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Nossas pesquisas começaram a partir do contato com a dança, que nos foi
apresentada dentro de uma metodologia distinta, outrora se distancia do senso comum,
pois se trata de uma ambientação que busca atender às necessidades ditas inclusivas. A
dança adotada pelo o projeto de extensão “Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e
Comunidade” desenvolvido na cidade de Goiânia-GO, é realizado pela a Universidade
Federal de Goiás, como cadastro de extensão, em parceria com o Grupo Dançando com
a Diferença (GDD) de Portugal dirigido por Henrique Amoedo, que desenvolveu o
conceito de dança inclusiva.
1
Luana Katielly Araújo Ferreira Reis- Graduada em História (UEG) e Habilitação Técnica
Profissional de nível médio em Arte Dramática pelo Instituto Tecnológico de Goiás em Artes Basileu
França, integrante do projeto de extensão - Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade.
2
João Victor Frazão de Oliveira- Graduando no Curso de Teatro (UFG), integrante do projeto
Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade.
3
Marlini Dorneles de Lima- Doutora em Artes pela IDA-UnB, docente do Curso de Dança e do
Programa de Pós- Graduação em Artes da Cena da UFG, Coordenadora e diretora artística do projeto
Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade. Coordenadora das Ações Afirmativas da
Universidade Federal de Goiás (UFG).
4
Robson Felipe dos Santos Leles- Licenciado em Educação Física (UFG), Graduando no Curso de
Licenciatura em Dança (UFG), Habilitação Técnica Profissional de nível médio em Arte Dramática pelo
Instituto Tecnológico de Goiás em Artes Basileu França e em andamento o Curso em Habilitação Técnica
Profissional de nível médio em Dança Contemporânea pelo Instituto Tecnológico de Goiás em Artes
Basileu França.
Deste modo faz-se necessário apresentarmos os sujeitos que se encontram em
diálogos com a nossa criação, que de maneira plausível vem contribuindo para o
crescimento perceptivo do nosso trabalho advindo de uma pesquisa que está em
processo dentro do “Projeto Dançando com a Diferença”, e vem se reconhecendo
enquanto performance “Como olha para mim?”.
Assim, precisamos nos apresentar, afinal de contas, quem somos e de onde
partimos enquanto sujeitos desta performance, Luana Katielly e João Victor Frazão,
artistas criadores, possuem vivências coletivas somadas com trabalhos na linha de
pesquisa sobre teatro inclusivo, e por conseguinte possuem formação em teatro, e
atualmente somos integrantes do projeto “Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e
Comunidade”.
Compreendemos que este trabalho não teve um diretor da maneira tradicional
como visualizamos num processo de criação em teatro ou dança, pois o mesmo foi
sendo construído de maneira fluida e não hierárquica, dentro do conceito de artistas
criadores num contexto da performance, e assim, muitos olhares e colaboradores
fizeram parte desta trajetória criativa e performática, o que denominamos neste relato de
lugares/olhares de direção.
Lugares/olhares que em primeiro instante se faz comum no teatro, no sentido em
que Luana Katielly e João Victor Frazão trazem questões individuais referentes ao
estado de presença dentro do projeto, que são despertadas por meio de inquietações, no
qual as mesmas conduz o encontro com Robson Leles, parceiro de trabalho no teatro.
Questões que trazem angústias, questionamentos sobre a existência de Luana Katielly e
João Victor Frazão no projeto mencionado: Porque estamos aqui? Como eu olho para
mim? Será que ver é o mesmo que enxergar? Estou sendo preconceituoso ao observar e
subjugar meus colegas na dança? Qual o papel da arte diante destes questionamentos
que acionam estados de alteridades?. Deste modo Robson Leles provoca nos artistas a
ânsia criativa, assumindo um lugar/olhar de direção, no provocar da arte como
transformação, possível de apresentar respostas, diante do que eram e gostariam de ser
dentro do projeto, reafirmando assim como parceiros de vida, que também se encontram
em olhares dançantes.
Estimulados por tais questionamentos que estavam em nós e nos lugares/olhares
dos sujeitos que estavam compondo este trabalho, podemos citar algumas reflexões que
enfatizam o papel da arte intrínseco à sociedade, que não só habita, mas produz e é
produzida intrinsecamente na sua época e na organização social vigente, Wolff (1982, p.
