das coisas, dos eventos e da vida. É isto o que
entendemos como o ser revelado, do qual trata Silva em um texto divulgado tardiamente,
em 2000 – pós sua morte, intitulado ―A aparência, o ser e a forma (geografia e método)‖.
Contemporâneo a Silva, e mais conhecido academicamente, retornamos a Milton
Santos; mas primeiro, cabe ressaltar, que embora M. Santos tenha esboçado algumas
proposições filosóficas, e até de tema ontológico, sua postura acadêmica pessoal para com
essa corrente (principalmente na Geografia) era de suspeita. Uma suspeita deixada clara,
em um momento que remonta a renovação ―radical-crítica‖, em seu artigo de 1982 (ano de
grande movimentação acerca da nova postura dos geógrafos acadêmicos) ―Para que a
geografia mude sem ficar a mesma coisa‖. Uma das críticas à postura filosófica da
fenomenologia é quanto seu possível aspecto positivista e individualista pela carga do
humanismo (como se somente fosse ―realmente‖ revolucionário questionamentos acerca da
sociedade ou de suas ―estruturas‖, o que parcialmente discordamos). Seu toque de crítica
vai se fundamentar justamente na outra corrente em voga, a Geografia Humanística, no qual
99

M. Santos atribuirá citações confusas e um ―enclausuramento‖ nas acepções de Heidegger


(possivelmente devido sua ligação com o nazismo – acreditamos que a maior inquietação de
M. Santos é de se confrontar com outra corrente que estava se despontando na Geografia,
mas que atualmente pode casar-se muito bem com uma postura ―social crítica‖). Em sua
obra ―Por uma geografia nova‖ de 1978, sua colocação não é distinta, atrelando a ―Nova
Geografia‖ ao que ele trata como Geografia da percepção e do comportamento. Sua grande
crítica é sobre a questão do comportamento, onde M. Santos prefere a práxis por questões
de escolha teórica. Assim para o autor, o espaço tratado pela Geografia se tornou
ideológico, hostil ao ―real‖. É nesta mesma obra, de 1978, que M. Santos irá, mesmo que
brevemente, tratar de algumas proposições ―ontológicas‖, ou melhor, relativas ao ser. O
autor irá relacionar o Ser à sociedade total, o tempo como os processos, já a existência será
o par função e forma.
A preservação para com este tema perde um pouco a sua força em um artigo,
intitulado, ―O espaço geográfico como categoria filosófica‖ (1988). Neste M. Santos se
preocupará mais precisamente com o ser e a existência, fazendo referência a Armando C.
da Silva sobre a abordagem da Ontologia em Geografia; o que percebemos, contudo, é que
terá um breve desmembramento da sua colocação filosófica de sua afamada obra de 1978.
Tomando um caminho que parte de Aristóteles acerca do ser e da existência, M. Santos
relacionará a postura científica da Geografia com o espaço e o ser social, não somente ser.
A práxis continua em voga em seu discurso, afirmando que ―o espaço resultado da
produção, e cuja evolução é consequência das transformações do processo produtivo em
seus aspectos materiais ou imateriais, é a expressão mais liberal e também mais extensa
dessa práxis humana, sem cuja ajuda a existência não pode ser entendida‖ (SANTOS, M.,
1988, p. 12). Sua relação entre Filosofia e Geografia é clara, deve-se existir um
imbricamento, mas concernente à ―filosofia do espaço do homem‖ (ibid.). Porém a
correlação mais explícita encontra-se no que M. Santos irá fazer em relação ao Ser,
considerado como a sociedade, e à existência, tratada como o espaço; através da leitura de
que ―o ser deve se metamorfosear em existência‖, tal autor resumirá sua proposição
filosófica do espaço na expressão: ―O conteúdo corporificado, já transformado em
existência, é a sociedade já distribuída dentro das formas geográficas, a sociedade que se
tornou espaço‖ (ibid., p. 16).
A terceira e última amostra de M. Santos, por hora, é de uma das suas últimas obras,
―A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção‖, de 1996, na qual o geógrafo
brasileiro irá discorrer sobre a ontologia do espaço, buscando estatuto ontológico que irá
culminar na produção das formas-conteúdo visto pelo prisma da Totalidade do espaço.
Apesar de o termo ontologia aparecer explicitamente, e acima de tudo ligado ao tema do
espaço não verificamos o espaço como modalidade ontológica do ser em M. Santos, pois
100

seu tratamento é de um espaço como ser, mas por via da epistemologia do espaço – sua
inquirição ontológica é de um modo de ser da produção social do espaço, portanto o que
nos passa é mais um conceito, com bases para uma formulação geográfica do espaço, tanto
que a indagação de se o espaço é um objeto geográfico ainda causa certo incômodo.
Outros geógrafos brasileiros, seguidores de Armando C. da Silva nesse campo
teórico, que vêm trabalhando atualmente no sentido do tema da Ontologia em Geografia
são: Elvio Martins e Ruy Moreira. Martins, em seu texto ―Geografia e ontologia: o
fundamento geográfico do ser‖ busca o fundamento geográfico do ser calcado no ser-aí
humano e suas singularidades e universalidades geográficas. Divergindo das ideias
basilares do espaço como ser de Silva, Martins irá fazer uma correlação entre objetividade e
materialidade, no qual a Geografia herdará este discurso em relacionar o espaço como algo
palpável, material; além da crítica a outra herança, não menos influente, de que a Geografia
é uma ciência que tem por objeto o espaço (algo que também frisamos no primeiro capítulo).
Sua proposta é de que História e Geografia não sejam somente categorias lógicas, tratadas
como objeto das ciências, mas como categorias ontológicas, ―fundamentos da existência,
em seu complexo dinâmico que é a vida, homem e meio e sua respectiva relação‖, através
do qual Martins irá definir o fenômeno da história como estabelecimento ―a partir do
movimento, do espaço e do tempo (...). enquanto a Geografia é especialmente definida em
Ritmos e Durações‖ (MARTINS, 2007, p. 41). Casando as proposições do Dasein
heideggeriano (apreendido por Martins como ser-aí), da sociabilidade, do trabalho e do
estranhamento de Marx, além de trabalhos clássicos na Geografia como os de M. Sorre e
de George, Martins vai propondo seu fundamento geográfico do ser, por nós apreendido
como um ser-no-mundo que constrói-se a partir da existência, em uma imbricada relação
entre entes e na relação de identidade-alteriadade vista como homem-meio; a forma
complexa da existência que é a geograficidade (ibid.). Sua construção é altamente frutífera,
principalmente por não ficar limitado ao âmbito do espaço e de uma delimitação do objeto,
mas por inter-relacionar fenômenos que auxiliam o entendimento cotidiano do
estranhamento da existência humana.
O outro geógrafo que tratará do tema é Ruy Moreira. Em variados trabalhos vem
reunindo análises ontológicas altamente contributivas desde meados da década de 1990.
Em seu recente livro ―Pensar e ser em geografia‖ de 2007, Moreira reúne boa parte dos
artigos destinados ao tema da Ontologia em Geografia. Por referenciar ao final de cada
texto a fonte original da primeira publicação (com o fito de propor uma averiguação do
processo histórico do pensamento de si mesmo e do decorrer da Geografia brasileira),
podemos identificar que ―Ser-tões‖ será uma de suas primeiras abordagens da temática,
casando os textos de literatura de ficção com geografia, datando do ano de 1996. Na sua
conclusão, Moreira fará algumas propostas acerca da geograficidade, que irá abordar mais
101

a frente. Sua proposição é tratar o espaço como modo espacial de existência do homem,
pela espacialidade que se torna através da transformação humana do espaço-mundo.
Tratará da hominização do homem metabolizado através do trabalho, no qual se conforma a
geograficidade, como o pertencimento do espaço como o ser-estar-do-homem-no-mundo.
Em seu ―Mal-estar espacial no fim do século XX‖, originalmente publicado em 1997, Moreira
busca uma clarificação da relação entre espaço e existência, como um problema ontológico
que deve se indagar sobre o olhar do mundo como mundo-do-homem, mas reformulando,
pois na cultura do Ocidente existe um apartamento entre homem e espaço. Fará então uma
crítica à gênese da existência espacial moderna calcada em uma desespacialização do
mundo e do homem através da desnaturização, da desterreação e da desterritorialização.
Este seria o mal-estar espacial, da externalidade na relação entre homem e espaço; aquilo
que o próprio autor chamara de ―um vazio de pertencimento‖ (MOREIRA, 2007, p. 141).
Em seu artigo de 2004, ―Marxismo e Geografia: a geograficidade e o diálogo das
ontologias‖, Moreira vai reunir as concepções das Ontologias nas teorias, marxiana e
geográfica, estabelecendo a geograficidade como síntese desse casamento. O próprio
geógrafo irá propor um paralelo entre as possíveis ontologias, explicitando que ―faltou uma
reflexão mais profunda do significado do espaço como ser-estar-do-homem-no-mundo, da
mundanidade como o sentido da própria ação geográfica do homem em sociedade na
história‖ (MOREIRA, 2004, p. 28). Assim, tem-se a busca de uma ontologia que se quer
marxista da geografia, ou no que Moreira irá tratar como geograficidade enquanto ―condição
espacial da existência do homem‖, no qual ―a existência realizando na mundanidade do
espaço a relação da essência metabólica‖; resumindo, a existência em sua expressão
espacial. No seu ―Sociabilidade e espaço‖ de 2005, Moreira irá retratar o metabolismo do
trabalho do movimento da natureza transformada em homem, a auto-poiesis. Mais
recentemente temos em 2008 o artigo ―Espacidades‖, em que Moreira fará uma revisão
ontológica do espaço, principalmente de seu conceito, afirmando a relação de externalidade
já denunciada em 1997 no seu ―Mal-estar...‖ além da construção do mundo ocidental deste
conceito trará para o debate alguns pontos de ruptura, de Leibniz até Armando C. da Silva,
com as questões da ontologia do espaço.
Outro geógrafo brasileiro que perpassou pelo tema fora Antônio Carlos Robert de
Moraes, basicamente em seu único artigo sobre a temática nomeado de ―Em busca da
ontologia do espaço‖ de 1982 (mas que como relata o autor fora originalmente publicado em
1979). O objetivo de Moraes (1982, p. 65) nesse texto será de ―fornecer ao leitor indicações
de uma posição possível no tratamento de questões referentes ao espaço‖. Sua busca
remete sobre o questionamento dos atributos e da dinâmica própria do espaço, e também
de uma teoria sobre o espaço, que será calcada na teoria marxiana de proposta lukacsiana.
Então o ser que Moraes trabalha é o ser social. Uma pena que este trabalho tenha sido
102

somente uma proposta para Moraes e não tenha gerado prosseguimentos de


encaminhamento teórico, pois o casamento das ideias poderia ter sido bastante frutífero.
Outros autores de origem acadêmica anglo-saxônica, como Harvey e Soja, buscaram
análises ontológicas em alguns trabalhos. Harvey, como já citamos, através de ―Justiça
Social e a Cidade‖, originalmente de 1973, no qual o autor se indagará inicialmente sobre o
que é o espaço, explicando que trata-se de um argumento ontológico. Ao final de seu
trabalho, mais especificamente nas conclusões, Harvey retornará à ontologia, dizendo ser
―uma teoria do que existe‖ (HARVEY, 1980, p. 248), propondo que se queremos determinar
um status ontológico de alguma coisa é querer dizer que ela existe. Deste modo Harvey
retornará a Leibniz para referir-se à totalidade e às relações dentro do todo, mas mesmo
assim a busca ontológica do autor não é sobre o espaço como ser. Seu afamado livro
―Condição pós-moderna‖ de 1989 traçará especificamente na parte relativa à experiência do
espaço e do tempo uma relação entre o espaço e o tempo como categorias básicas da
existência (2006b, p. 187). Apesar de trabalhar em alguns momentos com Heidegger e
Foucault, Harvey buscará bases mais no espaço produto social (não somente como matéria,
mas, como vivido, percebido e concebido) de Lefebvre; destarte, mesmo tratando de
existência não busca o espaço como ser. Mais recentemente, em ―Espaços de Esperança‖,
de 2000, onde irá buscar uma Ontologia bem aproximada das concepções marxianas sobre
o ser de nossa espécie, com inovações muito intrigantes quanto à mudança do mundo e de
nós mesmos para mudarmos o mundo (algo muito próximo, a nosso ver, mesmo que Harvey
não cite, do ser-no-mundo heideggeriano). Já Soja, através de seu: ―Geografias Pós-
Modernas‖ (original de 1993), irá abordar a espacialidade (conceito com o qual travaremos
interlocução), como sendo existencial do ser. Soja trará algumas contribuições referentes
principalmente a Heidegger, com o ser-no-mundo visto através da acepção do Dasein, e do
ser-aí de Sartre para elaborar algumas concepções sobre a espacialidade humana e nossa
existência no mundo.
Através deste referencial, breve para esta temática, mas por hora suficiente,
iniciaremos nossa abordagem sobre a analítica ontológica da existência-espacial humana.
Explicitamos alguns dos principais autores que nos familiarizamos acerca do tema da
Ontologia em Geografia, e nesse sentido iremos buscar interlocução (e também com outros
que também já dialogamos), com o intuito de introduzir ao nosso debate, parcialmente, a
análise ontológica preexistente.
Neste momento, buscaremos formular nossos conceitos, e partiremos do movimento
entre: espaço ontológico e espacialidade, mundo-forma e processo ontocriativo.
103

2.3. O espaço ontológico e a espacialidade

Como pressuposto a esta ideia, gostaríamos de abarcar, sumariamente, dois termos


expostos no parágrafo supracitado: forma e processo.
Tomando o primeiro (forma) em seu sentido comum, ou melhor, através do
―Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa‖ (que versa, assim como outros
dicionários, sobre as palavras como são tratadas no senso público comum cotidiano), no
qual temos vinte e sete concepções do termo forma. Citemos então alguns exemplos como:
1) ―configuração física característica dos seres e das coisas, como decorrência da
estruturação das suas partes; formato, feitio, figura‖; 2) ―estado físico sob o qual se
apresenta um corpo, uma substância etc.; estado‖; 3) ―a aparência física de um ser ou de
uma coisa‖. Para o sentido de nossa análise, esta não é de antemão a nossa abordagem,
pois as acepções de forma contida nas explicações do dicionário remetem como se somente
fosse uma aparência externa, como uma configuração sempre expondo o físico como
aspecto delineador de sua condição de materialidade.
Busquemos então, seu tratamento filosófico e geográfico. Segundo a tradição do
discurso filosófico (principalmente aristotélico), a forma é aquilo que determina a matéria
para ser alguma coisa, ou seja, aquilo por que alguma coisa é o que é; e segundo as
palavras de Morente (1970, p. 97), Aristóteles teria concebido forma (dentre outras
acepções do termo), como ―aquilo que faz que a coisa seja o que é‖. Este constituinte de
algo, ou aquilo de que algum ente é feito está próximo do que os físicos modernos tratam
como matéria, mas, porém, pode ser outro termo contraditório a este entendimento. A
matéria em Aristóteles é ―aquilo – seja o que for – de que é feito algo‖ (ibid.); então a forma
seria o que faz tal ente ser e a matéria a composição de tal ente – ambos se
complementam. Aristóteles irá tomar o termo forma da geometria, devido a influência
determinante desta em Sócrates e seu ―mestre‖ Platão. Este último considerava o estudo de
geometria como um corpo de ensinamentos introdutórios ou básico e necessário ao estudo
da Filosofia (a propedêutica fundamental). No entanto, Aristóteles irá conceber forma
através de uma dualidade entre a forma corpórea como elemento material e também como
forma no sentido imaterial, numa unidade e sentido dos elementos materiais, sua unidade e
conjunto como essência de um ente64. Na concepção de Jolivet (1968), matéria e forma
seriam como princípios do ser, no qual a forma é o ato da matéria, como na ideia de ―forma
acidental‖, onde o que está em jogo é sua maneira de ser, como um modo existencial de um
ente. Que pode mudar de característica.
O modo de conceber a forma por Aristóteles se assemelha com a ideia de essência.

64
. ―A forma, pois, se confunde com o conjunto dos caracteres essenciais que fazem com que as coisas sejam
aquilo que são; confunde-se com a essência‖ (MORA, 1996, p. 98).
104

Porém, não é esta também a nossa perspectiva, ela é existencial, próximo ao que coloca
Jolivet, mas não somente o que foi posto por este filósofo. Mas, para alcançarmos esta
perspectiva existencial, analisemos alguns Geógrafos acadêmicos que trabalharam este
tema.
Primeiramente Harvey, em seu livro, por nós já citado, de 1973, irá tratar o par: forma
espacial e processo social; indicando a expressão ―forma-espaço-processo social‖
(HARVEY, 1980, p. 5). No momento deste livro Harvey aplicará esta dualidade para o
entendimento da cidade, no qual se deve ―reconhecer que uma vez criada uma forma
espacial particular, ela tende a institucionalizar e, em alguns aspectos, a determinar o futuro
desenvolvimento do processo social‖ (ibid., p. 17); nessa abordagem de Harvey deve-se
elaborar conceitos que sejam capazes de lidar com as complexidades, tanto do processo
social quanto dos elementos da forma espacial. Deve-se então buscar a interseção da
complexidade de processo social-forma espacial, pois se trata de algo apartado
metodologicamente – não é disto que iremos tratar, porque não se deve separar para depois
reunir de maneira encaixada. Abordagem esta que Harvey irá reformular mais tarde em seu
livro ―Espaços de Esperança‖, no qual irá buscar a ideia de forma como arranjo ou
organização (bem próxima da abordagem lefebvreana). Na sua proposta de um utopismo
espaço-temporal reutiliza e reelabora os termos forma espacial e processo social de outrora.
Harvey fará paralelismos entre tais acepções e leituras empíricas, como por exemplo: ―o
modo como o utopismo do livre mercado (o processo) foi implantado globalmente
(geopoliticamente como forma espacial) depois da Segunda Guerra Mundial‖ (HARVEY,
2006a, p. 252). Podemos ver um descolamento entre processo e forma, pois não trata
ontologicamente do assunto e sim epistemologicamente, em busca de aplicações empíricas;
o que pretendemos é uma analítica ontológica de processo e forma, por isso não se
necessita de imposições dicotômicas na empiria, pois o ontológico já trata do movimento,
por ser algo vivido.
M. Santos também tratou de conceituar os termos processo e forma em algumas
obras, porém, mais detalhadamente em seu ―Espaço e Método‖, no qual irá tratar forma
primeiramente como ―ao arranjo ordenado de objetos, a um padrão‖. Em outra acepção
quanto a ―uma estrutura revelada‖ (SANTOS, M., 1985, pp. 50-51), ou um objeto que é
responsável pela execução de uma função determinada (como uma estrutura técnica),
assim tem-se a direta relação entre função e forma, porém a forma pode abarcar mais de
uma função. Esta estrutura revelada é possível pela ideia de forma como mais visível –
nesta análise de M. Santos as formas são artefatos da (de uma dada) paisagem, como
resultados do tempo, de processos pretéritos que ocorreram na estrutura. A forma além de
ser um resultado aparente na paisagem pelo processo temporal, ―ela é também um fator
social‖ (ibid., p. 55), dada a significação usada através da execução de uma função. A
105

abordagem estrutural da forma pode ser frutífera, porém, na analítica existencial, forma, não
é meramente a revelação de uma estrutura, por ter sentido ontológico como mundo sendo
inseparável do processo, este como existencialidade, contém a estrutura, mas, vai para
além disto – a estrutura é um dos componentes ontológicos deste existencial que é a forma.
Outro Geógrafo que se aproxima de nossa abordagem, se bem que busque uma
verificação teórica balizada em uma acepção estrutural, é Ruy Moreira, no qual ―o espaço
geográfico é a materialidade do processo do trabalho‖ (1994, p. 85-86). Nessa assertiva, o
espaço (geográfico) é um ente de existência ontológica e não epistemológico – o que
discordamos (pois pensamos o espaço geográfico como constructo lógico dos métodos e
epistemologia das ciências, não com existência ontológica – este seria o mundo-forma, tal
como iremos expor a seguir); e o processo do trabalho seria a essência do espaço, como
forma. Porém, mesmo tendo discordâncias quanto a essa acepção, abre-se caminho para
trazermos (mais uma vez) o discurso de Armando C. da Silva, através de sua abordagem
sobre o processo e a forma. Em sua abordagem mais próxima do ―estrutural‖, Silva irá
dissertar que ―a apropriação discreta do espaço é um processo de criação de formas e de
conquista de formas já existentes‖, e por este motivo como uma estrutura revelada que ―a
forma é o espaço produzido em seu modo de ser estrutural‖ (SILVA, 1986, p. 33). O autor irá
propor também, em uma abordagem mais ampla, que ―o processo é o contínuo devir da
forma‖, no qual ―o espaço de ocorrência e manifestação determina o espaço em si, como
processo e forma‖ (SILVA, 1991, pp. 36-37).
Novamente, se retomarmos ao ―Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa‖,
encontraremos treze modos diferentes de conceber o processo; dentre eles: 1) ―ação
continuada, realização contínua e prolongada de alguma atividade; seguimento, curso,
decurso‖; 2) ―num sistema físico, a sucessão de estados intermediários na sua passagem
entre dois estados‖; 3) ―modo de fazer alguma coisa; método, maneira, procedimento‖. O
processo pode ser relacionado ao movimento, um constante devir, o ser-em-si que pelo seu
vir-a-ser em movimento constante caracteriza o processo da forma – seria então o processo
―uma figuração particular do movimento‖ (ibid., p. 37). Mesmo no senso comum veiculado
pelo dicionário o movimento é captado, porém, numa analítica ontológica o que deve ser
posto não é a ideia e sim o existencial, por isso a relação inevitável de processo-movimento-
forma. Ambos, processo e forma, estão em movimento. Sendo assim, podemos tratar como
uma manifestação ontológica através do ser em movimento viabilizado através do seu existir
do processo-forma; o que dará o entendimento do ser concreto humano, o seu existir pelo
processo-forma das coisas e eventos daí surgidos.
Sendo, como tratou Silva, esse processo uma particularidade do movimento65,

65
. ―Então, a forma é momento do processo, como configuração de particularidade e seu resultado‖ (SILVA, 1991,
p. 44).
106

podemos falar então de forma como mundo, no qual este mundo é o espaço ontológico; o
existencial particular como momento do processo, este que se dá como existencialidade, o
que viremos a tratar como espacialidade. Assim podemos tratar de processo-forma em uma
imbricação ontológico-geográfico, pois que ―o que é geográfico está diante de nossa
percepção – aquilo que se ‗vê‘ – e possui um significado dado pela particularidade e pela
forma: aquilo que se apresenta como um momento da existência de uma configuração do
espaço e pelo movimento diferenciado e múltiplo neste‖ (SILVA, 2000, p. 7). O geográfico
encontra-se justamente na particularidade do ser (espaço) como relações tramadas entre o
ser e a espacialidade. Mas porque geográfico? Pois, como visto, o processo é o devir da
forma, a particularidade como espacialidade é expressão da totalidade (ibid., p. 12), mais
especificamente, como já retratamos, expressão da Subtotalidade geográfica que é o
planeta Terra. Esta é uma proposta de exposição ontológico-analítica na Geografia
científica, no qual o ser deve ser revelado, pois se encontra velado pelo discurso
epistemológico, não em uma auto-avaliação crítica de cunho ontológico, através do qual
veremos que ocorrera o velamento pelo modo de ser da forma elaborada pela humanidade
– a particularidade, vista por nós como espacialidade, que tomou aspectos perniciosos em
que urge uma modificação.
Seguindo esta proposta que, para ressaltarmos a forma como espaço ontológico
enquanto inseparável da espacialidade, abarcaremos as análises ontológico-existenciais
sintetizadas através da expressão: modo de ser-no-mundo da existência humana.
Comecemos então por uma breve análise do que concebemos como existência espacial
humana, entrecruzando proposições ontológicas.
Como já mencionamos alhures, a existência consiste no ser em ato. Ou melhor, é o
ser como essência que no seu ato-de-ser confere ao ser o ato de existir. Quando indagamos
sobre a existência, podemos levar em consideração duas inquietações: que é existir? Ou
quem existe? Segundo Morente (1970), o ato de existir é algo que intuímos diretamente, por
isso, não pode ser algo definido, ou definitivo. Em nossa acepção, o ato de existir é definido
(porém não como a priori pensado, mas sim, a posteriori praticado) como ser espacial em
ato, ou seja, o espaço como ser uno e múltiplo (essência e existência), logo, o ato de existir
é espacial; no caso da Subtotalidade geográfica ―Terra‖ (como já fora tratado). Temos então
uma definição do ―que é existir?‖. Temos uma distinção no que se refere à existência e à
consistência. O termo ser tem dois sentidos, um que nos remete ao existir e outro que toma
o sentido de consistir (ou ser alguma coisa ou outra). Quando nos indagamos sobre que é o
espaço e o que é a humanidade, buscamos o entendimento justamente da consistência
destes termos – espaço e humanidade –, queremos saber enfim a essência de ambos.
Temos então a partir dessa premissa mais quatro possibilidades de indagações: que é
existir?; quem existe?; que é consistir?; e quem consiste? – vejamos as possibilidades. A
107

primeira indagação sobre que é existir é algo que não deve ser objeto, pois não tem
definição, mas é algo vivido e intuído. A segunda inquirição é sobre quem existe. Neste caso
concordamos com Morente, pois podemos dizer que existem coisas, o mundo, a
humanidade, as outras formas de vida; os entes em geral. A terceira pergunta remete ao
que é consistir, no qual a resposta pode ser definida, pois ―existem maneiras, modos, formas
variadas de consistir‖ (ibid., p. 61), a essência pode ser concebida de inúmeras maneiras,
como a que estamos concebendo como espacial. A quarta e derradeira pergunta irá amarrar
o nexo ontológico, que seria quem consiste – no qual seria a definição de quem é a
essência. Nas palavras de Morente (ibid., pp. 61-62) ―somente quando saibamos quem
existe, com existência real em si, poderemos dizer que tudo o mais existe nesse ser primeiro
e, portanto, tudo o mais consiste‖. O entendimento da existência remete a consistência à
existência revelada; portanto, ao elaborarmos a consistência (essência) dos entes em geral
(que concebemos como o espaço-essência), apreendermos quem são os entes existentes,
como por exemplo, a existência humana (que é um ser-em-ato espacial), poderemos a partir
de então definir a consistência dos demais modos de ser a partir desta existência.
Pois bem, deste modo iremos recortar a resposta para somente a análise de um ente
em específico, a humanidade, sendo mais preciso: a existência humana. Como concebemos
o ato de existir como sendo espacial, logo, a existência humana é existência-espacial
humana. Assim, podemos definir o modo de ser deste ente e dos demais entes que se
atrelam a esta existência – a mundanidade do mundo consistido pela existência humana.
Após este breve relato da nossa ideia particular de uma ontologia espacializada66,
passemos para algumas citações relevantes, que por motivos particulares revigoraram este
nosso modo de pensar. Tais citações são de origem complexa, porém, abrangentes e que
desmembrarão na expressão que fora supracitada67. Algumas bases dos argumentos se
encontram no filósofo alemão Martin Heidegger, principalmente em seu livro Ser e Tempo,
através do qual o pensador veiculará as reflexões ontológicas sobre o Dasein. Nesse
sentido, previamente, gostaríamos de fazer uma breve discussão sobre este termo, próprio
do Filósofo alemão, pois será de grande importância para o entendimento da existência-
espacial humana e para o desfecho na expressão modo-de-ser no mundo da existência
humana. O termo Dasein é, a nosso ver, na Filosofia Moderna, o de mais polêmica, crítica e
dificuldade de tradução, até porque, segundo algumas declarações do filósofo Julián
Marías68 (este participou na Alemanha de aulas com Heidegger), o próprio Heidegger

66
. É curioso verificar que Soja (1993, p. 166) buscou reafirmações espaciais para o discurso filosófico-
ontológico, finalizando seu capítulo, dentre outros questionamentos, com uma crítica a Heidegger, onde a
―construção de uma ontologia mais plenamente espacializada nunca se completou‖ por parte do Filósofo alemão.
Cabe aos interessados neste debate trazerem para si a responsabilidade, e a coragem, de retomar a análise.
67
. Modo de ser-no-mundo da existência humana.
68
. O texto-aula de Julián Marías, sobre Martin Heidegger, encontra-se no sítio eletrônico:
<www.hottopos.com/harvard4/jmshdg.htm>.
108

acreditava que a Filosofia somente deveria ser escrita em duas línguas: o grego e o alemão;
logo, sua autocriação de terminologias era com interesse em uma das línguas bases para a
Filosofia, segundo Heidegger: o alemão. É interessante também observar que, segundo
Marías, em alemão não há distinção escrita para as palavras que para o espanhol ou
português correspondem a: ser, estar, existir e haver. Isto dificulta ainda mais a tradução e
sua apreensão. Porém, buscamos uma definição própria, mesmo não tendo conhecimento
do idioma falado por Heidegger, através da análise de algumas traduções e comentários
sobre o termo Dasein para auferir um parecer69.
Na tradução nacional de Sein und Zeit (―Ser e Tempo‖), a palavra escolhida para
representar o Dasein heideggeriano é presença. Não sendo sinônimo nem de existência e
nem de homem, este termo busca no ―pre‖ o movimento de aproximação antecipadora e
antecipação aproximadora, sendo este ―pre‖ o constitutivo da dinâmica do ser (―ença‖)
através das localizações. A alegação do movimento é bastante interessante, principalmente
na abordagem localizacional, que poderia remeter a algo ―geográfico‖, mas, não é frutífero
para o que pretendemos. Na coleção ―Os Pensadores‖, o texto ―Sobre a Essência do
Fundamento‖, a tradução emprestada ao Dasein é ―ser-aí‖, aparecendo em certa ocasião
como ―ser-aí existente‖ (HEIDEGGER, 1996, p. 118). Em outra passagem, encontramos
ainda a colocação: ―o mundo, por conseguinte, pertence ao ser-aí humano, ainda que
abarque todos os entes, também o ser-aí em sua totalidade‖ (ibid., p. 126, grifos nossos).
Em uma terceira obra, intitulada ―Sobre o Humanismo‖ (ou ―Carta Sobre o Humanismo‖),
encontramos uma colocação também acerca do Dasein, que significa segundo Heidegger
(1995, p. 43): ―o homem se essencializa, de tal sorte que ele é o ‗lugar‘ (Da), isto é, a
clareira do Ser. Esse ‗ser‘ do lugar (Da), e só ele, possui o caráter fundamental (Grundzug)
de ec-sistência, isto é, da insistência ec-stática na Verdade do Ser‖.
Outras duas abordagens sobre o Dasein foram feitas, uma pelo também filósofo
alemão Herbert Marcuse (1968b), em seu texto, ―Contribuições para a compreensão de uma
Fenomenologia do Materialismo Histórico‖. A tradução escolhida é referenciada às outras
obras também traduzidas para o português, sendo ainda recomendada para os idiomas:
espanhol e francês. A expressão é ―existência humana‖ (não somente existência), como
sinônimo de Dasein. Luciano Brasil, em dissertação de mestrado em Filosofia com um

69
. O termo, como citado é a tradução referente ao Dasein, que preferimos e resumimos, como existência
humana. Em algumas traduções o termo assume a tradução de ser-aí, outras de estar-aí, outras como
existência, e em outros momentos como simplesmente homem. Como vimos, em alemão não há distinção entre
ser, estar, haver e existir, o que dificulta ainda mais a tradução. E ainda, devemos compreender que ambos os
sentidos, tanto de ser ou de estar, não significam em sentido absoluto ―imobilidade‖, ―enraizamento‖ ou qualquer
termo semelhante. Ambos podem representar este caráter estático dependendo da situação, vejamos, se uma
pessoa está morta, não significa que está ―passageiramente‖ morta, a morte é um fato consumado. Se
perguntarmos como algo vai ser, estamos remetendo não a uma fixidez, mas sim a uma das possibilidades.
Nesse entendimento a pre-s-ença humana é a existência humana, pois, abarca a relação que o ente homem
(ença) tem com seu sentido de ser, que é a existência humana, o modo de ser de toda humanidade e de todo o
mundo-do-homem como prolongamento de seu ato de ser.
109

estudo sobre a obra ―Ser e Tempo‖, nos brinda com uma explicação de sua escolha,
seguindo um critério próprio de interpretação da linguagem heideggeriana. Brasil (2005, p.
15) clarifica-nos que Benedito Nunes ―indicou a inconveniência de se traduzir Dasein por
pre-sença, como ocorreu na tradução nacional‖. Em outra passagem do texto, apesar de
Brasil ter discordado em traduzir o vocábulo Dasein, surge para nosso entendimento a
seguinte assertiva:

ao atravessar os conceitos e métodos fenomenológicos pela questão do ser e de


seu sentido, o pensador introduziu um enfoque diferenciado, centrado na auto-
interpretação espontânea da existência humana examinada por uma hermenêutica
do Dasein, vale dizer, por uma analítica existencial (ibid., p. 56).

Nesse momento Brasil cunha o termo existência humana por via de uma analítica
existencial, isto é, uma ontologia fundamental, com ―um propósito fundamentalmente
ontológico-existencial‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 234), através do qual também iremos tratar,
por via de uma analítica ontológica espacial da existência humana. É interessante observar
também que, em alguns casos, curiosos, e não sabemos se propositalmente (acreditamos
que não), o termo presença aparece em três obras distintas. Uma de Armando C. da Silva,
outra de Maurice Merleau-Ponty e a terceira de Michel Foucault. Silva (1978a, p. 97, grifos
nossos) irá retratar que ―em todos os níveis nota-se que a presença humana é decisiva‖;
Merleau-Ponty irá nos dar duas pistas para seu debate fenomenológico, um no qual ele
menciona ser a presença uma estrutura única, em outro momento temos a colocação de
―presença no mundo‖ (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 578). Sabemos que a tradução é
totalmente diferente da efetuada para Heidegger, principalmente pela diferença dos idiomas
francês e alemão, mas, sabemos também que o capítulo em que se encontra essas
colocações do filósofo francês uma das epígrafes é da obra de Heidegger (―Ser e Tempo‖)70.
Logo, pode não se tratar de tanta coincidência assim! A terceira e última abordagem, mais
distante da temática ontológica expressa até agora, porém, não menos criativa, é por conta
de Foucault. Em ―História da Sexualidade I‖, sobre o método, o pensador cunha a expressão
―onipresença do poder‖ (FOUCAULT, 1985, p. 89), buscando demonstrar que o poder está
em toda parte. Analisando o vocábulo omnipresente, o prefixo ―omni‖, de origem latina,
significa todo, todos; tudo; qualquer; de toda a espécie; todo, inteiro. O termo presente, ou
melhor, presença, se formos analisar pelo viés filosófico, o prefixo pre-, fornece a ideia de
lugar e localização, enquanto o radical s-ença implica o verbo esse, ser em latim. Isto faz
com que o poder omnipresente seja de um existencial da existência humana, pois toda a
existência humana, ontologicamente, é dotada de poder.

70
. A citação encontra-se na terceira parte ―O ser-para-si e o ser-no-mundo‖ no segundo capítulo intitulado de ―A
temporalidade‖ (tema também tratado em ―Ser e tempo‖ por Heidegger) na forma de epígrafe do seguinte modo:
―Der Sinn Daseins ist die Zeitlichkeit‖ (HEIDEGGER apud., MERLEAU-PONTY, 2006, p. 549).
110

Eis o que nas palavras de Heidegger significa: ―denominamos caracteres ontológicos


da presença de existenciais porque eles se determinam a partir da existencialidade‖
(HEIDEGGER, 2008, p. 88). Nesse momento cabe exatamente tratar do mais importante na
analítica ontológica crítica, a existencialidade. Este vocábulo que apreendemos tanto como
―a constituição de ser de um ente que existe‖ (ibid., p. 49), quanto como ―processo
ontocriativo‖ (KOSÍK, 1995, p. 222). Cabe então o entendimento da relação entre processo,
espacialidade e existencialidade através de interpretações filosóficas e geográficas.
Comecemos primeiramente com as abordagens filosóficas reiteradas para uma proposta
geográfica de analítica existencial-ontológica.
Deve-se deixar claro que pretendemos uma integração da existência com o
existente, naquilo que Lévinas (1998, p. 15) trata como uma não isolação do ente para com
seu modo de ser, onde ―o ‗ente‘ fez contato com o ser; não se pode isolá-lo. Ele é. Ele já
exerce sobre o ser o próprio domínio que o sujeito exerce sobre o atributo‖. Então o ente
existente humano é que exerce seu modo de ser a sua existência, esta como um atributo do
primeiro, não ao inverso. O existente humano é o sujeito de seu próprio atributo, a existência
espacial humana. Então esta é nossa análise, da existencialidade, onde se dá ―a noção da
ontologia e da relação que o homem entretém com o ser‖ (ibid., p. 18), um modo de ser.
Essa seria a relação humana com seu ser, no qual a existência é anterior ao mundo através
de uma relação primeva que nos liga ao modo de ser; temos a existência. Para Lévinas
trata-se da hipóstase, ou a designação do ―evento pelo qual o ato expresso por um verbo
torna-se um ser designado por um substantivo‖ (ibid., pp. 99-100, grifos nossos); nesse
modo, o existente humano assume sua existência, no qual a existencialidade torna-se o
próprio evento da existência, um ser-no-mundo (nesse sentido que o verbo ser torna-se
designado pelo substantivo). Como traduzir esta existencialidade para espacialidade, e
como remeter ambas como sinônimo do processo interligado à forma? Heidegger e alguns
geógrafos, através de nossas leituras particulares, poderão dar o sustento para
prosseguirmos com o debate. Brasil novamente irá adentrar no discurso ontológico de
Heidegger sobre a questão da espacialidade do ser-no-mundo; contudo, o que
apreendemos é que, a nosso ver, a espacialidade pode ser compreendida como ser-no-
mundo, por ser a existencialidade como ligação do existente a sua produção, o mundo
(forma) – e ao mesmo tempo compondo sua existência particular. Essa nossa interpretação
parte do não entendimento do espaço somente como um a priori do mundo, mas como
também um processo em ato do mundo como espaço ontológico (não somente como
espaço-essência). Brasil (2005, p. 71) irá exclamar que ―o Dasein é essencialmente
espacial‖ (aqui Dasein entendido como existência humana), por onde reiteramos atribuindo
o caráter ontológico-existencial e não somente essencial do espaço na existência humana,
pois a existência humana é também existencialmente espacial. Assim o espaço apresenta-
111

se concomitantemente como co-pertencente à forma (mundo) e à existência humana sendo


co-constitutivo de ambos.
Heidegger (2008, p. 154) tratará a existência humana como um ente intramundano
(um mundo construto próprio) em que sua espacialidade está numa ligação ontológica com
o mundo. Por isso a existência humana é espacial, existência espacial humana, por seu ser-
no-mundo tratar-se da sua espacialidade (existencialidade). Então devemos tratar o ser-no-
mundo como ―ser-no-espaço‖ – ou mais precisamente como ser-no-espaço ontológico. Por
estes motivos que concebemos a existencialidade como espacialidade, devido que a
existencialidade é a constituição de ser dos entes que existem; a existência de um existente
intrincada pela existencialidade conformadora do mundo (espaço ontológico), por isso esta
existencialidade é espacialidade e ser-no-mundo (ser-no-espaço). Assim, ficamos com uma
citação de Heidegger (ibid., p. 168), explicando que ―a espacialidade só pode ser descoberta
a partir do mundo e isso de tal maneira que o próprio espaço se mostra também um
constitutivo do mundo, de acordo com a espacialidade essencial da presença, no que
respeita à sua constituição fundamental de ser-no-mundo‖.
Referindo-se aos geógrafos que tratam da espacialidade, temos mais uma vez Silva
(2000, p. 18), que declara ser a espacialidade também um prolongamento do corpo, não
sendo característica apenas dos objetos. O que podemos apreender desta afirmação é que
a espacialidade se põe como um prolongamento por ser uma conformadora do mundo, no
qual o corpo do existente humano se estende ao seu mundo como espaço ontológico. Em
outro trabalho, Silva (1982) irá demonstrar, através de sua proposta de um ―espaço
ontológico‖, uma passagem pela acepção da espacialidade diferencial de Lacoste. Nossa
leitura sobre a espacialidade diferencial de Lacoste, tomada de empréstimo por Silva, é de
que devemos fazer na analítica ontológico-existencial uma análise comparativo-diferencial
das particularidades (que são as diversas espacialidades, ou existencialidades), e dos
diferentes ―mundos‖, do inorgânico, do orgânico vegetal, dos outros reinos e dos outros
animais71 e no caso da Geografia humana, uma analítica existencial-ontológica crítica do
mundo da existência humana (cabe aqui o termo ―mundo do homem‖, pois se trata de um
espaço ontológico como existencial do androcentrismo que recobre a existência humana). A
espacialidade diferencial então recai como método investigativo, pois a proposta crítica visa
a existência espacial humana, uma proposta de mudança do modo de ser humano que
configura seu mundo, por isso uma Geografia Humana e a necessidade desta espacialidade
diferencial. Uma distinção e uma proposta não antropocêntrica (de que somente a
humanidade é espacial), pois a espacialidade é particularidade dos entes existentes – não

71
. ―Os grupos humanos, estes encontram-se em presença de outros seres, animais e plantas, igualmente
agrupados e vivendo em relações recíprocas‖ (SILVA, 1991, p. 23). As espacialidades são relacionadas em
reciprocidade pois coabitam a mesma Subtotalidade geográfica que é o planeta Terra. Não admitir isto é parte de
uma reprodução do discurso especista (e) antropocêntrico do modo de pensar ocidental.
112

só humana. Moreira será outro autor que remeterá o seu entendimento geográfico
ontológico à espacialidade, em que num primeiro momento irá tratar espacialidade como
―modo da existência do homem‖ (MOREIRA, 2007, p. 158); no segundo momento tratará
como ―o estado empírico-concreto de organização da forma de existência espacial dos
entes‖ (MOREIRA, 2008, p. 55). Realmente a espacialidade é o modo de existência
humano, mas não como um estado empírico somente, pois trata-se de um processo que
também tem sua materialidade mas não somente isso – é um ser-no-mundo em que seu
estado empírico-concreto de organização é o mundo (espaço ontológico).
Carlos Santos será outro geógrafo que trará para o debate a espacialidade
humana, de forma peculiar, porém não menos intrigante. O seu discurso da espacialidade
nos remete ao que o autor chama de próteses ou expressões exossomáticas da existência
humana. Segundo C. Santos (2009, pp. 25-26) ―tais espacialidades ganham uma precisão
maior quando adquirem a conotação de extensos humanos ou próteses humanas, de vez
que se trata de produções exossomáticas‖, assim constata um contraposto planeta/mundo,
no qual ―o mundo é um complexo de espacialidades que funcionam como recursos para o
existir humano‖ (ibid., p. 29). Mundo então é uma construção, um espaço ontológico como
forma da existência espacial, no caso nos remetemos à humana, como uma prótese
intrincada que ordena, reproduz e reflete o seu existente, a humanidade – que o
exossomatiza. Porém, a espacialidade não se confunde com o mundo, como quer C.
Santos, mas a espacialidade é processo, um ser-no-mundo, inter-relacionado à forma
mundo. Soja (1993, p. 158) tratará por duas vias o entendimento da espacialidade; primeiro
como um produto social, sendo simultaneamente meio e resultado, pressuposto e
encarnação, não como um processo, o que pode levar à confusão de espacialidade com
espaço ontológico. Na outra via, o autor buscará uma ―volta à ontologia‖, embasando a
espacialidade como existencial do ser. Apesar de não concordarmos ao pé da letra com sua
proposta, pois, a espacialidade não é o existencial (a forma), mas uma existencialidade do
ente existente humano e não do ser – tal ser já fora metamorfoseado em existência pelo ato
de ser –, tem uma parcela de importância as afirmações de Soja. Na ideia trazida de Buber
do ―distanciamento primário‖, no qual ―somente os seres humanos são capazes de objetivar
o mundo, afastando-se dele. E o fazem através da criação de um hiato, uma distância, um
espaço‖ (ibid., p. 161, grifos nossos). Não concordamos ao pé da letra, pois, entendemos
que mundo e planeta formam uma dicotomia (o planeta é uma Subtotalidade enquanto
essência, já o mundo um existencial), então tal objetificação é quanto ao planeta (veremos
posteriormente através da crítica ao estranhamento), na construção de uma realidade
externa à vida; mas, no que se refere ao espaço temos algumas concordâncias, pois a
prótese, forma como espaço ontológico (ou mundo), é de tal artificialização que torna-se um
hiato, como um abismo que separa a humanidade das outras formas de vida, porém este é
113

fato do espaço ontológico humano, não de todos os espaços enquanto próteses dos outros
existentes, pois concebemos que possuem seus existenciais (claro em outras escalas e
complexidades e, principalmente, na não criação de tal hiato, deste abismo existencial para
com a vida).
Seguindo esse parâmetro, em nossa acepção, a espacialidade enquanto
existencialidade é também práxis, pois ―o homem é formador do mundo‖ (BRASIL, 2005, p.
66). Este processo ontocriativo que é a existencialidade, para nós emerge como o conceito
de espacialidade. A inter-relação conceitual da práxis de Kosík, da existencialidade de
Heidegger e o vocábulo ontológico-geográfico utilizado por Moreira, C. Santos e Soja;
resumindo: o ser-no-mundo da expressão por nós cunhada e interpretada. Assim como
citamos Merleau-Ponty alhures, podemos apreender que não há existência espacial humana
sem o mundo. São correlatos de uma presença no mundo, ao mesmo tempo em que ―não
existe mundo sem uma Existência que sustente sua estrutura‖ (MERLEAU-PONTY, 2006,
pp. 578-579). Este ser-no-mundo como processo ontocriativo (e espacialidade) é predicado
e constante devir do mundo pela existência humana. Retomando neste momento a inter-
relação existencial do duplo processo-forma: ser-no-mundo e mundo, espacialidade e
processo ontocriativo.
Cabe em boa hora uma breve verificação de similitude ao nosso entendimento de
existencialidade (a constituição de ser de um ente que existe) e práxis (como processo
ontocriativo). Kosík irá fazer tal definição de processo ontocriativo remetendo à práxis a
esfera de ser do humano, num ―autêntico caráter da criação humana como realidade
ontológica‖ (KOSIK, 1995, p. 222). Nesta práxis humana está contida o próprio modo de ser
que dá realização ao processo-forma, possuindo então uma importância ontológico-
existencial. Assim, nas palavras de Kosík (ibid.), ―a práxis do homem não é atividade prática
contraposta à teoria; é determinação da existência humana como elaboração da realidade‖,
constituindo uma unidade do homem com o mundo, nesse caso sua ontocriação, por esta
via que seria um ser-no-mundo – este ―modo específico de ser do homem‖ (ibid.) no seu
mundo como existencial. Tal termo práxis não é o mesmo que poiésis (como produção
material ou de objetos)72, mas como uma atividade concreta porque não somente numa
externalização de objetos, por ser um processo ontocriativo a humanidade ao
concretamente realizar sua existência e seu existencial (mundo) se autoconstrói e
autocondiciona. É nesse momento que cabe ressaltar segundo Vázquez (2007, p. 219) que
―toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis‖, mesmo que tenhamos diversas
atividades práticas e diversidades de práxis (como artística, experimental, política, teórica,
dentre outras), esta, do ponto de vista como estamos tratando é total, ―que se traduz

72
. Para uma explicação desta distinção entre os termos e significados ver Konder (1992).
114

definitivamente na produção ou autocriação do próprio homem (...) porque só criando,


transformando o mundo, o homem (...) faz um mundo humano e se faz a si próprio‖ (ibid., p.
267). Seguindo as palavras de Kosík (1995, p. 225), temos que é por via do processo
ontocriativo da práxis humana que ―se baseiam as possibilidades de uma ontologia, isto é,
de uma compreensão do ser‖, ou no que complementamos como o modo de ser-no-mundo,
este que deve sofrer auto-avaliação crítica e buscar ser mudado e não somente interpretado
pela Filosofia ou pelas ciências.
Analisamos brevemente então que ser-no-mundo, em nosso entendimento, se
caracteriza como o processo espacialidade, esse existencial da existência humana, (do ser
como espaço-essência, tornado existência pelo processo espacialidade). Porém, o
composto ser-no-mundo, exige uma apreensão do mundo (espaço ontológico), para
continuarmos com o nosso breve argumento crítico ontológico-existencial. Temos um mundo
inseparável do sujeito, este que possui um projeto de mundo (não o ―olhar‖ dicotômico
sujeito/objeto cartesiano) segundo Merleau-Ponty (2006), pois, ―o homem nunca é homem,
aquém do mundo‖ (HEIDEGGER, 1995, p. 79). Este espaço ontológico é um caráter próprio
da existência humana, possuindo ele uma estrutura ontológica, o que irá ―amarrar‖ o
entendimento crítico da expressão modo de ser-no-mundo da existência humana: o modo
de ser-neste-mundo da existência humana73; pois, este que é tratado como ―homem‖, ―é o
mundo do homem‖ (MARX, 2006, p. 45). E esta deve ser a análise ontológica-existencial
completa, assim como nos explicita Sartre (1972, pp. 41-42) de que o concreto é o homem-
no-mundo, numa união específica da humanidade com seu existencial; devemos a partir
deste entendimento nos inquietar sobre o modo de ser-no-mundo da existência espacial
humana. Este mundo, que nós expressamos através do termo espaço ontológico, que é a
própria projeção da existência humana, no qual, segundo Merleau-Ponty (2006, p. 576), é
―unidade primordial de todas as nossas experiências no horizonte de nossa vida‖ – possui
ele uma mundanidade que reproduzimos, e que ao mesmo tempo nos condiciona a sermos
como somos e a continuar reproduzindo. Esta mundanidade será utilizada por Heidegger,
como ―um conceito ontológico‖, com o significado de ―estrutura de um momento constitutivo
de ser-no-mundo‖; e para conseguirmos adentrar nas ―profundezas‖ desta problemática que
assola a própria humanidade devemos remeter ao seu modo de ser – aí mora o alvo da
crítica.

