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Marcus Vinicius Leite GRR20165220

NOTA: 10,0

2,0 1 – A Renascença foi, de acordo com o historiador Paul Kristeller, uma época da história
do Ocidente Europeu que abarca cerca de trezentos anos, indo de 1300 até 1600. Considerado
como um período continuador da cultura clássica, para Kristeller, no entanto, é primordial que
não entendamos essa conexão como se tratando de uma apropriação pura e simples, uma vez
que esse pensamento clássico passou também por alterações e inovações ao longo do período
renascentista. Nos escritos humanistas dessa data, percebe-se o tom de que não se trata mais
da Antiguidade, mas sim de um pensamento original. É aí que se constata a inovação, embora
não exclusiva, do Renascimento: a transformação desse conhecimento do período clássico, o
que resultou em algo distinto. Podemos acreditar, então, no Humanismo como sendo, nas
palavras de Kristeller, “un programa cultural y educativo, enen el cual se dessarrollaba um
campo de estúdios importante y limitado.” 1 A sua influência era notada em todos os conceitos
da cultura renascentista.
A própria palavra Humanismo outrora esteve presente no princípio do século XV,
usada, como na definição acima, para mencionar alguém que se atribui a determinada esfera
do conhecimento, os studia humanitatis, que envolviam o estudo da gramática, a retórica, a
história, a poesia e a filosofia moral.Essa ideia encontra-se evidenciada pela enorme
relevância dada às palavras no Humanismo renascentista, o que pode ser visto na produção de
grandes obras da época, muitas delas chegando até os nossos dias, como é o caso dos escritos
de, Erasmo de Roterdam,,Giovanni Della Casa, Pico della Mirandola, entre outros.
Porém, para o autor, o Humanismo renascentista não é o primeiro movimento a
praticar esse m de apropriação da cultura clássica. De acordo com Kristeller, cada época se
apropria de maneira diferente do passado. Para ele:”Cada periodo oferece una seleción y uma
interpretación diferentes de la literatura antigua, y em distintas épocas han tenido flujos e
reflujos más o menos considerables em su popularidade los autores griegos y latinos, junto
com sus obras. Por tanto, no nos sorprenda enternarnos de que
laactitudrenacentistahacialaAntiguedadclásica se diferencia em muchos sentidos de la
medieval o de la moderna.”2

1
KRISTELLER, Paul Orkar. El PensamientoRenacentista y sus Fuentes. Fondo de cultura econômica. Madrid,
1993. P 40.
Com a seguinte afirmação, podemos entender a negação da ideia de ruptura com a
Idade Média, pois o autor a coloca como uma das apropriações e transformações desse
conhecimento. Em suma, o que chegou da antiguidade para os renascentistas foi algo já
atravessado por outras adequações. Um exemplo disso pode ser visto nas obras gregas, que
foram preservadas e traduzidas pelos gregos e pelos árabes no Oriente, e depois acabaram por
ser transmitidas no Ocidente. Essa apropriação nunca se dá, então, em linha única, inteira e
contínua, mas sim de maneira descontinuada. Acerca desses textos, segundoKristeller:“Los
eruditos occidentalesaprendieran de sus maestros bizantinos a estudiarlas obras de
Aristóteles, em su original griego. Los professores humanistas comenzaron a dar
conferencias sobre Aristóteles tomándo-lo como uno de los autores griegos clássicos;
filósofos aristotélicos que habian gozado de uma formación humanista terminaron por ir al
texto original de su principal autoridade. 3
Tais obras, preservadas no idioma original, ativam os interesses dos humanistas, que
se dedicam em estuda-las dessa maneira. E, com os studia humanitatis é dado um passo além:
a produção própria de textos, que se atribui pela influência do contato com a Antiguidade
clássica. É restaurado o latim de Cícero, que serve como modelo para a produção de tratados
cujo tema é a filosofia moral. Há o destaque para as biografias, o registro da vida de alguém
que deveria servir como modelo. Nessas publicações observamos também a importância dada
às sensibilidades, aos sentimentos, que são considerados algo que faz parte da construção
moral do indivíduo. O humano é tratado com alguém digno por ele mesmo, alguém que,
através da fé e da razão, tem as condições para se elevar.
Isso demonstra uma mudança em relação ao centro de atenção dos estudos, que passa
de Deus ao Homem, é este último que, graças à razão, constrói o pensamento. Com relação a
este ser humano, há a preocupação em refletir sobre o seu lugar no mundo, algo que também
não é exclusivo do Renascimento. Nos temas abordados nos tratados de filosofia, política e
estética, verifica-se a importância da figura humana que, no humanismo renascentista, é
detentora de uma visão otimista. Embora não haja uma visão uniforme com relação a isso, há
uma tendência à valorização do homem, de suas capacidades, que devem ser aperfeiçoadas
para que possa ultrapassar as limitações físicas, intelectuais e morais.

