Você está na página 1de 3

TIDRE, Polyana.

A proposta hegeliana de organização política a partir da crítica ao Estado


como “propriedade privada”. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, ano 15, n. 26, 2018,
p. 102-128.

1.Hegel em contexto
No texto sobre a Reforma Inglesa, Hegel afirma que a Alemanha estaria mais
avançada na instauração de instituições de liberdade real. Porém, a Alemanha havia
passado por uma transformação a partir de 1815 que parece contradizer Hegel, com
a Restauração após a vitória de Napoleão, os decretos de Karlsbad e a perseguição
aos “demagogos” [Demagogenverfolgung]. – 104 – A afirmativa de Hegel pode ser
interpretada de duas formas. Em uma primeira interpretação, influente a partir da
metade do século XIX, Hegel seria um defensor do Estado prussiano e da
Restauração. Entretanto, a última parte do texto foi vetada na própria Alemanha.
Pelo contrário, a crítica ao país estrangeiro, segundo Weil, seria uma crítica ao
Estado prussiano existente, já que o Estado pintado por Hegel em muito
correspondente ao Estado prussiano de sua época. Mas Weil destaca que Hegel
parecia sim nutrir uma admiração pelo princípio do Estado prussiano. – 105 – Por
exemplo, na propriedade de terra passar a ser alienável, na abolição da maioria dos
direitos da nobreza e na abolição do trabalho gratuito dos camponeses. Assim, na
comparação com a França e Inglaterra de sua época, a Prússia seria sim um Estado
mais avançado. - 106
2.A crítica de Hegel à instrumentalização do Estado em prol de interesses particulares
2.1 Crítica ao Estado de privilégios
Hegel critica os protestos da aristocracia contra a redução de seus privilégios.
Enquanto aquela afirma que isso conduziria à anarquia, citando a França como
exemplo, Hegel defende que a mudança seria um incremento no bem-estar e na
liberdade. Em um panorama mais geral, Hegel critica a ideia de que a administração
do direito é uma forma de violência ou despotismo, uma opressão da liberdade. –
108 – Assuntos que afetam a vida de todos, como a condução política e a circulação
da propriedade, não podem ficar submetidos à decisão arbitrária de interesses
particulares.
Além dessa crítica à aristocracia, Hegel critica os empresários e o pagamento de
propina para obtenção de votos e compra de mandatos. – 109 – Hegel afirma que
essas possibilidades se opõem ao princípio moderno de que apenas a vontade
abstrata dos indivíduos deveria ser representada. A predominância de interesses
privados e vantagens financeiras levariam a uma perda da liberdade política. - 110
2.2 Crítica à democracia
Hegel se opõe também à monarquia eletiva, frente a qual defende a monarquia
absoluta. Losurdo, porém, alerta que essa seria uma crítica ao modelo da Polônia,
no qual barões defenderiam seus interesses privados contra o monarca, impondo-
lhe esse modelo. Em PR, porém, a crítica à vontade geral de Rousseau claramente
extrapola os limites do exemplo polonês. Hegel se coloca contra a ideia de uma
soberania do povo sendo exercida sobre o Estado independentemente de qualquer
articulação ou representação. – 111 – O povo, na sua abstração, é aquele que não
sabe o que quer.
Em ERB, Hegel, apesar de defender de forma geral a abertura parlamentar, alerta
para os riscos da entrada desses atores inexperientes, que poderia levar impedir a
implementação dos princípios da liberdade, igualdade ou soberania do povo. O risco
seria de introduzir esses princípios seguindo a forma abstrata da experiência
francesa, levando à violência. O risco seria ainda maior, pois os novos eleitos
tentariam garantir seu apoio junto ao povo e cederiam às suas exigências – 112 -, o
que apenas reduziria a hierarquia política. A falta de um poder intermediário
agravaria ainda mais estes riscos. - 113
3. A concepção hegeliana de organização política
3.1 O funcionariado
Em PR, os funcionários atuam no âmbito do governo propriamente dito, como os
poder jurídico e policial. Sua função é subsumir os casos particulares ao universal.
Isso é retomado em ERB, onde a função é descrita como sendo a implementação
dos princípios abstratos. – 114 – É aqui que o exemplo da Alemanha estaria a frente
da Inglaterra e França, com o papel desempenhado pelos funcionários estatais na
Prússia durante as reformas entre 1806-1819. Seria uma espécie de reforma
introduzida por cima. Para Weil, essa posição seria decorrente da desilusão de
Hegel com as revoluções ao mesmo tempo da constatação do progresso
consistente no caso da Prússia.
Para isso funcionar, Hegel desvincula a ocupação do cargo da posse privilégios,
como ainda ocorrida na Inglaterra. No lugar do privilégio, Hegel defende o
conhecimento e as capacidades. – 115 – Ele fala em um processo de seleção
objetivo, democrático e acessível a todos com a competência profissional para tal. –
116
(...)
“Oferecendo uma interpretação que, a nosso ver, se aproxima mais fielmente da
posição assumida por Hegel nas Linhas Fundamentais, Weil caracteriza o estado
universal constituído pelo funcionariado como “essencialmente a-político”, distinto
portanto dos estados formados por um lado pelos agricultores e proprietários de
terra, e por outro pelos membros da indústria e do comércio. Mas Weil vai além,
afirmando que é justamente esse apolitismo partidário do estado representado pelo
funcionariado que, o desvinculando de todo interesse privado, o torna, de todos os
estados, o mais influente.” - 119
3.2 Corpos representativos sócio-profissionais e participação política
Os Stände de Hegel não são os antigos estados socias ou corporações, mas seria
um novo sistema de representação baseado na diferenciação social. Acontece que,
na sociedade moderna, essa diferenciação social não seria mais decorrência do
nascimento ou fortuna, mas da divisão técnica do trabalho, da escolha de atuação
profissional de cada um. Isso também evita que o cidadão atue apenas como
indivíduo atomicamente isolado – 121 -, principalmente no caso do segundo
estamento, o da indústria e comércio. Através desses grupos, o cidadão defende
interesses que não são meramente privados, mas interesses particulares comuns
ou comunitários [gemeinschaftliche besondere Interessen].
Ou seja, Hegel não rejeita a ideia de soberania popular in totó, mas sim a ideia do
povo como ator político desorganizado, como agregado de pessoas privadas na
defesa de seus próprios interesses (vulgus) em contraste com o povo organizado
(populus). – 122 – A primeira daria origem a uma forma de representação, na qual
teríamos mera defesa de interesses particulares [Vertretung, Stellvertretung], e a
segunda a uma representação de interesses sociais alcançando o universal
[Repräsentation]. Isso garante a participação da particularidade no Estado, mas não
como meros interesses particulares. - 123

Você também pode gostar