73
. O que segundo Heidegger (1996, p. 126) seria: o ―modo fundamental de ser da existência humana‖.
115

Figura 4: ―Mão com esfera refletora‖, litogravura de


Maurits Cornelis Escher – o que pode apresentar uma
perspectiva representacional do ser-no-mundo como
processo ontocriativo, no qual a humanidade é espelho
do mundo e vice-versa.

Marcuse irá se embasar em Heidegger para dizer que o mundo que nos é
preexistente por um lançamento a partir do seu modo de ser, deve ser posto em xeque com
a percepção crítica do ―estar lançado‖. ―No lançamento do ser-no-mundo adquire a
existência humana suas possibilidades a partir da exteriorização transferida, herdada, do
homem‖ (MARCUSE, 1968b, p. 71), no qual este lançamento da existência humana
constituiria a característica do próprio ser da existência humana. Este mundo que é
autocriado originariamente já com a sua existência espacial aflora em sua mundanidade o
estar-lançado, que é justamente a condição de cada ente singular que nasce para o mundo.
Uma mundanidade que o deixa a mercê do modo de ser do processo. Marcuse (ibid., pp.
71-72) irá através de contundentes palavras sintetizar seu argumento crítico, onde ―a
lançada existência humana‖ é o que ―se constitui o próprio ser da existência humana. Sua
liberdade consiste apenas na posse da herança, pronta pela morte, em cumprimento auto-
imposto pela necessidade‖. Esta mundanidade de já-ser-junto-ao-mundo como constituição
fundamental da existência humana através do ser-no-mundo, que como modo de ser lança
o existente em uma negação da vida em toda a sua existência – esta externalização da vida
116

é o que devemos analisar e propor uma mudança; para isso, vejamos a qual problemática
estamos nos atrelando e que briga estamos comprando.

2.4. O modo de ser-estranho da existência espacial humana: o estranhamento

A existência humana está-lançada no mundo através do que ela mesma criou para
si. Lançada no mundo através do Estranhamento. Este é o ser, ou mais precisamente, o
modo-de-ser que buscamos criticar – aquilo que fora tratado por Marx outrora de ―o ser
estranho‖ (MARX, 2006, p. 119). O estranhamento da existência humana é veiculado em
processo (como modo-de-ser) através da auto-alienação humana, gerando tanto uma
alienação objetivada via do trabalho alienado, quanto uma alienação subjetiva; este é o
processo ontocriativo como ―caráter coisificado da práxis‖ (KOSÍK, 1995, p. 74),
transformando a humanidade em um ente estranho em todos os níveis da vida: aos homens,
às mulheres, às diferentes cores (cientificamente definidas e chamadas intencionalmente de
―raças‖), às diferentes culturas e etnias, às outras formas de vida e existência (animal ou
vegetal, microscópica ou macroscópica), ao próprio planeta (estamos sempre achando que
o ―paraíso‖ não é aqui!); e com fito de negar tudo isso num grupo só, chama-se o oposto ao
homem (civilizado, social e cultural) de natureza. Nega-a e a rejeita em prol do mundo-do-
homem. Além de que, o mundo que deveria ser da existência humana é somente para
poucos, isto em prol de mais um estranhamento específico, o do próprio mundo enquanto
existencial, através da propriedade privada; o espaço ontológico o qual criamos e que nos
condiciona é balizado na propriedade privada. A alienação que ―move a presença para o
modo de ser em que ela busca a mais exagerada ‗fragmentação de si mesma‘‖
(HEIDEGGER, 2008, p. 243). Esta é a lei que ―pesa‖ entre nós, como já alertava um tal
filósofo alemão, de ―que nos tornássemos estranhos um ao outro‖ (NIETZSCHE, 2007a, p.
145).
Para adentrarmos com nossas propostas neste intrincado assunto, devemos rever
algumas considerações primordiais para darmos prosseguimento às citações e críticas. Um
dos principais esclarecimentos é acerca da nomenclatura utilizada: a distinção entre
estranhamento e alienação.
A base para este debate encontra-se, principalmente, na leitura da obra póstuma de
Karl Marx (1818 – 1883) que recebera o título (dentre outras variações) de ―Manuscritos
econômico-filosóficos‖ (nas suas obras posteriores, como ―A ideologia alemã‖ escrita em
conjunto com Engels, ainda encontramos os termos estranhamento e alienação, porém, a
ênfase de Marx nessa postura teórica crítica irá perdendo o enfoque). As interpretações
serão variadas, desde a famosa Escola de Frankfurt por Erich Fromm e Herbert Marcuse até
a interpretação lukácsiana do próprio György Lukács, em sua grande obra ―Para uma
117

ontologia do ser social‖, e posteriormente por seu discípulo István Mészáros, mais
especificamente na sua análise da teoria da alienação segundo os ―Manuscritos‖ de Marx.
Os dois termos em alemão Entfremdung e Entäusserung (ou Entäuβerung) são traduzidos
respectivamente como ―estranhamento‖ e ―alienação‖, o que segundo Costa (2005),
merecem distinção, pois em inúmeros trabalhos sobre estas categorias marxianas
encontramos traduções indistintas, assumindo frequentemente a terminologia sintética de
―alienação‖.
A própria tradução brasileira da obra de Mészáros (1981), o termo ―alienação‖
assume, em seu contexto, a síntese das categorias Entfremdung, Entäusserung e
Veräusserung. Em nota a sua introdução explicativa ao tema e à terminologia ―alienação‖, o
filósofo húngaro buscará esclarecer que estes três termos em alemão irão ter conotação de
―alienação‖ ou ―alheamento‖. O terceiro termo será menos utilizado por Marx, nas palavras
de Mészáros, sendo definido como ―a prática da alienação‖. Já Marcelo Backes, em nota à
tradução brasileira de ―A ideologia alemã‖ de Marx e Engels (2007), fará esta distinção
entre, o que o mesmo elege como ―conceito marxiano‖, Entäuβerung (―alienação‖), e o outro
conceito de Entfremdung, que será preferencialmente traduzido como ―estranhamento‖.
Backes mostrará, assim como Costa (2005), que a categoria de análise estranhamento é
posterior à alienação; o Entfremdung de Marx será um conceito com ―concretude‖. Esta será
também a interpretação de Lukács, o que levará Costa retrabalhar nesse sentido.
A autora irá verificar então que:

tornou-se evidente, no texto de Marx de 44, que a alienação aparece sempre


vinculada ao estranhamento, enquanto uma dada forma do trabalho humano se
apresentar. Assim, como foi possível verificar na presente pesquisa, há, de fato, uma
distinção entre Entäusserung e Entfremdung nos Manuscritos, mas apenas
enquanto categorias que guardam uma complementaridade entre si. A Entfremdung,
ou estranhamento, seria a realização da Entäusserung, alienação. Em outras
palavras, a alienação enquanto separação do homem de seu produto, sua atividade,
do gênero e dos demais homens acaba por gerar a Entfremdung - o estranhamento -
do homem em relação ao produto, atividade, gênero e dos homens entre si (COSTA,
2005, p. 4).

Esta realização da alienação pelo estranhamento mostra-nos o aspecto, até certo


ponto, dicotômico entre os conceitos marxianos – basicamente nessas interpretações. Por
ser posterior o estranhamento assumiria o papel de ―concretude‖, ou realização prática da
alienação, que então apresentar-se-ia como um processo de distanciamento primordial via
do trabalho alienado. Nossa acepção toma formas peculiares, por fugir desta relação de
anterioridade da alienação ao estranhamento. Pensamos justamente o contrário, sendo o
estranhamento uma exteriorização (ou externalização) da vida pela recente existência
humana (em relação à história do planeta como um todo), como um modo de ser deste
processo particular que é a existencialidade (o que já concedemos parecer neste capítulo).
118

Seria então o modo de ser estranho da existência espacial humana que externalizará a vida
em todos os sentidos possíveis para poder dar prosseguimento ao seu domínio, a sua
domesticação e alienação do que caracteriza o oposto (alheio) ao seu poder (porém a ser
dominado). Podemos perceber que do estranhamento emerge a alienação, mas, que será
uma reprodução em conjunto, não meramente posterior, tanto ―concreta‖ quanto ―subjetiva‖
– pois através desta subjetividade da alienação deve-se impor a ―naturalização‖ do modo de
ser estranho.
Não buscamos romper com as categorias marxianas, mas, apenas lhes dar nova
roupagem de interpretação, que correspondam aos nossos objetivos por hora. Agora
buscaremos definir esse conceito com a ―criticidade‖ que merece, além de buscar uma não
sintetização dos termos (estranhamento e alienação). Vejamos o que os mesmos
representam em nossa releitura, começando com o estranhamento.
Sartre (1998, p. 96) já esseverava que ―o homem é responsável por aquilo que é‖;
mas, qual relação cabal entre tal afirmativa existencialista sartreana e a nossa acepção de
estranhamento? Basicamente porque tal fenômeno seria o modo de ser estranho da
existência humana, aquilo no qual dançamos conforme a melodia, fazendo de nós muitas
vezes o personagem da música ―Ser estranho‖ do grupo Titãs, no indagar vazio da rotina: ―o
que aconteceu? / o que será que eu sou? / eu sou essa coisa louca / eu sou esse ser
estranho / eu sou esse disco voador / eu sou essa noite escura / eu sou essa criatura / eu
sou esse filme de terror‖. Não sabemos quem somos nós, enquanto entes singulares da
existência humana, porque estamos distanciados de nós mesmos. Nos tornamos esse ente
estranho dado o motivo de que ―o homem não é mais que o que ele faz‖ (ibid., p. 95),
portanto, somos obras de nossas próprias mãos, objetos de nosso próprio modo de ser,
deste estranhamento que nos externaliza de tudo e de todos. E esta não é somente uma
concepção a priori da humanidade, mas uma práxis de como a humanidade se fez e se
pretendeu para suas utilidades.
Nossa reinterpretação do estranhamento parte de um casamento de ideias. Da
proposta de Marx sobre o ―estranhamento‖ e da proposta de Heidegger na relação do modo
de ser-no-mundo com a ―decadência‖. Numa primeira leitura superficial parece-nos que tais
autores são totalmente contraditórios, o primeiro com uma perspectiva que visa uma
revolução concreta do ponto de vista histórico e o segundo partindo de uma abordagem que
seria bastante criticada por Marx, a de uma filosofia de interpretação e não de crítica e
mudança do mundo concreto, um pendor pejorativo de metafísica. Contudo, algumas
leituras foram feitas, posteriormente aos dois autores, no sentido de buscar inter-
relacionamento de ideias, principalmente críticas. O primeiro, que já citamos alhures, é
Herbert Marcuse, trazendo a historicidade para o debate de Heidegger. Seu objetivo é
explicitar que o modo de ser-no-mundo da existência humana está em seu ―lançamento‖ (o
119

que já explicitamos anteriormente). O outro autor é Pierre Bourdieu, que buscou uma
interpretação da ―ontologia política‖ de Heidegger. Segundo Bourdieu (1989, p. 89), o
―estranhamento‖ (ou Entfremdung) pode se reduzir a algo como ―desenraizamento‖, e irá se
constituir como ―estrutura ontológico-existencial‖ do Dasein – seria como uma ―deficiência
ontológica‖ própria da constituição da existência humana. Em prosseguimento, Bourdieu irá
fazer uma citação de Lefebvre sobre a similitude de ideias de Marx e Heidegger, onde ―não
há antagonismo entre a visão cósmico-histórica de Heidegger e a concepção histórico-
prática de Marx‖ (LEFEBVRE apud., BOURDIEU, 1989, p. 119). Dando prosseguimento às
citações, veremos através de Bourdieu que ambos pensadores alemães darão provas de
posturas radicais na questão do mundo, com crítica ao passado e preocupação com o
futuro; e, além de Heidegger somente buscar nos ajudar a entender Marx criará um estilo
particular no qual irá continuar, de certo modo, a obra crítica de Marx.
Neste momento que entrecruzaremos as duas acepções, de estranhamento em Marx
e decadência em Heidegger.
A ―decadência‖ (Verfallen) da existência humana em Heidegger remete à estrutura
existencial que é a existência humana e seu mundo. Esta ―decadência é uma determinação
existencial da própria‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 241) existência humana. Esta decadência em
Heidegger é o modo de ser no mundo, o que interpretamos como um estranhamento
enquanto o modo de ser da existencialidade da existência humana no mundo. Tal
estranhamento ou decadência fez com que a existência humana se aprisionasse em si
mesma, naquilo que ela mesma se proporcionou. Este estranhamento é esta decadência
porque a existência humana fez-se numa ―fuga decadente de si mesma‖ (ibid., p. 252), isto
se tornou algo inerente à existência humana – tal qual uma ―condição humana‖ que se
assemelha com o ―estar-lançado‖. Temos então essa sensação de angústia, de uma
estranheza onde não nos sentimos familiarizados (―em casa‖) com nós mesmos, como em
uma negação de nosso próprio ser antes deste modo de ser proporcionado pela
existencialidade da existência humana; esse processo ontocriativo enquanto práxis, que
possui como modo de ser almejado (para as realizações humanas): a estranheza.
Sentimos-nos estranhos e angustiados por essa oposição deste ser estranho, nos
fazendo sentir como um ―cristo redentor‖, com nossos fardos, ou como uma criatura em um
longo filme de terror. Mas, como dissemos referenciados em Sartre, este modo de ser
estranho é o condicionamento da própria humanidade; aquilo que Marx (2006, p. 132) irá
esboçar como ―ser-externo-a-si-mesmo, a exterioridade real‖ da existência humana. Este é
um poder que nos parece estranho, que está à margem e não em nós, ou como nas
palavras de Marx e Engels (2007, p. 57), ―que não sabem de onde ele procede nem para
onde ele se dirige, um poder que eles não podem mais dominar, portanto, mas que, pelo
contrário, percorre uma série de fases e etapas do desenvolvimento peculiar e independente
120

da vontade e dos atos dos homens, e que inclusive dirige esta vontade e estes atos‖. Este é
um sentimento de impotência perante um poder de externalidade, mas que na verdade
encontra-se em todos nós entes singulares da existência humana; não é somente algo
externo e por isso causa estranheza, é estranho porque não fomos nós os criadores diretos,
mas fomos lançados nesta existência para reproduzi-los, e reproduzir a exterioridade real –
o verdadeiro estranhamento.
Erich Fromm irá fazer uma proposta de análise do ―estranhamento‖ em Marx bem
intrigante e frutífera, que terá algumas abordagens gerais próximas da que estamos
tratando. Segundo Fromm (1979, p. 46), a base deste pensamento em Marx será de que a
humanidade tornou-se alheia a si mesma (à natureza – vista como externa – à natureza
humana, às coisas, aos outros entes vivos e a si mesma, aos outros entes singulares). A
existência humana é repleta ―de manifestações exteriorizadas de sua capacidade‖ vital.
Então, a preocupação de Marx não é somente do ―estranhamento‖ da humanidade em
relação ao seu produto ou apenas ao seu trabalho, na acepção de Fromm, mas, um
estranhamento da humanidade em relação à vida, e principalmente de si mesma. Fromm a
caracteriza como ―a doença do homem‖, não como uma doença nova, uma novidade
tecnológica e informatizada, pois, tem seu princípio com o inicio da civilização que
transcende o antigo modo de ser tratado como primitivo (ainda não civilizado) – esta, diz
Fromm (ibid., p. 50), ―é uma doença de que todos sofrem‖.
Em outro momento, Fromm (1970) irá despertar este entendimento mais amplo do
estranhamento. O autor irá dizer que este ―estranhamento‖ é uma negação da
produtividade, referenciando-se em Marx, pois segundo o mesmo a história da humanidade
é uma história de desenvolvimento crescente do ―estranhamento‖; para nos livrar do
―estranhamento‖ devemos voltar para nós mesmos e não procurar ainda mais coisas e
sentidos externos. Este modo de ser estranho significa que a humanidade não se
experimenta a si mesma como um fator ativo, vivo, em relação ao mundo, mas
permanecendo externa, uma externalidade real ao ser. O que presenciamos na
institucionalização das ciências, com a distinção entre sujeito e objeto, nada mais é que uma
representação do que o estranhamento vem desenfreadamente se espraiando sobre a
humanidade, cada vez mais. Este estranhamento é uma não experimentação do mundo tal
como ele é. Temos uma pseudo-experimentação passiva, uma dicotomia entre nós mesmos
e o mundo, entre a existência humana e a vida. Nesta estranheza para com nossas próprias
forças vitais, esta negação do contato conosco é revertida, segundo Fromm (ibid., p. 56),
num culto aos ídolos. Nessa negação da potencialidade humana em sentido lato (não numa
potencialidade mental ou produtora antropocêntrica especista) transferimos toda nossa
plenitude para os ídolos. Estes ídolos são representações, da qual a maior delas é a própria
representação humana, o que a própria humanidade representa para si mesma – isto
121

veremos no prosseguimento de nossas ideias, neste e no próximo capítulo. Toda a criação


da humanidade para si mesma suplanta a vitalidade inerente a nós mesmos; criação (ou
criatura) superando o seu próprio criador. Este ídolo, que é a tal criatura, é vazio (de vida) e
por isso doente, tanto de corpo quanto de mente (mais uma divisão da civilização criada
pela humanidade) – estamos então submissos a este ser estranho. Para Fromm (ibid., p. 58,
tradução nossa), esta é a ―máscara‖ da existência humana, ela ―não é o que deveria ser e
deve ser o que poderia ser‖.
O que estamos buscando dar corpo de entendimento é que este objeto ou poder
estranho que foi criado pela existência humana e que nos domina é a exteriorização da vida.
O modo de ser da existência humana se calcou nessa única alternativa para suas utilidades
civilizatórias: a exteriorização da vitalidade, da espontaneidade da vida. E somos presos a
este ídolo criado para suprir a nossa vida, uma divindade (não propriamente do Deus da fé)
antropocêntrica que nos assola por negarmos a nossa vida em prol de tudo o que
construímos para destruí-la. Vejamos agora, um breve panorama sobre como se constituiu
este estranhamento.
Como dissemos, entendemos o estranhamento como exteriorização da vida. Mas o
que isto constitui? Costa (2006) irá discorrer em longo artigo sobre a temática, da qual
compartilhamos a ideia, mas, porém, fazemos uma leitura particular, pois nosso
entendimento não é somente o da leitura marxiana dos ―Manuscritos de 1844‖ e das
propostas posteriores de Lukács. Na acepção apreendida por Costa (ibid., p. 9), ―a
exteriorização da vida humana produz a totalidade do ser social em sua expressão bipolar,
na forma do indivíduo e do gênero‖; o que em termos genéricos concordamos devido que a
exteriorização da vida enquanto modo de ser é um expressão tanto para o ente singular
existente (ou indivíduo) quanto para a existência humana como um todo (o gênero humano).
A segunda expressão irá dar mais respaldo para o nosso questionamento. A autora irá
referenciar-se em Marx, na sua afirmação de que a ―atividade imediatamente na sociedade
com outros etc., se converteu em um órgão de exteriorização de vida e um modo da
apropriação da vida humana‖ (MARX apud., COSTA, 2006, p. 19). De tal exposição crítica
podemos apreender que a existência humana, concebida como sociedade, tronou-se uma
exteriorização e apropriação (aprisionamento?) da vida humana e consequentemente uma
externalização da vida em geral – de tudo que cerca a humanidade e a serve, não em um
biocentrismo, mas através de um antropocentrismo especista induzido pela exteriorização
da vida. Então, o estranhamento como esta exteriorização da vida e este antropocentrismo
especista não são meros conceitos elaborados pelo homem, são acima de tudo um modo de
ser de uma determinada práxis.
Mas afinal o que podemos conceber brevemente por vida para entendermos esta
―doença humana‖?
122

Um consenso sobre o que seria a vida como um todo não tem uma definição
suficiente para totalizar os fenômenos que caracterizariam tal estado da matéria
(assimilação, adaptação, exaptação74, crescimento e possibilidade de reprodução) que o
pensamento científico corrente classifica com o nome de vida. E além destas ideias mais
genéricas temos a imbricação não muito entendida entre vida e morte (geralmente sendo
levadas para o campo metafísico, ou de especulação ―religiosa‖), no qual a maior
problemática parece ser de uma visão não integrada, onde vemos somente vida/morte e não
vida-morte como processo vívido – pois sem a chamada morte inexistiria o processo de
vida. Desta interpretação dicotômica emerge outra problemática: como é que sabemos se
uma dada entidade é ou não um ente vivo? Seria mais simples traçar um conjunto prático de
critérios nos limitando à vida na Terra tal como a conhecemos, como por exemplo:
crescimento, produção de novas células; metabolismo, consumo, transformação e
armazenamento de energia e massa, crescimento por absorção e reorganização de massa,
excreção de desperdício; movimento, movimento próprio ou movimento interno; reprodução,
a capacidade de gerar entidades semelhantes a si próprias; resposta a estímulos, a
capacidade de avaliar as propriedades do ambiente que a rodeia e de agir em resposta a
determinadas condições. Porém, toda regra, principalmente uma que contenha em sua
tentativa de definição algo vívido (que é a própria tentativa de definição de vida), tem
algumas exceções. Então, conforme os critérios citados poder-se-ia dizer que: o fungo tem
vida pela presença de alguma estrutura que delimite a extensão do ente vivo, como a
membrana celular, levantando novos problemas na definição de indivíduo em organismos;
as estrelas (entes siderais) também poderiam ser consideradas entes vivos, por motivos
semelhantes aos do fungo; entes como a ―Mula‖ dentre outros híbridos não são seres vivos
se adotarmos as restrições de reprodução, porque são estéreis e não podem se reproduzir,
o mesmo seria aplicado para todos os entes (inclusive humanos – imagine humanos vistos
como não-vivos?) estéreis ou impotentes. Se nos referirmos aos vírus e afins que não são
considerados entes vivos porque não crescem e não se conseguem reproduzir fora da
célula hospedeira, mas muitos parasitas externos possuem semelhantes características.
Portanto, a conceituação religiosa, filosófica ou científica sobre vida pode ser
altamente especulativa, pois se torna um problema a ser desvendado e não um processo
vívido e contínuo sem intermitência, tal qual concebemos pela dicotomia vida/morte. Até a
concepção mais ampla do biocentrismo pode ser reducionista dependendo de sua
concepção de vida. Mais recentemente tivemos especulações científicas que remontam
como origem da vida justamente o inorgânico: a argila, como num inconsciente do ―barro

74
. Exaptação é uma adaptação biológica que não teve um processo dirigido principalmente por pressões
relacionadas à sua atual característica ou particularidade. Em vez disso percorreu processos diferentes
relacionados a uma adaptação para outras características, até que eventualmente chegou a uma forma ou
construção em que veio a ser utilizada para uma terceira via, uma nova particularidade.
123

bíblico‖. A argila seria uma base para o entendimento de como os compostos orgânicos se
transmutaram para um material genético auto-replicante. Os cristais, e inclusive os de barro,
são auto-replicantes, sendo um traço fundamental dos entes vivos (MORAIS, 2003). Como
responder ao que seja vida pelas contra-regras expostas? E o inorgânico, se apresenta
padrões semelhantes, como algo visto como inanimado se aproxima do que também somos:
vívidos.
Tal panorama resumido sobre a vida enquanto ideia pode nos fazer prosseguir sobre
o modo de ser que exterioriza a vida, o estranhamento. Portanto, a vida não é o que é
concebido, pois isto já é uma postura posterior à exteriorização prática da mesma, pois
ideias e pensamentos buscaram na existência humana (como vimos) justificar
acontecimentos e através destas justificativas ―fundamentadas‖ darem o poder de
continuarmos no mesmo processo. Tal processo de colocar a vida à margem da
humanidade é justamente de negar qualquer entidade que não tenha a finalidade
antropocêntrica especista, no qual esta humanidade é o centro dos acontecimentos e todo o
resto é qualificado em espécies como inferior a esta humanidade. Porém, tal modo de ser
não é concepção somente, emergiu de práticas, e estas sim foram as exteriorizações: a
antinatureza (domesticação da ―natureza humana‖ e consequentemente a natureza não-
humana em benefício da própria ação humana – conformando uma condição humana auto-
domesticada); o androcentrismo (a repressão da sexualidade e não somente do sexo em si,
onde o domínio do gênero ―homem‖ – dos iguais – irá subjugar o feminino, e
consequentemente suas sensações e sexualidade, assim a repressão da sexualidade é uma
autodomesticação humana do feminino, da natureza de geração da vida em detrimento da
imposição da razão androcentrada e controlada); e o domínio da lógica e da linguagem (na
construção subjetiva do cabedal racional que reafirmará e dará condições de
prosseguimento à exteriorização da vida em processo – com estes padrões de
comportamento sendo simbolicamente demarcados torna-se mais fácil a perpetuação do
modo de ser). Estas exteriorizações é o que iremos sumariamente tratar a partir de agora.
Comecemos com a exteriorização via da antinatureza, ou no que podemos tratar
como ―domesticação‖. A domesticação, para nós, chamados de iguais, pela lógica
classificatória (e hierárquica) das espécies, ou homo, no que segundo Biro (2007, p.2) ―a
palavra ‗homo‘ significa ‗semelhante‘‖ ou a palavra latina para "pessoa", é atrelada somente
aos outros animais, sendo vistos sempre como objetos de nossa domesticação da natureza.
Raramente cogitamos se tratar de uma autodomesticação de nossa própria ―natureza
selvagem‖ para uma natureza controlada, mas o que nos parece, é que o modo de ser de
exteriorização da vida é antes de tudo uma antinatureza, no sentido de que o homem
domestica a si mesmo para em seguida aplicar a domesticação ao que ele também
pretende controlar – além de si mesmo. Nietzsche (2008, p. 148) irá asseverar que fora feito
124

―do próprio homem o melhor animal doméstico do homem‖, uma mediocridade que se passa
como moderação. Concordamos com esta afirmativa do filósofo alemão, pois, o que a
humanidade mais buscou para o estabelecimento de um mundo a seu dispor utilitário é
própria domesticação; o próprio controle das vontades e atos em si que pudessem demolir
toda a necessidade compulsiva de dominação sobre a sub-totalidade geográfica Terra.
Nesse sentido, Marcuse (1968a, p. 51) irá utilizar o termo ―arregimentação repressiva‖ para
sintetizar a domesticação humana de seus próprios desejos. A domesticação humana é uma
arregimentação (organização, ordenamento, conformação) repressiva (coerção, castigo,
punição ou recompensa) e do mesmo modo aderimos esses métodos para domesticar tudo
o que se interpôs no caminho da longa (porém curta) civilização do mundo humano, ―pois a
domesticação de outras espécies é resultado de um processo de autodomesticação do
homem‖ (ZERZAN apud., BIRO, 2009, p. 1).
Esta autodomesticação pode ser encontrada na análise crítica do discurso de
Mészáros (1981, p. 16), que irá traçar quatro características da exteriorização da vida pelo
estranhamento, que interpretamos da seguinte forma: 1) a humanidade encontra-se
exteriorizado da natureza selvagem; 2) está exteriorizada de si mesma (de sua própria vida
enquanto ente co-pertencente à sub-totalidade Terra); 3) de seu ―ser genérico‖, ou de seu
pertencimento enquanto membro da espécie humana; 4) a humanidade produziu uma
exteriorização da vida de entes singulares humanos de outros humanos, um individualismo
egoísta. A base deste modo de ser como práxis humana é o que Moreira (2007, p. 135) irá
frisar como ―desnaturização‖, ou o que estamos explicando como antinatureza, no qual a
humanidade é esvaziada ―de suas propriedades ontológicas mais profundas‖. Profunda
justamente por se tratar de um modo de ser da práxis, não somente de um discurso ou de
uma concatenação lógica, mas de uma prática material e de uma lógica inter-relacionada
com esta mudança ontológica. Será Konder (2009, p. 70) que irá caracterizar tais fatos com
a ―história concreta e das condições materiais de vida dos homens‖, devido que a
profundidade ontológica que modificará a práxis humana será a base para a conformação
de sua história concreta e principalmente das suas condições materiais de vida humana, o
mundo humano, seu espaço ontológico.
A antinatureza desta autodomesticação humana, Konder (ibid., p. 63) irá caracterizar
como um processo segundo o qual a humanidade não mais era composta de criaturas que
pertencessem à natureza selvagem ―da mesma maneira absoluta em que a ela
pertencessem os animais‖, a natureza além de ser dominada será algo visto como de fora.
Esse processo será um movimento em que a natureza selvagem passará a ser sujeitada,
numa transformação de tudo em objeto, utensílio utilitário (aqui não como uma redundância,
mas como um reforço de palavras para caracterizar a utilidade da vida nas mãos humanas
que através de seu uso procura tirar vantagem, proveito próprio) da ação humana. Seria o
125

―estabelecimento, pela primeira vez na historia do reino animal, de uma relação prática entre
um sujeito e um objeto‖, será muito antes de o pensamento cartesiano institucionalizar a
dicotomia sujeito/objeto nas ciências ―a primeira diferença importante estabelecida‖ (ibid.)
através de um modo de ser da práxis humana. Segundo Zerzan (2006, p. 5), ―antes da
domesticação, (...), a existência humana passava essencialmente no ócio‖; Konder afirmará
que as parcelas anteriores ao ―nascimento‖ da humanidade limitavam-se a consumir
somente ―aquilo que a natureza já lhes oferecia em estado de coisa pronta para consumo‖,
não era uma vida sedentária ainda, mas de um amplo nomadismo. A adaptação e
exaptação humana ―conseguiu iniciar a separação do homem e a natureza, bem como a
destruição progressiva desta‖ (Zerzan, 2006, p. 27), e além da submissão da natureza
selvagem do entorno através das caças de grandes mamíferos, a ritualização com intuito de
estabilizar a repressão foi o caminho para conformar a autodomesticação da natureza
selvagem vista como maligna para os interesses dominadores da humanidade que avança.
Além do velamento da natureza selvagem através da institucionalização cotidiana de uma
hierarquia prática (como a caça) dos humanos para as outras espécies animais, a
desarmonia corporal dos humanos será cada vez mais intensa. Os corpos selvagens e
integrados darão lugar a corpos como ―objetos estrangeiros‖ sobre o qual o sujeito humano
(exteriorizado) atua; seria ―a lógica da domesticação, com suas exigências de total
dominação‖ (ibid., p. 78) – da mente selvagem em humana, do corpo integrado em
arregimentado e da natureza como um todo para um utensílio da dominação humana que
busca tirar seus proveitos egoístas.
A primeira distinção da autodomesticação humana perpassada para seu próprio
mundo, oposto ao planeta integrado em que vivera, de uma sujeição da natureza selvagem
ao seu ímpeto de dominação e expansão de seu utilitarismo auto-centrado irá arregimentar
outras tantas dualidades também importantíssimas para a conformação da existência
humana. As dicotomias de sagrado/profano (a busca das re-ligações sagradas para deter o
profano selvagem); distante/próximo (o estabelecimento de distancias hierárquicas, desde
as antropocêntricas especistas até o caráter androcêntrico); desvio/norma (a base para a
estruturação das repressões na base da existência humana – as oposições entre o tolerável,
norma de conduta, e o perigoso para a desestruturação de toda a ordem, o classificado
como desvio de conduta ou até loucura); e o consciente/inconsciente (a relação da
educação das regras impostas para a autodomesticação introjetadas na reprodução da
existência humana de forma inconsciente para que o consciente seja ―naturalizado‖ como
―instinto‖). Assim a primeira dualidade gerará ―outros contrastes‖ pelos quais ―outras
oposições emergirão na cena‖ (RODRIGUES, 1986, p. 24) da existência humana.
Tais oposições irão se conformando no cotidiano corpóreo (vivido) como um tabu à
natureza selvagem, porque pulsões que devem ser controladas para a manutenção do
126

estranhamento que é modo de ser produtora da existência e do mundo humano. Produtos


ou excreções corpóreas irão passar a serem expressões da transgressão dos limites,
chegando ao cúmulo de que o ente humano ―é o único animal que se horroriza do seu
sangue, do seu vomito, de suas secreções sexuais, e que se sente cruelmente atingido por
eles‖ (ibid., p. 162). O medo transforma em tabu a associação entre a natureza selvagem e
o interior do corpo, e entre a domesticação e o exterior ao corpo humano. Seria a nova
oposição da autodomesticação observada na dicotomia interior/exterior, pois o que está
externo já fora ou deve ser controlado, já o interior, vindo a tona por atos impulsivos se
tornam perigosos porque demonstram a natureza selvagem que se encontra mais difícil de
ser dominada. Isto é o que nos demonstra Marcuse (1968a, p. 33), na acepção de controle
dos instintos, das pulsões selvagens que ―têm de ser desviados de seus objetivos, inibidos
em seus anseios‖, surgindo assim a possibilidade da civilização, da elaboração do espaço
ontológico humano em que a satisfação imediata das necessidades selvagens é
abandonada. Ocorrerá então a ―naturalização‖ (quem já não ouviu a ideia aprioristica de
natureza humana ou instinto humano?) dos impulsos selvagens sob a influência de uma
realidade externa construída, o mundo.
Ocorre, no que percebemos, uma revalorização dos anseios, que devem ser
domesticados para que o mundo humano seja um projeto seguro de reprodução. A
satisfação imediata, o prazer, o ócio e a espontaneidade darão lugar à satisfação adiada, a
restrição do prazer, ao processo de trabalho e a precaução ou ponderação dos atos. Então,
novamente Marcuse (ibid., p. 37) irá afirmar que ―a subjugação efetiva dos instintos,
mediante controles repressivos, não é imposta pela natureza, mas pelo homem‖, podendo
então retornar ao ciclo recursivo no qual a humanidade se instaurou, pois ao controlar a sua
natureza selvagem, a humanidade irá buscar uma base para controlar as pulsões dos outros
entes vivos, criando condições externas materiais e subjetivas para a manutenção do
estranhamento. Isto retornará no lançamento deste modo de ser (de exteriorização da vida)
sobre os próprios entes humanos – está então conformada a sua recursividade. Deste modo
a natureza, enquanto essência ou modo de ser do todos os entes, deverá ser conquistada e
tornada externa, sendo perpetuamente atacada como num reforço contínuo de sua condição
de utilidade, ―portanto, como suscetível de exercer domínio e controle‖ (ibid., p. 107).
A domesticação criou o que Boff (1995, p. 109) irá tratar como ―profundos
dualismos‖, dos quais os pilares foram as distinções existencialmente impostas entre
humanidade/natureza selvagem, mente/corpo (ou espírito/corpo) e homem/mulher. E nessas
dicotomias ―um dos pólos passou a dominar o outro. Assim surgiu o antropocentrismo, o
capitalismo, o materialismo, o patriarcalismo, o machismo‖ dentre outros totalitarismos
domesticadores. O antropocentrismo, no qual tudo deve partir da humanidade e retornar a
ela é a expressão da domesticação recursiva da natureza selvagem que supracitamos. A
127

noção de servilismo do planeta Terra para com a existência humana passa ser expressa
através da produção de ferramentas. A partir desta lógica a humanidade processualmente
buscou na natureza, tanto interna quanto externa, o exclusivo benefício utilitarista próprio
para a existência humana.
A vida passa a ser uma utilidade instrumental, e nos relacionamos por meio destes
instrumentos. O imediato dos sentidos se rompe e ao contato direto se dá a interposição dos
instrumentos, desde ossos ou rochas minimamente utilizados até os artefatos tecnológicos
contemporâneos, lá está o instrumento entre os entes – entre a humanidade e o que ele
procurou dominar. E esta instrumentalidade utilitarista domesticadora é utilizada, antes de
mais nada, sobre nós mesmos. Biro (2009) irá demonstrar algumas relações etológicas da
domesticação humana em relação aos outros animais, posteriormente domesticados pelos
humanos. Nesse sentido ―é visível no animal domesticado a perda de certas características
físicas, como o crescimento de pêlos. A perda de tais características não é necessariamente
genética, pois essas características são reguladas por hormônios (...). Isto quer dizer que
estas características não foram eliminadas da espécie, mas apenas inibidas‖ (ibid., p. 1).
Por outro lado, os indivíduos domesticados se tornam mais propensos a ferir
sistematicamente através do estresse de confinamento, condições inadequadas de vida,
solidão, perda de companheiro, mudança de habitat, ansiedade, dentre outros. Biro irá
também explicar que espécies domesticadas por várias gerações podem vir a ter sua
capacidade de sobrevivência modificada, além da indisposição para a atividade corporal
através possibilidade de alcançar a comida com menos esforço pode levar ao acúmulo de
gordura, sendo somado à ansiedade resultará, dentre outras, no alto índice de doenças
cardíacas e infartos entre animais domesticados.
Porém, a domesticação mais perceptível é quanto ao comportamento sexual, por ser
o comportamento mais importante para a perpetuação da vida e por envolver uma grande
trama, não só genital, mas um complexo de sexualidade corporal. Segundo Biro (ibid.),
―animais domesticados tendem a ser menos seletivos quanto a seus parceiros sexuais. Este
efeito é chamado de vulgarização sexual‖. O antropocentrismo domesticador tomará os
caminhos do androcentrismo como repressão da sexualidade e de suas sensações como
autodomesticação humana do feminino. Para Boff (1995, p. 113), ―este antropocentrismo,
quando considerado historicamente, se desmascara como androcentrismo. É o varão e
macho que se autroplocama senhor da natureza‖, assim o feminino que irá sendo instituído
como mulher, será considerada pelo homem, ou macho alfa (dominador, competitivo e
egoísta) como a expressão humana da natureza selvagem que ele deve possuir com
exclusividade para fins utilitaristas (seja de trabalho, manutenção da prole ou objetificação
sexual), domesticando-as pelos moldes androcêntricos.
128

Assim a existência humana irá ser baseada nos parâmetros do varão, centrada na
masculinidade que a domesticou, reprimindo tudo o que for feminino tanto no homem quanto
na mulher, acabando por introjetar ―nas mulheres esta autocompreensão do ser humano
como um todo, alienando-as de sua própria singularidade como mulheres‖ (ibid.). Nietzsche
(2007a, p. 75) dará os moldes para esta domesticação androcêntrica: ―são os homens que
corrompem as mulheres! E todas as falhas da mulher devem ser expiadas pelo homem e
corrigidas por eles: pois é o homem que cria a imagem da mulher e a mulher se modela
conforme essa imagem‖.
A imagem que servirá de modelo para a existência humana será masculina. Este
androcentrismo é o fenômeno da autodomesticação humana do feminino e de sua
sexualidade aparente. Este fenômeno está intimamente ligado ao surgimento do patriarcado
e de sua noção75, porém não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também da
forma como as experiências masculinas são consideradas como iguais às experiências de
todos os humanos e tidas como uma norma universal tanto para homens quanto para
mulheres. Evitando assim de dar o reconhecimento completo e igualitário à sabedoria e
experiência feminina. É uma tendência quase universal de se reduzir a ―raça‖ (espécie)
humana ao termo ―o homem‖ de forma excludente, ilustrando um comportamento
androcêntrico lógico. A exteriorização da vida como modo de ser da existência espacial
humana tenta calar as vozes e enclausurar os corpos femininos. Zerzan (2006) irá mostrar-
nos uma proposta de análise para esta conduta androcêntrica da existência humana.
Segundo este mesmo autor, a divisão sexual do trabalho é fundamental para este
entendimento, pois seria primordial na humanidade. A partir deste processo a materialização
da subjugação da mulher irá estar associada à dominação da natureza (externa e interna,
numa simbiose), construindo então algo inexistente fora da ótica da existência humana: a
divisão de gênero. Com a proto-organização da existência humana e sua inicial busca de
autodomesticação, a dominação das mulheres, dos outros animais e das plantas será a
base material que conformará a chamada ―revolução agrícola‖ – vejamos que a revolução
não é algo somente em busca de uma proposta menos autoritária, aqui veio esta para
mudar a condição harmônica do que podemos chamar de evolução, por isso a ―primeira‖ re-
evolução humana.