2
KRISTELLER, Paul Orkar. El PensamientoRenacentista y sus Fuentes. Fondo de cultura econômica. Madrid,
1993. P 35.
3
KRISTELLER, Paul Orkar. El PensamientoRenacentista y sus Fuentes. Fondo de cultura econômica. Madrid,
1993. P 65.
Através das ideias apresentadas por Kristeller, podemos entender a maneira pela qual
o Humanismo renascentista se relacionou com os escritos clássicos, de maneira a contribuir
com a produção de conhecimento e não como uma mera cópia dos textos. Da mesma forma
como outras tradições, como, por exemplo, a medieval, os pensadores renascentistas também
refletiram sobre as ideias de Aristóteles e de outras personalidades da Antiguidade, e com isso
produziram materiais e ideias próprios que, não raro, podem ser apreciados até os dias de hoje
e tiveram uma grande difusão, vindo a ser de bastante influência para o seu tempo.

2-Pico dellaMirandola parece ter expressado o que podemos chamar de credo


humanista em seu Discurso sobre a Dignidade do Homem. Quais são seus
argumentos em defesa da humanidade? 2,0

Pode-se dizer que Pico dela Mirandolla, humanista erudito que viveu na segunda
metade do século XV na Península Itálica é um produto e também um agente do pensamento
humanista renascentista. Homem da nobreza recebeu uma cuidadosa formação humanista,
veio a estudar direito e circulava nos ambientes intelectuaisde seu tempo. Pico defendia a
interlocução entre a filosofia e a teologia em prol do saber e também se utilizava de fontes de
outras culturas em seus escritos, como as tradições árabes, persas, e hebraicas, obras que lia
em seus idiomas originais. Ele não via oposição entre estas tradições que eram todas formas
de sabedoria e conhecimento, uma característica do humanismo renascentista, que estava na
contramão de fragmentação do pensamento e da especialização. Para o autor, o único caminho
para a verdade, para o bem e para o belo era através da fé e do conhecimento conjuntamente.

Em seu discurso sobre a dignidade do homem, notamos argumentos em favor da humanidade,


onde impera a ideia positiva e otimista do ser humano, característica dessa segunda metade do
século XV. Nesta obra, Pico faz a defesa do lugar que o homem ocupa no mundo. Para ele,
diferentemente dos outros animais, o ser humano não é uma criatura acabada, e ele pode vir a
ser várias coisas. Nesta última afirmação, encontramos um conceito chave do pensamento do
autor: a ideia de liberdade. Pico não trata da aplicação civil da liberdade, mas parte para a
discussão do conceito moral, que nos presenteado por Deus: ele nos fez livres. No entanto,
essa criação divina é apenas o ponto de partida de nossa jornada, pois o homem como criatura
inacabada tem a liberdade para se aperfeiçoar ou não. Com esse conceito, o autor foge de
determinismos.

Essa ideia de Pico pode ser observada quando o autor nos fala que: “Estabeleceu, portanto, o
óptimo artífice que, àquele que nada de especificamente próprio podia conceder, fosse
comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como
obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: “Ó
Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem
tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto,
aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A
natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo
contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-las-á para ti, segundo o teu
arbítrio, a cujo poder te entreguei... Poderás degenerar até os seres que são as bestas,
poderás regenerar-te até as realidades superiores que são divinas, por decisão do teu
ânimo”.4
O autor nos fala que, para que possa realizar esse aperfeiçoamento, o homem precisa
de conhecimento, e há vários caminhos pelos quais ele pode ser obtido. A religião é um deles.
Porém, a tradição de outros povos é também um caminho que deve ser trilhado, uma vez que
eles também levam à verdade, e não são contraditórios. Ele mesmo não se julga propagador
de uma só escola, mas procura o conhecimento nas mais diversas tradições, incluindo até
mesmo os antigos mistérios orientais e a magia, que, em sua vertente do bem, o autor trata
como a realização da filosofia natural. Segundo Pico:“Quis apresentar as conclusões não de
uma só doutrina, como teria agradado a alguns, mas de todas, de modo a que, do confronte
de muitas escolas e da discussão de múltiplas filosofias, o fulgor de verdade de que Platão
fala nas Cartas resplandeça nas nossas almas, como um sol nascente no céu.”5
Podemos perceber uma abordagem conciliadora com a qual trata as diferentes
correntes de pensamento, sejam elas cristãs clássicas ou orientais, que em sua ótica, são todas
possuidoras da capacidade de elevar os homens, pois são todas fontes de conhecimento, meio
pelo qual o homem deve buscar o aperfeiçoamento.
Muito relevante em sua obra são também os argumentos em defesa da humanidade, com o
papel primário que o ser humano ocupa no universo. Embora a criação dele por Deus seja um
ato não contestado, o homem não é considerado por Pico como uma obra acabada. O texto
confere aos homens a liberdade, característica que deve ser usada para que se aperfeiçoem,
ainda que ela não esteja apenas condicionada por isso, uma vez que as pessoas podem
escolher se aproximarem das bestas se assim desejarem.