75
. O androcentrismo é parte da dominação patriarcalista, do homem sobre a mulher, que perdura entre nós
desde a Idade do Cobre (entre o Neolítico e a Idade do Bronze), que foi legitimada explicitamente pelas duas
religiões mais seguidas do mundo – o cristianismo e o islamismo – tornando-se majoritárias no mundo depois do
avanço islâmico e da dominação colonialista européia. O comportamento androcêntrico de quem fala (sendo a
voz da religião, da ciência ou do senso público comum) do ―homem‖ como se fosse o ser humano em sua
totalidade é uma naturalização deste patriarcalismo. O uso da palavra ―homem‖ como sinônimo de ser humano
somado ao não-uso da palavra ―mulher‖ nesse mesmo propósito é uma postura que reafirma o androcentrismo,
como uma forma de banalizar a hegemonia masculina, a dominação de um gênero que se quer destruidor,
competitivo e agressivo em cima do gênero feminino subjugado.
129

Temos assim a base para entendermos sumariamente a origem deste ―machismo‖:


uma submissão forçada da mulher ao homem (se bem que tal processo deixa de ser por
embate para ser um tabu, algo intocado porque cimentado como ―natural‖ e ―eterno‖ – uma
passagem da submissão coercitiva para a retórica). Assim, a existência humana é um
empreendimento fundamentalmente ―machista‖, que surge de um desequilíbrio entre a
práxis masculina e feminina; entre o agir e o pensar de ambos.
Esta é a autodomesticação humana do feminino, o androcentrismo, pelo qual a
repressão da sexualidade não se faz somente do sexo em si, mas do domínio do gênero
―homem‖ sobre o feminino, de suas sensações e sexualidade. Assim, a repressão da
sexualidade é uma autodomesticação humana do feminino, não somente da ―mulher‖
enquanto expressão pessoal do gênero, mas da natureza de geração da vida em detrimento
da imposição da lógica androcentrada. O grifo da palavra vida é justamente para
mostrarmos em que se baseia o androcentrismo: a repressão da sexualidade corpórea, ou a
arregimentação repressiva da vida.
Marcuse (1968a, p. 28) irá expor que ―a repressão é, talvez, mantida com tanto mais
vigor quanto mais desnecessária se torna‖, portanto, ela continua existindo para manter as
relações existenciais como processos conscientes e inconscientes, internos e externos, de
coerção, restrição e supressão. A relação de externo com interno é satisfeita justamente
quando o indivíduo introjeta os seus senhores e suas consequentes ordens como a auto-
repressão do indivíduo; uma auto-repressão da existência humana como um todo. Ocorrerá
a transformação repressiva da natureza interna que se moldará para os protótipos da
―condição humana‖. A história da existência humana desde então será um processo de
repressão constante, porém, a auto-repressão de que estamos tratando é a da sexualidade,
ou mais resumidamente como uma ―repressão sexual‖. Esta seria como um conjunto de
normas estabelecidas no correr da existência humana para controlar o exercício da
sexualidade. O que é permitido e o que é proibido passa a ser interiorizado em cada
indivíduo. Os humanos nascidos neste meio sentirão dor e culpa ao infringir tais normas.
Algumas delas, se ignoradas, poderão vir a sofrer sanção legal e levar ao encarceramento.
Contudo, o maior perigo da repressão sexual é quando, de tão bem-sucedida, não se
percebe sua existência. Através da educação os valores e as proibições-gratificações, serão
assimilados de tal maneira que, depois de internalizados e disseminados externamente, se
expressam sob a forma de culpa e vergonha. A linha de comportamento existencial adotada
pelos indivíduos passará a ser aceita como decorrente da sua livre escolha. Mas liberdade é
o que não encontramos quando falamos na repressão da sexualidade humana.
A sexualidade corporal originalmente não tem limites extrínsecos, nem busca sujeito
ou objeto para erogeneidade. O que irá interditar isso é a autodomesticação da natureza
interna pela coerção humana. E, segundo novamente afirma Marcuse (ibid., p. 87), ―a
130

principal esfera da civilização aparece-nos como uma esfera de sublimação. Mas a


sublimação envolve dessexualização‖. Esta sublimação ou dessexualização é uma busca de
controle da vida, a autodomesticação humana como exteriorização da vida, daquilo que é
seu meio fundamental de prazer e reprodução: o sexo e a sexualidade. É isto o que
construímos e moldamos para nós mesmos nesta ―empreitada‖ que é a existência humana:

somos destrutivos de muitas maneiras. Olhe ao seu redor. Todas as coisas que
estão profundamente associadas à vida são condenadas. O sexo é condenado (...).
É porque o sexo parece ser a fonte da vida; parece ser a energia original que move
o mundo (RAJNEESH, 1993, p. 99, grifos nossos).

Então, aqueles que são contra a natureza (sem dicotomias, seja ela interna ou
externa), ou melhor, contra a vida, serão contra o sexo e sua sexualidade corpórea. E nessa
―dança‖ incessante de busca de negação da vida, a autodomesticação da existência
humana irá além do feminino, do sexo e da sexualidade; irá reprimir também a criança. Este
singular ente vivo que será domesticado em todos os momentos para controlar, reprimir e
ter medo de sua natureza interna, introjetando assim a autodomesticação da existência
humana no período rotulado de infância – ou este período de maior arregimentação
repressiva. Neste período será preciso para a humanidade ―cegar todas as crianças para
que elas, como nós – sua Tradição Sagrada – não vejam o que estamos fazendo conosco e
com nossos semelhantes‖ (GAIARSA, 2002, pp. 82-83). E nesse processo da existência
humana ―todas as pessoas ao redor são loucas e forçam a criança a ser como elas. Elas
matam sua liberdade e lhe incutem o sentimento de que está errada, de que sempre está
errada (...). e você começa a odiar a si mesmo‖ (RAJNEESH, 1979, p. 83), a existência
humana como um todo e cada ente singular humano passa a odiar a si mesmo – a
humanidade se odeia por odiar a vida que é ―contrária‖ (na prática) a sua proposta de
domesticação. Nesse período chamado de infância, a criança irá passar pela conjugação
concreta (porque vivida em si mesma no aqui e agora para moldar um futuro) da
domesticação do feminino e da erogeneidade76 em um constante movimento de controle,
repressão e negação de sua erogeneidade. O que será próximo da representação sexual
nos movimentos e atitudes da criança perante si mesma e perante os outros será inibido ou
negado: o simples fato de se naturalizar a inexistência da erogeneidade na criança.
E a criança será além da concretude do processo de autodomesticação o momento
de completar este ciclo. Marcuse (1968a, p. 66) irá tratar tal momento como a ―filogênese‖
na origem da civilização repressiva naquilo ―que o comportamento do individuo adulto pouco

76
. Aqui se deve preferir tratar da repressão infantil como uma repressão da erogeneidade, ou, a capacidade de
qualquer parte corporal de originar alguma excitação sexual, isto é, de ser uma zona erógena. A explicação
básica é que não podemos chamar de repressão sexual ou da sexualidade infantil pela ainda latente presença
de hormônios e não sua presença efetiva, e também por ambos, menina e menino, não possuírem gametas:
óvulo e espermatozóide.
131

mais é do que uma repetição padronizada das experiências e reações infantis. Mas as
experiências da infância que se tornam traumáticas sob o impacto da realidade são pré-
individuais e genéricas‖; a repressão é abarcada genericamente na criança através,
principalmente, da família. Esta é organizada por relações de autoridade, de papéis
distribuídos por sexo e idade, de deveres, obrigações e direitos, castigo e recompensa,
sendo nesse contexto que a família realizará a repressão sexual. Não sendo nada aqui
relacionado com um sistema de parentesco que se toma como natural, mas contraditória a
este. Títulos como os de ―pai‖ e ―filho‖, ―implicam em sérios deveres recíprocos,
perfeitamente definidos‖ (ENGELS, 2006, p. 34).
Assim a família irá, como sua origem etimológica desvela, escravizar propriedades
de um mesmo homem, segundo nos elucida Engels (ibid., p. 60). Mesmo que a sua origem
como conhecemos hoje no mundo ocidental, a família monogâmica, seja recente e muito
atrelada às repressões e desigualdades vigentes, tal forma de agrupamento existencial é
duradoura, mesmo que tenha sido alterada, porém permanecendo a mesma base:
autodomesticar o grupo sexualmente, do poder de si mesmos; eliminando cada vez mais o
teor vívido das relações, tornando-as mais previsíveis e, consequentemente, menos não-
humanas. Nesse sentido que os entes singulares que irão perpetuar esta exteriorização da
vida pela autodomesticação se considerarão (e até sentirão, por acreditar que seu caminho
é o único possível) ―‗felizes‘ por seguirem um procedimento que acreditam ‗natural‘ e ‗justo‘‖
(RODRIGUES, 1986, p. 79). E esta falsa justiça é justamente a que condenará a própria
humanidade através da negação da vida, o modo de ser como estranhamento. As
autodomesticações do feminino, do sexo e da sexualidade e da erogeneidade infantil serão
segmentos de um todo que é maior do que isto, como já dissemos: a exteriorização da vida.
Porém, este processo não é o fim, mas somente o começo. O domínio da lógica e da
linguagem será outro fator importantíssimo no processo, na construção subjetiva da
racionalidade que reafirmará e dará condições de prosseguimento à exteriorização da vida,
através de padrões de comportamento simbolicamente demarcados para a perpetuação do
modo de ser que é o estranhamento.
Nas palavras de Nietzsche, ―a Terra é há muito tempo um manicômio‖ (NIETZSCHE
apud., MARCUSE, 1968a, p. 117), por aquilo que Marcuse irá explicar como sendo a lógica
uma subjugação dos instintos, ou, para sermos mais fiéis às palavras do filósofo: ―Logos é
razão que subjuga os instintos‖ (MARCUSE, 1968a, p. 118). Contudo, podemos observar
um paralelo muito importante nesse ponto de vista: primeiro, esta lógica será o momento de
dominação ―simbólica‖ dos ―instintos‖, ou do que já viemos tratando como natureza interna-
externa e/ou natureza selvagem (seja essa dominação tanto como uma confirmação do que
já fora feito quanto uma busca de organizar mentalmente e perpassar nas futuras gerações
tais controles e dominações); segundo, uma distinção entre razão e lógica, demonstrando
132

sutilmente que a lógica é posterior à razão, e apresentado também uma conotação negativa
em relação à neutralidade do termo razão. A razão parece surgir como uma condição da
vida ou de um organismo que possua organização mental para o feito, já a lógica não seria
uma evolução da razão, mas sim uma busca imaterial de ainda mais estranhamento.
Mas qual será a origem desta lógica (ou do ―lógico) na mente, ou na razão humana?
Filosoficamente, Nietzsche irá delatar que foi justamente do ilogismo, principalmente no seu
surgimento. Este ilógico é pelo que explica o filósofo:

o modo como se sucedem pensamentos e deduções lógicas, no nosso cérebro


atual, corresponde a um processo e a uma luta de instintos que são, em si,
realmente ilógicos e injustos; normalmente percebemos apenas o resultado desta
luta: esse antigo mecanismo funciona sobre nós, hoje, rápida e secretamente
(NIETZSCHE, 2007a, p. 109).

O ilógico é justamente esta injustiça que é a luta contra nós mesmos, ou seja, uma
autodomesticação forçada dos nossos ―instintos‖, que pode ser lido como a natureza
selvagem (pré-domesticada), condicionando a existência humana. Claro que este é a
princípio um jogo de palavras, mas que nos ajudará a retratar que o lógico aparecerá no
momento em que a autodomesticação humana já está em curso de ser reproduzida; e para
buscar não somente responder a questão de quando surgiu tal lógica, vemos que a
linguagem foi talvez concomitante com o surgimento daquela. É o que Nietzsche mais uma
vez irá dizer que este homem (aqui neste caso demonstrando existencialmente a dominação
androcêntrica da humanidade) julgou ―realmente possuir na língua o conhecimento do
mundo‖ (NIETZSCHE, 2005, p. 28); então, a linguagem tornou-se a proto-ciência desta
humanidade que construiu para si um ―mundo metafísico‖, no qual as dominações tanto
internas quanto externas serão linguisticamente organizadas para se auto-perpetuar ou
auto-justificar.
Porto-Gonçalves (2006b, p. 125) irá ressaltar esta característica metafísica da
linguagem por outras vias explicativas, expondo que a humanidade buscou e ainda busca
(hoje através da ciência) dizer por via da linguagem o reflexo da realidade externa do
mundo, isto ―é não compreender que por meio da linguagem os homens criam mundos de
significação e não simplesmente o refletem‖. Ideia esta que acaba naturalizando a
linguagem, não a vendo como uma criação (abstrata) humana. A linguagem será então um
sistema de classificação, no qual o mundo existencial será construído a partir destes
códigos lógicos e linguísticos. Tais classificações demonstram a autodomesticação humana
do caos visando seu ordenamento para fins utilitaristas. Nesse sentido, o medo maior da
humanidade ―é o de defrontar-se com aquilo que não pode controlar, seja por meios
técnicos, seja por meios simbólicos‖, assim, a linguagem como expressão da lógica ―gera a
lei e a ordem, e a expectativa de organização responsabiliza-se por todo o medo à anarquia
133

e à confusão de domínios que por definição devem-se manter separados‖ (RODRIGUES,


1986, p. 14). A linguagem e a lógica será a falta de sentido que precisava para a
humanidade em seu processo de exteriorização da vida – a falta de sentido para o caos em
movimento. Esta falta de sentido é o mundo metafísico, ou o ―mundo simbólico‖ do
estranhamento, que será construído e veiculado com a formulação da linguagem. Cabe
também relembrar, segundo Zerzan (2006, p. 33), que ―a auto-domesticação pela
linguagem, pelo ritual e pela arte inspirou a dominação de animais e plantas que lhe
seguem‖; que a lógica da domesticação humana buscou na linguagem uma estruturação
para as ideias de mais domesticação da natureza externa.
Como nos fala Manod (1976, p. 185), ―somos os descendentes desses homens. Sem
dúvida, foi deles que herdamos a exigência de uma explicação, a angústia que nos
pressiona a procurar o sentido da existência. Angústia criadora de todos os mitos, de todas
as religiões, de todas as filosofias e da ciência mesma‖. Esta explicação é a tal explicação
lógica construindo ordenamentos e sistemas linguísticos que visam explicar o mundo tal
qual queremos ver, para as finalidades do nosso usufruto (nosso dentro de certos limites,
pois dentro da humanidade também nem todos podem com as mesmas forças). É o que
Konder (2009, p. 62) irá tratar como ―o raciocínio abstrato, a lógica, o pensamento
especulativo‖ – a especulação das nossas verdades para o nosso mundo de estranhamento.
Mas afinal, de quem herdamos esta problemática especulativa e de ordem? Um
consenso é de que fora através do gênero humano77, algo em torno de quarenta mil anos
antes de nossa era (a de cronologia cristã). Nesse período, as tecnologias líticas difundiram-
se, tendo surgido novas soluções, novos formatos, tendo chegado à padronização, no qual
esse fabrico das ferramentas se terá prendido mais com questões estéticas do que práticas,
provavelmente despertadas com a percepção da simetria motivada pela procura da ordem.
E a necessidade de ordem encontra-se relacionada com o tal processo lógico de
reconhecimento de padrões e de classificação por categorias, a base da linguagem falada
como supracitamos. Desde então, a existência humana parece ter caminhado no sentido de
uma interpretação cada vez mais ordenada do mundo, na qual os processos sequenciais
assumiram especial relevância, tornando-se assim particularmente utilitarista a existência de
algum tipo de linguagem formal.
Dando um salto temporal necessário por hora, tal lógica irá se transformar na lógica
formal do ―berço‖ do pensamento ocidental. A lógica que tratará de argumentos e
inferências, com argumentos logicamente válidos, distinguindo-os dos que não o são

77
. Cientificamente, através de pesquisas, especulações e algumas possibilidades, o dito primeiro representante
do gênero homo é o homo habilis, ou humano habilidoso que vivera há aproximadamente dois milhões de anos
antes da Era Cristã. Habilidoso por ser atrelado a este as primeiras produções de utensílios em osso, madeira e
pedra (lascada) para usufruto próprio. Os símbolos materiais nesse momento já existem, mas o sistema
linguístico parece ainda não ser utilizado, pelo menos de forma estruturada, próxima ao contemporâneo.
134

chegando-se ao seu ápice que é a descoberta (da verdade lógica) e sua justificação
(SALMON, 1969). Resumindo de modo mais ordenado o que buscou esta lógica humana:
justificar de forma abstrata toda a autodomesticação e o estranhamento – uma ordenação
intelectual do ―caos ilógico‖ da vida – ou do que é a vida. Nietzsche será um dos mais
árduos críticos deste movimento, do socratismo advindo do filósofo Sócrates (c. 470-c. 399
a. C.), difundido posteriormente por Platão (c. 428-c. 348 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.)
aquilo que seria as bases da filosofia e ciência do mundo ocidental, chamado pelo filósofo
alemão de ―déspota da lógica‖ (NIETZSCHE, s.d., p. 91). Seria Sócrates o ―homem teórico‖
que teria a postura otimista frente à teoria em contrapartida da prática pessimista. Um
grande momento para consagrar a lógica humana ocidental contra a vida, a prática
pessimista: esta é mais uma fase da exteriorização da vida de que tanto falamos. A partir
desse momento o conhecimento teórico seria incorporado à vida dominada da existência
humana. E eis o que Nietzsche (2007a, p. 106) exaspera sobre tal conhecimento: ―o
intelecto, durante muitos séculos, não criou nada além de erros‖. E para retomarmos a
nossa herança, desde mitos até religiões temos a conformação da moral, essa que ―é uma
tirania contra a ‗natureza‘ e também contra a ‗razão‘‖ (NIETZSCHE, 2007b, p. 103), é uma
antinatureza produzida pela humanidade contra a razão da vida e não uma verdade
inquestionável. Tal moralidade irá criar os costumes e a nossa aceitação dos mesmos por
um senso público comum imposto, às vezes de modo coercitivo como um ―desígnio oculto
de vingar-se da vida‖ (NIETZSCHE, 2003, p. 153). O ápice desta lógica: a aceitação destas
justificativas – sendo o vértice derradeiro desta odisseia ilógica da existência espacial
humana, a ciência, cujo surgimento e intenções já demonstramos brevemente no capítulo
anterior.
Retornando a questões práticas, afinal, em que momento da existência humana tais
experiências de autodomesticação foram tornando-se ordenadas de forma menos
esporádicas? Primeiramente, para respondermos precisamos de dois limiares: um temporal
e outro de espécies humanas. O temporal ajudará a chegarmos aos meandros desta
revolução que está por vir, e o de espécie humana por justamente delimitar qual espécie de
ente humano irá condicionar com o estranhamento a sua existência. O período do chamado
Paleolítico inferior, entre três milhões e duzentos e cinqüenta mil anos atrás, será o marco
para as adaptações do gênero homo que irão conformando as bases para o nomeado homo
sapiens sapiens (nada mais cartesiano, o penso logo existo, agora reafirmado pelo sei que
penso logo existo como humano!). Na Europa e na África de outrora, o homo sapiens irá
convivendo e se readaptando ao seu mundo até por volta de cem mil anos atrás, período no
qual irá se aparentando o homo sapiens sapiens, com uma linguagem já previamente
elaborada pronto para um dos momentos de maior diferenciação no modo de ser da
humanidade, que a partir de então somente seria alargado cada vez mais. O momento de
135

início do estranhamento será no período do Paleolítico Superior que culminará na ―re-


evolução‖ neolítica ou revolução agrícola. Segundo Boff (1995), o final do Paleolítico para o
começo deste Neolítico se dá por volta de 12.000 antes da Era Cristã. Zerzan (2006) irá
lembrar-nos que o principal modo de ser deste humano anterior à revolução agrícola era de
caçador-coletor, vivendo a maior parte do tempo no ócio e dividindo os hábitos do grupo. Já
Darcy Ribeiro (2000, p. 39) irá nos relembrar também que ―antes da Revolução Agrícola o
homem vivera sempre em pequenos bandos móveis de coletores de raízes e frutos, de
caçadores e pescadores, rigidamente condicionados ao ritmo das estações, engordando nas
quadras de fartura e emagrecendo nos períodos de penúria‖. Até este derradeiro processo
revolucionário, a principal característica dos grupos humanos era de multiplicidade e
diversidade (até disparidade) nos modos de ser, com isolamento dos grupos subdividindo
com o crescimento o que irá fazer os humanos posteriores abarcarem a maior parte do
planeta. Mas, estes momentos estavam por mudar completamente.
O que estaria por vir era ―o primeiro processo civilizatório‖ (ibid.) correspondente à
Revolução Agrícola: o estopim do processo de exteriorização da vida. Este processo foi
gradual nas atuais Índia, Europa, África tropical e Américas. As construções dos tabus
sexuais com suas já comentadas repressões, uma base para a iniciação dos mais jovens ao
sistema de costumes sociais foi balizada pela agricultura, que possibilitou as
fundamentações materiais da hierarquia social e a ordenação da autodomesticação já em
curso com trabalho obrigatório enlaçado com uma crescente desigualdade sexual78. Seria o
começo do fim de milhões de anos de um modo de ser sem autodomesticação. Dos
pequenos grupos que resistiam ao processo, quase todos eles seriam pouco a pouco
atingidos pela Revolução Agrícola, mudando os caçadores-coletores para agricultores (das
aldeias agrícolas) ou pastores (através das hordas pastoris de nômades).
Dentre as consequências que supracitamos, tivemos mais alguns incrementos como:
a sedentarização dos indivíduos, o enfraquecimento da compleição física, a divisão sexual
do trabalho e a domesticação da natureza externa de plantas (das aldeias agrícolas) e dos
outros animais (das hordas de pastores) com o surgimento crescente de animais domésticos
para utilitarismo humano (equinos, caprinos, suínos, bovinos, canídeos, entre inúmeros
outros). Como já explicitamos a domesticação do que se considera a natureza selvagem
externa somente foi possível porque a autodomesticação já estaria em curso. Agora, mais
do que nunca, deixaríamos de ser da comunidade da selvageria para nos tornarmos
civilizados (não somos mais aborígines, nativos da vida), buscando nos distanciar da própria
vida como alienígenas – um estrangeiro a nós mesmos como se pertencêssemos a outro
mundo que não o da Subtotalidade Geográfica Terra. Desde dez mil anos atrás seguimos o

78
. Segundo Zerzan (2006, p. 68): ―Simone de Beauvoir (1949) reconheceu na equação do arado e do falo um
símbolo de autoridade masculina sobre a mulher‖.
136

mesmo processo para nos tornar alienados, como nos figura Darcy Ribeiro (2000, p. 46) em
nota para o comportamento humano com o estabelecimento da Revolução Agrícola:

dentro de cada comunidade local, os novos membros alcançam direitos iguais aos
de todos os outros, pelo mesmo processo através do qual aprendem a língua e se
tornam herdeiros do patrimônio cultural comum. A qualidade de membro do grupo é
que os faz usuários do esforço coletivo de provimento das condições de
sobrevivência e de crescimento de sua sociedade. Cada indivíduo sabe fazer o
mesmo que qualquer outro; dedica-se a tarefas idênticas – exceto os papéis já
diversificados de chefes e sacerdotes –, convivendo em um pequeno mundo social
em que todos os adultos se conhecem e se tratam pessoal e igualitariamente.

Com algumas mudanças quanto às especializações do trabalho, a labuta alienante


de cada um de nós não fugirá muito deste padrão, a não ser que sejamos algum ―chefe‖ ou
―sacerdote religioso‖. Temos agora em processo ―uma lenta e insidiosa progressão da
alienação‖ (ZERZAN, 2006, p. 34), tanto de forma material vivida (pelo processo de trabalho
padronizado) quanto subjetiva (de uma alienação psicológica dos entes humanos
singulares). Nesses termos, a alienação é um fator decorrente do estranhamento, como já
havíamos dito. E é esta alienação ―programada‖ pela exteriorização da vida é que iremos
desvelar brevemente, segundo nossos interesses por hora.

2.5. A auto-alienação material humana do trabalho

Esta alienação, como um processo lento e insidioso, será fruto da exteriorização da


vida. Portanto, mesmo que seja um processo casado, a nosso ver, a alienação é posterior
ao estranhamento. Este alienar que fundamenta a alienação, nas palavras de Rousseau ―é
dar ou vender‖ e remeterá o alienar à escravidão, não no sentido duplo, mas no sentido de
que ―o homem que se faz escravo de outro não se dá, vende-se, ao menos para subsistir‖
(ROUSSEAU, 2008, p. 24). Marcelo Backes em uma explicação do termo alienação em nota
à tradução de ―A ideologia alemã‖ de Marx e Engels irá nos elucidar de que o termo
Etäusserung tem o significado de um processo que submete a própria atividade do indivíduo
a uma juridicidade alheia. Teria a ideia de esvaziamento de pertencimento, como numa ação
de transferência. Se fizermos o esforço de inter-relacionarmos as ideias teremos a noção de
que a alienação é um processo posterior à exteriorização da vida e que é uma vendabilidade
do pertencimento do indivíduo à sua ação: seja ela concreta e vivida ou pensada. Transfere-
se tal ação para outrem. Mesmo que tenhamos produtos eles são esvaziados do nosso
pertencimento – esta é a ação de transferência que rege universalmente o existente humano
alienado.
Esta vendabilidade pode ser vista como universal tal como nos demonstra Mészáros.
Porém, o filósofo irá relacionar a esta alienação a reificação (objetificação ou ―coisificação‖).
137

Nesse sentido é que ―a alienação como vendabilidade universal envolvia a reificação‖


(MÉSZÁROS, 1981, p. 35). Esta reificação entra no processo justamente pela
transformação dos indivíduos humanos em coisas. Tanto o produto de seu trabalho é uma
coisa externa a si (não lhe pertence) quanto o próprio indivíduo é uma coisa; escravo que é
do trabalho, do seu empregador, da necessidade de trabalhar para sobreviver e continuar
trabalhando, e também escravo das ideias que povoam a sua consciência sem que o
mesmo tenha criado, mas reproduzido também esta subjetividade transferida. Assim
Mészáros (ibid., p. 36) irá dar contornos mais concisos dizendo que ―a alienação se
caracteriza, portanto, pela extensão universal da ‗vendabilidade‘ (isto é, a transformação de
tudo em mercadoria); pela conversão dos seres humanos em ‗coisas‘, de modo que possam
aparecer como mercadorias no mercado (em outras palavras, a reificação das relações
humanas)‖.
Esta alienação será a perda do sentido da vida em si próprio, uma transferência de
todos os produtos, sentidos, aspirações, emoções, pensamentos; enfim, toda a práxis como
processo ontocriativo será alienada. Então teremos o processo que será estranhamento-
alienação-reificação. Da exteriorização da vida à vendabilidade universal chegamos à perda
de referência em nós e em nossos produtos – somos indivíduos-coisas na luta pela vida que
não nos pertence. Adentraremos agora no viés ontológico-existencial de averiguação da
alienação, e desta forma ―para delinear com clareza e entender concretamente o fenômeno
da alienação, é preciso antes de tudo examinar bem seu lugar no complexo total do ser
social‖; para tal devemos abordar não no aspecto filosófico ou científico a alienação, mas
ontologicamente, sabendo que é uma característica própria da existência humana, fruto do
longo processo de estranhamento ao que nos impusemos. Assim ―torna-se possível
caracterizar em termos ontológicos a alienação real enquanto processo real no ser social
real‖ (LUKÁCKS, 1976, pp. 559-560) da existência espacial humana sobre a Terra; contudo,
tal alienação deve ser apreendida como em seu aspecto sociológico e psicológico.
Segundo Ferreira (2007, p. 7), ―do ponto de vista psicológico, corresponde ao
indivíduo que se encontra em estado de alienação mental, apresentando-se perturbado
mentalmente, não gozando de perfeito juízo‖ (uma alienação de sua consciência – o produto
de sua mente é transferido por outrem); já o aspecto sociológico sendo veiculado à teoria
marxiana, no qual o indivíduo é escravo do seu trabalho, através do qual sobrevive e produz
objetos, coisas que são para o lucro de outros e que servirão para outros; sua vida material
é em função de uma coisa que não é de livre escolha sua: o trabalho alienado. Contudo, tal
alienação é uma auto-alienação da existência humana, não é algo com culpabilidade
externa, pertencente a algum ente superior, à natureza, dentre inúmeras desculpas; é
exatamente uma prisão criada pela própria humanidade para ela mesma. Isto é o que Marx
(2006, p. 178) irá chamar de ―a autocriação do homem como processo‖, um autoproduzir-se
138

alienado (transferência de sentido) da humanidade regida pelo modo de ser do


estranhamento (exteriorização da vida). Nossa existência tornou-se abstrata, no qual existe

o domínio dos objetos e das instituições sociais, produzidas pelos homens, sobre os
próprios homens, escravos portanto das próprias forças que objetivamente se
tornaram forças naturais incontroláveis, mais incontroláveis do que as próprias
forças naturais (QUAINI, 2002, p. 48).

Este domínio dos objetos e das instituições é a não-relação encontrada entre a


humanidade e sua auto-produção alienada constante, no qual o sujeito acaba por se
encontrar sujeitado as suas criações, os objetos irão objetificar sua vida. É interessante
apreender que o termo objeto vem do latim objectus, como representação de uma ação de
pôr diante, interposição, obstáculo, barreira, como um objeto (material) que se apresenta
aos olhos; ou, no que Fromm (1979, p. 140) irá expressar: ―eu – o observador – coloco-me
em relação oposta ao meu ‗ob-jeto‘ (‗ob-jeto‘ e ‗objeção‘ têm a mesma raiz; em alemão
Gegenstand = contrapor-se)‖. Tais objetos serão então os próprios entraves na visão e na
ação humanas, fazendo de nós escravos e objetos de nós mesmos que nos contrapusemos
diante de nossos produtos – estamos numa objeção constante ao que nos remete às nossas
próprias problemáticas e prisões.
Moreira (2007, p. 175), segundo nosso prisma, irá caracterizar este como ―um
movimento auto-poiético, de vez que o homem atua em todos os níveis como sujeito e
objeto dele mesmo, através de sua presença no processo de transformação recíproca (...) e
cujo resultado superior é justamente a sociedade humana‖; este movimento de auto-poiesis
irá auto-(re)produzindo-se ―no sentido integral das relações societárias. Por conta disso, a
existência humana é algo feito pelo próprio homem‖ (ibid., grifos nossos). Deste modo o
mundo como existencial (ou outra terminologia para sociedade e até mesmo civilização) é
criação e sinônimo de ―um vazio de pertencimento‖ (ibid., p. 141). Este mundo como mundo-
da-autocriação-humana é usufruto das vontades e dominações da própria humanidade. O
que temos é uma coisificação da vida através da tortura e da violência, que perderam a
referência na humanidade. E basicamente é que a vida perde referência para a abstração
do valor. Temos então nessa sensação externa ao mundo, um mal-estar. Um vazio de não
pertencimento com nada, e um descaso com tudo o que nos ―cerca‖. A decadência de nosso
mundo, da vida e de nós mesmos é culpa desta autocriação da existência humana em um
sentido-de-ser-estranhado, do qual não temos ligação nenhuma com nada; este mundo, as
outras formas de existência (ou vida), os outros entes humanos são somente coisas – a vida
é um objeto para a práxis humana. Mas, esta própria autocriação da alienação humana se
deu e ainda se dá pelo processo de trabalho em seu estado alienado, que irá enredar a
alienação material e subjetiva da existência humana. Assim veremos agora este processo
139

que desencadeia a alienação porque ele mesmo é alienado, pois é através do trabalho que
a humanidade produz-se a si mesma, no processo de auto-poiesis.
Como nos relembra Konder (2009, p. 40), ―esta concepção do homem como
autocriação, como ser que se produz a si mesmo pelo trabalho humano, é um dos
fundamentos essenciais da filosofia marxista‖, sendo tanto a alienação quanto o trabalho
alienado fenômenos entendidos através desta atividade criadora da humanidade. Os
fenômenos em que a humanidade ―produz os seus meios de vida e se cria a si mesmo‖.
Vejamos agora o trabalho humano alienado, mas, primeiramente separemos sutilmente o
trabalho de sua adjetivação alienada.
Engels irá condensar as ideias físicas que levarão a uma apreensão do que é o
trabalho para uma teoria geral da dialética da natureza. O termo trabalho será o resultado de
uma equação quantitativa, sendo então uma categoria de entendimento da ―mecânica
matemática‖, como medida de movimento dos corpos. O trabalho demonstrará, portanto, a
medida geral do movimento, conduzindo a idéia de que ―uma lei semelhante rege diversos
outros casos de movimento de corpos unidos em um mesmo sistema‖ (ENGELS, 2000, p.
57). Porém, como mencionamos, esta categoria de síntese – trabalho – irá ser a base para o
entendimento da transformação do movimento em uma proporcional quantidade; isto se
deve por se tratar do conceito de trabalho em seu sentido físico científico (abstrato). Logo,
Engels irá condensar esse conceito físico de trabalho como sendo ―uma simples mudança
de forma do movimento, considerando sob seu aspecto quantitativo‖ (ibid., p. 67). Dois
termos que podem passar despercebidos nessa quantificação do trabalho serão muito úteis
para o nosso entendimento, e diferenciação, entre o trabalho (ou labor) e o processo de
trabalho (trabalho humano que resultará no trabalho alienado); tais termos são: movimento e
quantitativo.
Novamente segundo Engels (ibid., p. 68), ―aquilo que aparentemente é destruído é o
movimento mecânico. Mas o movimento não pode jamais realizar trabalho (...), sem ser
aparentemente destruído como tal, isto é, sem converter-se noutra forma de movimento‖.
Retomemos ao que sintetiza a categoria trabalho: a medida geral do movimento dos corpos.
Pois bem, entendendo como corpos qualquer elemento universal que exista, mesmo que
não nos exerça força ou percebamos (como os átomos e suas divisões) – qualquer micro-
elemento de matéria ou espaço, todos estes corpos estão sujeitos ao trabalho, justamente
pela contínua criação e destruição do movimento. Não é o movimento que realiza trabalho,
mas esse processo incessante de criação-destruição do movimento dos corpos – a medida
deste processo é o trabalho como categoria geral do universo material. Isto posto, temos
que a quantidade de trabalho em tal quantidade de movimento de algum corpo ou corpos irá
significar a ―sua força da vida‖; isto irá demonstrar ―a relação recíproca entre força viva e
trabalho‖ (ibid.), o que podemos remontar àquele argumento que expressamos alhures
140

sobre a concepção geral de vida, agora sendo mais abrangente ainda por reunir as
categorias vida e trabalho com o movimento da matéria.
Como pudemos reunir três coisas em uma só (vida-movimento-matéria→trabalho),
buscaremos não nos deter ao quantitativo, conforme tínhamos aberto polêmica carecendo
de explicação. Aplicando a Dialética como uma lei geral da natureza como ciência, Engels
irá co-relacionar categorias que parecem opostas: quantidade e qualidade, como uma lei de
interpretação dos contrários. Contudo, quantidade e qualidade de um corpo não são
exatamente categorias opostas, mas complementos do mesmo processo e categoria
sintética que é o trabalho. Podemos assegurar esta afirmação com o próprio Engels (ibid., p.
35, grifos nossos): ―torna-se, portanto, impossível modificar a qualidade de um corpo, sem
fornecer-lhe ou tirar-lhe matéria ou movimento, isto é, sem provocar uma mudança
quantitativa no corpo em questão‖. Nesse sentido, trabalho é uma categoria geral que
condensa o processo vida-movimento-matéria sob o aspecto conjunto quantitativo-
qualitativo – estes últimos como correlatos e não meramente opostos.
Buscando perceber a aplicabilidade desta formulação relembremos que citamos
expressão semelhante no que se refere ao movimento, relacionada a Armando C. da Silva,
o qual inter-relacionará espaço, tempo e movimento, se assim formos considerar
ontologicamente o ser. O ser-espaço é em-si ou ser-em-movimento (aqui também como
correlatos e não como opostos). Engels irá elaborar sua concepção de movimento, que
pode ser integrada a de Silva, dizendo que ―o movimento, em seu sentido mais geral,
concebido como forma de existência, como atributo inerente à matéria, compreende todas
as transformações e processos que produzem no Universo, desde simples mudanças de
lugar até a elaborações do pensamento‖ (ibid., p. 41, grifos nossos). As acepções podem
ser co-relacionadas, pois se nosso ser é espaço enquanto matéria (corpos) em-si (essência)
e em-movimento (existência), o trabalho será o processo Universal que fluirá a vida como
existente, quantitativa e qualitativamente. Podemos a partir de Silva aplicar as formulações
gerais sobre a categoria trabalho, através do que o próprio autor irá tratar como ―o natural e
o físico‖ geográfico. Deste modo, ―a força natural é entendida como o ser do trabalho
biológico, químico e físico. Há, então, um trabalho natural, que se realiza por estas
determinações. Esse trabalho natural é o agente da existência da Terra‖ (SILVA, 1991, p.
12). Aqui em Silva encontramos a força viva (natural) como pilar do trabalho, podendo ser
entendido como trabalho natural ou, como preferimos por hora, trabalho da vida, que será
agente da existência na Sub-totalidade espacial Terra. Seria o modo de ser orgânico da vida
como um todo na Terra, tendo o trabalho como forma ou medida geral de movimento da
matéria, ―como essência e modo de ser do real. Essa essência manifesta-se como corpos e
ondas, ambos gênese do movimento corpuscular e ondulatório‖ (ibid., p. 13).
141

Em tal movimento ondulatório e corpuscular é que irá ocorrer a diferenciação da qual


chegará até o trabalho humano. A diferenciação será entre o inorgânico e o orgânico, este
ultimo possuindo uma elaboração de consciência (em todas as formas orgânicas de vida)
que será a fonte de uma sensibilidade para elaborar as formas de trabalho particular, ―que
implica modificar o espaço natural e automodificar-se‖ (ibid., p. 14) – uma automodificação
de seu quantitativo material (o espaço corpuscular ou ―natural‖) qualitativamente. É a partir
deste momento do trabalho orgânico da vida que é, conforme apreendemos do relato de
Martins (2007, p. 45), ―o superlativo momento em que se fundem sobrevivência e existência,
no qual se processa a relação subjetividade/objetividade‖; entendendo aqui esta
sobrevivência como ―a dimensão material da existência. A sobrevivência é a relação
orgânico-inorgânico‖ (ibid., p. 46). Como podemos ver o par correlato orgânico-inorgânico
mesmo que possua diferenças é necessária para o trabalho da vida a sobrevivência e
relação entre ambos.
Neste momento adentraremos no trabalho humano, ou humanizado que se
distanciou pelo seu modo de ser estranho da vida (o trabalho da vida). Mas, buscando
compreender também que o labor, ou somente o trabalho, existe no existente humano.
Arendt irá fazer sua distinção de forma clara, afirmando que:

o labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos


crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as
necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A
condição humana do labor é a própria vida (ARENDT, 2007, p. 15, grifos nossos).

Portanto este labor como trabalho da vida é a condição da existência humana antes
e (ainda permanecendo, queiramos ou não) durante o modo de ser estranho, fazendo deste
ente que se ―gaba‖ em ser especial, racional, divino ou humano (este último síntese destes
adjetivos anteriores) um animal laborans. Somos, portanto, nada mais que ―apenas uma das
espécies animais que vive na terra‖ (ibid., p. 95). Temos a existência do labor e da vida no
próprio ente humano, necessário à manutenção da vida, por sermos corporais, exercermos
a existência pelo movimento e estarmos inseridos na vida, logo temos este trabalho ―natural‖
que é o labor, o trabalho da vida então é um constante movimento cíclico em todos os entes,
desconhecendo a dicotomia entre vida e morte ―tais como compreendemos‖ (ibid., p. 108).
Assim, poderemos nos enveredar pelo trabalho humano, que divergindo do labor
busca romper com este ciclo vívido. Trata-se nesse momento de buscar o entendimento do
que é o trabalho humano, no que permeia não como uma atividade laborativa (do trabalho
da vida), mas da autocriação do que a humanidade se fez. O trabalho humano específico ―é
um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade‖ (KOSÍK,
1995, p. 199), o ponto onde ao trabalho da vida é acrescido o processo de trabalho humano.
142

A partir deste processo de trabalho é que o cíclico imprevisível irá buscar o teleológico, a
liberdade se converterá em necessidade, o universal no particular, o real no ideal, o interior
no exterior, o sujeito no objeto, através do qual o ente humano se converterá num objeto de
sua auto-produção – esta será a especificidade do ente humano e de sua existência. Essa
metamorfose será como esse processo de trabalho se caracterizará como um processo de
transformação e a partir disto a objetividade será o elemento constitutivo do trabalho. ―O
homem alcança no trabalho a objetivação, e o objeto é humanizado. Na humanização da
natureza e na objetivação (realização) dos significados, o homem constitui o mundo
humano. O homem vive no mundo (das próprias criações e significados)‖ (ibid., p. 203), daí
a alienação objetiva e a subjetiva, ambas criações suas. Este processo de trabalho humano
terá caráter objetivo, tornando o sujeito em sujeito objetivo, pela agora existência em seu
mundo (ou espaço ontológico, como já dissemos) de criações objetivadas provendo a
continuidade da existência humana.
O processo de trabalho humano será caracterizado por aquilo que Moreira (2007, p.
158) definiu como ―o metabolismo do trabalho‖, sendo um processo metabólico por ocorrer
―entre as esferas inorgânica, orgânica e humana de transformação do homem de parte da
natureza em homem socialmente definido‖ (ibid., p. 175). Neste metabolismo é que consiste
a auto-produção do homem, ou daquilo que Martins (2007, p. 46) irá tratar como a ―definição
de sua humanidade, da definição do seu complexo bio-ontológico, passando ser a atividade
por meio da qual, e na qual, somente o homem se torna aquilo que ele é como homem,
segundo sua essência‖. Este processo metabólico de auto-produção do trabalho será um
processo pelo qual ocorrerá a humanização do animal laborans, que converterá o trabalho
da vida (labor) em trabalho alienado como alienação do trabalho humano em específico;
como que o gatilho final de seu modo de ser estranho. Não é por acaso que a sua
interpretação por Marx e Engels irá convergir para uma ideia de humanização da
humanidade através do trabalho. Resumindo: é uma medida geral que movimenta os
homens (corpos) unidos em um mesmo sistema, que é o processo de trabalho: a
humanização do existente que será humano. Nesse sentido é que Engels irá escrever um
breve texto com o título ―Humanização do macaco pelo trabalho‖. Vejamos uma citação de
Engels por Smith que mais se aproxima da nossa idéia79: ―O trabalho, ele dizia, é a
‗condição básica primeira para toda a existência humana, e isso ganha uma tal amplitude
que, em certo sentido, podemos dizer que o trabalho criou o próprio homem‘‖ (ENGELS
apud., SMITH, 1988, p. 74).

79
. Outra citação da tradução brasileira deste texto de Engels dá outro termo para a ―existência‖ como ―vida‖, que
iremos expor aqui para meio de comparação e relação, pois como falamos sobre o trabalho da vida, existência
pode se enquadrar como vida dependendo do contexto: ―O trabalho (...) é a condição fundamental de toda a vida
humana; e o é num grau tão elevado que, num certo sentido, pode-se dizer: o trabalho, por si mesmo, criou o
homem‖ (ENGELS, 2000, p. 215).
143

Karl Marx irá em sua obra ―O Capital‖ dedicar um capítulo ao processo de trabalho,
com isso buscará defini-lo, não fugindo de modo geral à definição metabólica que expusera
Engels, contudo irá ser mais completa, vejamos:

antes de tudo, o trabalho é um processo em que o ser humano com sua própria
ação, impulsiona, regula e controla seu intercambio material com a natureza.
Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças
naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos
recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim
sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria
natureza (MARX, 1988, p. 202, grifos nossos).

A complementação que Marx irá dar a Engels é justamente o que já havíamos


frisado: o metabolismo deste processo de humanização da natureza externa (impondo as
formas úteis à vida humana) e da natureza interna (por ser o animal laborans uma das
forças do trabalho da vida modificará a sua própria natureza selvagem). Esta foi a
autoconstrução da humanidade, onde ―nossos corpos são o produto da adaptação ao uso
de instrumentos, que pré-data o gênero Homo. Nós determinamos ativamente a nossa figura
corporal através dos instrumentos que mediatizam a troca humana com a natureza‖
(HARAWAY apud., SMITH, 1988, p. 74). Deste modo não somente as mãos ou o cérebro
foram alterados com o processo de trabalho, o metabolismo atingiu todo o corpo e suas
extensões, materiais ou subjetivas. Todo o conjunto vivo da natureza humana transformou-
se num objeto de sua própria vontade: dos pés a cabeça, dos objetos materiais à
consciência.
E Marx irá complementar suas ideias com a base da criação do processo de trabalho
humano que será a criação dos valores-de-uso, o que será fundamental para a
abstratividade e objetivação do trabalho alienado. Segundo Marx (1988, p. 208), ―o processo
de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida
com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades
humanas; é condição necessária do intercambio material entre o homem e a natureza‖. O
valor-de-uso seria o produto da transformação exercida pelo processo de trabalho humano
ao que ele bem entender, dos outros entes vivos (inorgânicos, orgânicos, vegetais, animais)
e até dele mesmo (material e subjetivamente). Qualquer coisa tornada objeto de utilidade
para o ente humano é um produto que pode ser tratado como um valor-de-uso (uma
abstração para o utilitarismo humano) – assim o trabalho como metabolismo estará
incorporado ao ente humano que exerceu o trabalho e no produto do trabalho.
Este trabalho que irá gerar valores-de-uso será uma criação constante de
necessidades. Os produtos deste metabolismo serão transformados em necessidades
últimas para a (não-)vida humana. Isto fará com que Kosík (1995, p. 207) trate o processo
de trabalho como ―um agir humano que se move na esfera da necessidade‖. Mas, tal
144

necessidade é uma necessidade artificial, não uma necessidade de sobrevivência. Arendt


(2007, p. 15) dirá que ―o trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência
humana. (...) O trabalho produz um mundo ‗artificial‘ de coisas, nitidamente diferente de
qualquer ambiente natural‖. A diferenciação que Arendt irá fazer aqui é basilar para o
entendimento deste metabolismo de modo sintético – este trabalho é diferente do labor; o
labor será o trabalho das funções vitais ainda presentes em nosso corpo, já o trabalho será
a criação da artificialidade, como vimos em Marx, das mãos aos pés à cabeça – do corpo
todo para a consciência. Assim o processo de trabalho seria a grande diferenciação (por ser
a característica primeva) do animal laborans para os outros animais; esse ente criador de
artificialidades se metamorfoseará em homo faber, demonstrando que é o processo de
trabalho e não a razão que fará esta diferença – o ente humano não é um ente especial
criado por um Deus antropomórfico, mas um objeto autocriado. Portanto este homo faber é
o senhor e amo de si-mesmo, principalmente por ser o senhor de seus atos, e isto não é um
modo de ser especial perante a ―natureza‖: agora ―o homem deve comer para trabalhar e
deve trabalhar para comer‖ (ibid., p. 156). Este artificialismo humano construiu seu espaço
ontológico como um valor-de-uso para seu utilitarismo, o utilitarismo do homo faber como
medida de todas as coisas no universo.
É isto que Silva (1991, p. 28) irá caracterizar como sendo o trabalho ―o fundamento
da dimensão espacial‖, mas do espaço ontológico humano, artificial como um valor-de-uso
com propósito puramente utilitarista. Esta configuração que originará o gatilho final deste
metabolismo ―grotesco‖: o trabalho alienado. Para compreendermos um pouco mais esta
alienação do trabalho devemos nos remeter para a origem do termo trabalho. Trabalho tem
origem em Tripalium, que era um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes
ainda munidos de pontas de ferro, no qual os agricultores bateriam o trigo, as espigas de
milho, para rasgá-los, esfiapá-los. A maioria dos dicionários (como o Houaiss), contudo,
registra tripalium apenas como instrumento de tortura, o que teria sido originalmente, ou se
tornado depois. Este advém do latim ―tri‖ (três) e ―palus‖ (pau): três paus; sendo um
instrumento romano de tortura, uma espécie de tripé formado por três estacas cravadas no
chão na forma de uma pirâmide, no qual eram supliciados os escravos. Daí derivou-se o
verbo do latim vulgar tripaliare (ou trepaliare), que significava, inicialmente, torturar alguém
no tripalium. Interessante que ambos condensam o sentido do processo de trabalho, o
primeiro como a artificialização da vida para o utilitarismo humano e o segundo como um
objeto de tortura para o trabalhador, que se encontra alienado materialmente e
conscientemente de si-mesmo, dos outros trabalhadores, do produto do trabalho e da vida
(que é somente vida para o trabalho).
O trabalho alienado segundo nosso ponto de vista não tem início somente com o
advento do Capitalismo Mercantil e com sua expansão no colonialismo pelo chamado
145

Capitalismo Industrial Europeu, mas sim com a relação básica entre a propriedade privada e
o trabalho como fonte de troca de valores-de-uso; com isto os trabalhadores deverão
sempre buscar trabalhar para conseguirem sobreviver e sempre buscar trocar tudo, que
será propriedade e valor-de-troca. Então o capitalismo pode ser visto também por este
prisma, pela relação de trabalho, troca e propriedade privada, adentrando então mais
longinquamente na história da civilização humana. Contudo, por hora nosso objetivo é
explorar o trabalho alienado e não retomarmos questões e teorias históricas que já foram
feitas por inúmeros autores mais competentes para isso. A alienação do trabalho, mas
principalmente do trabalhador, é baseada em três fatores: o capitalismo como sistema geral
do nosso modo de produção da vida; o valor-de-troca complementando o utilitarismo
humano do valor-de-uso; e complementarmente a reificação, ou objetificação da
humanidade, do produto do trabalho das relações e da vida humana. Estamos embriagados
nesta cortina que nos cega cada vez mais para a vida. E é desta alienação material da vida
humana que falaremos brevemente agora.
Segundo Marx (2006, p. 110), ―o trabalhador desce até o nível de mercadoria, e de
miserabilíssima mercadoria; que a penúria do trabalhador aumenta com o poder e o volume
da sua produção‖. Esta é a condição material de vida do trabalhador, ou qualquer pessoa
ativa dentro deste modo de produção da vida, que se torna cada vez mais pobre e
escravizado quanto mais volume de produtos, ou ―riqueza‖, produzir – temos uma
valorização cada vez maior do mundo das coisas criadas pela própria humanidade, contra
ela mesma. Esta coisa será como um objeto alienado do trabalhador, com perda de
referência. Assim, Marx (ibid., p. 112) enfatiza que ―a alienação do trabalhador no seu
produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência
externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder
autônomo em oposição a ele‖. Deste modo a produção contínua do trabalho humano se
condiciona por ser uma alienação ativa, através do produto que é tanto o objeto a ser
produzido pelo trabalhador quanto ele mesmo, o trabalhador, é um objeto do trabalho
alienado. Marx (1988, p. 205) novamente irá nos dar os caminhos para esse entendimento,
pois ―o trabalho está incorporado ao objeto sobre que atuou. (...) O que se manifestava em
movimento, do lado do trabalhador, se revela agora qualidade fixa, na forma de ser, do lado
do produto. Ele teceu e o produto é um tecido‖. Isto demonstra sutilmente que o trabalhador
teceu e o produto é um tecido, deste modo o trabalhador acaba por ser também um produto,
adquire a qualidade de mercadoria ou objeto com valor-de-troca igual a do tecido.
Seguindo este viés, que seria a alienação do trabalho? Novamente Marx (2006, p.
114) irá nos amparar nessa definição, que será cabal para apoiarmos outras perspectivas. A
primeira condição desta alienação material é que o trabalho encontra-se como exterior ao
trabalhador, não sendo sua característica, mas algo imposto. Seria uma negação de si-
146

mesmo pelo trabalho alienado. O seu em-si somente será menos alienado fora da condição
imposta e cansativa do trabalho, ou do dia de trabalho. Por ser imposto não lhe será algo
voluntário, embora muitas vezes se sinta bem por estar trabalhando (mais por ter condições
mínimas de sobreviver do que necessariamente trabalhar em si mesmo), somente um meio
para criar necessidades. Este martírio diário do trabalho por fim se caracteriza por não ser
um trabalho dele mesmo, este é um trabalho de outro para ele, trabalhando o trabalhador
está trabalhando para outro. Esta é a alienação material do trabalho como perda de si-
mesmo. Assim, o trabalho como uma perda de si-mesmo irá impedir o trabalhador de se
realizar plenamente, fazer o que quiser e saber que é e quem é. Será um processo contínuo
de produção de alienação, necessidade e consumo de mercadorias inúteis para a auto-
realização plena do indivíduo. O trabalhador também será somente trabalhador, esquecendo
de si-mesmo, porém também dos outros, que serão igualmente meros trabalhadores. Deste
modo o trabalhador ―se produz a si mesmo, e o homem como trabalhador, como
mercadoria, constitui o produto de todo o processo‖ (ibid., p. 123). Teremos então o que nos
relembra Thomaz Júnior (2002, p. 10), pois ―o trabalhador além de estar alienado do
produto do seu trabalho, está também alienado da sua identidade com o semelhante (ser
social), não se reconhecendo mais como proletário, mas como bancário, motorista,
químico, professor, etc.‖. O ente humano não se identifica com o próximo, mas somente
como e com um rótulo de trabalhador – como uma miserável mercadoria humana.
Vimos então sumariamente que o trabalho humano transformou-se nessa constante
auto-alienação da humanidade. Esta miséria de estado de ―vida‖ é o que sintetiza Marcuse
(1968a, p. 108) como ―um mundo de coisas possuidas, utilizáveis e trocáveis na
propriedade privada, a cujas próprias leis inalteráveis o homem está submisso – em poucas
palavras: um universal ‗domínio da matéria morta sobre os homens‘‖ – a vida humana
transformou-se num objeto de sua própria criação, um instrumento do trabalho. Esta será
uma alienação universal, que abarcará toda a existência espacial humana. É neste sentido
que nos encontramos na reificação, como objetos com a perda de sentido em nós
mesmos80, perdendo a referência na vida que é o mais importante, ou seja, a alienação
material do trabalho humano irá em processo criar seu correlato que é a alienação
subjetiva, a alienação psicológica cotidiana que irá ser a base imaterial para a continuidade
desta alienação material. Mas isto é ―trabalho‖ para nosso próximo capítulo, por hora
esgotamos o presente discurso por aqui.

80
. Isto é o que em estilo poético vemos no Zaratustra de Nietzsche, sobre os ―pregadores da morte‖: ―e vós
também, vós que levais uma vida de inquietação e de trabalho furioso, não estais cansadíssimos da vida? Não
estais bastante sazonados para a pregação da morte?
Vós todos que amais o trabalho furioso e tudo o que é rápido, novo, singular, suportai-vos mal a vós mesmos: a
vossa atividade é fuga e desejo de vos esquecerdes de vós mesmos.
Se confiásseis mais na vida, não vos entregaríeis tanto ao momento corrente; mas não tendes capacidade
suficiente para esperar nem tampouco para a preguiça‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 53, grifos nossos).
147

Novamente desculpamos o leitor pelas incansáveis páginas que, como já citamos


alhures através das embasadas palavras de Martins, o ir e vir deste texto não foi somente
um ―jogo de palavras‖ ou característica prolixa pura e simples, mas a tentativa de verbalizar
através da lógica filosófica e científica o que é vivo. Do início ao fim deste capítulo, mesmo
que o final seja mais pessimista do que otimista em relação à vida humana. É novamente
por respeito às possíveis agruras do leitor (que podem ser semelhantes as minhas) que
elaboramos os caminhos trilhados segundo nossa interpretação do ser, da existência em
geral e da existência espacial humana numa tentativa maior de um autoconhecimento desta
existência que nos é alienada.
Seguindo então o ―combinado‖, prossigamos para uma averiguação crítica da
subjetividade na espacialidade humana, tomando como ponto de partida a objetificação das
relações humanas devido à alienação da consciência.
148

CAPÍTULO III
A SUBJETIVIDADE NA ESPACIALIDADE HUMANA: O ESPAÇO DA CO-EXISTÊNCIA
COTIDIANA E AS REPRESENTAÇÕES SUBJETIVAS DO ONTOLÓGICO

Para o indivíduo, a natureza inteira, salvo ele


mesmo, ou seja, todos os outros seres só
existem na sua representação, portanto, de
maneira indireta e como em virtude de
qualquer coisa que depende da sua própria
essência e existência, pois que,
desaparecendo a sua consciência, também o
mundo desaparece necessariamente para
ele.
(Artur Schopenhauer)

esse momento chegamos ao desfecho ontológico-existencial em nosso trabalho.


Agora estamos em via de averiguar criticamente sob um aspecto fenomenológico,
factual, a subjetividade na espacialidade. O que está em xeque é a cotidianidade,
expressão fenomenológica da espacialidade, que abarca o espaço do cotidiano e por isso
mesmo vivido. Pode parecer drástica a apresentação de que os outros entes somente
existem em nossas representações, mas após atentarmos para uma autocrítica da
corporeidade alienada veremos que o egoísmo que assola nós mesmos na verdade é uma
escolha do outro e como consequência uma escolha de toda a existência humana.
Representamos cotidianamente o que já partiu enquanto estranhamento de nossa
corporeidade, e retornou através da cotidianidade.
Em um primeiro momento abordaremos a cotidianidade partindo da reificação até os
fenômenos morais, chegando à conformação da subjetividade alienada que é posterior à
existência humana. É a existência que determina a subjetividade, e com isso temos o
desenrolar vivido da alienação subjetiva veiculada pelo senso-comum. Nessa práxis
fetichizada cotidiana de rotinas veremos em seguida o processo de estereotipagem, que
construirá uma corporeidade alienada, uma representação dos nossos corpos e do corpo
coletivo pela subjetividade alienada. A análise relacional estereótipo-estereotipia será
calcada nos fenômenos do especismo, sexismo, racismo e modismo. Veremos que nosso
corpo-si-mesmo carrega toda a possibilidade de revolução, porque ele também é espaço.
149

3.1. A cotidianidade: inter-relação espacialidade-subjetividade

Para adentrarmos nesta senda que é o tratamento da subjetividade humana, ou no


que conceberemos como a subjetividade na espacialidade, devemos fazer algumas
ressalvas preliminares. Nesse caso, o que pode parecer somente um detalhe de prolixidade
não remete a esta intenção, mas para a apreensão de que a subjetividade não é um duplo
dicotômico com a materialidade, ambas estão em um processo constante e intrincado do
que já analisamos e propusemos como a existência espacial humana. Tal subjetividade
seria então as representações humanas desta existência. Representações estas que se
encontram em estado de alienação, de alienação psicológica ou subjetiva. Como visto no
fim do capítulo anterior, a alienação possui seu aspecto material, por via do trabalho
alienado, e o subjetivo, por via das representações que analisaremos por hora.
A subjetividade encontra-se numa constante reprodução da transferência de sentido
que condicionará, refletirá e manterá a alienação material, e por consequência sendo o
produto ―final‖ do nosso modo de ser estranho que ocasionará um movimento inverso em
que o ―produto final‖ (imaterial) será um forte pilar de sustentação deste modo de ser. Assim
não podemos distinguir existencialmente a subjetividade da espacialidade, somente com o
fito de apreensão analítica, pois se trata de algo vivido e em constante movimento.
Como já havíamos frisado a alienação subjetiva terá o papel, na existência humana,
de uma ―má-consciência‖, não significando não-consciência, mas uma perturbação que
transferirá o verdadeiro sentido das coisas também na consciência, individual e coletiva.
Esta má-consciência demonstrará seu laço com a ―materialidade‖ (ou o que estamos
tratando como espacialidade) através do que nós entendemos como reificação (ou
objetivação)81. A reificação surgirá como o ponto máximo da inter-relação estranhamento-
alienação-reificação; passando agora a alienação não somente a um aspecto subjetivo, mas
a uma objetivação de inúmeros aspectos da existência humana. Lessa (1992, p. 45) irá dar-
nos uma breve explicação, expondo que ―a objetivação inevitavelmente possui um momento
de alienação. Seja o produto criado um machado ou uma ideia, uma vez objetivados,
inseridos na malha de determinações da situação social concreta, ganham uma dinâmica
própria‖. Seguindo esta proposta é que a reificação irá auxiliar junto ao trabalho alienado a
criar relações entre os entes humanos individuais, ou como uma auto-reificação da
existência humana e dos processos de sua vida. A reificação será um fenômeno derivado da
vida e não o contrário. A reificação tornar-se-á então um fator da existência humana
precisamente na medida em que tais convicções são divulgadas e se consolidam, de modo

81
. Queremos novamente registrar que aqui o termo reificação também terá uma interpretação a partir do nosso
ponto de vista, tendendo a uma interpretação integradora deste fenômeno, assim como buscamos fazer com o
estranhamento e com a alienação.
150

que a própria reificação se apresenta aos indivíduos da vida cotidiana como a realidade
(LUKÁCS, 1976, p. 659). Esta reificação emergirá para a existência humana como potência
subjetiva inconscientemente (em alguns momentos conscientemente) criada pela própria
humanidade e que tem sobre ela mesma um domínio prático, de sua práxis.
A auto-reificação humana das coisas e das ideias, principalmente desta, pode ser
interpretada pelo que Konder, apoiado em Lukács, irá dizer-nos como ―um processo
mediante o qual uma determinada relação concreta entre homens é dissimulada por uma
‗objetividade ilusória‘ e assume a feição de ‗coisa‘‖ (KONDER, 2009, p. 40). A reificação
seria esta objetividade ilusória subjetiva da existência humana, através do qual esta
objetivação faria com que as representações fossem coisas com os sentidos transferidos.
Uma contraposição ob-jetiva – esta seria a função da subjetividade na espacialidade, a
objeção ilusória das representações humanas. Podemos compreender também a faceta
subjetiva da alienação como vendabilidade universal, não somente a ―alienação material‖ ou
do trabalho, pois, seu viés de representações é calcado na vendabilidade (tanto na condição
de ato ou efeito de vender, vendagem, vendição; quanto no sentido figurado de estar
ofuscado, incapaz de perceber a realidade). A vendabilidade universal da subjetividade está
no ato da mercadoria e do ofuscamento do sentido, por isso seu caráter de reificação ou
objetivação, pois, segundo nos alerta Mészáros (1981, p. 53), a humanidade é dominada
―pelas suas instituições, a tal ponto que o tipo de vida que leva nas condições de
institucionalização não pode ser chamado por qualquer outro nome senão escravidão‖.
Somos, portanto, nascidos numa escravidão universal, não só do nosso corpo (via do
trabalho alienado), mas também da nossa mente (pela alienação subjetiva, ou pelo que
tratamos como subjetividade).
Seguindo esta linha de pensamento é que devemos compreender a vendabilidade
universal da subjetividade humana, sob o aspecto do ―efeito de vender‖ – como mercadoria.
Se formos ao encontro das ideias de Marx veremos que ―a mercadoria é, antes de mais
nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades
humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estomago ou da fantasia‖
(MARX, 1988, p. 41, grifos nossos). Como podemos apreender, nesta síntese do que seria a
mercadoria, seu aspecto principal é de um ―ob-jeto externo‖, ou de sentido transferido, não
próprio ao indivíduo consciente. Sua consequência não menos importante é que sua
característica principal é de tentar satisfazer uma necessidade (mesmo que seja criada,
subjetivamente isto é muito provável) tanto palpável quanto abstrata. A subjetividade
humana é vendável como uma mercadoria por este sentido de criar uma ilusão e ser
―comercializada‖ externamente pelas instituições tendo a característica de dominar seus
―vendedores‖ (de ideias): os próprios indivíduos escravos desta subjetividade. A
151

subjetividade humana é algo ao mesmo tempo perceptível e impalpável, como num


fetichismo da mercadoria.
A vendabilidade universal da subjetividade humana irá ajudar a construir este mundo
como espaço ontológico da existência humana envolto em uma venda que ofusca as
intenções reais do existente humano. O caráter do mundo será de ob-jeto, pois perderá a
referência na própria humanidade e sua própria subjetividade autocriada será como um ente
que paira sobre as cabeças humanas, tal qual um senhor dominante. Deste modo, devemos
apreender a reificação não somente como algo material, mas também nesse momento como
um produto do trabalho mental, subjetivo, humano, por isso da divisão para melhor
entendimento da alienação: entre a ―material‖, do trabalho, e a subjetiva, no campo das
representações. Esta seria a alienação do mundo, a imbricada relação entre as alienações,
que transferem os sentidos das problemáticas criadas pela humanidade, afetando sua
própria existência e a existência de outros entes não-humanos nessa subtotalidade
geográfica que denominamos de Terra, para algo que se explica em si mesmo: como no
―sempre foi assim‖, divinizando ou naturalizando. A reificação irá conformar a base das
relações humanas – o pilar desta subjetividade será a ―troca‖ de superficialidades,
conformismos, rotinas e desconhecimento dos fatos. A aparelhagem da vida será a ―música‖
sob a qual dançaremos, em uma repetição incessante de gestos, frases e preconceitos (os
estereótipos) dos quais a origem desconhecemos, impedindo o contato direto dos corpos,
do nosso si-mesmo (veremos novamente esta acepção adiante).
Assim, é que ser-estar neste mundo espaço ontológico é ―estar preso às coisas‖
(LÉVINAS, 1998, p. 41, grifos nossos). Estamos dados a um mundo que reproduzimos como
coisa, nesse processo calcado no estranhamento ―mediante o qual tudo e todos nos são
dados, nada é equívoco‖ (ibid., p. 44), e nessa falta de não-planejamento as relações
cotidianas subjetivas vão sendo cumpridas conforme o prescrito, nas formas pré-
estabelecidas salvaguardando as aparências como que numa ―roupagem‖ de sinceridade
correta a este espaço ontológico que nos aprisiona. É desta forma que tal sinceridade
hipócrita, porque medíocre e de arregimentação, se dá como um manual que objetiva as
relações no mundo, ―as pessoas não estão diante do outro, simplesmente; elas estão umas
com as outras em torno de alguma coisa‖ (ibid., p. 45). Logo, as relações corpo-a-corpo são
também utilitaristas embora pareçam espontâneas para quem está vivendo o momento, se
não existe algo entre os entes singulares humanos não existe um por que da relação, esse
utilitarismo que coisifica é o manual do mundo, manual, pois, sem ele não sabemos como
viver ou lidar com as situações – a espontaneidade é um simulacro; na porção material, se
não existe manual, não sabemos como manusear algo, que pelo trabalho de outro é-nos
externo – não temos afeição com os produtos, são realmente objetos. A vendabilidade da
subjetividade humana necessita de um manual tanto material quanto abstrato. Assim nesta
152

cegueira cotidiana que necessita da manualidade, o manual ―aparece como ser


simplesmente dado‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 124). Os produtos humanos são coisas
estranhas que não produzimos e queremos ao mesmo tempo nos desembaraçar e, no
sentido lógico de ser destes entes, este desembaraçamento deve ser para nós
simplesmente dado. Nosso modo de lidar com o mundo da subjetividade na espacialidade
será um ―ente fenomenologicamente pré-temático‖ (ibid., p. 115), isto é, usado como
utensílio a ser manuseado. Todos os entes que nos circundam serão utensílios, como um
instrumento disponível para o manuseio (seja esse instrumento qualquer objeto ou algum
ente animal, vegetal, bacteriano, ―vivo‖ ou ―morto‖82, etc.), esta seria a manualidade do
mundo, no qual o mundo parece somente circundante e dado a priori, como se não
tivéssemos envolvimento existencial com os fenômenos.
O não-envolvimento com o cotidiano é somente uma venda, não o que realmente
existe. Isto é parte da alienação nossa do espaço ontológico da existência humana, a auto-
alienação da subjetividade na espacialidade. Agora, faremos um breve levantamento sobre
quais fenômenos subjetivos gerais (amplos) iremos tomar uma postura crítica, para,
posteriormente afunilarmos para a cotidianidade, que envolve o espaço fenomenológico de
todas as nossas ações corriqueiras, familiares, e por isso mais difíceis de serem desveladas
– mas, jamais impossíveis.
O fenômeno subjetivo ―genérico‖ na espacialidade (esta sendo nossa práxis como
processo ontocriativo) é a moral. Esta moral que iremos fazer crítica como fenômeno
subjetivo ―genérico‖ não é somente uma forma de conduta dos ―bons costumes‖, como em
sua etimologia derivada do latim mores, que significa "relativo aos costumes", ou como
muitos tratam como sendo somente um segmento dos dogmas provenientes das religiões
institucionalizadas, os códigos morais de conduta. Trataremos a moral como um fenômeno
subjetivo que abrange todas as ―coisas‖ humanas, sejam elas sentimentos, pensamentos ou
atos de representação alienada. Tendo como referência Nietzsche, mas sem nos aprofundar
por demais nesse debate por hora, podemos definir como o autor fez: ―Moral – a
idiossincrasia dos décadents‖ (NIETZSCHE, 2003, pp. 152-153). Com esta frase Nietzsche
definirá severamente que a moral é uma característica comportamental peculiar a um
indivíduo ou grupo, uma singularidade do ente ou uma particularidade da existência de um
grupo de entes. Contudo, a rotulação para estes entes ou ente é de ―decadentes‖ (tradução
que escolhemos por conta própria); decadentes por se encontrarem na mediocridade das
representações alienadas, como uma má-consciência na espacialidade. Esta é a prisão
mental da existência humana, pois um ente humano ―livre é imoral, porque em todas as
coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição estabelecida: em todos os

82
. Preferimos utilizar aqui as aspas por evidenciar o que já havíamos debatido no capítulo anterior, a busca de
uma não utilização impensada da dicotomia vivo/morto.
153

estados primitivos da humanidade, ‗mal‘ é sinônimo de ‗individual‘, ‗livre‘, ‗arbitrário‘,


‗inabitual‘, ‗imprevisto‘, ‗imprevisível‘‖ (NIETZSCHE, 2007c, p. 23). Nos encontramos presos
subjetivamente por este senhor criado por nós mesmos, que podemos tratar num sentido
amplo como moral. Nessas circunstâncias, o novo será o mal contra a moral, tendo como
herói o velho, as velhas ideias, porém, como nos alertou Nietzsche (2007a, p. 110), ―não há
vivência que não seja moral, mesmo no domínio da percepção dos sentidos‖ – até nossos
sentidos foram corrompidos para que somente sintamos a subjetividade alienada
estabelecida, fazendo da existência (vivência) humana uma constante práxis embebida de
má-consciência. A moral paira como uma calúnia contra a nossa própria natureza selvagem
(que exploramos no capítulo anterior), uma ausência (ou perda) de nosso si-mesmo, uma
personalidade forjada por nós mesmos.
Mas, esta subjetividade alienada que é o fenômeno ―genérico‖ da moral não é
veiculada ao acaso. Concebemos aqui sumariamente quatro instituições construídas pela
existência humana que irão dar cabo de veicular para os indivíduos o que se espera que
seja a representação de mundo desejada, como sabemos uma representação como má-
consciência. As instituições que formarão o corpo de representações serão: a Filosofia (a
que teve seu início no mundo ocidental através dos filósofos helênicos com suas
especulações), a Religião formal ou institucionalizada (aqui sabemos que este fenômeno é
longínquo na existência humana e nasce próximo ao começo do estranhamento, mas não
estamos tratando de religiosidade mas sim das instituições, principalmente as ocidentais
calcadas nos preceitos judaico-cristãos e também com base na Filosofia helênica antiga), a
Ciência (esta como vimos anteriormente surgida mais tardiamente, mas que utilizará como
base, meio e fim ideais da Filosofia e das Religiões ocidentais), e por fim a Mídia (esta em
contexto bem mais recente do que as anteriores, veiculando simultaneamente preceitos
estabelecidos pela Filosofia, pela Ciência e pela Religião calcada no judaico-cristianismo em
que a propaganda será a ―alma‖ desse negócio). Nesse sentido, assim como dissera
Marcuse (1968a, p. 82), ―a dominação ultrapassou a esfera das relações pessoais e criou as
instituições para a satisfação ordeira das necessidades humanas, numa escala crescente‖.
O que estas instituições produzidas pela existência humana fazem é veicularem
como se fossem verdadeiros ―atores‖ (tirando da humanidade a ―culpa‖ de seus próprios
atos) a alienação subjetiva através do senso público comum, ou no que comumente
chamamos de senso-comum; algo que será público (não somente no âmbito do privado) e
que buscará cimentar toda a moral que fora construída para justificar, reproduzir e manter o
modo de ser estranho da existência espacial humana. Nos acostumamos, para reforçarmos
a ideia, por senso-comum, acreditar que o senso público comum é algo que remete às
crendices de um determinado grupo de indivíduos, sem levar em conta as singularidades.
Também, por buscarmos ver por um sentido inverso da Ciência como norma intelectual
154

estabelecida como verdadeira, acabamos por tratar este senso-comum não como um
veículo de reprodução da subjetividade alienada, mas como uma resistência ao que busca
se manter hegemônico. Em nossa apreensão, o senso-comum além do veículo, como já
frisamos, pode ser visto pelo seguinte prisma: é a concepção de mundo resultante da
herança perpassada pelas instituições (que citamos alhures) segundo seus interesses em
manter, justificar e continuar efetuando o estranhamento como modo de ser da existência
humana, em trajes atuais, que continuam sendo efetuados. Este senso-comum será a venda
posta pela Filosofia de outrora, pelas Religiões que se cimentaram e resistem ainda hoje,
pela lógica de verdade última alcançada pela Ciência na era moderna, e, principalmente no
espaço-tempo hodierno através da fábula da Mídia. As crenças e proposições impostas por
estas instituições humanas aparecem como normais (normas, valores da moral a ser
seguida), sem depender de uma investigação crítica detalhada (um desvelamento) para
alcançar a fonte dos ―cacos‖ que compõem esta existência humana. Deste modo, o senso-
comum irá permitir aos entes humanos singulares a sentir uma realidade menos detalhada,
menos profunda e imediata e vai do hábito de realizar um comportamento ditado pela moral
que, quando instalada, passa de indivíduo para indivíduo, como se fosse uma ―carga
genética instintiva‖. Os entes singulares, apesar de serem singulares, perderão sua
singularidade, se tornarão comuns no seu cotidiano, através da naturalização e simplificação
de entender os fatos pela consciência (que é uma má-consciência coletiva), fazendo estes
entes pensarem que seus atos são verdades eternas e imutáveis, e que lhe traga resultados
práticos herdados pela moral.
Novamente retomemos ao diálogo com Nietzsche para darmos prosseguimento ao
texto, no que se refere à conformação do ente singular em indivíduo do todo comum que é a
existência espacial humana. Desse modo, cada ente singular parece ―ouvir com satisfação
que a sociedade está prestes a adaptar o indivíduo às necessidades gerais e que a
felicidade assim como o sacrifício de cada um consiste em considerar-se membro útil e
instrumento de um todo‖ (NIETZSCHE, 2007c, p. 104). Esta adaptação do indivíduo às ditas
necessidades gerais é um retorno ao controle, à repressão; e essa submissão automática e
quase total a este senso-comum é fruto da força do hábito, a rotina. E como nossa rotina é
imposta diariamente pelas instituições de que falamos, a moral veiculada pelo senso-comum
será uma opinião pública, através da qual todos os indivíduos terão obrigações específicas
uns com os outros dentro dessas normas, e ―essas obrigações são cumpridas em parte
devido à opinião pública e ao interesse próprio: é compensador, sob vários aspectos, agir
como se deve, e, se não for assim, haverá perda de benefícios materiais e da estima social‖
(SCHAPERA apud., BOTTOMORE, 1978, p. 213). A vantagem individual é o que motiva o
ente singular a se manter nas acepções de senso-comum, pois terá benefício com sua
estabilidade junto ao todo, estabelecendo o que podemos chamar de uma tirania do
155

costume. Essa tirania formará o que muitos chamarão de uma ―sociedade de massa‖
(BOTTOMORE, 1978, p. 215), uma massa de manobra das instituições. Manobra porque a
quantidade de indivíduos que recebem o senso-comum é muito maior do que os que
expressam (aqueles sendo manobrados por estes), estas instituições são organizadas de
modo que se torna difícil ao indivíduo responder a qualquer efeito, a transformação deste
senso-comum como opinião pública em ação está no controle dos que dominam as
instituições, e essa massa não possui a autonomia em função destas instituições. Nesse
sentido, que os meios de comunicação de massa da Mídia estão no controle da propagação
da alienação subjetiva hodierna, por terem uma abrangência incrivelmente ampla e por
condensarem as ideias antes já veiculadas pelas outras instituições.
Como dissemos nossa apreensão aqui não é de ver o senso-comum com olhar
admirado e ingênuo ou, como uma contrapartida crítica à existência humana vigente. Uma
breve citação de Heidegger irá nos auxiliar, mesmo que o próprio filósofo esteja buscando
um olhar ―romântico‖ sobre o senso-comum. Segundo o pensador alemão:

o senso comum tem sua própria necessidade; ele defende seu direito usando a
única arma de que dispõe. Esta é o apelo à ―evidência‖ de suas pretensões e
críticas. A filosofia, por sua vez, jamais pode refutar o senso comum porque este não
tem ouvidos para sua linguagem. Pelo contrário, ela nem deve ter a intenção de
refutá-lo porque o senso comum não tem olhos para aquilo que a filosofia propõe
para ser visto como essencial.
Além do mais, nós mesmos nos movimentamos no nível de compreensão do senso
comum, na medida em que nos cremos em segurança no seio das diversas
‗verdades‘ da experiência da vida, e da ação, da pesquisa, da criação e da fé. Nós
mesmos participamos da revolta do ―evidente‖ contra tudo o que exige ser posto em
questão (HEIDEGGER, 1996, pp. 153-154, grifos nossos).

Para o leitor que se fizer mais atento, perceberá que Heidegger irá nos ajudar em
dois momentos. Primeiro quando trata do senso-comum como uma auto-afirmação,
apelando à evidência dos fatos que ele próprio veicula, como no trecho grifado. O segundo
momento irá demonstrar que a Filosofia não pode deixar de lado o senso-comum, até
porque foi através dele que se propagou a lógica filosófica, mesmo que esta Filosofia tenha
uma abertura para a crítica da existência humana, assim como a ciência. Sintetizando,
temos que em todos os nossos atos, da pesquisa até a fé, participamos do senso-comum
em nossas rotinas – este acaba por governar nossas consciências e nos dar as bases para
interpretar as fragmentações do mundo.
Assim, este fenômeno subjetivo na espacialidade ―é coletivo, eminentemente
retrógrado e dogmatista‖ que irá construir indivíduos medíocres, sem personalidade, com
um amplo ―fardo de rotinas, preconceito e domesticidade‖ (IGENIEROS, s.d., p. 48). Temos
então através desta mediocracia a ação cotidiana rotineira de dar cara subjetiva à
domesticação, através de uma roupagem mais engrossada da repressão: a mais-repressão.
Segundo Marcuse (1968a, p. 51), mais-repressão seria ―as restrições requeridas pela
156

dominação social‖, distinguindo-se da repressão básica originária do estranhamento. Nos


momentos distintos da civilização (por nós chamado de existência espacial humana) ―os
interesses específicos de dominação introduzem controles adicionais acima e além dos
indispensáveis à associação civilizada humana‖ (ibid., p. 53). Esses controles adicionais
veiculados pelas instituições de dominação que explicitamos é o que estamos tratando
como mais-repressão. Esta seria o corpo cotidiano de alienação subjetiva da existência
humana, no qual alguns dos fenômenos que irão compor essa moral mais-repressiva são: o
machismo e o marianismo, a verbalização e as representações do antropocentrismo
especista, o etnocentrismo, o racismo, a homofobia, entre outros. Estes são somente alguns
exemplos básicos dos fenômenos que de tão corriqueiros em nosso cotidiano, passam
muitas das vezes despercebidos se não fizermos um esforço de atenção crítica. Veremos
agora um pouco desses fenômenos que são a base da alienação subjetiva (ou da
consciência) na espacialidade humana, que farão a ligação para entendermos a
cotidianidade, e a importância de sua análise crítica.
A base, como vimos, dos primeiros fenômenos dessa alienação subjetiva, como
representação na espacialidade (embora se trate de representações da nossa práxis, e não
da ―materialidade‖ em si, não existe uma ordem lógica para a concatenação dos
fenômenos), é a relação existente entre o machismo e o marianismo com o utilitarismo
antropocêntrico especista. Por serem primordiais para o estabelecimento de nosso modo de
ser, o estranhamento, também serão basilares em nosso cotidiano na maioria de nossos
atos, remontando como um controle adicional de nossa domesticação ou ―antinatureza‖ e
velamento de nossa porção feminina. O utilitarismo antropocêntrico especista é a
representação de todo o nosso passado de domesticação da nossa ―natureza selvagem‖, no
qual ―todo ser humano é um fim em si mesmo‖ (ARENDT, 2007, p. 168), considerando como
―boa regra de conduta‖ a utilidade e o prazer que pode proporcionar a um indivíduo e à
coletividade, na suposição de uma complementaridade entre a satisfação pessoal e coletiva
– seria a representação de todo o antropocentrismo especista humano em transformar
qualquer forma de vida não-humana em utilidade ou instrumento da satisfação dos entes
singulares humanos ou da existência como um todo. Nessa representação, considera-se
que a existência espacial humana deve permanecer no centro da vida em todo o universo
cósmico, devendo ser avaliado de acordo com a sua relação com o Homem (este termo
definindo bem, no sentido de que o ―macho alfa‖ é o centro desta representação, assim
como frisamos no capítulo anterior). Além disto, pode ser apreendida também no sentido
pejorativo, significando uma desvalorização das outras espécies não-humanas da
Subtotalidade geográfica Terra, visto que tudo que não é humano deveria estar subordinado
à existência humana. Tal ponto de vista tenta se conectar com o alegado antropocentrismo
de origem filosófico-religiosa-científica, devido o atrelamento a esta corrente de pensamento
157

ao socratismo, principalmente vindo de Aristóteles, nas passagens bíblicas do judaico-


cristianismo, no Velho Testamento, atreladas a Moisés que legitimam a posição de domínio
do homem sobre todas as criaturas e todo o mundo83, e na institucionalização da ciência
com o paradigma baconiano-cartesiano-newtoniano, principalmente com Descartes como
visto no primeiro capítulo deste trabalho. O especismo irá dar a cimentação da ideia, visto
que este é a atribuição de valores ou direitos diferentes a entes dependendo da sua afiliação
a determinada espécie (neste caso a humana), de modo similar ao sexismo e ao racismo,
formando a discriminação especista. Existem basicamente dois tipos de especismo. O mais
comum seria o preconceito para com todas as espécies não-humanas. Este tipo de
especismo tem ligação direta com o antropocentrismo muito disseminado na civilização
patriarcal-ocidental. Outra forma de especismo é aquele que escolhe alguma(s) espécie(s)
em particular como alvo da discriminação. Nosso exemplo ocidental seria de que algumas
pessoas podem acreditar que nunca deva se tirar uma vida de um cão e gato, mas ao
mesmo tempo podem ignorar o direito à vida de um boi ou porco, se alimentando destes
deliberadamente e sem culpa. Esta seria a síntese do fenômeno que representará
alienadamente em nosso cotidiano o utilitarismo antropocêntrico especista.
A outra porção rotineira como controle adicional de nossa domesticação seria o
velamento de nossa porção feminina, com representações naturalizadas, e até de conflitos
diretos, do que comporia o sexismo: isto seria visto através do machismo junto ao
marianismo. Em nossa civilização ocidental, de base cultural advinda do patriarcado-judaico-
cristão o machismo será a crença de que os homens são superiores às mulheres, porém,
mesmo nas civilizações orientais (as porções orientais da existência espacial humana)
encontramos um grande machismo, justificado na maior parte das vezes aos atributos
sagrados de suas escrituras de tradições religiosas institucionalizadas (os líderes religiosos
do oriente são eminentemente do gênero masculino), podendo demonstrar para alguns que
este fenômeno é fruto da existência humana como um todo, das diversas formas de
domesticação. O comportamento reproduzido por este fenômeno será o de exagerado
senso de orgulho masculino, com virilidade agressiva, buscando demonstrar no cotidiano o
que se espera ser uma condição ―natural‖ de ―macheza‖ – do ―macho-alfa‖ dominador da
espécie, da sociedade, do grupo ou da família. A outra porção que compõe o sexismo é o
marianismo, ou um atributo derivado do culto católico feito à ―Virgem Maria‖, e aparece na
América Latina como uma face invertida do machismo, pois sendo o culto da superioridade
espiritual feminina, considerando as mulheres semidivinas, moralmente superiores e
espiritualmente mais fortes do que os homens, força ainda mais à repressão e submissão,

83
. ―E disse Deus: Façamos o homem a nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes
do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre
a terra‖ (Gen. 1:26).
158

pela capacidade naturalizada do ―dom divino‖ de humildade e sacrifício. Esta seria uma base
secular de representações e práticas relativas à posição das mulheres na existência
humana. O marianismo é tão presente quanto o machismo, mas ele é menos percebido
pelos próprios indivíduos. E como algumas características desta forma velada de
subjetividade alienada temos: papéis masculinos e femininos, representações e
normatizações sobre a sexualidade, expectativas conjugais e familiares, e uma vida privada
em face da vida pública, assim como todas as anteriores, desfavorecendo as mulheres. Esta
é a face da representação do mundo-do-homem dando o devido lugar das mulheres na
existência humana.
Contudo, através do velamento de nossa porção feminina, não é somente a mulher
em si que sofre com esta dominação e repressão. Como vimos a porção masculina também
sofre com esta desfeminização de cada ente singular e mais amplamente de uma inibição
do feminino na própria existência humana como um todo. A xenofobia (ou desconfiança,
temor ou antipatia por pessoas diferentes daqueles que as ajuíza, ou pelo que não é
rotineiro, não somente pelo que vem de fora do país) irá desencadear uma aversão teórica
ou vivida tanto de forma internalizada quanto direta com conflito e violência sobre aqueles
que não se comportam de acordo com a subjetividade alienada vigente. Um caso particular,
muito comum e mundialmente difundido de xenofobia é a homofobia. Este que é um
fenômeno que demonstra ódio, aversão ou a discriminação de uma pessoa contra
indivíduos homossexuais ou que possam demonstrar alguma característica desviante do
―macho padrão‖ ou da ―mulher padrão‖ e, consequentemente, a homossexualidade (ou o
que se considera como), que pode incluir formas sutis, silenciosas ou violentas de
preconceito contra homossexuais. Muito além de ser somente uma discriminação por
indivíduos que tenham relações sexuais e/ou afetivas por outros do mesmo gênero é
incorporada na complexidade do fenômeno uma aversão aberta por qualquer manifestação
que se espera como sendo feminina para um indivíduo do gênero masculino e vice versa.
Um dos motivos para a manifestação e disseminação deste fenômeno é a base
fundamentada nos dogmas judaico-cristãos, altamente paternalistas, defensivo da família
privada e da hierarquia social em que a principal fórmula que justifica tal fenômeno grotesco
é o ―crescei e multiplicai-vos‖ – definindo, justificando e reproduzindo a repressão sexual,
base do estranhamento, que será contra a sexualidade não reprodutiva inibidora da
existência humana tal qual vivemos.
Outro fenômeno que aparece com expressão de naturalidade, mas que é
existencialmente marcado por atos de dominação, repressão, violência, genocídio, etnocídio
e preconceito, velado ou com conflito direto, é o racismo. Porém, a origem e derivação desta
subjetividade alienada perpassada pelo senso-comum, de outrora até o de hoje, como
racismo é o etnocentrismo. Este é um preconceito estabelecido segundo o qual a visão ou
159

avaliação que um indivíduo (ente singular) ou grupo de indivíduos (existência humana) faz
de um grupo social diferente do seu é apenas baseada nos valores, referências e padrões
adotados pelo grupo, ao qual o próprio ente singular ou a existência humana fazem parte.
Este conceito tem somente um pólo específico como ponto de vista, no qual neste
posicionamento um dado grupo considera-se como superior ao outro. Isto irá dificultar uma
práxis em diferenças, no ver e viver o mundo não somente de um único ponto de vista,
mesmo que este seja prejudicial a um grupo ou qualquer outro indivíduo. Segundo um dos
grandes antropólogos sociais do século XX, Claude Lévis-Strauss, o etnocentrismo seria:

a atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos
sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados
numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas
culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que
nos identificamos (LÉVIS-STRAUSS, 1952, pp. 19-20).

Sendo uma subjetividade alienada decorrente desde o início da existência humana


em seu modo de ser em estranhamento, o costume rotineiro de repudiar ―o outro‖, impondo
verbalizações como ―bárbaro‖ para nossos estranhos e ―selvagens‖ para aqueles que não se
enquadram no que rotulamos como padrões civilizados, o racismo irá surgir mais
tardiamente do que o etnocentrismo, afunilando ainda mais esta representação odiosa de
um grupo por outro. O ponto de eclosão tardio deste fenômeno não impediu que ele se
alastrasse com rapidez e vigor; desde a dominação europeia-branca-masculina do mundo
tomou corpo o racismo ou ―sistema que afirma a superioridade racial de um grupo sobre
outros‖ (SANTOS, J., 1984, p. 38), que será uma invenção subjetiva para justificar,
reproduzir e continuar aplicando a dominação de outros grupos somente pela cor da pele,
pois a espécie (ou raça) humana é uma só, não existindo nenhuma hierarquia ―natural‖ a
priori, somente uma posterior elaborada pela lógica humana. E esta invenção subjetiva está
para a humanidade assim como a distinção criada entre os diferentes entes vivos
hierarquicamente. Segundo Kenski (2003, p. 43) ―em 1758, o botânico sueco Carolus
Lineaus – o criador do atual sistema de classificação dos seres vivos – deu à humanidade o
nome científico de Homo sapiens e a dividiu em quatro subespécies‖, estas sendo os
vermelhos americanos, amarelos asiáticos, negros africanos e os brancos europeus, no qual
os últimos são indicados como sendo inatos: ―ativos, inteligentes e engenhosos‖. A base
desse discurso está na acepção de uma supremacia branca, no qual as pessoas brancas
são ditas superiores aos outros grupos ―raciais‖. Tal supremacia disseminada pelo senso-
comum racista irá balizar muitos de nossos atos cotidianos para com outros indivíduos,
principalmente porque corre sob nossa consciência a veiculação dada pela Mídia, Ciência,
Religião e Filosofia que existe uma hierarquia e diferença ética e estética (do ―bom‖ e do
160

―mau‖, do ―bem‖ e do ―mal‖, do ―feio‖ e do ―belo‖) naturalmente a priori, e não posteriormente


criada como uma subjetividade alienada na espacialidade humana.
Assim que será conformada uma existência espacial humana de entes singulares
sem personalidade própria, somente veiculando rotinas de preconceitos que não são seus.
Será conformado um ―clã‖ de humanos normais, como que virtuoses da espécie, tendo
como virtude a mediocridade do cotidiano, disseminando e fingindo que vivem caracteres
quase que estéreis de um humano normal: ―bom apetite, trabalhador, ordenado, egoísta
apegado aos seus costumes, misoneísta, paciente, respeitoso a toda autoridade – animal
doméstico‖ (IGENIEROS, s.d., p. 54). E nesse horror ao novo vamos tentando cimentar a
subjetividade alienada na espacialidade, através da rotina cotidiana tão apegada ao senso-
comum. E agora, após esta necessária introdução, adentraremos no que seria a
conformação vivida do espaço ontológico, através da subjetividade na espacialidade que
será a cotidianidade.
Contudo, faz-se mister averiguar essa relação intrincada da subjetividade (alienada)
na espacialidade. Segundo Heidegger (1996, p. 139, grifos nossos), ―as idéias valem como
mais objetivas que os objetos e simultaneamente mais subjetivas que o sujeito‖. O que
podemos verificar nessa afirmativa seria a revelação do termo subjetividade, tanto na sua
função de exposição lógica quanto de seu sentido existencial. Como linguagem ela está
intimamente ligada ao sujeito, pois é algo relativo ao sujeito, que se submete a, no sentido
de submissão, ou, que existe na mente; que pertence ao sujeito pensante e a seu íntimo
(em contraste com as experiências fenomênicas externas, gerais, universais). Como
podemos observar, a representação linguística tenta demonstrar a subordinação do sujeito à
subjetividade e vice-versa. Mas, cabe ressaltar, como observamos em Heidegger, que as
ideias que pertencem aos sujeitos pensantes são mais objetivas que os objetos (no sentido
de ―aprisionamento da consciência‖) e ainda acabam por ser mais subjetivas que o sujeito,
até porque ―a existência ainda sempre seria representada a partir da ‗subjetividade‘‖ (ibid., p.
82). Esta subjetividade pode ser mais subjetiva que o sujeito, mas não é nem mais nem
menos material que a espacialidade. Como dissemos, a relação é intrincada, é uma inter-
relação. E desse modo o sujeito é sujeito material, corpo-espaço (como veremos mais a
diante), e esta subjetividade alienada é materializada no âmbito do vivido, entendendo que,
―a subjetividade está expressa no construto Dasein‖ (BRASIL, 2005, p. 87)84, isto é, a
espacialidade da existência humana se torna representação por via da subjetividade
humana alienada. Desta forma, não é a espacialidade que se encontra na subjetividade,
mas, a subjetividade é-na espacialidade.