3,0 3- Não foi só na Península Itálica em que o fenômeno do Renascimento ocorreu.


Foram produzidos grandes escritos nos países do Norte da Europa e, dentre eles, pode-se
destacar as obras de Desidério Erasmo de Roterdam, cujas publicações alcançaram grande

4
DELLA MIRANDOLA, Giovanni Pico. Discurso sobre a Dignidade do Homem. Edições 70, Lisboa: 1989. P. 51
5
DELLA MIRANDOLA, Giovanni Pico. Discurso sobre a Dignidade do Homem. Edições 70, Lisboa: 1989. P. 85
influência em toda a Europa Ocidental.HolandesHolandês e oriundo de uma família um tanto
pobre, Erasmo teve sua educação inicial nas escolas dos Irmãos da Vida Comum, e doutorou-
se no curso de Teologia da Universidade de Paris. Já em carreira religiosa, escreveu um
grande número de obras. Vivendo no período da Reforma Protestante, compartilhava parte
dos ideais de Lutero, acreditando que a Igreja precisava de mudanças, mas que estas deveriam
ser internas, e não se tratarem de uma cisão, como acabou por ocorrer. Dentre as obras
escritas por Erasmo, está O elogio da loucura.
A obra crítica de Erasmo utiliza-se da tradição medieval de trazer pessoas chamadas
de bobos, ou seja, pessoas não sensatas, para que falassem verdades aos poderosos – atitude
que, em virtude de sua loucura, não era punida. Outro elemento presente em O elogio da
loucura é a ideia de inversão do mundo, onde as coisas se encontram ao contrário do que
deveriam ser. Através do riso, o autor procura colocar atitudes da sociedade em destaque, a
Loucura coloca em evidência os atos dos homens, ridicularizando as suas ações. Nessa visão
negativa do mundo em que vive, Erasmo utiliza o riso como um instrumento de crítica.
Na introdução de sua obra, o autor apresenta uma carta a Thomas More, humanista
inglês de quem é próximo. Dirigindo-se para um igual, ele faz questionamentos retóricos
acerca da natureza de seu texto, da validade de utilizar o humor como crítica às ações dos
homens.
O texto do O elogio da loucura traz a própria Loucura como uma personagem
feminina, falando em primeira pessoa, e construindo uma exaltação para si mesmo. Ela
apresenta sua crítica à família, ao casamento, aos príncipes, aos eruditos, ao poder religioso –
representado pela Igreja. Diz-se acompanhada de um séquito de criados, o amor-próprio, a
adulação, a volúpia, o esquecimento, o horror à fadiga, a irreflexão e a delícia, e se apresenta
como alguém que estende seu domínio “sobre todas as coisas, e até os monarcas mais
absolutos estão submetidos ao meu império (da loucura)”.6
Através da sátira, a Loucura ilumina e ridiculariza as ações humanas, falando sempre
em um duplo sentido que tem por finalidade levar o leitor à reflexão. Dentre os comentários
da personagem narradora, vemos a afirmação da inutilidade dos filósofos. Ela os trata como
verdadeiros loucos, respeitáveis somente pela barba e pela túnica, que se dedicam a debates
sobre a infinidade de mundos, atos que são infrutíferos e que não levam ao conhecimento.
Eles vivem em um mundo insensato, onde os seres humanos só se interessam por ouvir
pregadores dizendo bobagens, e não se encontram dispostos a dar atenção para oradores
sérios. A respeito desses gostos humanos, a Loucura fala que: ”Se, agora, fazeis questão de
6
ROTERDAM, Erasmo. O Elogio da Loucura. Atena Editora: 2002. P. 8
saber por que motivo me agrada aparecer diante de vós com uma roupa tão extravagante, eu