84
. Aqui, segundo a abordagem heideggeriana, como escolhemos anteriormente, buscamos entender o dasein
como existência humana, portanto, a subjetividade está expressa no construto (como construção mental coletiva)
da existência espacial humana.
161

Outro filósofo que também nos ajudará nesta compreensão é Merleau-Ponty.


Segundo este, em uma análise abarcadora do mundo fenomênico humano, cada indivíduo
(enquanto ente singular), assim como o próprio filósofo francês, está ―lançado em uma
natureza, e a natureza não aparece somente fora de mim, nos objetos sem história, ela é
visível no centro da subjetividade‖ (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 463). Ou seja, a
particularidade (espacialidade) de que somos singularidades aparece dentro de nós como o
centro produtor da subjetividade, mas, essa subjetividade não é algo individual somente, ela
é repassada através da existência geral humana, por isso é uma intersubjetividade. Cada
existente singular humano irá ser constituído e constituir esta subjetividade, porém, ―a
constituição do mundo não é mais, conseqüentemente, um fenômeno subjetivo, mas um
fenômeno intersubjetivo‖ (DARTIGUES, 2005, p. 58), naquilo que Husserl chamou de
intersubjetividade transcendental. Ou, no que nós, preferimos tratar como inter-e-
intrasubjetividade, pois está entre os existentes e nos existentes atuando como que forças
ou senhores da consciência. O mundo como espaço ontológico humano não é somente
―meu mundo‖, ele é nosso mundo, ou um intermundo enquanto projeto meu (MERLEU-
PONTY, 2006, p. 478), de representações que mediatizam os intercâmbios entre os entes
singulares.
Esta situação, inter-e-intrasubjetiva, não está somente no campo do abstrato, no que
povoa a mente dos indivíduos, pois assim perderia o cunho da existência que está na práxis
como espacialidade. Por isso que a subjetividade é-na espacialidade, vai de um significado
estético ao memorial e vice-versa, ―o cotidiano real da imagem depende, pois, do ato. Do
vivenciar‖, e é por esse ato que ―o lugar torna-se um prolongamento do corpo e da mente‖
(SILVA, 2000, p. 15). E este ato da existência, este vivenciar que determina e reproduz a
consciência (mesmo sendo alienada), seria o que a ideia de Marx e Engels (2007, p. 49)
condensaria com a frase: ―não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência‖85. Para darmos mais respaldo a antecedência existencial em
relação às ideias, ou ao inter-e-intrasubjetivo, vejamos as citações, em boa hora, dos
escritores críticos d‘A ideologia alemã:

a produção das idéias, das representações, da consciência é, ao princípio,


entrelaçada sem mediações com a atividade material e o intercambio material dos
homens, a linguagem da vida real. A formação das idéias, o pensar, a circulação
espiritual entre os homens ainda se apresentam nesse caso como emanação direta
de seu comportamento material. Vale o mesmo para a produção espiritual, conforme
esta se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da
metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações,
idéias e assim por diante. (...) A consciência (Bewusstsein) não pode ser jamais algo

85
. Este ponto de vista é resumido com uma frase muito conhecida, principalmente pelos chamados filósofos de
postura existencialista como no caso específico do autor desta Jean-Paul Sartre, um dos mais importantes
filósofos do século XX de perspectiva existencialista (com influência também da teoria crítica marxiana): ―a
existência precede a essência‖ (SARTRE, 1998, p. 93).
162

diferente do que ser consciente (bewusstes Sein), e o ser dos homens é um


processo de vida real (MARX; ENGELS, 2007, p. 48).

É fato que a nomenclatura utilizada por Marx e Engels não segue o mesmo
balizamento etimológico da nossa, porém, se buscarmos compreender atividade material e
comportamento material sob a analítica ontológica, podemos lhes dar o sentido do
existencial, tratando-o como a espacialidade da existência humana. Já a produção das
ideias, representação e consciência, podemos apreender como subjetividade alienada (ou a
inter-e-intrasubjetividade), esta que é-na espacialidade. Nessa intrincada relação vivida,
cada ente singular humano irá interiorizar as ideias como objetos, via da experiência
cotidiana, fazendo com que a espacialidade seja uma subjetividade-objetivada, como tratara
Silva (2000, p. 15). Com isso temos para melhor entendimento teórico, por hora, deste
processo vivido a cotidianidade. Este processo que nos é mais familiar pela experiência e/ou
proximidade é o que Cantoni (1968, p. 3) irá tratar como ―a vida cotidiana, ou seja, a
existência vivida‖. Esta existência vivida ocorrerá no ―espaço nosso de cada dia‖, no espaço
ontológico humano que terá a esfera de um espaço cotidiano, ou naquilo que Merleau-Ponty
(2006, p. 579) tratou como ―mundo vivido‖. Contudo, nesse momento veremos um pouco
dessa esfera vivida da práxis, como processo ontocriativo, na forma da cotidianidade, assim
como fizemos ao separar para fim de maior entendimento: espaço ontológico e
espacialidade.
Como fizemos referência ao processo ontocriativo que é a espacialidade, nada
melhor do que nos referenciarmos no discurso crítico de Kosík para apreendermos um
pouco o que seria essa cotidianidade. O processo ontocriativo em seu aspecto vivido de
inter-e-intrasubjetividade tem a forma de uma metafísica cotidiana, da vida cotidiana. Isto
pode ser entendido da seguinte forma: mesmo que qualquer um de nós, entes singulares
humanos, busquemos ler, pesquisar ou questionar esta cotidianidade devemos nos dar
conta de que já vivemos nela, nascemos embebidos desta metafísica cotidiana. Nada é
novo e nos escapa, pois, esta cotidianidade tem a cara de uma ―práxis no seu aspecto
fenomênico alienado‖ (KOSÍK, 1995, p. 74). A forma desta cotidianidade é fenomênica
porque vivida, porém através da subjetividade alienada, que veicula a moral estabelecida via
do senso-comum (como vimos alhures), no qual o mundo material é ambientado por um
mundo de ―significados traçados pela subjetividade humana‖ (ibid., p. 76). Segundo estes
pontos de vista é que Kosík irá conceituar o que seria a cotidianidade. Façamos aqui um
apanhado sumariado de seu raciocínio sobre este processo vivido:

gerações inteiras e milhões de pessoas viveram e vivem na cotidianidade de sua


vida como em uma atmosfera natural sem que lhes ocorra à mente, nem de longe, a
idéia de indagarem qual o sentido dessa cotidianidade. (...) A vida cotidiana é antes
de tudo organização, dia a dia, da vida individual (...). Na cotidianidade a atividade e
163

o modo de viver se transformam em um instintivo, subconsciente e inconsciente,


irrefletido mecanismo de ação e de vida (KOSÍK, 1995, pp. 79-80).

Por esse prisma apreendemos que a cotidianidade é a práxis do mundo fenomênico,


do espaço cotidiano, hora mostrando ou hora escondendo a realidade. Essa cotidianidade
em que estamos envoltos é manifestadamente, embora materializada nos indivíduos,
anônima e tiranicamente impessoal, embora domine as pessoas, ditando a cada ente
singular o comportamento padrão e o modo de pensar. A cotidianidade é a característica
fenomênica da espacialidade, porém de modo alienado, e esta ―alienação da cotidianidade
reflete-se na consciência, ora como posição acrítica, ora como sentimento do absurdo‖
(ibid., p. 89). Deste modo, para nos desligarmos completamente desta alienação devemos
nos desligar da cotidianidade alienada – nela inseridos dela participamos. O que vemos
nessa cotidianidade é a ―praxis utilitária cotidiana‖ (ibid., p. 20), que é imediata e mediada
pelo senso-comum, ou seja, temos uma práxis fetichizada que abarca nosso cotidiano
vivido. Este jogo de inserção-participação pode ser fenomenicamente reduzido se
buscarmos apreender que esta cotidianidade é a co-existência, através do que Heidegger
(1996, p. 148) irá chamar de o ―ser-com (Mitsein)‖. Tal ser-com seria a inter-e-
intrasubjetividade permeada na relação cotidiana de cada ente singular humano com outro,
no que poderíamos chamar de ser-com-outrem, ―nosso ser no mundo e com outrem‖
(DARTIGUES, 2008, p. 59). A delineação fenomenológica da espacialidade somente pode
ser percebida no âmbito da cotidianidade através deste ser-com-outrem. A existência
espacial não acontece da totalidade para a particularidade até o singular; é através e no
singular, no ser-com-outrem, que se modelam e se formam as bases para o
estabelecimento do ser-no-mundo (espacialidade) – o modo de ser-no-mundo humano como
estranhamento surge no ser-com-outrem, chegando ao geral e retornando como ―norma‖
(novamente) para os singulares.
Estamos imersos nessa cotidianidade coexistindo singularmente ―com uma infinidade
de outros‖ (ibid., p. 75). Mesmo que esses outros não sejam tão estranhos em suas rotinas e
pensamentos. É por este caminho que enveredará a opinião de Heidegger, ao tratar a
cotidianidade como um tema constante em nossa existência singular, pois, ―a presença não
apenas é e está num mundo, mas também se relaciona com o mundo segundo um modo de
ser predominante‖ (HEIDEGGER, 2008, p. 169). Cada um de nós enquanto existente
singular nos relacionamos com o mundo (espaço ontológico) via do espaço vivido, que
fenomenologicamente será a ―real‖ materialidade do modo de ser predominante, mesmo que
no atual momento do mundo não haja os primórdios do estranhamento – porém, as suas
bases ainda são veiculadas, massivamente, pelo senso-comum na cotidianidade. Por isso a
cotidianidade é o setor fenomenal da existência espacial humana. Esta co-existência de
outros modela a cotidianidade como um ser-com-os-outros, mesmo que estejamos sós
164

neste momento ainda é fenomenal o ser-com, pois a cotidianidade nos faz ―respirar este ar‖
de não estarmos sozinhos. É como uma vivência mediana de um com o outro, onde ―o outro
é um duplo de si mesmo‖ (ibid., p. 181), como que num jogo de espelhos, no qual o outro
nos reflete por estarmos projetados no outro, seja por controle, auto-controle ou,
simplesmente, por rotineira mediocridade. Isto tudo pode ser sintetizado mais uma vez pelas
palavras de Heidegger, que diz ser a co-presença a comprovação do modo de ser próprio
dos entes (singulares) que se encontram e vem ao encontro dentro do mundo (espaço
ontológico, vivido como espaço cotidiano); porque a existência espacial humana ―é, ela
possui o modo de ser da convivência‖ (ibid., p. 182) como fundamento básico de sua
manutenção. Esta constante convivência cotidiana com os co-pre-sentes que nos espelham
e refletem acabam por nos mostrar que o aspecto fenomênico do mundo é impessoal.
Todos nós, enquanto entes singulares, somos impessoais, porém não como uma soma, mas
como uma ―ditadura nesta falta de surpresa e de possibilidade de constatação‖ (ibid., p.
184).
Para darmos prosseguimento a esta apreensão existencial-fenomenológica da
cotidianidade, evitando darmos um ―salto quântico‖, nos referenciamos por hora em
Lefebvre. A primeira constatação do filósofo francês que utilizaremos, para relacionar com a
proposição de Heidegger sobre a ditadura do impessoal, é de que a cotidianidade se
aparenta como um ―lugar social de uma exploração refinada e de uma passividade
cuidadosamente controlada‖ (LEFEBVRE, 2004, p. 129). Mesmo trazendo mais para o
―concreto‖ do que Heidegger, Lefebvre irá resumir o que vimos com o filósofo alemão e
também com Kosík, de que o aspecto fenomênico da práxis utilitária cotidiana é a
passividade da rotina, o controle e manutenção da exploração (alienação material – do
trabalho), como que numa ditadura reproduzida na convivência de entes singulares que
fetichizadamente são ―espelhos medíocres‖ uns dos outros. É isto o que Lefebvre irá tratar
como sendo o mundo vivido em movimento com a cotidianidade: o espaço (cotidiano)
―estaria essencialmente ligado à reprodução das relações (sociais) de produção‖
(LEFEBVRE, 2008, p. 48); isto é, cotidianidade-espaço cotidiano (vivido), assim como
processo-forma, reproduzem as relações sociais (ou se preferirmos aqui existenciais
humanas) de produção – esta produção como manutenção da alienação material, do
processo de trabalho humano que aliena sua referência em si-mesmo. Levando ―fé‖ nesta
proposta crítica, não é por menos que Lefebvre irá redigir duas obras desvendando a
cotidianidade; em que ambas podem ser vistas como complementos uma da outra. São
elas: ―A re-produção das relações de produção‖ e ―A vida cotidiana no mundo moderno‖.
Ambas em tom de denúncia, ambas questionando os aspectos materiais e ideais da
cotidianidade.
165

Na primeira obra que citamos, podemos encontrar claramente a relação feita pelo
pensador entre reprodução e repetição. É como que um ciclo vicioso que não é encarado
como vício na manutenção da alienação material e subjetiva, mas como uma garantia.
Vejamos nessa brilhante relação tramada teoricamente pelo filósofo francês:

a reprodutibilidade oferece uma garantia (suplementar) de reprodução. O re-


produtível e o reprodutivo geram o repetitivo. No limite, o pleonasmo, a tautologia, a
identidade assegurariam a reprodução absoluta. No limite ainda, o espaço ocupado
e produzido torna-se lugar e meio do re-produtível, do repetitivo perfeito
(LEFEBVRE, 1973, pp. 34-35).

Segundo Lefebvre, o que ocorrera nessa reprodução não é uma reprodução material
em si, ou dos meios de produção, mas também das relações sociais (subjetivas). E para
elucidar esta passagem o pensador francês cita Marx e o ―capítulo inédito‖ d‘O capital, no
qual ―neste capítulo, ele limita-se a estabelecer que as relações de produção são o
‗resultado incessantemente renovado‘ do processo de produção e que a reprodução é
também ‗reprodução das relações‘‖ (ibid., p. 52). Seguindo está lógica, Lefebvre irá se
indagar de como que é possível com o passar de gerações – a mudança dos entes
singulares até acontece –, a base ―estrutural‖ da vida cotidiana permanecer. E ainda mais:
onde se produz esta reprodução, que é da parte para o todo, ou melhor, da singularidade
relacional do ser-com-outrem para a existência espacial humana em geral86. É nesse sentido
que podemos verificar que a cotidianidade enquanto processo vivido é uma reprodução das
relações sócias de produção (produção da existência), que incide sobre a espacialidade,
sobre o processo desta existência espacial humana ao nível global. O ―cotidiano‖ enquanto
fenômeno de cotidianidade-espaço cotidiano será o imediato e a mediação para a
reprodução das chamadas relações essenciais, ou noutros moldes, das relações que são a
capacidade da existência humana (em geral até o período contemporâneo, não só do
capitalismo) para manter-se cimentada em bases sólidas, mesmo em momentos de alguma
reforma ou crise. Assim, segundo Lefebvre (ibid., p. 97), ―as relações de dominação que
originariamente subtendem, reforçando-as, as relações de exploração, tornam-se
essenciais, centrais‖ – não há ingenuidade na reprodução das relações essenciais, mas
uma enorme intencionalidade utilitarista, que faz alastrar ainda mais as contradições
fundamentais, centrada na manutenção da dominação e da exploração, da alienação.
Finalizamos esta abertura para o entendimento da re-produção das relações de produção,
com o entendimento de que ―as contradições também se re-produzem, não sem
modificações. Antigas relações há, que se degeneram ou se dissolvem (...). Outras há que
se constituem de maneira que há produção de relações sociais no seio da re-produção‖

86
. Uma citação de Lefebvre mostra que do familiar eclode a base para o geral, que ao ―pé da letra‖ seria: ―no ‗lar‘
familiar entrevê o centro onde se produzem e reproduzem as relações globais‖ (LEFEBVRE, 1973, p. 56).
166

(ibid., p. 104); esta é a miséria da cotidianidade desmascarada por Lefebvre, no qual a


massiva maioria dos fatos contraditórios, exteriorizadores da vida e alienadores se
reproduzem, como antigas relações essenciais da existência humana, enquanto que novas
são alimentadas e/ou absorvidas para o seio do ―sistema‖, onde a maioria dos fenômenos
se dissolve e se reconfigura como espaço cotidiano.
A outra obra que Lefebvre se envereda sobre a cotidianidade é ―A vida cotidiana no
mundo moderno‖. Nesta obra o fenômeno cotidiano não é tratado em explicações teóricas
com postulados críticos, como o de Marx, somente; Lefebvre irá dar cara ao cotidiano da
forma que ele é, vivido, através de averiguações críticas. Podemos entender esta proposta
com a frase justa: ―não apenas a cotidianidade é um conceito, como ainda podemos tomar
esse conceito como fio condutor para conhecer a ‗sociedade‘, situando o cotidiano no
global‖ (LEFEBVRE, 1991, p. 35). É justamente o que estamos buscando fazer, mas, não
somente tomar a cotidianidade como conceito e sim como algo vivido, em movimento
factual, que reproduz a existência humana a cada dia, nos menores fatos; e, a partir disso,
podemos situar a cotidianidade no global que é a espacialidade humana, e o espaço
cotidiano no espaço ontológico como mundo humano, pois, ―é na vida cotidiana que se situa
o núcleo racional, o centro real da práxis‖ (ibid., p. 38, grifos nossos), ou seja, este núcleo
racional não como uma razão superior, mas como um foco de onde se projetam
estranhamento e alienação para a práxis.
Assim vamos aos poucos adentrando nessa miséria cotidiana, através da qual temos
uma cotidianidade quase que programada para/em um ―ambiente‖ que é o espaço cotidiano,
adaptado e reproduzido com este fim – de reproduzir a miséria, ou a ―doença‖ que é a
existência humana. Temos então todos os dias este ―fardo‖, tanto como uma veste ou
máscara que temos que carregar em nossos dias, quanto às responsabilidades de um
grande imbróglio pesado de suportar, que é a cotidianidade. Embora pareça algo
espontâneo em que todos parecemos nos encontrar felizes por estarmos enquadrados,
punidos/gratificados, na verdade é um grande ―fardo‖ nada confortável, pois em todos os
momentos somos levados pela cotidianidade, sem sabermos quem somos realmente. E
nessa relação entre práxis e cotidianidade, Lefebvre (ibid., p. 98) nos mostra que não existe
um limiar entre os processos; num movimento vivo ambos são dois e um ao mesmo tempo.
Espaço e corpo não se distinguem; valores aparecem no geral da existência humana e a
dominação que parece ser da práxis emerge da cotidianidade; pressões impostas pelas
instituições criadas e disseminadas serão determinismos impostos. A corporificação existe,
e não é o biológico, mas geográfico, o espacial em ato. E para entender mais um pouco
desta existência espacial vivida devemos ver este geográfico, não epistemologicamente,
mas ontologicamente pela análise fonomenologica-existencial do espaço cotidiano, onde
corpo-espaço não é uma fusão, mas um fato – o espaço cotidiano é corporificado porque o
167

corpo é espacial e por ele, através dele e para ele criamos nosso fardo da alienação,
subjetiva e material.
A forma em seu aspecto fenomenológico é o espaço cotidiano, ou ―o espaço do
cotidiano‖ que Silva (2000, p. 18) nos diz ser o vivido-percebido ―como agradável,
desagradável, onírico, pesado, leve, base, conteúdo, atributo, mágico, feio, bonito, vazio,
repleto, ocupado, desocupado, livre, aberto, etc.‖, sendo uma imbricação entre real e
imaginário. Por isto que este espaço está no âmbito do vivido, ou do que Brasil (2005, p. 79)
irá tratar, com base em Heidegger, como ―espaço fenomenológico‖ – ou como sumariza
Certeau (2002, p. 202), um espaço como ―um lugar praticado‖. Mas, como já vimos no caso
da ―práxis viva‖ que é a cotidianidade, este espaço cotidiano não é somente esta descrição
que mostra um lugar segundo o qual ―se distribuem elementos nas relações de
coexistência‖, como podemos abstrair novamente de Certeau (ibid., p. 201), ele abarca a
alienação da práxis fetichizada que permeia a cotidianidade. O espaço fenomenológico
cotidiano é o ―mundo da pseudoconcreticidade‖, como que ―um claro-escuro de verdade e
engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao
mesmo tempo, a esconde‖, tal qual nos denuncia sensatamente Kosík (1995, p. 15). Este e
neste mundo fenomênico as representações comuns se configuram, como que projeções
dos fenômenos da subjetividade alienada humana, sendo na espacialidade como práxis
fetichizada da existência humana.
Como vimos anteriormente, no caso da cotidianidade, Lefebvre irá nos auxiliar para o
entendimento crítico do espaço cotidiano. Não sendo propriamente a reprodução das
relações essenciais, mas como forma que ―reproduz activamente as relações de produção e
contribui portanto para a sua manutenção e para a sua consolidação‖ (LEFEBVRE, 1973, p.
96). Isto significa que a concretude factual, como palpável-ocorrente, do espaço cotidiano
reproduz as relações de produção da existência humana em si, mantendo-a em alienação e
consolidando na rotina o estranhamento. Seria o lócus da re-produção desta vida
exteriorizada, da produção material. O espaço cotidiano seria o existencial vivido em que
eclode o Poder, que está em toda parte, sendo ―omnipresente e predestinado a sê-lo. Por
todo o lado no espaço‖ (ibid., p. 98). Este Poder é a dominação humana, utilitarista e
domesticadora, que é-no espaço cotidiano por ocorrer factualmente através das relações
advindas por este existencial.
Seguindo outra vertente em que podemos analisar o espaço cotidiano, mas sem
perder a posição crítica, porém, com uma faceta menos filosófica embora não perca o
âmbito do vivido é a análise do Lugar. Se trocarmos os termos lugar por espaço cotidiano
podemos verificar em Carlos (2004, p. 48, grifos nossos) que este ―é que assegura a
materialização do processo que se realiza no plano do imediato, portanto, é no plano do
lugar e da vida cotidiana que o processo ganha dimensão real e concreta‖. Se verificarmos o
168

que fora dito podemos interpretar da seguinte forma: o espaço cotidiano assegurará a
materialização do processo que é a cotidianidade, ganhando dimensão factual, tanto no
plano da forma quanto do processo; contudo, não podemos dizer ao pé da letra que é no
plano do lugar e da vida que o processo ganha dimensão concreta, pois, por via da
existência fenomenologicamente vivida (aqui como reforço do fenômeno da vida) é que todo
processo abarca a espacialidade e a existência humana como um todo, ocorrendo um efeito
contrário em movimento, não linearmente. Seria como se no nível desta ordem próxima
ocorresse a produção da ordem distante que reforçaria ainda mais a ordem próxima como
manutenção do processo que está consolidado. Nesse espaço cotidiano são criados
modelos comportamentais, que serão impostos rotineiramente sendo contemporaneamente
veiculado pelo senso-comum disseminado pela mídia (que como vimos sintetiza as
instituições passadas, sem eliminá-las em suas atuações particulares). É isto o que tenta
passar Carlos (ibid., p. 59), com a firmação de que ―o universo da vida cotidiana se
transforma abruptamente, novas relações, mas também novos objetos e valores. A invasão
da TV que aos poucos vai assumindo lugar importante na vida das pessoas ocupando o
lugar de ‗honra‘ na sala de visitas, torna-se o centro de todas atenções e cuidados‖. E nesse
sentido torpe da mídia, que veicula pelo senso-comum a alienação com naturalidade através
do processo vivo, de signos e sinais, a mídia não somente se instala no espaço cotidiano e
na cotidianidade, é dele que surge esta problemática – pois, como vimos, não há nada mais
factual e fenomenológico que o espaço cotidiano e seu processo. A relação da existência
humana com seu mundo será um duplo caminho, com a produção da alienação humana que
reproduz os próprios entes singulares humanos e com a reprodução contínua,
habitualmente, do mundo humano, seu espaço ontológico. A dita ―produção espacial‖ é
realizada ―no plano do cotidiano‖ (CARLOS, 1996, p. 26), não no plano de uma escala global
pura e simplesmente, hierarquicamente de cima para baixo (do geral para o banal).
Este espaço cotidiano é um composto sem distinções estanques, mas sim tênues. É
como um mundo que abrange tanto nossa vida individual quanto coletiva. Este espaço seria,
retornando ao fenomenológico para não perder o foco existencial, um horizonte vivido no
qual ocorre percepções, valores entre os entes singulares deste mundo vivido; através da
subjetividade e da materialidade. Não podemos separar ou isolar este ente (corpo, mente,
emoção, vontade) do mundo, pois ―estão engajados nos processos e padrões observáveis
no comportamento evidente‖87 (BUTTIMER, 1982, p. 176). É com esta passagem
fenomenológica de apreensão, porque principalmente vivida, que podemos nos respaldar

87
. Segundo esta mesma autora, ―cada pessoa está rodeada por ‗camadas‘ concêntricas de espaço vivido, da
sala para o lar, para a vizinhança, cidade, região e para a nação‖ (BUTTIMER, 1982, p. 178). Portanto, não
escapamos escalarmente do que chamamos do espaço ontológico da existência humana nem de alguma forma
do espaço cotidiano, estas ―camadas‖ persistem na vida do ente singular porque o mesmo nasceu inserido nesta
existência, corrobora com ela e se encontra embebido na rotina mesmo que não se enquadre em aspectos de
grande influência coletiva.
169

em M. Santos, quando este citando Morin nos fala ―que ‗hoje cada um de nós é como um
ponto singular de um holograma que, em certa medida, contém o todo que o contém‘‖
(MORIN apud., SANTOS, M., 2006, p. 314). Não pensamos que somente hoje tal fato
ocorre, mas que hoje isto é mais intenso e perceptível, pois o espaço cotidiano além de ser
a práxis vivida será o ―intermédio entre o Mundo e o Indivíduo‖ (ibid.). Em cada porção deste
espaço cotidiano temos a seu modo o mundo (espaço ontológico). Através desta esfera são
construídos os valores da chamada moral veiculada pelo senso-comum: numa interação
incessante do eu-pra-mim mesmo com o outro-pra-mim e do eu-para-o-outro (ibid., pp. 315-
316); temos essa constante sensação ou estado de vigília, como uma condição constante
de vizinhança de um espaço cotidiano repetitivo com uma cotidianidade de massa. É assim
que podemos observar, muito mais em momentos atuais como cita M. Santos, que o espaço
cotidiano será essa imbricação material-vivida de um ente singular humano com outro – por
este motivo que cabe averiguar este ente singular como corpo-espaço, como uma
materialidade construtiva, reprodutiva e factual, mas como um singular pertencente à
particularidade.
Segundo Velho (1981), devemos ter certo contato com a sociedade (existência
humana se preferirmos) pra conhecer as dimensões ou ―camadas‖ desta mesma. Para isto
necessitamos de uma maior empatia sobre o vivido, buscando pôr-se no lugar do outro. E
nos colocar no lugar do outro é um exercício de rever as bases que no cotidiano irá pelo
senso-comum criar a dicotomia familiar/exótico. Mesmo no exercício científico, o pré-
conceito de que um posicionamento ou ação é exótico ou familiar existe. Disto é que
devemos nos livrar nessa análise fonomenológica-existencial do ente singular humano em
seu espaço cotidiano. Devemos então transformar o que nos parece exótico em familiar e
vice versa. Por sermos existencialmente entes singulares que se interagem na expressão
fenomenológica do espaço cotidiano, estamos deste modo habituados com a familiaridade
dos fatos. Isto demonstra que somos entes integrantes do todo fenomenal que é o espaço
cotidiano, porém, embora auto-contidos em nosso si-mesmo não demonstramos que esta
familiaridade é conhecida ou aceita, muito pelo contrário se fugirmos da rotina
fastidiosamente imposta. A dicotomia exótico/familiar que nos angustia factualmente será a
base das nossas relações entre indivíduos enquanto espaço-corpo. Através do que é
concebido como exótico ou familiar ao senso-comum se constrói a esfera hierárquica dos
estereótipos, como que um mapa mental de todas as espaço-corporeidades cotidianas, e
nesse sentido, diferente da postura crítica de não rotular como familiar ou exótico,
acabamos por nos sentir como os outros ao rotularmos e agirmos sobre estes entes
singulares de forma punitiva, discriminatória e até agressiva (passiva ou ativa de
enfrentamento).
170

É no caminho de averiguar o familiar em nós mesmos enquanto entes singulares


que partiremos agora. Buscaremos, passando por uma acepção crítica do corpo-espaço,
estranhar o familiar e através disso compreender o que é considerado exótico. Buscaremos
algumas evidências reproduzidas a partir de nós mesmos sobre os outros, no qual serão
problematizadas criticamente essas noções e imagens estereotipadas que nos chegam
através do veículo que é o senso-comum (ibid.). E, este indivíduo que cada um de nós é não
é nem exótico nem familiar, mas um ente singular, o que nos leva ao entendimento do que é
este singular (ou singularidade) em reação à particularidade fenomênica (cotidianidade). O
termo singular é o que utilizaremos para qualificar os indivíduos da existência espacial
humana. Singular pode ser entendido como algo especial, raro, fora do comum, não usual,
inusitado, diferente, que causa surpresa; ou como algo que se aplica a um sujeito único, que
define uma só pessoa, simples. Esta definição de modo genérico, com ―ares‖ de senso-
comum, serve para averiguarmos o que pretendemos com esta qualificação de singular. O
singular é além de uma qualificação do ente humano enquanto único em si mesmo a
demonstração de que somos cada um diferentes, exóticos na pretensa familiaridade, por
isto nos surpreendemos com cada ente singular, por sua qualidade de ser diferente e fora
do comum. Segundo Lukács, citado por Silva, ―o singular, precisamente como singular, é
conhecido de modo seguro e verdadeiro, tanto quanto mais rica e profundamente se
descobrem suas mediações com o universal e o particular‖ (LUKÁCS apud., SILVA, 1982, p.
86).
Seguindo estes passos que devemos entender criticamente o singular, em relação
ao particular fenomênico e ao particular geral (a espacialidade humana), o universal. Lukács
assevera que ―o movimento do singular ao universal, e vice-versa, está sempre mediado
pelo particular‖ (ibid.), o que nos leva a atrelar essa acepção do singular ao ente humano
enquanto pessoa, pois perpassa em movimento, suas qualidades de singular, da
espacialidade como práxis da humanidade por meio do particular, que é a cotidianidade. A
cotidianidade enquanto b mediará a relação do ente singular com o mundo, que também é
seu mundo, na relação de retorno do mundo ao singular. Por isso podemos afirmar que a
cotidianidade irá desempenhar frente ao ente singular uma posição relativa de
universalidade. Podemos apreender este fato, que às vezes não possui uma clareza vívida,
através de um esforço lógico, na seguinte colocação novamente de que ―o singular não
existe senão na conexão que conduz ao universal. O universal não existe senão no singular,
através do singular. Todo singular é universal (de um modo ou de outro). Todo universal
constitui uma partícula, ou um aspecto, ou a essência do singular‖ (ibid.). Esta acaba por ser
a qualidade ou propriedade do que é singular, a singularidade; e a propriedade dos entes
humanos singulares é a sua existência em relação à espacialidade (particularidade), numa
171

retroalimentação do indivíduo com o mundo, o que o faz ser esta excentricidade do si-
mesmo.
O termo si-mesmo é muito conhecido através do pensamento jungiano.
Segundo esta corrente de pensamento o principal arquétipo88 é o si-mesmo (ou Self). O si-
mesmo é o centro de toda a personalidade. Dele provém todo o potencial energético de que
a psique dispõe. É o ordenador dos processos psíquicos. Integra e equilibra todos os
aspectos do inconsciente, devendo proporcionar, em situações normais, unidade e
estabilidade à personalidade humana. Assim, o si-mesmo representa o objetivo do homem
inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua
vontade (JUNG, 2000). Já segundo o ponto de vista ontológico-existencial heideggeriano, o
si-mesmo não designa nem consciência, nem o inconsciente e nem a personalidade, mas
sim se refere ao processo ontológico de comunhão e individuação, universalidade e
singularidade (autenticidade). Contudo, este si-mesmo tem dois modos gerais de
ocorrência: sua facticidade é dicotômica. Existe o ser si-mesmo cotidiano e o impessoal
(HEIDEGGER, 2008, p. 170). O que em um sentido lato explicita a complementaridade de
uma para com outro. O impessoal é um fenômeno constituinte da existência humana,
principalmente na cotidianidade – pois, o si-mesmo da cotidianidade é o impessoalmente-si-
mesmo. Como podemos ver, cotidianidade, si-mesmo e impessoalidade fazem parte de um
mesmo movimento de facticidade. Uma terceira via, que iremos arrolar com as outras duas,
é de Nietzsche. Segundo o filósofo, ―por detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu
irmão, há um senhor mais poderoso, um guia desconhecido. Chama-se Si-mesmo. Habita
no teu corpo; é o teu corpo. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria‖
(NIETZSCHE, 2008, p.44, grifos nossos). Esta crítica do pensador alemão, sob a máscara
do lendário sábio persa Zaratustra, aos que desprezam o corpo, irá demonstrar que o corpo
é o limite do Eu, ou melhor, o corpo próprio de cada ente singular é o limite material do si-
mesmo. É por isto que há mais razão no corpo que na lógica humana, é artificial qualquer
dubiedade construída pela subjetividade alienada, pois na existência singular de cada ente
humano, se o corpo próprio é ferido, ―naquele momento você não sente que é dois. Você
sente que é um com o corpo. Somente depois, quando começar a pensar a respeito, você
dividirá‖ (RAJNEESH, 1980, p. 60, grifos nossos). E é nesse sentido que podemos dizer que
―o corpo fala‖ em suas mais variadas formas de expressão (nós é que não sabemos senti-
lo), pois se dá como unidade do ente, tal qual nos esclarece Weil e Tompakow (1988).

88
. Eles são as tendências estruturais invisíveis dos símbolos. Os arquétipos criam imagens ou visões que
correspondem a alguns aspectos da situação consciente. Os arquétipos se originam de uma constante repetição
de uma mesma experiência, durante muitas gerações. Funcionam como centros autônomos que tendem a
produzir, em cada geração, a repetição e a elaboração dessas mesmas experiências. Eles se encontram
isolados uns dos outros, embora possam se interpenetrar e se misturar.
172

Podemos então sintetizar, sem simplificar por demais, essa relação imbricada entre -
si-mesmo e corpo. Não como relação, diga-se para esclarecimento, mas ambos sendo
referência para o outro, no qual o corpo será o si-mesmo na experienciação factual cotidiana
forjando assim a individuação do si-mesmo, mesmo que perceba que este Eu pareça estar
pairando como uma consciência sem matéria, o que podemos dizer como corpo. Através de
nosso corpo enquanto unidade entitativa que vamos experienciando o mundo, formando um
uno-composto corpo-si-mesmo como centro de uma personalidade, porém, conjugando a
individualidade (singularidade) com a universalidade imediata (cotidianidade). Por isso
podemos falar que esta unidade entitativa corpo-si-mesmo sofre com a impessoalidade,
mesmo que a materialidade corpórea seja o limite de nosso contato com o mundo. Mas,
evitando esforçadamente uma dicotomia e fechando este debate por hora, tratemos esta
unidade entitativa como corpo próprio (como uma redução terminológica de espaço corporal
do si-mesmo) e vejamos que o corpo próprio pode ser mais uma perspectiva que se esforça
em evitar outra dicotomia: a corpo/espaço. O corpo próprio seria somente a já citada
unidade entitativa, um corpo-espaço, no qual a separação é impossível, dado que por nosso
prisma a matéria (em suas mais variadas formas, efeitos e movimentos) é espaço, assim
como a ―não-matéria‖ (se é que podemos comprovar factualmente este ―nada físico‖!); logo,
se o corpo é material... nos poupemos de mais este esforço lógico, vejamos o
fenomenológico!
Como abrangência do espaço-corpo fenomenologicamente temos, principalmente, as
abordagens de Merleau-Ponty. Segundo Lima (2007a, p. 66) que trabalhará com a noção do
―espaço como experiência do corpo‖, a qualidade de cada ente singular é sua espacialidade
(a sua singularidade, como interpretamos), no qual se pode entender esta espacialidade
―como corporeidade de corpos‖ (ibid.). Esta seria como que uma aglutinação entre vários
corpos que entrecruzam as variadas percepções do corpo-si-mesmo. Um espaço-corpo
através de uma perspectiva corpórea. Dessa forma, com o imbricamento espaço-corpo-si-
mesmo já está subentendido uma relação de reciprocidade lógica, implicando mutuamente
corpo-espaço, contudo, existencialmente, ou se preferirmos na existência vivida na
cotidianidade, como já citamos alhures, já existe a unidade entitativa espaço-corpo – seria
redundante tentar relacionar ontologicamente algo que só está dicotomizado na consciência.
É seguindo esta perspectiva que Merleau-Ponty (2006, p. 205) pode tratar a unidade
entitativa como ―corpo próprio‖, pois nosso corpo não está no espaço, ele é espacial. E
todos os corpos têm uma veracidade perceptiva: ―que a percepção do espaço e a percepção
da coisa, a espacialidade da coisa e seu ser de coisa não constituem dois problemas
distintos‖ (ibid., grifos nossos).
173

Merleau-Ponty caminha em seu pensamento fenomenológico asseverando, e nos


ajudando a fazer o caminho inverso89 no sentido de que ―a espacialidade do corpo é o
desdobramento de seu ser de corpo, a maneira pela qual ele se realiza como corpo‖ (ibid.,
p. 206, grifos nossos). Com essa possibilidade de se criar uma recursividade na forma
perceptiva que vai da espacialidade até o espaço-corpo-si-mesmo, e retornando no sentido
espacializante inverso, do corpo à espacialidade, ―do relacionamento do corpo para com seu
mundo‖ (BUTTIMER, 1982, p. 180), temos uma busca de imbricar os ―elementos
consciência, corpo e mundo‖ (CUNHA, 1991, p. 11). Isto é o resumo que Cunha fará
seguindo a trilha do pensamento de Merleau-Ponty, de que ―o corpo não está no espaço, ele
é o espaço‖ (ibid., p. 55, grifos nossos). Este desvelamento como que um ―retorno ao
paraíso perdido‖ de que somos espaço-corpo é sintetizado por via da abordagem corporal
espacializante da fenomenologia perceptiva do filósofo francês. Em meio a idas e vindas,
Merleau-Ponty traçará seu arcabouço de argumentações através de alguns fatos cotidianos,
que para nós estão banalizados como não-espaciais, enquanto nosso corpo-si-mesmo.
Numa questão de motricidade e não de mimetismo (onde o leitor pode interpretar que a
espacialidade do corpo próprio percebida pelo filósofo é um mimetismo do corpo com o
espaço circundante), Merleau-Ponty (2006, p. 143) descreve:

se meu braço está posto sobre a mesa, eu nunca pensaria em dizer que ele está ao
lado do cinzeiro do mesmo modo que o cinzeiro está ao lado do telefone. O contorno
do meu corpo é uma fronteira que as relações de espaço ordinárias não transpõem.
Isso ocorre porque suas partes se relacionam umas às outras de uma maneira
original: elas não estão desdobradas umas ao lado das outras, mas envolvidas umas
nas outras.

Assim, podemos retomar ao menos na ideia a acepção de que somos espaço-corpo


e não corpos sobrepostos no espaço, e, muito menos corpos apartados de si-mesmos pois,
somos espaço-corpo-si-mesmo, como que espaços corporais de várias unidades entitativas.
Porém, como supracitamos, somos numa corporeidade de corpos, como que numa
aglutinação entre vários corpos que entrecruzam as variadas percepções do corpo-si-
mesmo. E esta percepção variada dos corpos nos leva a tratar não somente do corpo
próprio de nossa unidade entitativa, mas, dos corpos, da diversidade de corpos a que
estamos em contato cotidianamente, mesmo que não queiramos. Qualquer unidade
entitativa é corporal, no sentido espaço-corpo. Contudo, o que estamos tratando é de corpos
humanos, coletivizados numa uniformidade perceptiva via do senso-comum, mesmo que
cada espaço-corpo-si-mesmo não seja igual ao outro – todos somos a-normais.

89
. Aqui tratamos como caminho inverso porque Merleau-Ponty irá ir do corpo para a espacialidade, criando a
possibilidade de inverter a interpretação que fizemos até aqui, ajudando assim a fazer uma releitura
fenomenológico-existencial do tema através de outra perspectiva e/ou percepção.
174

Vejamos então esse espaço-corpo individual ou da cotidianidade coletiva. Nas


palavras de Rodrigues (1986, p. 44), o corpo ou os corpos são ―como qualquer outra
realidade do mundo, o corpo humano é socialmente concebido‖; esta abordagem
antropológica nos mostra que quando falamos de corpos, além de estarmos percebendo a
relação existente na corporeidade que é a espacialidade temos a corporeidade concebida,
uma representação como subjetividade alienada sobre os corpos: um corpo normatizado
que é condicionado e rotulado coletivamente, cotidianamente. Esta normatização dos corpos
irá eleger um certo número de atributos que conformam o que cada espaço-corpo-si-mesmo
deve ser. Desde o ponto de vista moral até o seu aspecto material mais perceptível (pois os
sentidos corporais são normatizados, não somente a visão). Esta medida será perpassada
pelo senso-comum para os entes singulares da existência humana. Assim, o espaço-corpo
humano será afetado pela subjetividade alienada. Ao corpo fora aplicado concepções e
representações formalizando cada espaço-corpo e corporificando as formas de
estranhamento e alienação nos corpos, ou no corpo coletivo. Esta normatização do corpo e
dos corpos será um pilar bem fixado em nossa cotidianidade, mantendo bem firme a
existência humana autocriada. Existe então, nesse sentido, uma apropriação existencial do
corpo, um senso-comum de corpos, hora velado hora explícito, que irá compor uma média
de atos e formatos a serem seguidos para quem quer se enquadrar mediocremente na
corporeidade coletiva. Como dissera Gaiarsa (2002, p. 17), ―o corpo-carne-escravo e a
mente-espírito-senhora – uma que manda e outro que obedece‖ – nossa subjetividade
alienada coletiva manda e cada espaço-corpo-si-mesmo obedece90.
Esta obediência cotidiana pode ser entendida pelo que Foucault chamou de micro-
poderes, que passa de uma forma de controle-repressão para um controle-estimniação,
onde não somente a forma coercitiva e/ou violenta que irá agir do senso-comum para o ente
singular expondo o que o mesmo deve pensar e agir sobre o corpo próprio e de outrem. Por
exemplo, onde e quando ficar nu é agradável, mas com ressalvas estéticas (sendo magro,
bronzeado, ―bonito‖, etc.). Isto acaba por ser um grande exercício de controle, de poder
sobre os outros, sobre os corpos. Afinal, nada é mais material e corporal que o próprio
exercício de poder (FOUCAULT, 1993).
A corporeidade acaba por ser esta normatização imposta pelo controle-repressão-e-
estimniação dos corpos, mesmo que seja através dela que materialmente (esta
representação não existiria se não houvesse a materialidade espaço-corporal, até porque é

90
. Para alguns pormenores consultar: TORRES, A. M. A. O. La sexualidade em Merleau-Ponty. Revista de
Sexologia, nº 33. Madrid: IN.CI.SEX, 1988. Torres demonstrará que foi especificamente na cultura cristã
ocidental que se deu a construção de um ―dualismo estrutural‖. Dualismo este colocado como algo óbvio e
natural, tornando-se então o esquema hegemônico de interpretação, compreensão e tratamento do ser humano.
Assim passaremos a ―perder‖ nosso corpo próprio, moldando nossa forma de viver e sentir o corpo através das
experiências que tivemos, da subjetividade alienada fundamental de nossa família, e respectivas Instituições
existenciais. Dicotomizamos o ente humano entre: o corpo e o que tem sido chamado de alma, espírito,
essência, logos, pensamento.
175

quase impossível apreender ou perceber uma corporeidade de corpos sem corpos, sem
espaço-corpo – este é o caminho para o que vem posteriormente e não o contrário) temos
acesso ao mundo (CARLOS, 2004, p. 51). Porém, este acesso ao mundo é condicionado
cumulativamente através da cotidianidade. Mesmo que o uso existencial do corpo mude
com cada geração, influindo no gestual, nas expressões significantes, o corpo não se
metamorfoseia (LEFEBVRE, 1991, p. 69); o que ocorre é uma metamorfose no corpo
coletivo. E nesse sentido o que realmente importa é o comportamento humano perante o
espaço-corpo. O condicionamento que produzirá um corpo coletivo como fonte espacial
enquanto unidade entitativa e representação. Através disso podemos perceber que o
espaço-corpo é um lócus de/dos valores estabelecidos pela subjetividade alienada.
Segundo Harvey (2006a, p. 135), ver o corpo como lócus, de forma irredutível, da
determinação dos valores humanos, significados e significações fazem dele um significante-
significado, como uma estratégia para a acumulação capitalista. Acrescentando ainda mais,
de que ele, o espaço-corpo, é estrategicamente significante-significado da subjetividade
humana alienada, através do qual se materializa no limite, unidade entitativa, do si-mesmo a
exteriorização da vida precedente e re-produzida em sua essência, nas relações cotidianas
– não somente do modo de ser segundo o capitalismo, mas da doença humana como um
todo. O corpo será para Harvey (ibid., p. 136), medida de todas as coisas, como
determinação e modalidade de construção dos valores e sentidos, como medida de todas as
coisas – ou, como já dissemos: medida da alienação (material-subjetiva) e do
estranhamento. Isso demonstra que o espaço-corpo internaliza o processo, os processos –
de modo geral, a espacialidade, e cotidianamente como práxis utilitária cotidiana. É a partir
desta internalização do processo que o corpo será ―base de toda a práxis e de toda a
reprodução‖ (LEFEBVRE, 1973, p. 102). O corpo carnal, vivido, terrestre e cotidiano é base
e começo em-si-mesm(ad)o do que tratamos no capítulo anterior como exteriorização da
vida: é uma exteriorização de nossa própria corporeidade relacional, no qual através disto
faz da corporeidade de corpos um meio para criar corpos comportamentalmente
padronizados. Assim, o corpo não é nem produto passivo nem reflexo condicionado
somente dos processos cotidianos, pois estes processos não são externos ao espaço-corpo,
é inerente a sua qualidade enquanto corporeidade de corpos. Essa corporeidade busca um
conglomerado de corpos dóceis, como num ―projeto inacabado do corpo humano‖ (ibid., p.
144), pois este projeto do espaço-corpo coletivo deve ser sempre reafirmado e tido como
imutável na e para a existência humana.
O que vimos nessa passagem fora não somente um escalonamento escalar
geográfico, do cotidiano para o corpo (ou corpos), mas, novamente o surgimento da
espacialidade diferencial existencialmente demonstrada. Porém, o movimento que
apreendemos não é das diferenciadas e diversas formas de espacialidades
176

(particularidades) e sim da cotidianidade como essa espacialidade humana vivida no âmbito


utilitário cotidiano (rotineiro e por isso naturalizado, servil e quase maquínico), que irá
sintetizar a forma imbricada da subjetividade alienada encontrar-se na espacialidade, até a
singularidade incorporada da práxis utilitária através da corporeidade. E esta incorporação
da cotidianidade irá ser veículo significante e referente de significado de uma práxis por
demais corporal: o processo de domesticação do espaço-corpo pelo processo de
estereotipagem91. Devemos então concordar com Harvey (ibid., p. 159) na sua frase: ―o
corpo humano é um campo de batalha‖! O que veremos é um processo mais materializado
do que pensa nossa lógica filosófica. O processo de estereotipagem é uma verdadeira
―batalha campal‖ via de uma corporeidade de corpos que utiliza a subjetividade e a mantém
alienada para cada vez mais reafirmar o estranhamento.

3.2. Processo de estereotipagem do espaço-corpo: corporeidade como representação

Não seria esse processo de estereotipagem uma representação corpórea, ou uma


corporeidade, do espaço-corpo-si-mesmo de rotinas, hipocrisia e escolha do outro? Em
nosso espaço-corpo não estaria sintetizado a alienação subjetiva na espacialidade em que
vivemos imbricados? Não seria uma corporeidade de corpos alienada através da
reprodução de um ente humano rotineiro? Não cabe somente a resposta objetiva destas
questões, mas para dar um salto inicial em relação ao estereótipo-estereotipia devemos
referenciar o discurso sobre que unidade entitativa humana reproduz tal processo corpóreo
em uma rotina conformista, pelo hábito da hipocrisia, através do qual escolhemos o outro
através de nossos atos e fatos estereotipados.
Segundo Igenieros (s.d., p. 73), temos a conformação de um ―homem rotineiro‖, cuja
rotina aparece metaforicamente tal qual um ―esqueleto fóssil‖ do que tratamos como a moral
veiculada pelo senso-comum. Nesse sentido cada ente humano se torna ―acostumado a
copiar, escrupulosamente, os preconceitos‖ do espaço cotidiano de que fazem parte pela
vida, reprodutivamente (embora não se vejam nessa função, muito menos na condição de
mudar sua cotidianidade), aceitando o senso-comum espraiado de modo naturalizado.
Embora a rotina faça cada ente humano acreditar que é livre, atuando individualmente em
suas escolhas, acaba por mascarar nesse enrijecimento de um espaço cotidiano, quase que
maquínico, a rotineira mentalidade (consciência ou subjetividade alienada) coletiva,
extrínseca ao devir espontâneo do corpo-si-mesmo. Cada qual vive ―entre as engrenagens
da rotina‖ (ibid., p. 85, grifos nossos). É nesse modo de ―engrenagem‖ que se cria e

91
. Como veremos a seguir, não trataremos este processo de estereotipagem tão somente como o estereótipo
em si, com os estigmas e representações pré-estabelecidas pela subjetividade alienada. Iremos da margem ao
cerne do problema, que é a própria corporeidade como fonte, meio, e fim do processo.
177

amadurece a atitude conformista. O ente humano enquanto espaço-corpo-si-mesmo que


será conformista é ―aquele que foge dos riscos da responsabilidade pessoal para escolher
determinado código de conduta que lhe prescreva, quase ritualmente, os gestos que deve
fazer, os pensamentos que deve ter, as atitudes que deve assumir‖ (CANTONI, 1968, p. 92).
E como pertencemos às nossas rotinas endurecidas do espaço vivido do cotidiano, somos
quase que instintivamente conformistas: essa conformidade ritualizada segue ―a moda do
outro‖ que nada mais é que a própria escolha de si-mesmo pelo outro, que por si próprio
escolheu o senso-comum, evitando a responsabilidade crítica própria – esta fenomenológica
facticidade habituará no corpo próprio em gestos e pensamentos preconcebidos.
É desta forma que os hábitos farão os monges através da corporeidade alienada.
Hábitos tanto gestuais, e encobridores dos gestos (a roupagem do corpo), quanto
concebidos – uma corporeidade de corpos que se auto-representa nem somente pela
matéria ou consciência isoladamente. É assim que somos impedidos pela nossa
exteriorização da vida mantida secularmente a andarmos desnudos, de forma absoluta,
corporalmente de roupas ou de concepções. Estas diferentes roupagens existenciais
demonstram quem você é enquanto unidade entitativa que reproduz o estado das coisas. A
nudez absoluta retira da humanidade sua condição humana, domesticada por si própria, a
iguala a natureza selvagem que tanto busca dominar, controlar e ao mesmo tempo inveja
por ter se afastado desta condição de pleno devir e não de aprisionamento do ser. Pois, com
a ―força do hábito‖ (do costume), encontramo-nos desgastados (embora amedrontados de
fugir deste padrão que leva a uma finalidade esperada, utilitarista), como frisa Cantoni, do

mundo de nossa experiência cotidiana, as pessoas e as coisas que temos conosco e


em volta de nós, as situações habituais de nossa vida, não despertam mais em nós
nenhum verdadeiro interesse. A freqüência do uso extingue a maravilha e distrai a
atenção. Aquilo que encontra no quadro normal da rotina suscita poucas paixões,
poucos problemas; só a novidade provoca e mobiliza as energias da inteligência e
da imaginação. A experiência cotidiana parece, ao contrário, enfadonha, rígida em
esquemas que se repetem, prefigurada em seu prosseguimento, desprovida de
aventura e de arrojo. A superburocarcia, no mundo atual, envolvente como uma rede
de malhas cerradas, contribui para transformar um acontecimento pessoal em caso
anônimo. E, involuntariamente, arrastados pela lei dos tempos, tornamo-nos
burocratas e estatísticos também nós, isto é, incapazes de viver pessoalmente a
nossa existência, levados, a despeito de nós mesmos, a considerar a nós próprios e
aos outros, assim como aos objetos e às situações, como pedras de um jogo
forçado. Esse modo de viver, mortificando a imaginação e excluindo o possível, é
um processo de imbecilização pelo qual presumimos saber o que não sabemos e
julgamos de modo apriorístico o que não temos paciência de observar (CANTONI,
1968, p. 184).

Estamos então perdidos nessa falta de maravilhamento, até porque nada mais é
novo, e até o que parece novo é somente a repetição daquilo que já foi planejadamente
tornado obsoleto. Através dessa rigidez habitual, de cada espaço-corpo-si-mesmo, vamos
ficando assustados e/ou angustiados perante algo que foge à superburocracia rotineira,
178

como que acuados e estressados por não sabermos mais lidar com eventualidades da
espiral da vida. Estamos somente mantendo-nos mortificados, reafirmando com o hábito
corpóreo próprio a exteriorização da vida. As possibilidades são sempre anuladas, ou
buscam sempre ser anuladas, numa ―imbecilização‖ que se caracteriza como hipocrisia. É o
mundo da mentira, das representações, das máscaras existenciais, da personalidade. A
existência humana tal como foi conformando-se se deu por meio de mentiras, evitando os
fatos, os fenômenos tal qual ocorrem. Só que estas mentiras servem como ―amortecedores‖,
protegendo da auto-sensação de que nos encontramos em alienação. Assim as mentiras se
tornam agradáveis a nossa consciência, porém nos protegem também de nosso si-mesmo,
cria a corporeidade alienada. Vivemos através de máscaras que nos revestimos, uma
construção da nossa personalidade, uma palavra que ―se origina da palavra persona.
Persona significa ‗máscara‘. Nos dramas gregos, os atores usavam máscaras, faces falsas
eram chamadas personae. E foi dessa palavra que se originou a palavra ‗personalidade‘‖
(RAJNEESH, 1993, pp. 107-108). Agimos então como personagens, hipócritas, atores de
uma corporeidade alienada que usam máscaras falsas – falsas porque não o que realmente
somos ou pensamos.
A corporeidade de corpos seria essa representação (aqui como ato de representar
personagens) lícita, que nos fazem ―marionetes‖ movidas por ―fios‖ externos. Essa ―zona
lícita‖ da hipocrisia é o que nos explica Cantoni (1968, p. 190), ―a da representação normal e
inevitável‖ que complementa e dá vida a domesticação primordial. Somos então
personagens impessoais, com papéis previamente descritos no qual somente deve-se
repetir em si mesmo um esquema genérico. E por essa força do hábito acabamos muita das
vezes por aderir passivamente ao pré-julgamento já feito, vivendo na inércia factual do
preconceito. Através dessa forjada atitude de auto-representação que através de nossa
escolha dos ―fios externos‖ a seguir que acabamos por escolher o outro. Moldamos nosso
espaço-corpo-si-mesmo na busca incessante de manipular a corporeidade de corpos, de
decidir o caminho do mundo. Aquilo que fora existencialmente construído será incorporado e
através dessa corporeidade repassada para os outros. O movimento não é cíclico, é um
círculo fechado e vicioso da doença humana do estranhamento. É isto que Sartre (1998, pp.
95-96) irá definir como a humanidade, em que cada ente humano não é antes de mais nada
um projeto, pois, ―ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens‖. Numa
reinterpretação particular, podemos apreender que assim que cada ente humano se
escolhe, singularmente, enquanto personagem estará escolhendo a corporeidade do(s)
outro(s). Este ato não é individual, embora pareçamos autônomos, mas a toda a
humanidade na escolha do caminho. E é nesta escolha da humanidade por esta intra-e-
intercorporeidade que temos o processo de estereotipagem, uma situação previamente
organizada em que cada ente humano propriamente ―está implicado; implica pela sua
179

escolha a humanidade inteira, e não pode evitar o escolher‖ (ibid., p. 116). Assim que
podemos julgar moralmente o outro, porque já se faz como um processo previamente
organizado.
O que podemos sentir e perceber é uma micropolítica de domesticação do espaço-
corpo. A corporeidade é política, pois a política do corpo não existe fora das relações com
outros corpos, principalmente com a intencionalidade de nos tornar passivos, dóceis e
quietistas. Esse quietismo ―é a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo
que eu não posso fazer‖ (ibid., p. 109), embora só haja práxis com ação. Mesmo que
pensemos que em nossa postura quietista estamos isentos e inertes de ação política, este
ato de ―lavar as mãos‖ já é a política do corpo agindo pelas linhas externas que nos fazem
marionetes. Afinal, nossa práxis utilitária cotidiana já se encontra em nossa corporeidade
alienada. É por isso que o espaço-corpo é início, fim e medida de todas as coisas, do estado
de coisas; ele ―é uma relação interior e, por conseguinte, aberta e porosa com respeito ao
mundo‖ (HARVEY, 2006a, p. 178), porque de sua auto-exteriorização da vida parte-se para
o existencial mundo que retornará através da corporeidade segundo o processo de
estereotipagem. Este processo encontra-se como termo em Harvey (ibid., p. 168): ―processo
de estereotipagem‖; mas que podemos dar uma nova roupagem de percepção
fenomenológica do espaço-corpo como corporeidade de corpos como escolha do outro,
embebido de hipocrisia e rotinas. Este não é somente o estereótipo ou a estereotipia,
porquanto se encontra nestes e os reproduz, mas é mais do que eles.
O estereótipo geralmente é tratado como uma imagem preconcebida de determinado
indivíduo, coisa ou fato. Sendo usados principalmente para definir e limitar entes individuais
ou grupo de indivíduos de forma genérica e generalizante. Sua aceitação é ampla e
difundida/veiculada pelo senso-comum, sendo grande estopim de preconceito e
discriminação. Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, podemos tratar o
estereótipo como: ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo,
resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações; padrão,
geralmente formado de idéias preconcebidas e alimentado pela falta de conhecimento real
sobre o assunto em questão; e, aquilo que é falta de originalidade; banalidade, lugar-
comum, modelo, padrão básico. Guardemos esta abordagem para irmos sumariamente à
origem do termo e depois retornemos a esta definição junto ao que vimos com o espaço-
corpo. Segundo Diniz (2007, p. 137),

a palavra estereótipo, originalmente, pertence ao vocabulário da editoração gráfica.


Trata-se de uma chapa de chumbo fundido que traz em relevo a reprodução de uma
página de composição e permite a tiragem de vários exemplares. A prancha
estereotipada representa a fôrma que imprime fielmente o padrão da matriz.
180

Seguindo essa perspectiva originária, por extensão, o estereótipo acaba por ser
apropriado e compreendido para definir uma opinião pronta, uma idéia ou expressão muito
utilizada, banalizada, um lugar-comum na produção do senso-comum. Daí podemos
entender porque da associação com a chapa de chumbo originária, pois cada página a ser
impressa será igual a seguinte, toda a materialidade dali produzida será uma cópia da outra,
original, como uma fo(ô)rma para o padrão desejado. Assim temos o engessamento
comportamental, perceptivo e consciente de cada unidade humana entitativa – o que
importa é seguir fielmente o padrão matriz, o estereótipo. E é a isto que remete sua
etimologia, advindo do grego stereos e typos compondo impressão sólida, que irá dar
sentido tanto ao objeto utilizado de forma maquínica e rotineira quanto ao comportamento
rotineiro e padronizado de cada um de nós. Essa supergeneralização é uma estratégia
discursiva e também factual na práxis utilitária cotidiana, funcionando muita das vezes como
elemento capaz de sintetizar conceitos, sendo cada vez mais utilizado na corporeidade e no
discurso cotidiano, principalmente após o advento da mídia como modelo sintetizador da
moral pretérita da existência humana como citamos alhures no começo do capítulo.
Contudo, ao mesmo tempo em que garante a sintetização de uma moral cristalizada,
produzindo um efeito de objetividade, também estabelece uma dimensão produtora de
efeitos de uma subjetividade alienada. Isto faz com que o indivíduo que expressa e
apreende o estereótipo se confunda hora como um ente genérico que somente reproduziu a
supergeneralização, hora como um ―sujeito‖ que teve uma ideia original, criativa e própria.
Podemos então abordar o estereótipo por duas vias complementares: a primeira enquanto
um modo da percepção, de forma particular que influencia, tal qual um ―esquema‖, como
nós percebemos e recordamos de experiências e pessoas; a segunda numa perspectiva
existencial enquanto fruto da interação cotidiana humana, neste caso o conteúdo do
estereótipo deve ser averiguado em sua fonte.
Iremos ao encontro então do inter-relacionamento das duas vias, que acabam por
gerar somente uma, que será o processo de estereotipagem. Do ponto de vista da
percepção, um dado estereótipo é existencial, pois se refere à representação corpóreo-
linguística expressa cotidianamente, mais especificamente por um determinado ―grupo
social‖; porém, com o advento da mídia a construção, reprodução e propagação de diversos
estereótipos acabam por serem repercutidos como um senso-comum de abrangência muito
mais ampla do que a local. Principalmente se dado estereótipo for veiculado por um país ou
grupo de grande influencia política e midiática (o que acontece com nossos enlatados
estadunidenses de filmes, comédias, telejornais e programas de auditório, entre outros).
Esta representação irá construir indivíduos que expressam papéis criados de forma genérica
criando assim, uma consciência alienada sobre determinado padrão de indivíduo em relação
a seu suposto ―papel‖. Desse modo acabamos por elaborar e disseminar pacotes de
181

conhecimento previamente atribuídos aos corpos e comportamentos dos entes humanos


que se enquadram, por rotulação generalizada, em tais atribuições que assumimos em
nossos atos serem verdadeiras. Como vimos, a relação entre a existência e a percepção é
inevitável de ser separada, principalmente neste processo que irá formar as estereotipias
como fenômenos de categorização, que uma vez constituída, leva os indivíduos a procurar
reproduzir cotidianamente uma realidade que valide as previsões e explicações
implicitamente contidas nas estereotipias. Assim, a estereotipia seria essa forma de
categorizar um estereótipo que fora elaborado, com a finalidade de cimentar através da
corporeidade alienada, uma característica tida como imutável de cada ente singular que é
representado por tal estereótipo. O que não podemos deixar de destacar é que a
estereotipia busca confirmar, na práxis cotidiana, através de seu modelo comum pronto a
reprodução de dado estereótipo.
O processo de estereotipagem seria a relação estereótipo-estereotipia, pois o
estereótipo não pode se tornar um tipo comum se não for categorizado e disseminado pelo
senso-comum. Assim o processo de estereotipagem seria também um meio ou medida para
que auto-valorize um determinado grupo humano em relação ao outro; para que a moral
instituída por dado grupo seja imposta de forma espraiada e tida como imutável, tendo como
reforço sempre a corporeidade dos corpos daqueles que os categorizadores dos
estereótipos querem que sejam dominados. Criam-se então tipos fixos de corpos,
corporeidades padronizadas e difundidas cada vez mais pela mídia. Mas a culpa não é
somente da mídia, mas também de nós mesmos que criamos e propagamos estes tipos
fixos, ou impressões sólidas de espaço-corpo. O discurso e a percepção da corporeidade
alienada nos auxiliam no entendimento do processo de estereotipagem, contudo, por hora,
devemos demonstrar alguns destes estereótipos que ―assombram‖ e fazem caminhar a
nossa existência cotidiana.
Fizemos a escolha de algumas dessas impressões que se querem sólidas em nossa
cotidianidade, para dar cabo da praticidade que este momento implica, principalmente por
se tratar de uma averiguação pela percepção e não somente da consciência. Cada
corporeidade alienada tem seu processo de estereotipagem própria, na inter-relação
estereotipia (categorização) e estereótipo (impressão rígida a ser passada pelo senso-
comum). Elegemos então os seguintes, segundo a concatenação que traçamos de acordo
com o que até aqui analisamos criticamente sobre a existência humana: o especismo, o
sexismo, o etnocentrismo, o racismo e o modismo. Queremos deixar claro que essas são as
definições aqui atribuídas para o fim de maior praticidade linguística, mas que, no decorrer
da abordagem buscaremos, até para maiores esclarecimentos, acrescentar características e
fatos relacionais a cada processo de estereotipagem específico.
182

O primeiro processo é o do especismo, este muito conhecido e naturalizado por nós


entes humanos e que já tratamos no capítulo anterior como uma das principais formas de
domesticação e/ou antinatureza como um dos modos de exteriorização da vida. Contudo,
adensado a este especismo temos o antropocentrismo dominador, que após ter ajudado a
criar toda esta ―doença humana‖ do estranhamento, agora deve ser fixado como uma
―impressão rígida‖ a ser veiculada pelo senso-comum em nossa cotidianidade. Portanto,
quando tratamos aqui do especismo como um processo de estereotipagem não estamos
sendo contraditórios ou redundantes quanto àquele tratado no capítulo anterior e na primeira
parte deste capítulo, mas sim reforçando agora sua legitimação fenomênica através de uma
subjetividade alienada. Este especismo não é somente fruto deste processo da existência
humana, mas um reprodutor da condição a ser engessada como imutável porque vista como
eterna. Como vimos o especismo é uma discriminação baseada na espécie, quase sempre
a favor dos integrantes da espécie humana, como do ente corpóreo que aqui vos fala. Para
averiguarmos factualmente em nosso cotidiano o especismo como processo de
estereotipagem basta fazer uma breve ―varredura‖ crítica em nossa linguagem de senso-
comum ―ingênuo‖ para ver o que estamos representando, categorizando e tentando re-
afirmar. Junto a isto corre livremente, também com aspecto ingênuo, a veiculação midiática
do processo. Todas as experiências e representações delas desde os primórdios da
civilização-dominação humana, perpassando pelas instituições pretéritas e ao mesmo tempo
contemporâneas e imbricadas (Filosofia, Religião, Ciência), são veiculadas pela Mídia. O
processo de estereotipagem do especismo ganha corpo ainda mais abrangente e
representacional com a possibilidade de grafar com logotipos, propagandas e animações na
percepção via da imagem. No momento da linguagem e das expressões podemos ver a
característica mais espontânea da dominação humana, nas formas agressivas em que cada
frase é entoada e nas expressões faciais dos falantes (nas suas ―caras e bocas‖). Em meio
às falas arrogantes de cada ente humano sobre os outros animais que não nós com o intuito
de tapar os ouvidos e sentidos para seus modos de comunicação continuamos a colocar
todos os que não são humanos nas mesmas condições, desde uma baleia até uma
centopéia; todos (o resto) são animais, nós os humanos, ou melhor, os representantes do
gênero dos iguais, semelhantes: o homo. No campo de atuação massiva da mídia, a
representação ganha corpo de romantização (criar imagens fantasiosas dos fatos), como
nos explica Smith (1988, p. 43): ―a romantização é aí uma forma de controle‖; justamente
por mascarar os fatos através de imagens que sejam aceitas de modo implícito e não
demonstrador de agressividade.
Nós que dizemos e reproduzimos os estereótipos especistas na maioria das vezes
não gostamos de sermos pegos em flagrante deste ato, nos achando isentos politicamente
do assunto e do fato, pois temos as explicações perpassadas sem discussões: Deus deu a
183

superioridade aos humanos; alimentamos e protegemos os animais; os animais não sabem


que sofrem; os animais não sabem que vamos matá-los; os animais só agem por instinto; os
animais comem-se entre si; os animais não têm personalidade; eu amo os animais, não
como carne de cavalo e tenho um cachorro (embora ninguém queira ser ―tratado feito
cachorro‖). Para quem se expressa dessa forma a naturalidade do discurso não faz
perceber o hábito de estereotipia da dominação humana, que após um escrutínio crítico soa
como algo ridículo.
Vejamos o exemplo simples dos nomes que damos às vozes dos outros animais e
como nos referimos a elas para o nosso trato entre-humanos. Acuar, que é a voz de cães,
tratamos como ―deixar alguém em má situação‖ (quem nunca viu a ofensa verbal de que um
indivíduo pede para o outro ―latir‖). Apitar que é o som emitido das aves fica como pejorativo
na expressão: ―o que você está apitando‖. Berro, este é mais corriqueiro, no qual pedimos
sempre para o outro ―parar de berrar‖ quando desejamos silêncio, nos esquecemos que é a
rotulação de voz que demos a araras, bois, cabras, etc. Quem nunca se reclamou de que o
outro estava bufando, mais uma vez a voz de baleias, cutias. O cochicho do ditado ―quem
cochicha o rabo espicha‖ é a forma de expressão da ave cochicho ou da alvéola. Fungar e
gaguejar, também termos pejorativos a nós humanos são vozes de gatos e bodes
respectivamente. A gargalhada, forma de risada mais alta do que a ―educadamente
permitida‖ é a voz de hienas, melros, seriemas, cutias, corujas. Assim podemos seguir com
gritar, zoar, urrar, sussurrar, roncar, grunhir, fungar, entre inúmeras outras, mas que faz o
defensor do especismo ingênuo sempre ver o lado ―positivo‖ dos fatos: existe a exaltação do
cantar, que é remetido à voz de algumas aves como a andorinha, mas que se não nos
agrada pela harmonia que desejamos logo dizemos que está chiando, aquela reclamação
feita quando não gostamos de um som da televisão ou de algum aparelho de áudio.
Os exemplos do processo de estereotipagem especista também podem ser
percebidos na ofensa direta dos entes humanos, de forma agressiva e pejorativa, tanto na
fala quanto na expressão facial. Vamos enumerar: veado, para o homossexual; porco, para
o que se considera sujo; cavalo para representar a estupidez de um ―coice‖ verbal; vaca à
mulher que é vista como promiscua, assim como piranha ou galinha; crocodilo para
representar a falsidade das lágrimas ou o urso, do tão conhecido ―amigo urso‖ ou ―abraço de
urso‖, também representam falsidade; passarinho para rotular o indivíduo que come pouco,
na perspectiva daquele que está rotulando; preguiça que qualifica o ente humano como
indolente geralmente em relação ao seu não rendimento ao trabalho alienado; toupeira, para
indivíduos tratados como ignorantes; girafa para os que são mais altos que a média
estipulada; baleia constantemente atribuído ao gordo ou obeso; burro é sempre aquele que
não se enquadra nos padrões de inteligência estipulados, ou somente o ―que não é
inteligente‖; tartaruga é sempre associado ao lento, lerdo, assim como a lesma; gambá
184

representa aquele que não cheira como deveria cheirar um indivíduo civilizado; rato é o
ladrão. E assim sucessivamente como o tratar de bicho ou simplesmente animal (aquilo que
todos nós somos) um ente humano que esteja fazendo algo que fuja dos comportamentos
esperados para um humano enquanto tal. Estes rótulos e adjetivos demonstram o processo
de estereotipagem em seu aspecto linguístico como formação de um padrão fixo, do qual
nem o chamado de ―melhor amigo do homem‖ (por ser um dos primeiros a serem
domesticados, adestrados e usurpados pela dominação humana e que, mesmo assim, ainda
continuam sempre ao nosso lado) escapa. Quem nunca ouviu ou esbravejou para outrem
que era um cachorro, para demonstrar sua atitude de ―canalha‖ (mas não era amigo?), ou o
cão, como representação direta para o maligno, a satanização, como o oposto de Deus92.
A satanização dos outros animais é algo muito comum no processo de
estereotipagem especista, e da margem para que possamos entrar na veiculação das
imagens que depois trataremos com a romantização. Outro animal que fora satanizado é o
bode, principalmente após a construção simbólica do Bode de Sabbath ou Baphomet, ainda
conhecido como bode de Mendes, desenhado por Alphonse Louis Constant, o abade
ocultista francês do século XIX, de alcunha Eliphas Levi93. O ocultismo seria perseguido pelo
clero de até então, denominando todas as práticas religiosas que vão para além da teologia
teocêntrica e antropocêntrica como ocultismo, animismo ou somente satanismo. Mas,
realmente por hora o que nos importa é o Bode, que desde então ficará registrado como
estereotipia do diabo, maligno oposto da bondade divina.

92
. É curioso observar que em inglês o termo dog é escrito de forma oposta a god, respectivamente cão e Deus.
Será que não existe nenhuma semelhança linguística nessa representação e oposição entre os termos em nossa
língua? Cabe em outra hora e trabalho averiguar.
93
. Para alguns detalhes consultar: <http://www.priscilaemaxwellpalheta.com/2012/03/personalidades-satanicas-
parte-4.html>.
185

Figura 5: O Bode de Sabbath desenhado por


Alphonse Louis Constant.

Outra estereotipia curiosa no processo de estereotipagem do especismo é a figura


do ―lobo mau‖, mais uma vez atribuindo aos canídeos a feição maligna, como um ente que
possui de forma inata a maldade. Nos contos infantis, a expressão e representação da
maldade e/ou do vilão através do ―lobo mau‖ são frequentes, tendo como principal obra a
―historia da chapeuzinho vermelho‖, incorporando a figura do lobo-vilão que é morto ao final
da história sem nenhum remorso pelo ―bondoso‖ caçador. O mundo onírico infantil busca
cimentar já nos recém chegados ao espaço ontológico humano toda a exteriorização da vida
e alienação subsequente imposta através das estereotipias, principalmente de forma
romantizada. É muito comum associarmos crianças aos ―inofensivos e meigos bichinhos‖
através de filmes, desenhos, histórias em quadrinhos, contos, bichos de pelúcia, o coelhinho
da páscoa e os produtos a serem consumidos com teor romantizado do não-humano (com
expressão compassiva, humanizada e sempre feliz). Tal romantização é defendida com tom
de pedagogia, de um falso amor a ―natureza‖, da qual ninguém quer se aproximar, nem em
si-mesmo e muito menos no outro animal não-humano que é preterido ao zoológico, onde
possam ser o mais próximo (e ao mesmo tempo distante) de nós possíveis, para evitarmos
contato com suas feições nada romantizadas ou humanizadas. O caráter hipócrita-
pedagógico da romantização animal não-humana é através dos desenhos para criança,
principalmente para pintar, desenhar ou colorir, no qual a criança vai aprendendo seu
contato ―harmonioso com a natureza‖ em complementaridade com os ―passeios ao
zoológico‖ através da escola.
186

Figura 6: Amostra de uma figura de ―animais do


zoológico‖ para colorir.

Como podemos perceber a feição compassiva e humanizada é genérica para todos


os animais não humanos, mesmo que nossas ―caras‖ em muitos momentos (principalmente
ao lidarmos com estes outros animais) pareçam mais arrogantes e agressivas do que na
representação. Os produtos de consumo humano, adulto ou infantil, através da mídia
ganharam ainda mais esse realce de romantização. É em boa hora lembrar a propaganda
da empresa Parmalat sobre seu leite-produto, a ser comprado por adultos (pais e mães)
para crianças (filhos), no qual aparece uma simbiose entre os ―bichinhos de pelúcia‖
(mamíferos), as crianças e o produto, leite (quase imperceptível durante a trama do
comercial). O apelo infantil, terno, de pureza imbricada com a romantização dos outros
animais foi explícita para a venda do produto – é impossível não percebermos assim a
sintetização da mídia de todas as instituições das quais já citamos. Os produtos de limpeza,
quase sempre são associados a animais não humanos ainda jovens ou crianças, e ainda,
como no caso da linha de amaciante Fofo, da empresa Unilever, que tem como estereotipia
um urso de pelúcia, sorridente e compassivo.
187

Figura 7: Exemplo do ―mascote‖ do amaciante


de roupa associado à limpeza de forma
romantizada.

Para finalizarmos a romantização veiculada pela mídia dos animais não humanos em
suas propagandas, é a estereotipia dos alimentos de origem animal. Leites e derivados,
carnes bovinas, suínas, aviárias, em sua maioria, quando mostram, os animais encontram-
se sempre numa condição alegre, livre, sem sofrimento aparente e muitas das vezes,
também como no caso dos animais para crianças, com expressões humanizadas. Os porcos
sorriem nas vitrines dos açougues especializados na venda de carne de porco e embutidos,
mostrando muito bem que o seu papel, a sua vocação íntima, a sua ―natureza‖ instintiva e
sagrada, é virar presunto. Um excelente exemplo dessa romantização é o mascote da
empresa Sadia (que atualmente se fundiu, por meio de troca de ações, com sua antiga
concorrente Perdigão, formando a Brasil Foods), que desde sua primeira aparição até os
dias de hoje, ―o franguinho‖ de óculos de motoqueiro e sempre dançante busca demonstrar
para os consumidores com sua ―simpatia‖ as novidades da Sadia nos anúncios e comerciais
de televisão em que aparece – cabe lembrar também com um sutil toque de nacionalismo
―verde-amarelo‖ que um bom-consumidor-cidadão-de-bem foi induzido a gostar.
188

Figura 8: O ―mascote‖ humanizado da


empresa Sadia, hoje Brasil Foods.

O intuito claro é a venda do produto, mas também para nós, fica muito clara a
romantização e a construção de um estereótipo especista na nossa alimentação. Desse
modo terminamos aqui o processo de estereotipagem especista, através da análise crítica
sobre a romantização veiculada pela mídia como senso-comum deste estereótipo.
Partiremos para outro, não menos importante e não menos duradouro na existência
humana: o sexismo, em que além de demonstrar a dominação do homem enquanto gênero
e padrão genérico para a existência humana em geral, romantiza todas as relações em
função do estereótipo naturalizado da condição feminina: submissa, frágil, zelosa, ―pura‖ e
fruto do ―pecado‖ (como objeto sexual masculino). Assim como vimos com o processo de
estereotipagem especista, não é uma abordagem redundante àquela já feita outrora, mas a
demonstração cotidiana da discriminação reproduzida (estereotipia) e formação de um tipo-
fixo corpóreo (estereótipo) baseado no gênero ou ―sexo‖ (o que é masculino e o que é
feminino, como modos de ser distintos) privilegiando os integrantes masculinos da espécie
humana, enaltecendo sempre comportamentos e caracteres que se consideram como
masculinos (de forma explícita, com conflito e repressão direta – ou implícita – de modo
romantizado). Com o intuito de sintetizar o que na cotidianidade encontramos como
estereótipo-estereotipia sexista veremos alguns aspectos que se complementam. Não
adentraremos no conflito explícito, do qual parte já fora tratada anteriormente, mas sim de
forma pontual na romantização sexista, onde o processo de estereotipagem é mais atuante
para conformar e reproduzir idéias e padrões espaço-corporais acerca deste fenômeno.
Se fosse solicitado para homens e mulheres denominarem dois adjetivos ao seu
sexo oposto, provavelmente alguma resposta ou mesmo a maioria delas incluiria palavras
189

como: para as mulheres, sensíveis, carinhosas, amorosas, meigas, compassivas; para os


homens, fortes, protetores, agressivos, inteligentes, ativos. Percebe-se o estereótipo de que
a mulher, sendo uma ―donzela‖ sensível, fraca e submissa precise de um homem que a
proteja, que a sustente e lhe pertença. A mulher, ou o modo de ser feminino, vai sendo
veiculado pelo senso-comum através deste processo de estereotipagem sexista-machista,
através do qual o espaço-corpo de cada ente vai sendo rotineiramente modelado segundo o
esperado para cada qual. O homem vai se cimentando existencialmente como o senhor,
―chefe‖ da casa, disposto a cuidar (dominar) da família e de sustentá-la segundo seus
interesses calcados na moral estabelecida. Até hoje os fenômenos são perceptíveis, embora
mais velados e até mais discutidos. A estereotipia das próprias mulheres ao desacreditar
que pudessem ser diferente do que reza o estereótipo sexista acaba por ser o maior motivo
da permanência deste processo – reafirmando o androcentrismo como forma de
estranhamento.
Ainda existem também fatores existenciais como a diferença salarial entre homem e
mulher diante do mesmo trabalho, da falta de participação feminina na política
governamental, que acaba reforçando e justificando a estereotipia do ―perigo constante da
mulher ao volante‖, do homem que ―não serve para a cozinha‖. Mesmo em pequenos
comentários, piadas e pensamentos cotidianos realizados pelos dois sexos, o processo de
estereotipagem ―machista‖ acaba por se perpetuar em nossos corpos e em nossa
consciência. Vejamos alguns comentários de senso-comum altamente ―inofensivos‖, mas,
que dão cabo de naturalizar o processo: ―com uma mulher presidente do Brasil, ou o país
melhora ou piora. Estacionar é que não vai‖; ―o melhor movimento feminino ainda é o dos
quadris‖; ―toda mulher precisa de terapia. Ter-a-pia cheia de louças pra lavar!‖; ―se mulher
não falasse, seria melhor que lasanha‖; ―nem todas mulheres se realizam no fogão. Muitas
só encontram a felicidade no tanque‖; ―o espelho reflete sem falar e a mulher fala sem
refletir‖; ―mulher é como vinho: tem que manter na horizontal, no escuro e com rolha na
boca‖; ―a intuição feminina é resultado de milhões de anos sem pensar‖; ―se sua mulher
pedir mais liberdade, compre uma corda mais comprida‖; ―o mundo é a casa do homem e a
casa, é o mundo da mulher‖; ―a mulher tem o pé pequeno para ficar mais perto do fogão‖;
―como Deus criou o Homem a sua imagem e semelhança, as mulheres servido ao homem
estão servindo à Deus‖; ―se a mulher fosse boa, Deus teria uma‖; ―Deus criou o homem
antes da mulher para não ouvir palpite‖94.
Nessa prática de mesclar o estereótipo com sátira de ―ares‖ com presunção de
inocência, vamos construindo o estereótipo do feminino como atrelado ao privado
(propriedade do marido que calada cuida da casa, dos filhos, ―esquenta a barriga no fogão e

94
. Frases retiradas dos sítios eletrônicos: coisasdehomem.com/frases-engracadas/frases-machistas; e:
www.aspiadas.com/piadas-curtas/machistas.html.
190

esfria no tanque‖), ilógico, mas afetivo, e principalmente, de uma mulher submissa às


vontades e domínios do ente humano masculino, que é ―imagem e semelhança de Deus‖.
Podemos verificar, além da estereotipia que ironiza o estereótipo, um amalgamento dos
ideais impostos pelo judaico-cristianismo paternalista, não recorrendo ao livro Gênesis da
Bíblia (atrelado sua redação a Moisés), mas sim ao Novo Testamento através das
chamadas Epístolas paulinas, que emendarão a criação (naturalização) do homem superior
à mulher com os desígnios morais de conduta da mulher para com os homens, seus
senhores, maridos e possuidores. Vemos isto, por exemplo, no livro escrito por Paulo
(originalmente Saulo) de Tarso a Timóteo, mais precisamente a primeira epístola, no qual se
encarrega de passar para Timóteo o comportamento e os deveres do ministro cristão, e a
sua relação com a Igreja, o lar e o mundo, onde temos a seguinte ―pérola‖: ―a mulher
aprenda em silêncio com toda a submissão. Pois, não permito que a mulher ensine, nem
tenha domínio sobre o homem, mas que esteja em silêncio. E Adão não foi enganado, mas
a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão‖ (1 Timóteo 2:9-15).
Com grande influência no cristianismo, enquanto um dos pilares da moral ocidental,
nosso comportamento vai sendo moldado por uma postura de culpa, pecado, cheia de
padrões rígidos, negando principalmente o corpo-si-mesmo em prol de um mundo pós-
morte. O que iremos construindo com esse estereótipo do feminino, sempre reforçando e
classificando como imutável através das Instituições morais, é de que a mulher constitui-se
inatamente como ente doméstico (privado) e também como objeto sexual. Através desta
estereotipia, veiculada principalmente pela mídia95, tem favorecido para a reprodução de
uma subjetividade alienada em relação ao estranhamento da existência humana. Esses
antigos modelos fixos, que favorecem a repressão do sexo feminino e que continua presente
na atualidade, também são atrelados à ideia da força corporal masculina em contraposição
a forma como foi interpretada a ―fragilidade‖ corporal feminina e sua condição de
reprodutora da espécie humana. Vemos na estereotipagem então o que relatamos alhures
sobre essa força desprendida para dominar o feminino, que é na verdade a busca de
domesticação da natureza interna e de sua porção que gera, pelos seus ventres, a
continuidade da vida. É o mesmo que observamos no processo de estereotipagem
especista, que ―assim como a natureza exterior, as mulheres são objetos que a humanidade
tenta dominar e oprimir, arruinar e tornar românticos; elas são objetos de conquista e
penetração, da mesma forma como idolatria e culto. A linguagem é exata. As mulheres são
postas em pedestais somente quando sua dominação social está garantida‖ (SMITH, 1988,

95
. As Instituições que se condensaram na e através da mídia irão perpetuar o processo de estereotipagem
sexista. Na Filosofia, a mulher não participava das discussões lógicas; na Religião, como vimos no caso judaico-
cristão, a mulher é inatamente submissa aos desígnios do homem e de Deus; na Ciência, repetindo todo o
arcabouço sexista de outrora, as mulheres ficam por séculos longe do discurso, quando não são
biofisiológicamente buscadas comprovações que concretizem o ideal machista; e a Mídia veiculando o processo
de forma condensada das outras instituições, e ainda com outros adendos que se respaldam na imparcialidade.
191

p. 43). E assim seguimos aprisionando de forma incisiva por séculos as mulheres que
tratamos como nossas (mães, irmãs, filhas), que estereotipamos seu ilogismo, sua
inabilidade em dirigir, sua condição primeva de pecadora e, em contrapartida lhes
atribuímos outros valores: lides do lar ou marginalizadas ao âmbito do privado, objetos e/ou
mercadorias a serem usadas pela virilidade do ―macho-alfa‖ (lembre-se que a mulher do
outro, filha, mãe, irmã, sempre do outro que delas tome conta contra a impetuosidade
penetrante do ―macho‖), expostas à própria sorte e vistas como ―lixo humano‖ pelo próprio
homem que a ―consumiu‖96; e, também romantizadas, como vimos no especismo e através
das palavras de Smith, onde as mulheres são vistas como puras, frágeis, meigas, que não
gostam de sexo, não ouvem ―palavrões‖, vivem em um ―mundo cor de rosa‖ e, que segundo
Rodrigues (1986), na gramática dos sexos uns exibem orgulho de seu órgão sexual e
também podem ceder o lugar no ônibus – outros escondem ―suas vergonhas‖ e se
acostumam com um cavalheirismo que mascara o machismo com(o) marianismo.

Figura 9: Placas de banheiro. Até nestes símbolos o


estereótipo é perpetuado na postura corporal dos bonecos.

Coisas sutis que passam despercebidas aos nossos sentidos demonstram ao


espectador mais crítico que o estereótipo está sendo veiculado, até numa placa de banheiro
já rotineiramente naturalizada pelo senso-comum. A identificação das cores não é o mais
evidente, mas sim a corporeidade estereotipada dos bonecos: no que representa o homem,
sem cabelos e com as pernas abertas (talvez demonstrando portar um ―falo‖ que o orgulhe!);
na mulher, cabelos maiores e as pernas fechadas, além das saias, demonstrando o pudor
esperado pelas mulheres puras, assexuadas e frágeis. Esta estereotipia que representa a
mulher de forma romântica e pura é o que já vimos como a ―outra face do machismo‖. Nessa

96
. Vale lembrar que, segundo Marx (2006, p. 139, nota do editor, possui número 2 no original), ―a prostituição é
somente uma expressão específica da universal prostituição do trabalhador, e uma vez que a prostituição
constitui uma relação que acolhe tanto aquele que é prostituído como aquele que prostitui – cuja mesquinhez é
ainda maior –, também o capitalista entra nessa categoria‖. Tratando de modo geral, o ato de prostituição é uma
prostituição da existência humana em geral, homens ou mulheres, agentes ou coagidos, no qual a busca é
sempre de exteriorizar a vida humana.
192

postura será atribuído ao comportamento feminino esperado e desejado as qualificações de


Maria, de mãe, acolhedora e que vive e sofre pela família, obediente ao seu papel na
mesma, sendo recatada quanto ao seu prazer e suas expressões corporais de sexualidade,
enfim, uma dicotomia entre a mulher fonte do pecado e a mãe fonte de ternura.
Na estereotipia concebida com auxilio religioso, em decorrências de transformações
na existência humana, o estereótipo atribuído à mulher recebeu essa agregação, de ―Eva‖
representada por inúmeras mulheres consideradas como bruxas e diabólicas com ―Maria‖
modelo de mulher cultuado com afinco pela Igreja Católica. A esta estereotipia da mulher
como rainha do lar, maternal, doce, será agregada a concepção de família, propagada pela
burguesia moderna com o advento da existência humana capitalisticamente industrial, onde
a propriedade privada tomará os moldes da família nuclear que está sendo modelada (pai,
mãe e filhos – cada vez menos filhos). Esse novo incremento romantizado ao processo de
estereotipagem sexista irá construir os seguintes estereótipos no que seria não somente o
lugar, mas os lugares pré-determinados da mulher ou do comportamento feminino para cada
ente singular (mesmo que seja homem, mas que não aja com características femininas). Os
estereótipos são do sentimentalismo, ou pseudo-sentimento, sexo frágil e passividade na
relação. Junto ao condensamento religioso: Eva-Maria, e da metamorfose industrial-
burguesa-capitalista da família como nuclear tivemos o advento da mídia, que influenciará
muito os mais novos (crianças) a se portarem como ―meninas‖ e/ou ―meninos‖, através de
desenhos, filmes, brinquedos, cores de roupas, formas de brincadeiras, etc.
Quanto ao sentimentalismo, podemos perceber uma carga muito grande de
emocionalidade veiculada ao feminino. As telenovelas, o atrelamento do gosto feminino aos
romances idealizados, desde a infância com estórias de ―príncipes encantados‖ vai
cimentando essa estereotipia rearranjada (já que não vamos mudar nada melhor do que
reformar o que aí está: o que resta é a romantização). Junto a este sentimentalismo temos o
estereótipo da mulher enquanto sexo frágil, que não pode carregar peso, que não deve ficar
em pé no ônibus; é o mito da força masculina. Essa é a forma de educação ou
adestramento que as crianças vão recebendo, no qual ―o menino se sente admirado se for
forte, isto é, se estiver pronto a impor em qualquer momento sua vontade a meninos de
punhos menos rápidos e menos eficientes‖ (CANTONI, 1968, p. 262). Vamos construindo
um culto idolátrico da força e predisposição atlética do homem para determinadas atividades
(em esportes isso é senso-comum: mulheres não sabem jogar bola, é visto como algo
inato). Em contrapartida nos habituamos com o estereótipo da mulher débil, como que
amante da atitude de ―força‖ do macho (aquele que é melhor atleta, que é mais alto, mais
musculoso, que a protegerá mais, daquele que carrega as sacolas pesadas e até no singelo
gesto de ceder seu lugar a uma ―pessoa‖ – mulher – mais fraca). E quase que
instintivamente vamos moldando o espaço-corpo das crianças a serem assim,
193

estereotipados, em uma corporeidade que não é sua. Desde a infância ao iniciar sua fala, as
primeiras palavras que aprendemos são mamãe e papai, compreendendo que uma
denomina o masculino e outra o feminino. A partir desta compreensão, a criança identificará
sumariamente as formas fixas já engessadas na existência humana, para meninas e para
meninos. Com a criação-adestramento dos filhos vão se reafirmando as distinções: com um
filho homem, acontecerão brincadeiras como ―meu filho é macho, tem um pintão‖ ou ―vai
pegar todas quando for mais velho‖; coisas inconcebíveis para meninas como exaltação do
órgão sexual e muita sexualidade e troca de parceiros. Outra característica que romantiza o
feminino é através dos termos de chamamento: para meninos garotão, lindão, fofão; para
meninas: bebezinhas, pequeninas, fofinhas. O que parece somente forma terna de
chamamento irá demonstrar que meninos são maiores (aumentativo) e mais fortes que as
meninas, que por sua vez são menores (diminutivo) e frágeis, devendo ser zelosamente
guardadas no âmbito privado. Quanto às brincadeiras, também separamos rotineiramente
com frases tipo: ―menino, deixa essa boneca‖, ou ―menina não joga futebol‖. É possível notar
a diferença, até mesmo ao indivíduo mais distraído de sua postura crítica, das brincadeiras.
Enquanto os meninos se interessam por carros, aviões e armas, as meninas brincam de
atividades voltadas à vida no interior do lar e o sustento do âmbito privado (familiar) como
lavar, passar, cozinhar, deixando claro que quando adultas deveriam desenvolver este
papel. O brincar com bonecas está ligado à maternidade, como se fosse estipulado que
somente as mulheres possuem o ―dom‖ de cuidar de um recém nascido, mesmo que os
meninos venham a tornar-se pais destes bebês, o ato de zelar pela segurança e
desenvolvimento da criança será ligado à mãe.
194

Figura 10: Brinquedo para meninos que polariza as tarefas,


enquanto os homens brincam (pai e filho) as mulheres (mãe
e filha) cuidam do lar e os observam felizes.