vo-lo direi em seguida, se tiverdes a gentileza de me prestar atenção; não a atenção que
costumai prestar aos oradores sacros, mas a que prestais aos charlatães, aos intrujões e aos
bobos das ruas”.7
Muitas outras pessoas são também alvo de sua crítica: o vulgo, retóricos, oradores,
teólogos, alvo da mais longa crítica, monges, os cães de Deus. De maneira diferente da obra
de seu amigo Thomas More, o comentário que Erasmo, dando voz à Loucura, faz sobre os
príncipes não recebe tanto destaque, embora ela comente que estes se comportam da maneira
oposta ao que deveriam, e só pensam em enriquecer e viver no luxo, cercados de cortesãos.
Ainda com relação aos grandes da corte, os cortesãos, lembrando que o autor nunca foi um
deles, a personagem fala: “Passemos, agora, aos grandes da corte. Não há escravidão mais
vil, mais repulsiva, mais desprezível do que aquela a que se submete essa ridícula espécie de
homens, que, não obstante, costuma ganhar para si, de alto a baixo, o resto dos mortais.
Convenhamos, porém, que são modestíssimos num único ponto: é que, satisfeitos de possuir o
outro, as pedras, a púrpura e todos os outros símbolos da sabedoria e da virtude, cedem
facilmente aos outros o cuidado da sabedoria e da virtude. Para eles, a maior felicidade
consiste em ter a honra de falar ao rei, de chamá-lo de Senhor e Mestre Absoluto, de fazer-
lhe um breve e estudado cumprimento, de poder prodigalizar-lhe os títulos faustos de Vossa
Majestade, vossa alteza Real, Vossa Serenidade, etc”.8
O texto segue sem admoestações, apenas se utilizando do riso para mostrar seu ponto
de vista. Podemos tentar entender essa crítica de Erasmo ao mundo que o cerca como, talvez
um alerta. Os homens, de todas as categorias sociais, estão entregues à Loucura. A crítica aos
costumes e à moral é muito presente nessa obra, e, sendo um humanista, o autor poderia teria
visto e refletido sobre essas atitudes no dia-a-dia. A corrupção que vê entre os homens da
Igreja, a atitude mesquinha e gananciosa dos príncipes e de seus cortesãos, a insensatez de um
povo que não está disposto a ouvir palavras sérias, não devem ser tomadas como literais, pois
são todas figuras que ele utiliza para construir esse mundo, que parece invertido, sob o
controle de sua personagem. Ele então alerta a humanidade, mas lhes oferece também uma
alternativa, outro lado da Loucura: a busca pela sabedoria, pela elevação, onde ser
considerado um louco por isso configura-se como algo positivo. Vemos, então, que a maneira
pela qual Erasmo traz a sua crítica social é também a maneira pela qual ele oferece uma saída.

7
ROTERDAM, Erasmo. O Elogio da Loucura. Atena Editora: 2002. P. 5
8
ROTERDAM, Erasmo. O Elogio da Loucura. Atena Editora: 2002. P. 53
Por fim, podemos dizer a Loucura a todos domina dos reis aos plebeus. Ela pauta
todas as ações dos homens, e ninguém pode lhe escapar. No entanto, Erasmo nos apresenta,
no encaminhamento final da sua obra, outro tipo de Loucura e, na voz de sua personagem,
apresenta a ideia de que “Procura-se muita sabedoria para se poder passar por louco”.9 Essa
é a loucura espiritual, divina, a elevação do ser que é vista em autores pagãos e cristãos, que
têm a Loucura como guia. Percebemos aí uma visão otimista e positiva dessa humanidade tão
escarnecida com o riso da Loucura na primeira parte da obra.