Podemos ver uma grande influência da mídia, através da propaganda e da produção


imagética, através dos brinquedos e principalmente da moda infantil contida na roupa e
adornos. Às meninas serão proporcionadas vestes de tons claros, na maioria das vezes as
figuras vêm com a cor rosa predominante para a menina. Os cabelos das meninas deverão
receber adornos e enfeites, presos com laços ou tiras; recebem brincos, pulseiras e sapatos
com laços. Nas relações de associá-las aos objetos, surgem a boneca, a flor e o bicho de
pelúcia. A estereotipia é objetificada tanto no brinquedo quanto na criança-menina-futura-
mulher já em processo de estereotipagem. Curiosamente a relação entre as cores azul e
rosa que está associada aos heróis, no caso do azul (homem-aranha, super-homem), e às
bonecas (principalmente a Barbie) e princesas o rosa. Assim, desde os primeiros anos de
vida da criança ocorre também uma diferenciação no tocante à decoração dos quartos de
meninos e meninas. O quarto dos meninos geralmente é decorado com maior simplicidade,
preferencialmente em tons de azul ou cores vivas e o quarto das meninas, normalmente
muito adornado, em tons pastéis ou cor-de-rosa.
Quanto às distinções atribuídas às cores referentes a meninos e meninas, ao que vai
ser tratado durante a vida adulta dos entes humanos como ―cor de mulher‖ e ―cor de
homem‖, podemos ir ao encontro da análise da psicologia das cores97. O azul associado
com o estereótipo desejável pelo gênero masculino, que se associa com a parte mais
intelectual da mente. O azul claro e o azul-celeste nos fazem sentir calmos e protegidos de
97
. Para alguns detalhes a mais consultar: www.euroresidentes.com/portugues/cores-do-zodiaco/significado-
cores-zodiaco.htm; e: neuronioprostituto.blogspot.com/2008/07/psicologia-das-cores-n.html.
195

todo o alvoroço das atividades do dia, ajuda a controlar a mente, a ter clareza de ideias e a
ser criativo. Quanto aos caracteres associados ao uso da cor azul, e não da cor em si,
estão: inteligência, comunicação, confiança, eficiência, serenidade, dever, lógica, reflexão,
calma, ausência de emoções, ausência de simpatia. Já o rosa é associado com estereótipo
desejável pelo gênero feminino que pode ser associado com comportamentos
emocionalmente descontraídos, que influi nos sentimentos convertendo-os em amáveis,
suaves e profundos. O uso desta cor faz-nos sentir carinho, amor e proteção. Também nos
afasta da solidão e nos converte em pessoas sensíveis. O rosa estria relacionado ao amor
altruísta (passividade, emoção, sentimento condicionado) e verdadeiro. Segundo este
mesmo ponto de vista as palavras chaves da cor rosa são: inocência, amor, entrega total,
ajudar ao próximo. Assim como a cor azul, a cor rosa possui caracteres associados ao seu
uso como: alimento, calor, feminilidade, amor, sensualidade, sobrevivência da espécie,
inibição, claustrofobia emocional, fraqueza física, desmasculinização (castração).

Figura 11: A distinção entre os brinquedos, estilos e cores


dicotomizando meninos e meninas.

Terminamos aqui o processo de estereotipagem do sexismo, através do qual é


criado o estereótipo que é sintetizado pela romantização feminina, como vimos na cor rosa.
Os sentimentos de compassividade, carinho e proteção atrelados à mãe-mulher que se está
construindo; a ajuda ao próximo em uma entrega total é a postura da mulher em relação ao
homem, como nos preceitos bíblicos que naturalizam a dominação de um sexo por outro. A
cotidianidade e a corporeidade para o ―mundo privado‖ das mulheres se mostra cruel pelo
seu adestramento a ser um ―resto da criação divina‖, um ente secundário que existe para o
luxo do ―macho-senhor‖. O rosa como cor feminina estereotipada (estipulada desde a ―tenra-
infância‖), é a cor do amor; contudo, o amor é subjugar-se, é ser-passivo; não é por menos
que a mulher representa o passivo da relação. O que temos desde as agressões até o
contemporâneo ingressar da mulher no mundo do homem, nada mais são do que espelhos
196

da dominação androcêntrica da vida. E quando falamos em rever a posição da mulher neste


mundo não é dar a cada ente singular feminino sua capacidade de escolha, mas de seguir
um modelo fixo, nem que seja um protótipo masculino tal qual ―o resto da costela‖
disseminado pela instituição religiosa. Nossa abordagem do processo de estereotipagem
abarcará agora outro fenômeno que é tanto cruel quanto às outras: o racismo, que fruto do
etnocentrismo nos torna cada vez mais avesso à alteridade. Vejamos então como se
relaciona estereotipia-estereótipo na conformação deste processo de estereotipagem que
assola os não-brancos dominados e subjugados.
Este processo de estereotipagem, o racismo, como já dissemos anteriormente, é
fruto da nossa convivência doentia com a alteridade – novamente a problemática do outro.
Nesta estereotipagem avaliamos o outro ente singular através de um único ponto de vista
que não necessariamente é um ódio pelo outro, no qual através da perda de culpa ao
dissermos que gostamos do outro deixaríamos de ser etnocêntricos. O etnocentrismo é uma
estereotipia que cria uma visão (ou ponto de vista) invertida do outro através de seus
próprios preceitos morais, as subjetividades alienadas que se perpassam a uma
corporeidade também alienada (o estereótipo), do outro. Como que num espelho em que
vemos somente o reflexo invertido da corporeidade de corpos presente.

Figura 12: O olhar etnocêntrico do ―outro‖ como um reflexo invertido


através da subjetividade alienada que criará o estereótipo.

Como vimos alhures, na citação de Lévi-Strauss, esta é uma atitude que repousa,
sem dúvida sobre fundamentos subjetivos sólidos, tendendo a reaparecer em cada ente
humano quando colocado numa situação rotineira de confronto, direto ou indireto, com o
outro. E dessa forma não são somente os fundamentos subjetivos alienados que aparecem
como sólidos, o estereótipo construído para que possamos reagir de frente ao outro também
197

são formas consolidadas, corporeidades alienadas porque fixadas de acordo com pontos de
vista intencionalmente invertidos. Este processo de estereotipagem que se encontra em
caráter quase universal irá criar uma heterofobia (fobia da diferença), com inúmeras formas
e/ou estratégias geradoras de diversas formas de preconceito, por exemplo, o racismo.
Segundo J. C. Carvalho (1997, p. 182), referenciado em Taguieff, são elas: a antropofagia
dialógica (forma de englobar o outro pelo discurso persuasivo, sendo uma estereotipia bem
utilizada pela mídia); antropofagia digestiva (racização repressiva da assimilação dos outros
a si mesmo); antroponemia genocida (racização terrorista da destruição dos outros); e
antroponemia da tolerância (racização específica do desenvolvimento ―em separado‖: em
aparência, respeita-se tanto o outro, tolerando-o, o que na realidade, acaba-se por isolá-lo,
não se dando aos trabalhos dos enfrentamentos de diferenças). Podemos com estes
exemplos perceber que o etnocentrismo enquanto ação que cria estereótipos e
consequentemente discrimina o outro por conceitos pré-estabelecidos será uma
(re)produção (produção do estereótipo em constante reprodução da estereotipia) do outro;
uma prova de que o outro que tanto nos incomoda está dentro de nossos próprios
preconceitos98 e estereótipos: nos incomodamos na verdade com nós mesmos. Assim
vamos efetuando nossas discriminações, segregando pela distinção do outro, de forma
naturalizada, no qual é algo da natureza humana discriminar ou de que não somos
obrigados a gostar da presença do outro. E nessa negação e exclusão do outro, ou
simplesmente aceitação pelo discurso (não pela prática) que vamos convivendo e
desempenhando o racismo enquanto processo de estereotipagem naturalizado na
cotidianidade.
Segundo Pierucci (1999, p. 26), o racismo não pode ser somente delimitado como a
recusa do outro, da diferença, como uma heterofobia, isso acarretaria em ―meias verdades‖
úteis para um discurso intelectualizado. O processo de estereotipagem racista cria uma
representação de mundo (da corporeidade inclusive) sob a ótica da diferença, pondo-a em
foco como que uma ―obsessão pela diferença, seja ela contestável, ou apenas suposta,
imaginada, atribuída‖. Nessa incessante busca por criar diferenças que podemos com
auxílio de Pierucci (ibid., p. 27) envolver o racismo segundo duas formas: a rejeição da
diferença e a afirmação enfática da diferença, sendo que primeiramente afirmamos a
diferença para depois rejeitá-la e, consequentemente fazer esta diferença funcionar através
do processo de estereotipagem, centrando o argumento sobre a certeza das diferenças, que
serão anunciadas como inevitáveis.

98
. Segundo Hannah Arendt (2002, p. 28-30), os preconceitos são compartilhados em nosso ser-com, que se
demonstram naturais para nós, no qual em uma conversa podemos utilizá-los sem explicações ou detalhes (para
maior entendimento via estereótipo), com um papel extraordinário no cotidiano, não sendo assim, somente,
idiossincrasias pessoais. Em nossa existência humana, nenhum estado de coisas do que dizemos ser a
―sociedade‖ deixa de se basear em preconceitos. Desta forma, alguns entes singulares são permitidos em
detrimento da exclusão de outros, via do estereótipo formado.
198

Como já dissemos, o racismo terá o processo de estereotipagem que afirma a


superioridade racial de um grupo sobre outros, se auto-justificando pela existência de raças
através da generalização de cores e fenótipos (manifestação visível ou detectável de um
genótipo) estanques dos entes humanos. Segundo Joel Rufino dos Santos (1984) fora no
limiar da era moderna, aproximadamente após o século XV, que os europeus-brancos
começaram a ter insônia. Com o colonialismo ou ―senhorio‖ dos continentes: Ásia, África e
Américas, começaram a criar o padrão de estereotipagem que fora amalgamado no senso-
comum até os dias de hoje para justificar a antroponemia e antropofagia já em curso. Nesse
momento ocorrera tanto a antroponemia genocida (racização terrorista da destruição dos
outros), quanto a antropofagia digestiva (racização repressiva da assimilação dos outros a si
mesmo), além da posterior ideia de raça (força discursiva-lógica para perpetuar nos fatos
existenciais o estereótipo racista) que, segundo Quijano (2005, p. 227) é ―uma construção
mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então
permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade
específica, o eurocentrismo‖. A raça será uma categoria lógica do discurso científico da
modernidade, não tendo ―história conhecida antes da América‖ (ibid., p. 228) e do
―achamento‖ deste outro que não era corporalmente ―igual‖ ao branco-europeu – a insônia
passaria a ser não mais dos brancos, mas dos não-brancos estuprados, torturados e
calados pelos ―povos com alma fruto do dom divino‖.
Nas palavras de Quijano (ibid., p. 232), ―no percurso da expansão mundial da
dominação colonial por parte da mesma raça dominante – os brancos (ou do século XVIII
em diante, os europeus) – foi imposto o mesmo critério de classificação social a toda
população mundial em escala global‖, sendo desde então reproduzidos os estereótipos de
brancos, índios, negros e mestiços, junto aos já elaborados amarelos e azeitonados ―povos
do oriente‖. Estava dada a partida para a conformação da distinção básica entre o
estereótipo de brancos e não-brancos. Com esta colonialidade e eurocentramento99 da
condição material de existência e da sua subsequente visão de mundo, os europeus
passaram a se autoproclamar e sentir-se superiores a todos os demais grupos de entes
humanos do mundo, e mais, além disso, como naturalmente superiores. Seria justificado
nesse preconceito de que os povos já colonizados são ―raças inferiores‖, logo, anteriores
naturalmente (de forma evolucionista) aos europeus, que se vêem como culminância
natural-humana do processo civilizatório: seriam os mais novos e mais civilizados (ou

99
. Nas palavras de Quijano (2005, pp. 246-247): ―Eurocentrismo é, aqui, o nome de uma perspectiva de
conhecimento cuja elaboração sistemática começou na Europa Ocidental antes de mediados do século XVII,
ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes
se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa‖.
199

―avançados‖). Assim será construída a estereotipia da hierarquia das raças100, segundo a


definição de racismo para Foucault (1999), que abarca o contínuo biológico da espécie
humana, a dita hierarquia das ―raças‖ e suas distinções com juízo de valor: boas ou
inferiores. Uma fragmentação biológica imposta pelo poder eurocêntrico. Permitindo o
mesmo a tratar tal população como ―uma mistura de raças‖ (por exemplo, o fenômeno
brasileiro). O processo de estereotipagem do racismo terá duas funções: fragmentar e fazer
censuras biológicas; e a relação guerreira, da disputa entre raças, no qual você querendo
viver é preciso que o outro morra.
Nessa relação guerreira de racização terrorista da destruição dos outros, tivemos no
mundo europeu-branco-colonizador casos como a Ku Klux Klan nos Estados Unidos, o
nazismo alemão e o apartheid na África do Sul. Estes três casos extremaram a dita
―supremacia branca‖ que fora implementada em discurso no século XIX e posta em prática
de modo radical a todos aqueles não-brancos enquadrados no estereótipo branco exigido. O
caso do apartheid sul-africano pode nos servir de exemplo das leis impostas que
segregavam brancos e negros no país, como: sempre que julgar oportuno, o presidente do
Estado pode declarar uma área propriedade do grupo branco, mesmo que até então ela
tenha sido ocupada por não-brancos; um africano que dirija uma classe de leitura e escrita
em sua própria casa, mesmo gratuita, pode ser multado e preso durante seis meses;
qualquer africano maior de 16 anos é obrigado a carregar um ―livro de referência‖. Se for
pego sem ele, será punido com multa e prisão de um mês. Estas e muitas outras formas de
discriminação drásticas (se é que existe alguma que não seja) é o caso externo ao nosso
cotidiano. Porém, vejamos os casos mais comuns na realidade do Brasil, que em seu senso-
comum criou envolto na estereotipia a noção de que somos um ―país de democracia racial‖.
Em nossa cotidianidade ―introjeta-se o estereótipo que existe sobre ele em nossa
sociedade de, além de destituir-se de valor e cultura negra, que passa a ser olhada como
algo exótico-pitoresco e como uma forma marginal de existência‖ (LOPES, 1987, pp. 7-8). E
é assim que ―nosso preconceito racial, zelosamente guardado, vem à tona, quase sempre,
num momento de competição‖ (SANTOS, J., 1984, p. 41) eficientemente reforçado por uma
estereotipia de que ―aqui não existe racismo‖. Vamos convivendo, digerindo e tolerando os
―milhões de não-brancos que sofrem discriminações todo dia – quando procuram emprego,
moradia, parceiro amoroso, clube social, médico, etc.‖ (ibid., p. 44). Na cotidianidade
brasileira vamos reproduzindo estereotipias com modalidade própria, no qual segundo J. R.
dos Santos (ibid., p. 41) ―em nosso país os brancos sempre esperam que as minorias raciais
cumpram corretamente os papéis que lhes passaram – no caso do negro, os mais comuns

100
. No século XIX (1855) houve uma tentativa cientifica para explicar a superioridade racial através da obra do
conde Arthur Gobineau, intitulada Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Nesta obra é sustentado
que através da raça ariana nasceu a aristocracia que dominou a civilização europeia e cujos descendentes eram
os senhores naturais das outras raças inferiores.
200

são artistas e jogador de futebol. Se fracassam, lhes jogam na cara a suposta razão do
fracasso a cor da pele‖.

Figura 12: Exemplo do apartheid na África do Sul, distinções concretas no


cotidiano entre brancos e negros.

É interessante analisarmos que essa estereotipia de que não-brancos devem cumprir


as funções esperadas, demarcadas historicamente, não é uma postura somente, ou
exclusiva, do caso brasileiro. Na cotidianidade mundial, principalmente com a
institucionalização da mídia em especial no século XX, com sua massificação, os negros,
mais precisamente, sempre são cobrados por sua conduta ou comportamento muito mais do
que a supremacia branca. Mesmo no futebol (considerado esporte ―popular‖) este caso
ainda existe, com inúmeros fatos de racismo, no qual o negro é visto como ―menos
inteligente‖ e ―possuidor de força física‖ e por isso mais agressivo, violento. Em esportes
―elitizados‖, onde o ente humano branco é maioria incontestável, como no mundial de
Fórmula 1, em que o primeiro piloto negro, Lewis Hamilton, sofrera com as acusações de
sua pilotagem arrojada, pouco cautelosa e inexperiente, caso pouco visto no comentário
auferido a atletas brancos, vistos como jovens prodígios e futuras promessas. O fato mais
evidente nesse fenômeno pertinente ao piloto inglês foi uma manifestação de espectadores
espanhóis no circuito da Espanha, que como torcedores do também espanhol Fernando
Alonso, à época companheiro-rival de equipe de Hamilton, se ―fantasiaram‖ de negros com
dizeres de ―família de Hamilton‖. Tal caso, em relação com o Brasil e a mídia, é um grande
exemplo de como o processo de estereotipagem racista é intimamente ligado ao
eurocentrismo colonialista (no caso brasileiro de colonialismo ibérico, tendo os mesmos
princípios básicos da discriminação explícita dos espanhóis) que se perpetua com uma
201

moral europeia veiculada por um senso-comum engessado agora pelo neocolonialismo que
nos venda cotidianamente.

Figura 13: Amostra do estereótipo atribuído aos negros, no caso o piloto de Fórmula
1, Lewis Hamilton, para que cumpram seus ―papeis‖ esperados e pré-estabelecidos,
caso não cumpram é ―jogado-lhes na cara‖ a generalização da pele negra.

A instituição da mídia irá dizer-nos todos os dias que quem são os mais belos
esteticamente e bons eticamente são os brancos. Vemos estereótipos de propaganda que
reproduzem a concepção do ―cabelo ruim‖. Então, o negro, o neguinho, o negão, o pardo, o
mulato, o moreninho, o jambo, o café-com-leite, o sarará, o nego-aço, o crioulo, o preto, o
"você não é negro, é moreninho", esses se não tiverem o ―famoso‖ cabelo liso, ou devem
fazer alisamento japonês, a escova progressiva, a chapinha, o relaxante ou então devem
passar a "maquina zero"; para se conformarem na co-existência cotidiana. Continuamos a
classificar ―as pessoas quanto à sua ‗aparência‘, habilitando-as ou não a determinados
empregos, e nos surpreendemos quando uma pessoa ‗bem apresentada‘ é identificada
como transgressora das normas sociais e considerada criminosa‖ (RODRIGUES, 1986, p.
46). Sempre que vamos ao restaurante a maioria dos garçons é da cor branca, o oposto de
que encontramos quando o caso é de ―seguranças‖, a maioria não-brancos. Isto nos remete
ao que novelas e filmes sempre relatam: negros são sempre ―maus e feios‖, aquilo que
aprendemos a temer desde a infância; rotulamos o que é eticamente errado de ―feio‖ e que
repete estes atos de mau, logo o negro é segurança por ser mau e feio, por isso podem
cumprir o ―serviço sujo‖ de agredir, matar e gritar. O oposto ocorre com a imposição de outro
discurso desde a infância: ―você está preto de sujeira‖ (SANTOS, J., 1984, p. 20), no qual a
criança irá crescendo com a concepção de que quem é preto será igualmente sujo (já sendo
também mau e feio) por isso não podendo ser os garçons dos restaurantes, principalmente
202

o das elites, que vão preferir serem atendidos por entes humanos brancos e
estereotipadamente limpos, já que ao lidar com comida exige-se uma política asséptica.

Figura 14: O estereótipo do ―cabelo ruim‖ dos


negros. É perceptível no antes a feição
inexpressiva e no depois, com o cabelo ―alisado‖
a expressão de contentamento.

Na mídia encontramos diariamente uma cota para brancos, até o herói clássico
africano é branco, o Tarzan. Esta cota encontramos, para reforçarmos a política asséptica
de nossa existência, também nos produtos destinados aos bebês, principalmente os
referentes à higiene. Nas propagandas televisivas, de ―outdoors‖ e revistas, os bebês
brancos são maioria esmagadora, aqueles não-brancos entram na maioria das vezes por
uma postura hipócrita cotista, no qual qualquer espectador criticamente mais atento percebe
a inclusão de um ente humano negro compondo a cena – geralmente com aspectos ou
pitorescos do negro ou branqueado, nas ditas ―feições finas‖ de um ―negro bonito‖. A
Johnson e Johnson, marca que atua na venda de produtos infantis, veicula regularmente em
suas estampas para atrair consumidores, bebês brancos. A expressão massificada ―bebê
johnson‘s‖ para rotular a beleza de uma criança geralmente é atrelada a um bebê branco. É
perceptível no logo da campanha a expressão: ―por um mundo mais bonito‖, por isso mesmo
deve ser um mundo de bebês brancos, para que tenhamos um futuro de entes humanos
todos em via de branqueamento101.

101
. Para maiores informações sobre o concurso ―bebê johnson‘s‖ ver o sítio: <www.bebejohnson.com.br/>. O site
não se encontra acessível constantemente, pois a própria campanha acabou, retornando somente em 2016 de
forma sazonal. Principalmente, pela proposta branqueadora de sua campanha. Era perceptível que os eleitos
para cada mês, como bebê mais bonito, sempre eram brancos, até os elegíveis eram em sua maioria brancos.
Uma breve reportagem mostrando o retorno da campanha de forma ―adaptada‖ às questões atuais,
supostamente contra o racismo. A imagem da reportagem, que mostra essa nova proposta da empresa, veicula
um bebê com sua mãe, agora ambos negros. O sítio da reportagem: <http://oglobo.globo.com/economia/o-bebe-
johnsons-esta-de-volta-agora-em-versao-digital-19831054>.
203

Figura 15: O estereótipo de beleza e higiene veiculado pela propaganda da marca


Johnson e Johnson.

Assim vamos percebendo que pela mídia o padrão ético e estético do mundo vai
sendo conformado via de cada processo de estereotipagem. Um mundo humano, de
homens brancos dominando. E esse mundo será recriado cotidianamente a partir de um
processo constante de estereotipagem do modismo. Neste modismo não estão
enquadrados negros, mas acima de tudo não estão enquadrados também aqueles que
esteticamente estão fora dos padrões de etiqueta. A modelização dos corpos é a
estereotipagem que faltava para nos convencer do que devemos ser, enquanto corpos, e de
como devemos nos comportar enquanto seguidores de etiquetas.
Faremos agora, nesta porção final do capítulo um movimento que consideramos
inverso. Perpassaremos da estereotipagem que assola a corporeidade de corpos à
subjetividade alienada, caminho oposto de que viemos percorrendo desde o segundo
capítulo. E para iniciarmos esse caminho devemos ir ao que para nós é algo banal, rotineiro,
principalmente pela massificação alienada da mídia: a moda. Não se resume somente à
moda o processo de estereotipagem modista, mas a um complexo imbricado entre moda-
etiqueta-estética, no qual a finalidade deste processo de estereotipagem é o juízo ético,
através do padrão estético, não somente uma coerência do que denominou ―belo‖ pura e
simplesmente. Esta será uma moda que modela o corpo e não o corpo que faz a moda.
Devemos ficar magros para caber na roupa e nos transportes públicos. Devemos estar
magros para sermos ―bem vistos‖, estarmos assim ―de bem com nossa aparência‖, que se
confunde com nosso si-mesmo. Deve haver o homem médio, em altura, pesos e medidas
para compor a moda. Encontramo-nos moldados em padrões médios estranhos a nós, que
204

reproduzimos via do senso-comum em nossa cotidianidade. Porém, não aceitamos os


outros. Perdemos o nosso bem-estar corporal em meio a uma moda uniformizante (o que
são as tentativas desde a infância, através da escola, de uniformizar os entes humanos mais
novos, desde o uniforme e o número até as notas e médias bimestrais, ou trimestrais), em
padrões de beleza, que julgam os outros pelo que têm, pelo que veste ou que pode
comprar, pelo cabelo, etc.
Este é um padrão ermeticamente cultivado cada vez mais, afim de abranger uma
média-padrão para os corpos material (o corpo orgânico) e social (o corpo coberto pelas
roupagem), a corporeidade de corpos recriada pela estereotipagem. A ginástica, o exercício
muscular, a exaltação de um ―belo‖ corpo nu, são as expressões deste padrão de corpos
físicos. É o mito do corpo sadio. A tática de que Foucault (1993) chamou de controle-
estimníação. Pregando o seu bem-estar de ser livre em seu corpo para ser saudável, mas
saudável para manter o ente humano nas leis do espaço-corpo, dentro de um corpo de leis.
O corpo social das roupagens também é controlado. Nos dizeres de Elias (1994a, p. 90), ―o
vestuário (...), é em certo sentido o corpo do corpo‖. O visual, deve ser sempre coerente e
com ―bom senso‖, com trajes ultra-padronizados na cotidianidade, com um ―bom
comportamento uniforme‖ (ibid., p. 91). É nesse sentido que podemos dar espaço para a
crítica feita à moda por M. Santos (2007, p. 49), onde, ―a necessidade de mudar nem sempre
aparece como a redescoberta da personalidade forte, mas como obediência a um novo
preconceito, criado pelo mercado para buscar o lugar de um preconceito envelhecido e
desacreditado‖. A moda se manifesta pela sua uniformidade. Cada ente humano se torna
semelhante ao outro pelo cheiro, pela roupa, pelo cabelo. Precisamos ser como todos, ―ir
com a corrente‖. ―Ser ‗um original‘ é ser uma pessoa isolada‖ (ibid.). O julgamento da moda
se faz então impiedoso a todos que se excluem dela, esta é a moda ou a ―modeidade‖ das
críticas de Lefebvre (1991, p. 181). A moda acaba por nos encaminhar para outras formas
hegemônicas de comportamento sobre os corpos, com exemplos diversos em nossa
cotidianidade.
205

Figura 16: A modeidade padronizada dos manequins de vitrine.

E esta acaba por ser a moda, de forma ingênua (ou posta pelo senso-comum como
uma subjetividade alienada) como maneira, gênero, estilo prevalente (de vestuário,
conduta), mas, que se analisados criticamente a expressão conduta, de que a moda são
modos de agir, viver e sentir coletivos, aceitos por determinado grupo humano, podemos
relacionar com o posicionamento de Lefebvre. O filósofo destaca que a moda, ―elimina ao
mesmo tempo o corpo como sujeito físico e o apropriado como sujeito social‖ (LEFEBVRE,
1991, p. 176). Somos assim, estereotipadamente, consumidores da moda como uma
mercadoria fetichizada; qualquer corporeidade será estereotipada para que nos tornemos
consumidores e manequins ambulantes. Somos símbolos dessa cotidianidade consumista,
e, acabamos por não perceber se os manequins de vitrine sempre em promoção são nossos
estereótipos ou nós que somos deles, pois criamos as estereotipias que somente
despersonalizamos (sem rosto, sem diferenças nos rostos, tamanhos e até mesmo sem
cabeças – para nos identificarmos e quem sabe não nos identificarmos enquanto auto-
críticos reflexivos) através dos bonecos sem vida, porque nos demonstram nossa
exteriorização da vida. Deste modo, como falamos que o processo de estereotipagem
modista é uma tríade imbricada, partiremos agora para a passagem justamente (ou
confusão talvez) do juízo ético para o estético e vice-versa. Através do estereótipo
construído pelo padrão estético da moda, atribuímos junto a estes padrões, outros que dão
movimento. Sendo este o juízo ético da etiqueta. Será uma moda de conduta dos corpos em
relação aos outros, dando complementaridade e ao mesmo tempo suporte ao estereótipo da
moda.
Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, etiqueta seria dentre
outras definições, um conjunto de regras de conduta, especialmente as de tratamento,
seguidas em ocasiões geralmente formais, e que revelam, sobretudo, a importância social
das pessoas envolvidas. Contudo, apesar de tratar das hierarquias que convivemos
―distraidamente‖ na cotidianidade, esta definição abarca somente a ponta do iceberg que é a
206

etiqueta. Utilizaremos duas definições de etiqueta para prosseguirmos com nossa análise
crítica. Segundo Ferrari, em seu ―Manual prático de etiqueta‖, que a autora se refere com o
subtítulo como sendo ―um guia para seu cotidiano‖ (demonstrando explicitamente que a
etiqueta compõe o padrão de conduta da cotidianidade), a etiqueta, ou regras, ―existem para
facilitar a vida das pessoas. São formas de comportamento que vão se modificando através
dos séculos para que as pessoas possam conviver de forma mais harmoniosa‖ (FERRARI,
s.d., p. 3). A outra definição é do Instituto Costarricence de Eletricidad, que veicula uma
cartilha sobre ―Etiqueta Social‖, dizendo em nota introdutória:

Los seres humanos necesitamos convivir y compartir muchas de nuestras


experiencias para subsistir en armonía. Una de estas prácticas es la de sentarse en
una mesa a comer, compartir una amistosa conversación, atender una invitación
formal, ponerse un traje según la ocasión o ubicarse en el lugar que nos
corresponde según nuestro puesto.
(...) No se trata de encasillar y etiquetar nuestra convivência social sino de proceder
según un orden lógico que permita hacer más acertada y placentera nuestra relación
com los demás. Esto implica consideración hacia los otros y sensibilidad hacia lo
que significa el ser humano, factores que muchas veces se ven afectados por
nuestra propia naturaleza que en muchas ocasiones tiende a ser irascible, egoísta e
intolerante (INSTITUTO COSTARRICENCE DE ELETRICIDAD, s.d., p. 2).

É interessante observar, em ambos os casos, que a explicação sempre é de tom


benéfico para as relações humanas, sem deixar, explicitamente, demonstrar que se trata de
padrões impostos de forma assimétrica na existência humana. A incorporação de nossas
estereotipias no padrão de conduta é considerada como harmoniosa, prática e infalível para
qualquer ser-com-os-outros. A naturalização da domesticação e da hierarquia soam claros,
além do apelo à lógica, para dar respaldo ―humanizado‖ (já que nos orgulhamos de sermos
entes lógicos) a este enclausuramento comportamental da corporeidade. Afinal, temos que
nos tornarmos atentos sempre ao fato de nossa ―natureza‖ ser selvagem e graças às regras
criadas podermos dominar, destruir, escravizar, humilhar, rotular, estereotipar, para sermos
ironicamente menos egoístas e intolerantes perante o ―magnífico‖ estranhamento de nosso
modo-de-ser. Vejamos para isso alguns exemplos que vivemos sem nos atentar, quase que
de forma mecânica, sobre a etiqueta social que estereotipa nossos corpos e
comportamentos. Segundo tais padrões devemos ter um estereótipo para nossa
alimentação. Para cada alimento, bebida, local ou comensais, a postura e as ―ferramentas‖
(talheres) são condizentes, assim como seu manuseio adequado102.

102
. Se quisermos dar uma averiguada nessa etiqueta à mesa que faz parte da estereotipagem humana, que
repudia nossa ―natureza selvagem‖, em via constante de ser domesticada, podemos encontrar vários exemplos
no sítios eletrônicos que nos brindam com essas dicas. A própria empresa Sadia que, como vimos, é um
exemplo também da romantização do especismo, como outro processo de estereotipagem, já veiculou em suas
páginas esse serviço. O próprio sítio da empresa não veicula mais essas informações, contudo, outros sítios
utilizaram suas recomendações, como, por exemplo:
<//bellbuffet.webnode.com.br/artigos/etiqueta%20%C3%A0%20mesa/>. Outros sítios eletrônicos são totalmente
destinados a isto, como: <//www.dicasdeetiqueta.com.br/etiqueta-a-mesa/>.
207

Atentemos mais detalhadamente para o que corresponde à ―postura corporal‖ (aqui


fica nítida a estereotipia de padronização da corporeidade); deve-se sempre manter as
costas eretas e o queixo erguido, pouca gesticulação, com pernas paralelas. Junto a isto
combina-se os trajes, cada qual, respeitando o ―bom senso‖, para seu indivíduo, homem ou
mulher, em cada idade e ocasião. No que tange ao encontro corpo-a-corpo evitar a
espontaneidade de uma conversa no local do encontro, o mais adequado é que convidemos
para outra ocasião em um encontro formalmente marcado, ou, ―se não der, troquem cartões
e procurem-se depois‖ (FERRARI, s.d., p. 31). A cordialidade ou ―cavalheirismo‖ forçado é
uma constante na etiqueta social, sempre respeitando a hierarquia, os direitos e os deveres.
Mas, para não nos estendermos demais por aqui, o que mais impressiona é a grande
preocupação em controlar o nosso próprio corpo e a corporeidade em que nos
relacionamos; de formas de falar até espirros tudo deve ser ou evitado ou pormenorizado,
sempre, se sair do esperado, com um pedido genérico de des-culpa-s. Isso tudo porque,
afinal: ―o corpo possui uma linguagem muito forte‖ (ibid., p. 47).
O que encontramos na relação entre moda e etiqueta é justamente a estereotipia
estética. Procura-se de modo interpretativo e apropriado os padrões do bom e do belo no
comportamento humano através da padronização da percepção. Esta Aesthesis grega
(helênica) que toma aspecto de comportamento e caráter é fruto do interesse e preocupação
no ente humano por aquilo que o agrada, e não factualmente o que um ente é em si. Essa
disposição ao questionamento do belo, a busca incessante pela compreensão e delimitação
do conceito de beleza move a estética no transpassar da vida humana como disciplina
―filosófica‖, como mera fruição, como criação, como um ideal ou como uma ruptura.
Segundo Vale (2005), para Platão, o belo é o bem, a verdade, a perfeição, existe em si
mesma, apartada do mundo sensível, residindo, portanto, no mundo das ideias. A ideia
suprema da beleza pode determinar o que seja mais ou menos belo. Já Aristóteles,
diferentemente de Platão, acredita que o belo seja inerente ao ente humano, afinal, a arte é
uma criação particularmente humana e, como tal, não pode estar num mundo apartado
daquilo que é sensível à humanidade. A beleza de uma obra de arte é assim atribuída por
critérios tais como proposição, simetria e ordenação, tudo em sua justa medida. Deste
modo, esse classismo helênico, como modo lógico de relacionar o belo e o bem enquanto
fenômeno estético é ainda introjetado como estereotipia para conformar o estereótipo
modista de etiqueta. Acabamos por acreditar que os padrões impostos de belo e bem são
verdades e se co-relacionam com o fito de alcançar uma beleza suprema. E ao associarmos
essa beleza e esse bem com a ―capacidade‖ humana de perceber esses fenômenos, nos
cingimos de ainda maior arrogância perante aquilo que não está estereotipado pela etiqueta
ou pela moda, que são (pejorativamente), fenômenos demasiados humanos – com a
―licença‖ filosófica de Nietzsche (2005).
208

Mas, nessa relação intricada de bem e belo associada pela lógica humana, o estético
padronizado (estereótipo) da moda e da etiqueta se converte em um padrão
comportamental de julgo ético. Como ramo da Filosofia que busca estudar e indicar o
melhor modo de viver no cotidiano. Contudo, diverge da moral, pois enquanto esta se
fundamenta na obediência a normas, costumes, hierarquias; a ética, busca fundamentar o
bom modo de viver pelo pensamento humano. Isto podemos novamente perceber na ―Ética
a Nicômaco‖, de Aristóteles, que irá, dentre outras coisas, definir ―o que é o Bem para o
homem‖. Atualizando o tema, o que muitos poderão utilizar como defesa da fixação humana
na ética é de que o ente humano vive em sociedade, convive no seu ser-com-os-outros e,
logo, cabe-lhe pensar e responder à seguinte pergunta: ―como devo agir perante os
outros?‖. Esta situação leva ao apelo fundamental do comportamentalismo imposto pela
etiqueta, via de uma ética que valorize a convivência, de forma harmoniosa (mesmo que não
seja), igualitária (mesmo que seja cada vez mais desigual) e natural (mesmo que estejamos
com isso reprimindo cada vez mais o que podemos tratar como ―naturais‖) – afinal, ainda
tem muitos que se julgam éticos, com a vida (biocentrismo?), ou somente para com os
outros animais (veganismo?) e que se respaldam no argumento de que o ente humano é um
animal da ética; mais um especismo teórico assim como o da racionalidade, da política, do
social, da alma, entre outros. Nessa hipocrisia do juízo ético, de como fazer o bem, vamos
reajustando à etiqueta como ―código de boas maneiras para a vida em sociedade‖ o que
seria uma forma de deixar ainda mais ética a vida estética humana; pois estamos sempre
em busca do que nos defina enquanto bons e belos. Não é por menos que ajustamos ao
discurso, geralmente das crianças, a etiqueta à moda da ética através das ―boas maneiras‖.
Sempre buscamos educar através das chamadas ―palavrinhas mágicas‖. Ensinando a
ordem certa de entrar em sala de aula, não brigar corporalmente (somente através do
discurso que aprendemos desde a infância, articular as palavras, para evitar ―perder a
razão‖), sentar-se ―corretamente‖, não falar palavrão. E com isso vamos atribuindo valor
ético, aquele que cumpre é bom, imbricado com estético, e também belo, em detrimento dos
feios e maus.
209

Figura 17: As chamadas ―palavrinhas mágicas‖ que


compõem a estereotipia das ―boas maneiras‖, ou etiquetas.