3,0 4- Thomas More, um inglês de formação humanista, viveu e produziu sua obra na
Inglaterra dos Tudor, em um momento que coincidiu com a Reforma religiosa que acabou por
criar o Anglicanismo. Tendo cursado dDireito em Oxford, More teve participação ativa nos
negócios públicos, sendo eleito membro do pParlamento e pulando galgando posições até
tornar-se chanceler da Inglaterra, importante cargo no Estado a corte. NÃO CONFUNDA
ESTADO COM CORTE.
Em seu livro A Utopia, publicado em 1516, faz uma grande crítica às entidades e à
mesquinharia humanas. O livro se constrói com relatos do explorador português Rafael
Hitlodeu, palavras de More e mesmo diálogos entre os dois, exposição de ideias em debates
que são, algumas vezes, conflitantes. A primeira parte da obra é fundamentalmente crítica à
sociedade da sua época, a u topia, o mundo reverso dos vícios. É o nosso mundo, que ele
aborda de forma realista, deixando de lado o recurso satírico. A segunda parte de sua obra é a
descrição da Utopia, palavra de sua autoria, que se trata de um lugar feito somente pelos
humanos, uma escolha humana, um mundo melhor. Essa Utopia é retratada com uma visão
bastante positiva, um local de igualdade e fraternidade, ainda que de forma limitada.
No primeiro momento da obra, vemos a grande crítica à sociedade inglesa na qual
More viveu. De maneira diferente de Erasmo de Roterdam, que centrou sua crítica nos
costumes e desvios morais, o autor de A Utopia nos apresenta a crítica social, especialmente
no que se refere a propriedade privada, algo que não se vê em outros humanistas
Em um diálogo com Hitlodeu, o autor defende a ideia de que os humanistas devem ter um
lugar com os governantes, enquanto o explorador afirma que não, pois os príncipes não teriam
interesse no discurso pregado por ele, pois voltam suas energias somente para a guerra, o
poder, e não se preocupam com o bem comum, tampouco com a paz ou a justiça. Com relação
a isso, o autor, dando voz ao explorador, nos diz que:“Platão observa que quando os sábios
vêem o povo sair pela rua sob um aguaceiro, ficando completamente ensopado, e constatam
9
ROTERDAM, Erasmo. O Elogio da Loucura. Atena Editora: 2002. P. 58
que não conseguem se convencer as pessoas as se abrigarem da chuva, são-se conta, então,
de que é inútil sair e molhar-se com os outros. Contentam-se em ficar abrigados em suas
casas, já que não podem curar a tolice dos outros.”10

Outro exemplo desses equívocos da sociedade é a pena de morte, adotada na


Inglaterra. Para Rafael, o governante é responsável pelo bem comum, mesmo em detrimento
de si próprio. Mas, o que os reis fazem é levar a violência, não somente em suas terras, mas
também em domínios alheios. Sendo assim, não é possível servir aos grandes .
O autor também faz uma dura crítica ao acúmulo de riquezas. No período dos
cercamentos e do capitalismo comercial, a concentração de riqueza nas mãos de poucos gera o
aumento da pobreza, algo muito questionável do ponto de vista da moralidade. Percebe-se aí a
relação que ele faz entre a pobreza e a propriedade privada.
A filosofia também é abordada criticamente nos diálogos entre o navegador Hitlodeu e
More. Questionando-se se haveria lugar para os filósofos junto aos príncipes, o autor afirma
que não se refere aos escolásticos, mas sim aos humanistas, a quem se incumbiria a tarefa de
dobrar os príncipes, para que estes governassem de maneira justa. Já de maneira mais realista,
ele defende que os filósofos tem um papel, se não para aperfeiçoar o homem, pelo menos para
diminuir a intensidade do mal e então, talvez, a sua influência possa ser benéfica aos
governantes. Com relação a essa filosofia humanista, o próprio Rafael Hitlodeu é quase
caracterizado como um representante, porém é um homem do mundo. Ele não possui
conhecimento dos livros, mas sim a sabedoria da experiência: fala grego e latim, e conheceu o
mundo através de suas viagens.
Na sua segunda parte, o livro vem em direta oposição à primeira. É a inversão do
mundo, colocando-o de volta no eixo, da maneira como tudo deveria ser. Ela trata da
descrição da República perfeita: Utopia, uma ilha, onde o próprio Hitlodeu esteve em uma de
suas viagens, e está localizada em algum lugar no Novo Mundo – embora a localização exata
não tenha sido revelada pelo navegador. No seu relato, ele nos conta que é um lugar cujo
princípio fundamental é a ordem, baseado na razão e nas virtudes da bondade, da paz, da
justiça e do autocontrole.
Nessa sociedade, são os homens velhos quem detém o poder, por serem mais
experientes, o que indica uma clara distinção de gênero. Ainda assim, impera a uniformidade
e a igualdade social, e tudo funciona em aspectos racionais. Essa questão da igualdade coloca