Nesse sentido, a moda-etiqueta é essa relação às vezes intencional entre ética-


estética como processo civilizador, de estranhamento e subjetividade alienada. Para
averiguarmos isso é interessante o trabalho de amplo escrutínio crítico de Norbert Elias. No
que podemos relacionar com o conceito de civilização trabalhado por Elias, que assim como
o termo kultiviert que significa cultivado, ―refere-se primariamente à forma da conduta ou
comportamento da pessoa‖ (ELIAS, 1994a, p. 24), representando assim não somente
necessidades ditas individuais, mas também coletivas. Então o processo de estereotipagem
da moda-estética-etiqueta é um processo civilizador, que assim como os outros processos
de estereotipagem, irão compor o âmago do processo civilizador, com ―o controle dos
sentimentos individuais pela razão‖ (ibid., p. 34). Todo nosso sentimento ético e estético
perceptivo é condicionado pela tradição institucionalizada do processo de estereotipagem
vigente. A civilização será completa quando se controla a corporeidade, as ―pulsões‖ que
impedem a ordenação lógica da existência humana, através de nosso comportamento. É
nesse momento que cabe frisar a obra de Erasmo de Rotterdam, ―Da civilidade em crianças‖
de 1530. Nesse momento da renascença, como vimos no primeiro capítulo, também
ocorrerá junto ao renascimento científico uma mudança de comportamento. E este livro de
Erasmo tratará justamente do comportamento, das boas maneiras a se seguir, ―escrito para
a educação de crianças‖ (ibid., p. 69). As observações que já vimos alhures, da etiqueta e
das boas maneiras e sua relação para com as crianças é justamente o que já tratara
210

Erasmo de Rotterdam. Da forma de olhar, de se portar à mesa, os gestos, o vestuário, os


cumprimentos; nada mais do que uma adequação comportamental de civilização do corpo
através de uma acepção da corporeidade alienada – estaria sendo instaurada a
representação corporal desejada pela ―pequena classe intelectual secular-burguesa‖ (ibid.,
p. 85). Fora construído nesse momento a relação entre censura e elogio, dicotomizando
com a estereotipagem os que são considerados bons (que seguem as boas maneiras) e os
que são maus (que não reproduzem o comportamento previsto).
Esse processo civilizador conduzirá os sentimentos e a corporeidade humana a um
padrão especificamente esperado. O controle que vamos exercer sobre nós mesmos, será
―efetuado através de terceiras pessoas‖, porém, convertido em autocontrole, no qual as
ações humanas mais próximas de nossa natureza selvagem perdida serão
progressivamente excluídas da nossa cotidianidade, a partir do qual teremos vergonha
(ELIAS, 1994b, pp. 193-194). A existência humana enquanto esta civilização será
movimentada de forma velada, cegamente, mas mantendo o movimento pela dinâmica da
rede de relacionamentos cotidianos falsos em relação a nossa corporeidade de corpos.
Temos então ―um cego aparelho automático de autocontrole‖ firmemente estabelecido (ibid.,
p. 196).
A corporeidade alienada depende muito mais do autocontrole esperado para cada
ente humano pela censura ou elogio, punição ou gratificação, de sermos belos e bons ou
feios e maus, perante o outro que se escolhe e nos escolhe, assim como no adestramento
que acreditamos ser divino; através de um Deus punitivo ou gratificador. Somos na verdade
os deuses-senhores de nossos próprios atos, da nossa própria existência. É nesse sentido
que a cotidianidade pode ser relacionada com o ―terrorismo‖, pois vivemos numa ―sociedade
super-repressiva‖, tal como nos fala Lefebvre (1991, p. 57). E este terrorismo somente é
possível através da auto-repressão, ou autocontrole, em nossa cotidianidade organizada. É
por isso que podemos retornar ao que falou Schopenhauer (1966, p. 124), ―para o indivíduo,
a natureza inteira, salvo ele mesmo, ou seja, todos os outros seres só existem na sua
representação‖, na relação entre o macrocosmos e o microcosmos, no qual cada ente
singular humano é a representação de mundo que carrega da existência humana. A partir
dessa possível dicotomia origina-se o egoísmo, em que cada um carrega o mundo em si
mesmo, sem responsabilidade perante o outro, mas com a antagônica responsabilidade de
representar o outro pelos padrões recebidos, buscando então seu padrão de mundo. Assim,
consequentemente, cada ente humano quando afirma a sua vontade de representação do
mundo, dos processos de estereotipagem, ―sai dos limites do seu corpo e nega a vontade
do corpo alheio‖ (ibid., p. 128). Nessa relação entre representação e egoísmo é que se faz
necessário o processo de estereotipagem, para reproduzir o corpo alienado, prisioneiro da
lógica humana.
211

Esse corpo prisioneiro da disciplina ―centrada no corpo, produz efeitos


individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis
ao mesmo tempo‖ (FOUCAULT, 1999, p. 297). Teremos uma corporeidade dos corpos em
processos biológicos do conjunto, porém com fenômenos disciplinares do corpo coletivo e
articulados com os corpos individuais. O ente humano vai ser ―capaz de manejar seu corpo,
adestrá-lo e troná-lo apto a realizar movimentos‖ (MONDIN, 1980, p. 30), e sendo senhor
desse corpo próprio se tornará senhor da Sub-totalidade Geográfica Terra, dominador
desenfreado e inconsequente; mas, se esquece que ao querer dominar a Terra domina a si-
mesmo, domina seu corpo, e ao dominar seu corpo, sua natureza selvagem acaba por
também impedir a harmonia perdida com o Planeta. O corpo é inevitavelmente o elemento
básico, essencial de cada ente humano. Sem o corpo próprio não nos alimentamos, não nos
reproduzimos, não experienciamos, não nos comunicamos e nem buscamos dominar tudo o
que existe sem ele. O corpo de cada um de nós ―é o centro e o foco de todo o meu universo
espacial‖ (ibid., p. 33).
O nosso corpo será esse que ninguém quer conhecer, através de uma ―tradição
negativa em relação ao corpo humano‖ (GAIARSA, 2002, p. 11), ele será induzidamente o
nosso desconhecido, embora bastante condicionado e centrado em alienação. A
humanidade não se interessa por si-mesma, somente no que concebeu como ob-jetos, na
nossa projeção naquilo que consideramos coisas. Nos outros entes humanos, nas outras
formas de vida e nas categorias lógicas do pensamento que acabamos por nos encontrar
como sujeitados a elas. Fenomenologicamente o nosso corpo fala demais, expressa o que
somos embora tentemos autocontrolar e projetar nossas culpas e negações no outro: no
objeto. Tudo o que queremos controlar se mostra explícito pela forma artificial e hipócrita
com que arranjamos as ―máscaras existenciais‖. Mas, esse corpo que se quer escravo,
domesticado, civilizado, humanamente espacializado, alienado e externo a qualquer
demonstração espontânea de vida é antagonicamente um ―rebelde subversivo‖,
incompatível com as normas de comportamento e dos estereótipos, porque ele também é
vida. Embora queiramos esconder, o espaço-corpo-si-mesmo é o maior revolucionário que
existe, basta olharmos para nós mesmos – a maior luta está no nosso corpo e é função dele
derrubar alienações!
212

CONSIDERAÇÕES FINAIS

C
hegamos ao que seria o fim desta odisseia. Fim ou desfecho seria uma
terminologia muito ―dura‖, axiomática, para este trabalho que fora percorrido com
tantas idas e vindas e proposições contrárias ao fechamento de ideias. Como já
dissera Albert Einstein, vivemos numa época onde é mais fácil desintegrar um átomo do que
um preconceito. É por essa via ou odisseia que percorremos: derrubar preconceitos,
principalmente da Geografia científica, que se aproximou mais de uma auto-definição
científica, objetiva, do que de uma postura autocrítica e de superação (ou ruptura) de teorias
pré-concebidas e da própria existência humana. Queremos mais uma vez nessa parte
derradeira provocar uma união, de outra dicotomia, a existente entre a abertura de ideias
(considerações finais) e o fechamento conclusivo (posicionamento perante o trabalho feito).
O que queremos é exercitar o movimento, o devir que deve ser este momento, e não
somente demonstrar a dicotomia e/ou provocar uma insegurança quanto ao tema tratado. A
provocação é de tirar o conforto das ideias pré-concebidas e ao mesmo tempo fazer com
que este momento seja de mais reflexões do que somente de conclusões.
Arriscamo-nos a dizer que chegamos ao fim deste trabalho, mais precisamente ao
fim desta dissertação e não do trabalho como um todo, pois se trata como já frisamos de
uma empreitada para toda a vida. Deste modo é que não pretendemos dar por encerrada a
odisseia, mas somente parte efetiva dela. A abertura de futuros aprofundamentos deve ser
uma premissa para um diálogo que visa ser mais fecundo ainda. Assim é que a dissertação
em si é o fechamento de um ciclo de estudos, pesquisas e principalmente de escolhas
vividas. Porém, tal momento como que num rito de passagem adquire a característica de
acúmulo necessário para prosseguirmos na odisseia ininterrupta da relação existencial
vivida com a Geografia e com as pretensões singulares de evitar a instauração e/ou
manutenção de velhas verdades e velhos medos, no sentido de auxiliar na superação dos
paradigmas já denunciados sumariamente nos capítulos precedentes para uma existência
humana mais harmônica.
É nesse sentido que devemos encarar a presente odisseia. Como uma busca que
fora calcada no tema da Ontologia em Geografia, sob o viés de análise crítico sobre a
acepção de espaço, e consequentemente buscando remodelar segundo nosso prisma,
213

ontologicamente, a categoria com o fito de auxiliar na mudança de apreensão crítica da


existência espacial humana. Contudo, tratar de Filosofia e do tema da Ontologia em
Geografia não é apreendido com ―ar de naturalidade‖; isto que nos faz concordar com Biteti
(2007, p. 157) na sua colocação de que ―trabalhar o tema da ontologia na geografia não é
mesmo uma tarefa simples, principalmente pela tradição em ver o espaço como relação
externa‖ à existência humana. É um tema que inspira complexidade, nem tanto pela ideia de
―dificuldade‖ e vasta leitura, mas pelo não relacionamento existente entre a Geografia
científica, o espaço e o fenômeno geográfico. O enclausuramento em uma cientificidade que
perpetua a dicotomia sujeito/objeto e consequentemente espaço/humanidade nos deixa
atados numa camisa de força teórica em que ―o lugar da busca‖ (como já tratara Armando
Corrêa da Silva) não é refletido: a relação entre a crítica interna, a crítica à Filosofia, à
ciência como um todo e à existência humana não se imbricam na Geografia científica. E
com isso a tarefa de uma Ontologia na Geografia se torna uma tarefa com ―ares‖ de
odisseia. Contudo, como vimos, não estamos sozinhos, além de geógrafos profissionais
envolvidos no tema temos dissertações e teses que se voltam para a questão do ser, da
existência e da re-elaboração de nossa noção de espaço. Autores como Élvio Martins e Ruy
Moreira vêm travando debates com os ―clássicos‖ da Geografia e, inclusive, atrelando o
debate a nomes como de Milton Santos e Armando Corrêa da Silva, no qual este último
(como vimos) tivera um papel seminal, em se tratando da Ontologia em Geografia, no
cenário brasileiro. De teses e dissertações encontramos Mariane Biteti (2007) e Elias Lopes
de Lima (2007b), com suas dissertações, e mais recentemente Samarone Carvalho Marinho
(2010) em tese criativa e poética, relacionando Ontologia, Geografia e Poesia. Como
podemos ver, não estamos isolados e ainda melhor, muito bem acompanhados para
seguirmos nossa proposta que agora se encontra em via de conclusão. É isto que faremos
agora, mostrar alguns resultados e ao mesmo tempo rever nossos posicionamentos
atrelados aos objetivos propostos.
O espaço, em sua acepção moderna, fora concebido primeiramente como uma
entidade absoluta, externa aos entes corpóreos e com isso, consequentemente, externa a
cada ente singular humano e à existência humana coletiva como um todo. As bases
paradigmáticas para tal acepção de espaço foram do paradigma de ciência instituído na
tríade Bacon-Descartes-Newton, que conformará uma acepção de espaço semelhante à
acepção de natureza elaborada por estas personalidades que sintetizaram em suas
acepções o momento existencial de uma época. Uma natureza externa, insensível,
maquínica e posta como um firmamento absoluto do qual temos todos os direitos de nos
apropriar, por não nos identificarmos, sentirmos e percebermos como ela. O espaço, como
vimos, será fruto desta acepção que será absorvida pela Geografia científica através de sua
institucionalização enquanto ciência provida por personalidades que experienciaram este
214

momento de institucionalização. O espaço geográfico será modelado a partir da acepção de


espaço cartesiana-newtoniana-kantiana. A entrada de Kant neste rol que caracterizará o
espaço geográfico dará os contornos do que virá a ser a sobredeterminação do objeto
espaço em relação ao sujeito humano, que estabelecerá o que identificamos como a fórmula
espaço→homem na Geografia científica.
Estes são os postulados que poderão ser encontrados e relacionados entre o
estranhamento e o espaço ontológico, via da exteriorização científica. O que encontramos
na sobredeterminação do objeto em relação ao sujeito, na exteriorização do espaço em
relação à humanidade na concepção científica de espaço na Geografia é fruto do que
averiguamos criticamente, a nosso ver, no espaço ontológico através do estranhamento
enquanto exteriorização da vida. Visto que a exteriorização da vida é um fenômeno
existencial, que abarcará cada vez mais a generalidade da existência humana, nada menos
―lógico‖ do que a concepção de espaço ser também uma exteriorização. Afinal, vimos que a
existência precede a consciência ou a exteriorização da vida como modo de ser da
existência humana precede a exteriorização conceitual do espaço em relação à
humanidade. Este imbróglio lógico do espaço geográfico (epistemológico) acaba por ser
uma confirmação subjetiva do que ocorrera ontologicamente com a humanidade. Acabamos
por nos tornar espaciólogos ou ―espacistas‖ como que num processo de estereotipagem
próprio da ciência geográfica, no qual o espaço é realçado sob o prisma de ser o objeto
“puro” (essencial) da Geografia científica em detrimento de uma humanidade ―esquecida‖ ou
somente lembrada como um elemento estruturado e ordenado deste espaço que nos
―governa‖. Tal imbróglio lógico da fórmula espaço(geográfico)→homem causará um
estrabismo em nosso ―olhar‖, tal qual uma subjetividade alienada, que nos impedirá de
reconhecer as problemáticas existenciais mais profundas ficando muitas das vezes somente
na superfície das ideias (epistemologia), e por isso na maioria dos casos no âmbito do
discurso e da concatenação lógica científica.
Urge uma nova odisseia para o espaço no âmbito lógico da ciência geográfica, mas
acima de tudo no que concerne ao ontológico. Uma nova odisseia para a existência espacial
humana e para seu espaço ontológico, uma abertura para outro mundo que não seja
somente este que está-aí. Uma abertura para novas possibilidades que desvendem a visão
e desatem os corpos, dos grilhões que nos fazem sentir atados a esta existência em
estranhamento com ares de uma imutabilidade aparente do que ―sempre foi assim e não
temos como mudar‖. Uma nova odisseia para esta acepção de espaço pressupõe uma
concepção do espaço como ser enquanto modalidade ontológica, existencial, e não como
somente uma modalidade lógica idealizada pela razão. Isto significa que, esta proposta de
uma nova odisseia para o espaço seja uma reflexão necessária sobre nosso modo-de-ser-
no-mundo-da-existência-espacial-humana. Significa re-significar para apreendermos
215

filosoficamente o que ocorre geograficamente enquanto exteriorização da vida. Urge nesse


sentido superarmos a dicotomia de análise espaço/humanidade, objeto/sujeito.
Concordando com Lima (2007b, p. 190) que ―reconhecer apenas o objeto de um
determinado campo de saber ou de uma configuração espacial dada não é suficiente para
expressar a complexidade que se abre em face do novo paradigma que se pronuncia‖.
Em nossa proposta, com fito de ser uma auto-avaliação crítica, de nós mesmos para
a ciência como um todo, esta dicotomia existencial humanidade/natureza e/ou
humanidade/espaço não deve ser disseminada, pois continuará a dar respaldo ao nosso
modo de ser estranho da existência humana; a dicotomia científica sujeito/objeto deve ser
reinterpretada em uma inter-intra-retro-relação. É isto o que tentará fazer Armando Corrêa
da Silva, problematizando e reconstruindo a acepção de sujeito/objeto como sujeito-objeto
permeado pelo ser revelado que contém, está contido e perpassa para além de ambos. Com
liberdade heurística (a descoberta dos fatos, que será muito interessante para as nossas
conclusões), Silva irá propor uma nova construção do sujeito e a (re)construção do objeto,
pelo qual ―o sujeito construído, depois (re)construído, defronta-se agora com o objeto
construído, a seguir (re)construído‖ (SILVA, 1992, p. 111). Esta nova construção do sujeito é
o que buscamos em toda a nossa tentativa de autoconhecimento e auto-avaliação crítica, de
nós mesmos, da ciência geográfica e da existência humana. Nós enquanto sujeito pré-
concebidos e construídos a partir disso (com nossos ―papéis‖ na cotidianidade e na ciência)
devemo-nos (re)construir na defrontação com o objeto já, também, previamente construído
(no caso o espaço geográfico), buscando (re)construí-lo não de forma apartada, mas
enquanto algo contido e continente, uno e múltiplo, essência e existência. Nesse caso, nós
enquanto sujeitos críticos da existência espacial humana devemos ter por objeto a
heurística, para desvendar os fatos que nos aprisionam e reafirmar as dicotomias, assim
como ―o caráter antropocêntrico da visão de mundo‖ (androcêntrico, eurocêntrico, branco-
dominador), pois, segundo Lowenthal (1982, pp. 115-116) ―a melhor visão do mundo
concebida pela mente humana é, no máximo, um quadro parcial do mundo (...). O mundo da
experiência humana é, então, apenas uma árvore da floresta‖. A partir dessa nova leitura de
mundo que buscaremos as superações, através de nós enquanto novos sujeitos, que temos
como nosso objeto o desvelar dos fatos que nos são postos frente às nossas percepções.
Assim, o que nós concebemos como vazio, o vácuo ou até o éter são manifestações da
materialidade do espaço e que, como nos explica Carlos Santos (2009, p. 14), ―o espaço é
inerente tanto ao objeto quanto ao sujeito‖, por isso o espaço não pode ser objeto e sim
parte da hermenêutica crítica da geograficidade, uma interpretação fenomenológica do
espaço ontológico.
É seguindo esta perspectiva que situamos alguns autores que foram trazidos para o
debate da Ontologia em Geografia. De primeira mão não pudemos descartar Armando
216

Corrêa da Silva e sua proposta instigante de (re)ver o espaço. Sua iniciação no debate
quanto ao tema da ontologia, do espaço como ser e do espaço ontológico permeou e
interligou em muitos momentos nossa proposta individual. Silva fora o ponto de partida de
algumas inquietudes tanto na ciência geográfica brasileira quanto em nossa postura
intelectual. Como vimos, escolhemos para o debate da Ontologia, dentre outros que não
foram meras ―colchas de retalhos‖ (pois tiveram nexo em nosso posicionamento e escolhas
em toda a linha do trabalho), o filósofo Martin Heidegger, com sua particular compreensão
do ser e do que viria a ser uma análise ontológico-existencial com postura fenomenológica
posicionada frente à cotidianidade que abordamos já no terceiro capítulo. O diálogo que
encontramos fora entre a Ontologia na Geografia de Armando C. da Silva e a Ontologia
como tema da Filosofia de Heidegger. O que pareceu, como dissemos, mera ―colcha de
retalhos‖ teórica fora uma aquarela da qual tomamos partido no que permeou o diálogo
fenomenológico (averiguado em certos momentos na Filosofia de Maurice Merleau-Ponty), o
existencialista (de Jean-Paul Sartre) e a crítica contundente da teoria marxiana, de Karl
Marx até a filosofante análise de Karel Kosík, que nos referenciou no efetivo de nossa
abordagem da espacialidade. Vimos que a re-ligação entre a perspectiva filosófica
heideggeriana e a crítica marxiana é um projeto possível, como constatamos no segundo
capítulo. Outra abordagem possível que perambulou bastante, recortando e cozendo,
durante esta dissertação fora o pensamento de Friedrich Nietzsche. Com ares de uma
proposta para uma nova ciência, com contornos heurísticos, suas setas e sentenças foram
extremamente diretas para percebermos que nosso modo de ser está em estranhamento e
que necessitamos de uma ciência filosófica realmente libertadora. Necessitamos de uma
reconciliação existencial entre a nossa forma de conceber o espaço na Geografia e na
existência e ao mesmo tempo um novo modo de ser que não este que está-aí.
Estas e outras abordagens foram fundamentais para constituir o corpo de nosso
trabalho. E por falar em corpo, poderíamos ter abordado o corpo de uma forma mais
científica e menos subjetiva do que exemplificamos no terceiro capítulo, com cada processo
de estereotipagem, mas da forma que referenciamos o corpo, como espaço e ao mesmo
tempo uma corporeidade produzida pela consciência e perpassada pelo senso-comum,
concluímos que quando representamos estes corpos estamos representando espaços
singulares, o corpo próprio que falara Merleau-Ponty, no sentido de um espaço-corpo sem
identificação e/ou reafirmação da dicotomia espaço/corpo. Não há relação espaço-e-corpo,
pois ambos são um só, o corpo através da acepção do espaço como ser não pode ser outra
coisa senão espaço. O recurso da hifenização é somente uma estilística para frisar a
inseparabilidade ontológica de nossa perspectiva. Então quando falamos da estereotipia e
do estereótipo estamos falando da corporeidade (espacialidade ao nível de análise do
corpo) ontológica conformada e perpetuada pela representação cotidiana de nossas vidas.
217

É nesse momento que podem surgir as dúvidas quanto à geograficidade do tema (ou
o que torna o trabalho científico uma análise geográfica), principalmente no campo do
processo de estereotipagem, que parece ser tema da Antropologia Social ou da Psicologia.
Aqui concluímos igualmente que a geograficidade não é inerente ao tema e sim à vida, ao
movimento em constante devir da existência. Uma concepção da geograficidade como o vir-
a-ser enquanto modos de haver da materialidade. Esta geograficidade não está atrelada
somente à Sub-Totalidade Terra, mas nela contém, ela está contida e por ela perpassa a
geograficidade enquanto haver sincrônico e caótico da materialidade. Este haver é ter,
possuir, ser, estar senhor de, conter, encerrar, abranger, exibir, existir. O haver é impessoal,
é a existência, é tanto temporal quanto espacial, é a ocorrência de um fenômeno; é a forma
de expressar inúmeros fatos geográficos que são indizíveis, por isso a geograficidade é o
vir-a-ser constante do haver da materialidade. Este vir-a-ser é o devir de que falamos
através do pensamento de Heráclito, onde tudo flui, tudo se move, como uma ―lei universal‖
do haver da materialidade103. Cabe ressaltar que este ponto de vista não deverá ser
aprofundado por aqui, mas surge como uma proposta de análise futura com o fito de dar
continuidade ao tema aqui abordado em uma tese futura. Essa forma de se conceber a
Geografia, não como uma ciência vai ao encontro do que pretendemos no primeiro capítulo,
de superar o paradigma atual de ciência, principalmente da geográfica, que ―mistifica‖ como
científico somente o que é relativo aos ―lugares‖ (espaço, paisagem, território, região, lugar)
e não à humanidade, aos corpos próprios. Desta forma é que cabe re-significar o espaço e
re-significar o corpo, como em uma existência única, sem reforço de dicotomias.
Reiteramos então que existe um nexo entre os capítulos, não como conclusão
objetiva a ser alcançada somente, mas na ótica do espaço enquanto corpo, no espaço
ontológico enquanto existencial da existência humana. As capitulações foram formalidades
que buscaram não somente subdividir objetivos, mas demonstrar realidades que estão em
constante movimento vivo, no qual ciência alguma consegue esquadrinhar ou engavetar.
Nesse momento deve surgir a pergunta que foi a questão primeva: podemos conceber o
espaço como ser? E ao mesmo tempo podemos inquirir, concordando com Smith (1988, p.
116) se ―é o espaço, ‗em si mesmo‘, uma base para a realidade, ou é o conceito abstrato de
espaço que é um fundamento para o modo em que vemos a realidade?‖. Põe-se uma
questão para a questão como uma dúvida que nos alcançou já no final deste trabalho. Será
que o espaço é ontologicamente ser ou somente um ser enquanto ideia? Segundo Biteti
(2007, p. 71), no pensamento grego antigo encontramos um dualismo metafísico entre o ser
e o devir, pelo o conflito entre os pensadores deste período. Nos chamados pré-socráticos,

103
. O devir é a lei universal que move os entes. Os fenômenos se repetem, mas não se repete o mesmo
fenômeno: o que é hoje sempre será a unidade entitativa, mas concomitantemente não é aquele de ontem. Os
entes viventes que vivem hoje não são mais aqueles do passado. Aliás, cada coisa jamais é a mesma, dia-a-dia
perde-se e conquista-se algo, mesmo quando a nossa percepção parece desaparecer para sempre.
218

o que tratamos aqui como ser era como uma substância originária, respondendo ou
buscando responder ao questionamento sobre a origem do mundo, a arché. No pensamento
de Heráclito o ser é um vir-a-ser incessante sem um estado estático dos entes; já para
Parmênides (como vimos no primeiro capítulo) o ser é substância: imutável, eterno e infinito,
e principalmente imóvel, sem vir-a-ser (pois esta seria negação do ser, o movimento).
Temos então a dicotomia do ser (de um lado) e o devir (do outro o ser-essência), porém,
que será de domínio da concepção linear tomada pela existência humana ocidental, do ser
imóvel. Mas, caberá a Platão, discípulo de Sócrates (aquele que Nietzsche acusara de ser o
déspota da lógica, primando pelo otimismo da teoria em contrapartida de uma visão
pessimista da prática), criar a relação entre este ser imóvel e ideia, e dissociar o ser da
phýsis. Em Platão phýsis será o mesmo que idea, o ser torna-se a partir de então razão, não
encontraremos a verdade no Ser, na phýsis desde então, mas sim na theoria. É por este
motivo que fica difícil atrelarmos ao ser uma emanação do ser, algo como a phýsis em
relação com o vir-a-ser. Mesmo este espaço como ser, será um espaço concebido como ser
e jamais vivenciado, experienciado, praticado e sentido-percebido como ser, pois nosso ser
é a teoria, e por esse motivo devemos ter um cabedal de referências e explicações para
concebermos outra teoria, um novo paradigma (parádeigma) – outra referência exemplar
permanente para sustentar nossa existência. Esta pode ser uma das conclusões
alcançadas, contudo jamais fechada, pois não pretendemos um axioma filosófico na
Geografia científica, mas um auxílio de análise heurística que possa desvendar o
estranhamento da existência humana e concorrer mesmo que minimamente para superá-lo.
Toda esta superação, do ser ideal concebido pela razão e do ser enquanto
modalidade ontológico-existencial deveria ocorrer em nosso cotidiano na ligação da nossa
teoria com nossa práxis, assim como nos fala Mao Tsé-Tung (2006, p. 26): ―todo aquele
que, em palavras, se coloca ao lado do povo revolucionário, mas age de maneira diversa, é
um revolucionário de boca‖. É por isso que se faz mister em nossa vida um
autoconhecimento e na ciência geográfica uma ―autoconsciência refletida‖, como ―o
momento do conhecimento em que o homem concentra a sua atenção sobre si mesmo,
sobre as próprias ações, sobre os próprios atos, sobre o próprio ser‖ (MONDIN, 1980, p.
100). Desta forma desviaremos o olhar do outro e de objetos externos, pois a partir de uma
heurística de nossos atos e palavras deixaremos de ser hipócritas e revolucionários de
boca. Cabe isto aos Geógrafos oficiais, cabe a nós essa autocrítica e auto-mudança para
podermos mudar o mundo e nossa existência humana. Pensemos afirmativamente neste
momento conclusivo e propositivo junto com Harvey, pois:

a pessoa é dotada de certas capacidades e habilidades passíveis de ser usadas


para transformar o mundo. [...] Ao mudar nosso mundo, mudamos a nós mesmos.
Como, então, pode algum de nós falar de mudança social sem ao mesmo tempo
219

estar preparado, em termos tanto mentais como físicos, para alterar a si mesmo?
Inversamente, como poderemos transformar a nós mesmos sem transformar nosso
mundo? (HARVEY, 2006a, p. 307).

Devemos nos mudar para mudar o mundo, a Geografia científica deve mudar
primeiramente em nossa práxis. Devemos refazer esta postura geográfica, sem um objeto
pensado, mas um objeto enquanto heurística crítica sobre nós mesmos (sujeito) e sobre o
mundo. A odisseia para o espaço é uma falácia proposital para demonstrar que o longo
caminho a ser percorrido é para a existência humana, e que não se trata somente de uma
análise, mas de uma mudança da existência através de uma autoconsciência refletida – a
começar pela mudança de nosso próprio relacionamento com o si-mesmo, nosso espaço-
corpo. Se o espaço é ser ou não, pode depender da teoria, do paradigma, porém o mais
importante é nossa práxis. E que a Geografia acadêmica encontre o seu ―lugar da busca‖
para um mundo de mais respeito à alteridade de modo autêntico e respeito à singularidade
em relação à Totalidade. Em nossa busca particular, daremos prosseguimento, como
dissemos, em uma proposta de continuidade no doutorado, estendendo para o tema da
geograficidade, porém sem ser somente um doutor, um especialista que visa ser útil para
outros doutores, profissionais e estudantes ou instituições científicas, mas acima de tudo
visando contribuir existencialmente para mudar a nós mesmos, para buscarmos superar os
paradigmas que aí estão. Contribuindo para que esta Geografia seja uma arte, uma arte de
desvendar (heurística) as máscaras existenciais do mundo humano, sendo uma ciência
filosófica realmente libertadora (como gostaria Nietzsche), mas também para que ao mesmo
tempo esta Geografia mude sem ficar a mesma coisa, como já propusera antes M. Santos
(2005). E assim como Zaratustra, poderemos nos afastar da nossa caverna, ―ardente e
vigoroso, como o sol matinal que surge dos sombrios montes‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 268),
em uma nova Aurora – uma nova percepção da Geografia e uma nova odisseia para a
existência humana.
220

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Maria da Conceição de. ―Mapa Inacabado da complexidade‖. In: SILVA, Aldo
Aloísio Dantas; Galeno, Alex (orgs.). Geografia, Ciência do Complexus: ensaios
transdisciplinares. Porto Alegre: Sulina, 2004.
ANDRADE, Manuel C. Geografia Econômica. São Paulo: Atlas, 1984.
ARANTES, Leonardo. ―Immanuel Kant (Nossos Clássicos)‖. GEOgraphia, Niterói: UFF/EGG,
ano IX, nº. 17. p. 117-119, 2007.
ARENDT, Hannah. O que é política?. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
________. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BADIOU, Alain. O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 1996.
BIRO, Janos. ―Quando nos tornamos humanos?‖. Revista espaço da sophia – nº. 6, ano I,
2007.
________. ―Etologia da domesticação‖. Revista espaço da sophia – nº. 31, ano III, 2009.
BITETI, Mariane. Uma Reflexão Sobre o Tema da Ontologia na Geografia. (Dissertação de
Mestrado), Niterói: UFF, 2007.
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Ed. Ática, 1995.
BOTTOMORE, Tom. Introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
BOURDIEU, Pierre. A ontologia política de Martin Heidegger. Campinas: Papirus, 1989.
BRASIL, Luciano de F. A Espacialidade do Dasein: Um Estudo sobre o § 24 de Ser e
Tempo. (Dissertação de Mestrado), Porto Alegre: PUCRS, 2005.
BRUNHES, Jean. Geografia Humana (edição abreviada). Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,
1962.
BUTTIMER, Anne. ―Aprendendo o dinamismo do mundo vivido‖. In: CHRISTOFOLETTI, A.
Perspectiva da Geografia. São Paulo: Difel, 1982.
________. ―O espaço social numa perspectiva interdisciplinar‖. In: SANTOS, M. e SOUZA,
M. A. O espaço interdisciplinar. São Paulo: Nobel, 1986.
CAMARGO, Luís H. Ramos. A ruptura do meio ambiente. Rio de janeiro: Bertrand Brasil,
2005.
CAMPOS, Rui. ―Tese, antítese, síntese, tese,... ‖. Boletim paulista de geografia. São Paulo:
FFLCH/USP, n. 77, 2001.
CANTONI, Remo. A vida Cotidiana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
CAPRA, F. O Ponto de Mutação. São Paulo : Editora Cultrix, 1986.
CARLOS, Ana Fani A. O lugar no/do mundo. São Paulo: HUCITEC, 1996.
________. O espaço urbano – novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004.
CARVALHO, M. B. ―Geografia e complexidade‖. In: SILVA, Aldo Aloísio Dantas; Galeno,
Alex (orgs.). Geografia, Ciência do Complexus: ensaios transdisciplinares. Porto Alegre:
Sulina, 2004.
CARVALHO, J. C. ―Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das
organizações educativas‖. Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 1997.
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1983.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2002.
221

CORRÊA, Roberto Lobato. ―O espaço geográfico: algumas considerações‖. In: SANTOS,


Milton (org.). Novos Rumos da Geografia Brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1982.
________. ―Espaço, um conceito chave da Geografia‖. In: CASTRO, Iná de et. al. Geografia:
conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
COSTA, M. H. ―A exteriorização da vida nos manuscritos econômico-filosóficos de 1844‖.
Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 4, Ano II, Abril de 2006,
periodicidade semestral – Edição Especial: Dossiê Marx, 2005.
CHRISTOFOLETTI, A. ―As perspectivas dos estudos geográficos‖. In: CHRISTOFOLETTI,
A. Perspectiva da Geografia. São Paulo: Difel, 1982.
CUNHA, M. H. L. Espaço real, espaço imaginário. Rio de Janeiro: Lumen, 1991.
DARTIGUES, André. O que É a fenomenologia?. São Paulo: Centauro, 2008.
DESCARTES, René. Discurso do método: meditações, objeções e respostas, as paixões da
alma, carta. São Paulo: Abril, 1973.
________. Regras para a direção do espírito. Lisboa: Ed. 70, 1989.
DINIZ, M. L. ―Estereótipo na mídia: doxa ou ruptura‖. In: COELHO, GUIMARÃES, VICENTE.
O futuro: continuidade/ruptura. São Paulo: Annablume, 2007
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1: uma história dos costumes. Rio de
Janeiro: Zahar Ed., 1994a.
________. O processo civilizador. Volume 2: formação do estado e civilização. Rio de
Janeiro: Zahar Ed., 1994b.
ENCICLOPÉDIA NOVO SÉCULO. Volume 1-11. São Paulo: Editora Visor do Brasil, 2002.
ENGELS, Friedrich. A dialética da Natureza. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
________. A Origem da Família, da Propriedade e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006.
ETGES, Virgínia. ―A contribuição de Alfred Hettner à geografia‖. In: MENDONÇA, F., SAHR,
C., SILVA, M. Espaço e tempo: complexidade e desafios do pensar e do fazer geográfico.
Curitiba: ADEMADAN, 2009.
FERRARI, Bárbara. Manual Prático de Etiqueta: um guia para seu cotidiano. São Paulo:
Escala, s.d.
FERRATER MORA, José. Dicionário de Filosofia José Ferrater Mora. São Paulo: Martins
fontes, 1996.
FERREIRA, C. E. ―Garrincha, a alegria do povo e os subterrâneos da alienação‖. Revista
intermídias. Ano 3, n. 7, 2007.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,
1985.
________. Microfísica do Poder. Rio de janeiro: Graal, 1993.
________. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Aula de 17 de
março de 1976).
________. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
________. ―Outros Espaços‖. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001.
FROMM, Erich. Análise do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964..
________. Marx y su concepto del hombre. México: Fondo de cultura econômica, 1970.
222

________. Meu encontro com Marx e Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
GAIARSA, José A. O que é Corpo (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense,
2002.
GEORGE, Pierre. Sociologia e Geografia. Rio de Janeiro: Forense, 1969.
________. ―Problemas, doutrina e método‖. In: GEORGE, Pierre; GUGLIELMO, Raymond;
LACOSTE, Yves; KAYSER, Bernard. A Geografia ativa. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1973.
GOLDMANN, Luicien. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1967.
GOMES, Myrce. ―Newton e Leibniz: a questão do espaço no séc XVII‖. Revista Brasileira de
História da Ciência, v.- n.11, 1994.
HANSEN, Gilvan L. ―Espaço e Tempo na Modernidade‖. GEOgraphia, Niterói: UFF/EGG,
ano II, nº. 3. p. 51-67, 2000.
HARTSHORNE, Richard. Propósitos e natureza da Geografia. São Paulo: Hucitec, 1978.
________. ―O conceito de Geografia como uma ciência do espaço, de Kant e Humboldt para
Hettner‖. Caderno Prudentino de Geografia, n. 28, pp. 09-33. 2006.
HARVEY, David. A Justiça Social e a Cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.
________. Espaços de Esperança. São Paulo: Loyola, 2006a.
________. A Condição Pós-Moderna: uma pesquisa das origens da mudança cultural. São
Paulo: Loyola, 2006b.
HEIDEGGER, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
________. Conferências e escritos filosóficos. (Coleção: Os Pensadores). São Paulo: Nova
Cultural Ltda., 1996.
________. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2008.
HETTNER, Alfred. ―O Sistema das Ciências e o Lugar da Geografia‖. GEOgraphia, Niterói:
UFF/EGG, ano II, nº. 3. p. 143-146, 2000.
IGENIEROS, José. O homem medíocre. Rio de Janeiro: Editora científica, s.d.
INSTITUTO COSTARRICENCE DE ELETRICIDAD. s.d.
JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1968.
JUNG, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
________. ―Introdução à Geografia Física‖. Revista GEOgraphia, Niterói: PPGEO/UFF, ano
IX, nº. 17, p. 121-130, 2007.
________. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
KENSKI, Rafael. Vencendo na raça. Revista Super Interessante, São Paulo: Editora Abril,
edição 187, pp. 42-50, 2003.
KONDER, Leandro. O que é Dialética. São Paulo: Brasiliense, 1992.
________. Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de
alienação. São Paulo: expressão popular, 2009.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
KOZEL, S. ―Das ‗velhas certezas‘ à (re)significação do geográfico‖. In: SILVA, Aldo Aloísio
Dantas; Galeno, Alex (orgs.). Geografia, Ciência do Complexus: ensaios transdisciplinares.
Porto Alegre: Sulina, 2004.
223

LA BLACHE, P. V. de. Princípios da geografia humana. Lisboa: Luna, 1921.


________. ―As características próprias da geografia‖. In: CHRISTOFOLETTI, A.
Perspectivas da Geografia. São Paulo: Difel, 1982.
________. ―A Geografia Política a propósito dos escritos de Friedrich Ratzel‖. Revista
GEOgraphia, Niterói: PPGEO/UFF, ano IV, nº. 7, p. 84-94, 2002.
LACOSTE, Yves. ―A Geografia‖. In: CHÂTELET, François. História da Filosofia. Lisboa: Dom
Quixote, 1977.
________. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas:
Papirus, 1988.
LEAL, Fabiana M. ―Geografia: ciência corográfica e ciência corológica‖. II Encontro Nacional
de História do Pensamento Geográfico. Disponível em:
<http://enhpgii.files.wordpress.com/2009/10/fabiana-machado-leal1.pdf>. Acessado em
junho de 2010.
LEFEBVRE, Henri. A Re-Produção das Relações de Produção. Porto, Portugal: Publicações
Escorpião, 1973.
________. A Vida Cotidiana do Mundo Moderno. São Paulo: Editora Ática, 1991.
________. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
________. Espaço e Política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
LESSA, Sérgio. ―Lukács: trabalho, objetivação, alienação‖. Revista Trans/forma/ação,
Marília: UNESP, V. 15, p. 39-51, 1992
LÉVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente. Campinas: Papirus, 1998.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa: Editora presença, 1952.
LIMA, Elias L. ―Do corpo ao espaço: contribuições da obra de Maurice Merleau-Ponty à
análise geográfica‖. Revista GEOgraphia. Niterói: PPGEO/UFF, ano IX, nº. 18, p. 65-84,
2007a.
________. A Reinvenção da Corporeidade: o cotejo entre a tradição moderna e a tradição
indígena. 2007. Dissertação (Mestrado em Geografia), Niterói: UFF, 2007b.
LOPES, Helena T. Negro e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: UNIBRADE/UNESCO, 1987.
LOWENTHAL, David. ―Geografia, experiência e imaginação‖. In: CHRISTOFOLETTI, A.
Perspectiva da Geografia. São Paulo: Difel, 1982.
LUKÁCS, György. Ontologia do ser social (Ontologia Dell'Essere Sociale), 3 volumes.
(Tradução de Maria Norma Alcântara Brandão de Holanda), 1981.
MANOD, J. O acaso e a necessidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1976.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1968a.
________. Materialismo histórico e existência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968b.
MARINHO, Samarone. Um homem, um lugar: geografia da vida e perspectiva ontológica.
Tese (Doutorado em Geografia), São Paulo: FFLCH/USP, 2010.
MARTINS, Elvio R. ―Lógica e espaço na obra de Immanuel Kant e sua gênese e
contribuição para a Geografia‖. Revista GEOgraphia. Niterói: PPGEO/UFF, ano V, nº. 9, p.
41-66, 2003.
________. ―Geografia e Ontologia: o fundamento geográfico do ser‖. Espaço e Tempo, nº.
21, pp. 33-51, 2007.
224

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 1, volume 1. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1988.
________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2006.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
MÉSZÁROS, István. Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
MONDIN, B. O homem, quem é ele?. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
MORAES, Antonio C. R. de. ―Em Busca da Ontologia do Espaço‖. In: MOREIRA, Ruy (org.).
Geografia: teoria e crítica (o saber posto em questão), Petrópolis: Vozes, 1982.
________. Geografia: pequena história crítica. São Paulo: Annablume, 1993.
MORAIS, Jomar. ―O mistério da vida‖. Revista Super Interessante, São Paulo: Editora Abril,
edição 187, pp. 72-77, 2003.
MOREIRA, Ruy. Geografia, Ecologia, Ideologia: a ―totalidade homem-meio‖ hoje. Anais do
4º. ENG/Rio de Janeiro, 1980.
________. ―A geografia serve para desvendar máscaras sociais‖. In: MOREIRA, Ruy (org.).
Geografia: teoria e crítica (o saber posto em questão). Petrópolis: Vozes, 1982.
________. O Discurso do Avesso (para a crítica da Geografia que se ensina). Rio de
Janeiro: Dois Pontos, 1987.
________. O círculo e a espiral, a crise paradigmática do mundo moderno. Rio de Janeiro:
Obra aberta, 1993.
________. O Que é Geografia. São Paulo: Brasiliense, 1994.
________. ―Alfred Hettner (Nossos Clássicos)‖. GEOgraphia, Niterói: UFF/EGG, ano II, nº. 3.
p. 141-142, 2000.
________. ―Max Sorre (Nossos Clássicos)‖. GEOgraphia, Niterói: UFF/EGG, ano V, nº. 10.
p. 135-136, 2003.
________. ―Marxismo e Geografia (a geograficidade e o diálogo das ontologias)‖.
GEOgraphia, 2004, ano VI, no. 11, p. 21-37, 2004.
________. Pensar e Ser em Geografia. São Paulo: Contexto, 2007.
________. ―Espacidades: uma reflexão sobre o problema da Ontologia do espaço‖. In:
OLIVEIRA, Márcio P., COELHO, Maria C. N., CORRÊA, Aureanice de M. O Brasil. A
América Latina e o Mundo: Espacialidades contemporâneas (I). Rio de Janeiro: Lamparina:
Anpege, Faperj, 2008.
________. ―Da espacidade ao espaço real: o problema da teoria geral a propósito do
simples e do complexo em geografia‖. In: MENDONÇA, F., SAHR, C., SILVA, M. Espaço e
tempo: complexidade e desafios do pensar e do fazer geográfico. Curitiba: ADEMADAN,
2009.
MORENTE, Manuel G. Fundamentos de Filosofia: lições preliminares. São Paulo: Ed.
Mestre Jou, 1970.
MORIN, Edgar. ―O sistema, paradigma e/ou teoria‖. In: MORIN, Edgar. Ciência com
consciência. Portugal: Publicações Europa-América, 1990.
NIETZSCHE, Friedrich. A origem da tragédia. São Paulo: Editora Moraes, s.d.
225

________. Ecce homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM,
2003.
________. Humano, demasiado humano. São Paulo: Rideel, 2005
________. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2007a.
________. Para além do bem e do mal. São Paulo: Martin Claret, 2007b.
________. Aurora. São Paulo: Editora Escala, 2007c.
________. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2008.
PIERUCCI, A. F. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999.
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. ―A geografia está em crise, viva a geografia!‖. In:
MOREIRA, Ruy (org.). Geografia: teoria e crítica (o saber posto em questão). Petrópolis:
Vozes, 1982.
________. (Des)Caminhos do Meio Ambiente. São Paulo: Contexto, 2006a.
________. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2006b.
QUAINI, Massimo. A construção da Geografia Humana. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
________. Marxismo e Geografia. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
QUIJANO, Aníbal. ―Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina‖. In: LANDER,
Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires:
CLACSO, 2005.
RAJNEESH, Bhagwan Shree. A semente de mostrada (volume I). São Paulo: Tao Editora
Ltda., 1979.
________. Psicologia do esotérico. São Paulo: Tao Editora Ltda., 1980.
________. A nova alquimia. São Paulo: Editora Cultrix, 1993.
RATZEL, Friedrich. Ratzel: geografia (Série: Grandes cientistas sociais). São Paulo: Ática,
1990.
RECLUS, Elysée. ―O renascimento‖. Revista GEOgraphia, Niterói: PPGEO/UFF, ano I, nº. 2,
p. 109-135, 2002.
REYNAUD, A. ―A noção de espaço em geografia‖. In: SANTOS, M. e SOUZA, M. A. O
espaço interdisciplinar. São Paulo: Nobel, 1986.
RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas da formação sociocultural. São Paulo:
Companhia das letras; Publifolha, 2000.
RIBEIRO, Julio C. A geografia das formas espaciais de reprodução da existência humana ao
longo do tempo à luz do materialismo histórico-geográfico. Tese (Doutorado em Geografia),
Niterói: UFF, 2006.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2008.
SALMON, Wesley C. Lógica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.
SANTOS, Carlos. A espacialidade humana: teorizando o futuro. Porto Velho: EDUFRO,
2009.
SANTOS, Douglas. A reinvenção do Espaço: diálogos em torno da construção do significado
de uma categoria. São Paulo: UNESP, 2002.
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
226

SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. Petrópolis: Editora Vozes, 1977.


________. Por uma Geografia Nova: da crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. São
Paulo: Hucitec, 1978.
________. Novos rumos da geografia brasileira. São Paulo, Editora HUCITEC, 1982.
________. Espaço & Método. São Paulo: Studio Nobel, 1985.
________. ―O espaço geográfico como categoria filosófica‖. Revista Terra Livre, nº 5, p. 9-
20, 1988
________. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2004.
________. ―Para que a geografia mude sem ficar a mesma coisa‖. R. RA´E GA, Curitiba, n.
9, p. 125-134, 2005. Editora UFPR, Disponível em:
<http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/raega/issue/view/358/showToc> Acessado em: junho
de 2009.
________. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp,
2006.
________. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Edusp, 2007.
SARTRE, Jean-Paul. ―Jean-Paul SARTRE‖. In: SARTRE, GARAUDY, HYPPOLITE, VIGIER,
ORCEL. Marxismo e Existencialismo (Controvérsia sobre a Dialética). Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1966.
________. El ser y la nada: ensayo de ontología fenomenológica. Madrid: Alianza/Losada,
1972.
________. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Editora Martin Claret, 1998.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro:
Edições de ouro, 1966.
SILVA, Aldo A. D. da. ―A ideia de conexidade em Vidal de La Blache‖. In: SILVA, Aldo
Aloísio Dantas; Galeno, Alex (orgs.). Geografia, Ciência do Complexus: ensaios
transdisciplinares. Porto Alegre: Sulina, 2004.
SILVA, Armando Corrêa da. ―O conceito de Espaço em David Harvey – Implicações
ontometodológicas‖. Anais do 3º. ENG/Ceará, 1978.
________. ―Geografia: conhecimento da crise ou crise do conhecimento?‖ Anais do 4º.
ENG/Rio de Janeiro, 1980.
________. ―O Espaço como Ser: uma auto-avaliação crítica‖. In: MOREIRA, Ruy (org.).
Geografia: teoria e crítica (o saber posto em questão). Petrópolis: Vozes, 1982.
________. ―A renovação Geográfica no Brasil – 1976/1983 (As Geografias Crítica e radical
em uma perspectiva teórica) ‖. Boletim Paulista de Geografia, n. 76, 1983.
________. ―As categorias como fundamentos do conhecimento geográfico‖. In: SANTOS,
Milton e SOUZA, Maria Adélia de (Org.). Espaço Interdisciplinar. São Paulo: Nobel, 1986.
________. O Espaço Fora do Lugar. São Paulo: HUCITEC, 1988.
________. Geografia e lugar social. São Paulo: Contexto, 1991.
________. ―Sujeito e objeto e os problemas da análise‖. Boletim Paulista de Geografia, n.
71, 1992.
________. ―O mercado mundial e a alocação de capital e trabalho‖. In: SANTOS, Milton,
SOUZA, Maria A. de, SCARLATO, Francisco e ARROYO, Monica (orgs.). Fim de Século e
Globalização (o novo mapa do mundo), 1994.
227

________. ―A Aparência, o Ser e a Forma (Geografia e Método)‖. Revista GEOgraphia:


PPGEO/UFF, Niterói, ano II, n. 3, p. 7-25, 2000.
SINGER, Peter. Libertação animal. Porto Alegre, São Paulo: Lugan, 2004.
SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
SOJA, Edward W. Geografias Pós-Modernas: a reafirmação do espaço na teoria social
crítica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1993.
SORRE, Maximilien. Max. Sorre: geografia (Série: Grandes cientistas sociais). São Paulo:
Ática, 2003.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições
Afrontamento, 2002.
SOUZA, Marcelo J. Lopes de. ‖Espaciologia: uma objeção‖. Revista Terra Livre, nº 5, p. 21-
46, 1988.
SPRINGER, Kalina S. Concepções de Natureza na Geografia: reflexões a partir da
produção científica do PPGG – UFPR. (Dissertação de Mestrado), Curitiba: UFPR, 2008.
SZAMOSI, G. Tempo & espaço: as dimensões gêmeas. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
TAAFE, Edward. ―A visão espacial em conjunto‖. Boletim Geográfico (34) 247. Rio de
Janeiro: IBGE, 1975, pp. 5-27.
TATHAM, George. ―A geografia no século dezenove‖. Boletim Geográfico (17) 150. Rio de
Janeiro:IBGE, 1959, pp. 198-226.
THOMAZ JÚNIOR, Antonio. ―Por uma Geografia do trabalho‖. Revista Pegada Eletrônica, n.
3 (número especial), 2002.
TORRES, A. M. A. O. ―La sexualidade em Merleau-Ponty‖. Revista de Sexologia, nº 33.
Madrid: IN.CI.SEX, 1988.
TSÉ-TUNG, Mao. O livro vermelho. São Paulo: Martin Claret, 2006.
TUAN, Yi-Fu. ―Geografia humanística‖. In: CHRISTOFOLETTI, A. Perspectivas da
Geografia. São Paulo: Difel, 1982.
TZU, Sun. A arte da guerra. Rio de Janeiro: Record, 1997.
VALE, Lúcia de F. do. ―A estética e a questão do belo nas inquietações humanas‖. Revista
Espaço acadêmico. Nº. 46, ano IV, 2005.
VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
VELHO, Gilberto. ―Observando o familiar‖. In: VELHO, G. Individualismo e cultura: Notas
para uma Antropologia da Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981.
WEIL, P. e TOMPAKOW, R. O corpo fala, a linguagem silenciosa da comunicação não-
verbal. Petrópolis: Vozes, 1988.
ZERZAN, John. Futuro primitivo. Porto Alegre: Deriva, 2006.

Você também pode gostar