10
MORE, Thomas. A Utopia. Editora UnB: Brasília, 2004. P.41
em dúvida a existência da liberdade. O bem comum existe, e tudo o que é produzido é
dividido entre todos – que separa fundamentalmente a sociedade perfeita e a imperfeita.
Porém, existem escravos em Utopia, e isso não é apresentado como uma contradição
para o autor. A escravidão se dá por dois caminhos: como punição ou, no caso de pessoas de
fora, piedade, visto que teriam cometido crimes em outros lugares e, em Utopia, poderiam
viver como escravos, evitando a pena de morte das outras sociedades, contraponto claro às
execuções inglesas. Essas pessoas estariam destinadas ao trabalho pesado e sujo, que não seria
realizado pelos utopianos. Ainda com relação ao trabalho, era estabelecido que todos
deveriam trabalhar no campo um ano de suas vidas, e, com a distribuição igualitária da
produção, não haveria fome.
Nos escritos sobre a Utopia, a falta de liberdade se verifica como uma questão
importante. Lá, as pessoas estão sempre sendo observadas: não pode haver grupos e todas as
discussões devem ser realizadas de maneira coletiva, de modo a evitar conspirações. Este
último ponto reflete, também, as preocupações da sociedade inglesa quinhentista. As
diferenças não são aceitas na ilha, pois nada pode mudar em Utopia, e o único tipo de
liberdade é a que tange as escolhas religiosas. Até mesmo as atividades de lazer são
reguladas: as conversações, leituras e práticas musicais.
Já a questão religiosa nos remete diretamente ao contexto da Inglaterra do século XVI,
da Reforma realizada no governo de Henrique VIII, presenciada por More, que se coloca
contra as atitudes do monarca. Na ilha, os habitantes ficaram impressionados em ouvir sobre
Cristo, e se mostraram abertos à nova religião. Sobre a liberdade religiosa em Utopia,
segundo o relato de Hitlodeu: “Os utopieneses que não adotaram a religião cristã, não
procurar dissuadir ninguém a não adotar.Também não criticam qualquer pessoa por fazê-lo.
Enquanto eu estive lá, houve apenas um caso de alguém que teve problemas com a lei. Logo
após ter sido batizado, passou a pregar a fé cristã com mais zelo do que discrição. Nós o
alertamos para não o fazer, mas ele, em sua exaltação, dizia que não apenas preferia a nossa
religião, mas também que condenada todas as demais religiões como profanas em si mesmas
e que levavam seus sacrílegos seguidores a merecerem as chamas do inferno. Depois de agir
por um bom tempo dessa maneira, foi preso. Eles o acossaram e o julgaram não por ter
desprezado sua religião, mas por provocar desordem pública. Foi considerado culpado e
condenado ao exílio. Uma das mais antigas instituições de Utopia é aquela que diz que
ninguém pode ser agredido em razão de sua religião”.11

11
MORE, Thomas. A Utopia. Editora UnB: Brasília, 2004. P.114.
Se opondo ??? a crítica moral de Erasmo, More volta-se mais contra a organização da
sociedade, com particular interesse pela questão da propriedade. A descrição da sociedade que
faz na primeira parte de seu livro é de um lugar que parece sem ordem, onde as diferenças
entre as pessoas são enormes, e a tolerância para com as diferenças parece não existir, a
exemplo da perseguição religiosa empreendida por Henrique VIII. Utopia parece, nesse
sentido, ser uma imagem oposta da sociedade inglesa, um lugar pautado pela ordem, sem a
propriedade privada, onde a produção é dividida entre todos. No entanto, como já comentado,
há distinção de gênero e escravidão presentes nessa utopia.
Enfim, é importante notarmos que a obra do autor não fala de uma sociedade
futurística, ou então de algo que já tenha passado, nem mesmo de um lugar que seja criado
pelos deuses. O pensamento utópico de More está voltado para uma sociedade que existe no
tempo presente – onde o navegador Hitlodeu havia estado – que é fruto apenas do
empreendimento humano. Contudo, essa ilha, distante do Velho Mundo, é um lugar aonde o
preço a pagar por essa perfeição é a condição de que não se experimenta a liberdade. O
controle sobre as pessoas é grande, e assim a sociedade se mantém sem mudanças. Isso abre
espaço para questionarmos o quão perfeita é a República descrita por no livro de More.

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