13), nos lembra que:
[...] o nome de estado somático (soma em grego significa corpo). Além disso,
ele observou que todo estado corporal „marca‟ uma imagem ou um fluxo de
imagens como uma espécie de cartografia que o cérebro faz o tempo todo
mapeando aquilo que acontece no corpo [...] (GREINER, 2019, p. 54, grifo
do autor).
Nesta perspectiva que estamos propondo nos aventurar com esta performance, o
processo de criação foi estabelecido dentro de alguns parâmetros, que se constituem na
prática de exercícios percebidos/experienciados por nós em aula, sentamos no primeiro
momento e discutimos sobre quais movimentações gostaríamos de trabalhar, e
consequentemente teríamos que esquecer o texto já criado, para que não influenciasse
na criação de jogos e partituras corporais. Assim, achamos de extrema importância
trazer: o jogo do olhar, o jogo das cadeiras, às pausas fotográficas, passos de dança que
traziam referências ao bailar, neste caso optamos pela valsa, pois a nosso ver trazia um
corpo presente, elegante, e consciente de si mesmo, porém uma valsa ao ritmo de uma
das sonoridades presentes no espetáculo “ENDLESS”. Apesar de tudo parecer estar
organizado e a prática já estar na nossa memória corporal, era notável a nossa
insegurança, ao pensar como faríamos para dançar aqueles elementos, surge então à
ideia de trazer a nossa insegurança para dentro do trabalho, seria o nosso conflito que
nos levaria a percepção do jogo, diante disso estabelecemos que em cena tivesse: um só
jogador e sua sombra, que denotaria o fator da insegurança, estabelecendo assim que,
João Victor seria o jogador e Luana Katielly a sua sombra. Conforme Cohen (2002, p.
45, grifo do autor), afirma “o trabalho do artista de performance é basicamente um
trabalho humanista, visando libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte,
dos lugares comuns impostos pelo sistema [...]”.
Estava claro que nossas amarras se constituíam desde conhecer o projeto ao
estender da nossa relação de estranhamento, desconforto ao aproximar de nossos
colegas, denotando a ambos os conflitos perceptivos, imbuídos de reflexões que traziam
consigo a indagação de quem sou eu?. Portanto ficou estabelecido que nosso objetivo
cênico fosse provocar um reconhecimento de si, usando o espelho do outro. Dito Cohen
(2002, p. 45, grifo do autor) que “[...] a performance trabalha ritualmente as questões
existenciais básicas [..]”, fica claro que nossa busca de compreender nossos “traumas”
construídos em vivências que delegam a nossa existência, pautada em construções
sociais que ora te afirmam e por conseguinte te excluem, ora te dão poder de fala, e num
fluxo continuo podem instigar o calar-se, e levam a uma percepção cega de si mesmo,
pois apontam para definições prontas, às quais são acatadas pelo homem no calor da
sua necessidade “obrigatória” de se ver enquadrado por padrões que ditam uma “
igualdade”, a qual às alteridades são ignoradas e cobradas como uma “diferença”,
rotulada por preconceitos, achismos, negativando, assim o seu potencial como humano.
“[...] A performance é basicamente uma arte de intervenção, modificadora, que visa
causar uma transformação no receptor [...]” (COHEN, 2002, p. 45-46, grifo do autor).
Nesta perspectiva visando uma transformação primeira de nós mesmos enquanto
artistas, ao apontar que o conflito do jogo partiria da nossa insegurança e ao determinar
que João Victor seria o “ EU” e Luana Katielly “A sombra”, mediante um caráter
revogador de encontrar a si mesmo nos papéis de opressor e oprimido, que hora são
assumidos de maneira consciente e inconsciente que moldam uma razão humana, marca
a sua existência através de julgamentos, e no ato de se defender sobressai com caráter de
emitir sentenças, apontando para uma dualidade que o “SER” rege em busca da
satisfação humana, visto que possuem características boas e ruins. Podemos assim dizer
que estão alienados a um confronto mental, que induzem suas respectivas ações dentro
da sua necessidade de sobrevivência. Jung (2008, p. 102) aponta que “[...] achamos, no
entanto, que o inconsciente se volta contra o consciente, numa atitude hostil ou
inadvertida, quando este último assume uma posição falsa ou pretensiosa”. Essa atitude
falsa desencadeada dentro do conflito anuncia para os performers memórias de
vivências, que ao executar os exercícios no projeto, os seus corpos se olhavam emitindo
julgamentos conscientes com os demais corpos que compartilhavam o local de dança,
deixando os seus olhares “inclusivos” ofuscados, de forma que o inconsciente punha-os
em alerta, gerando um conflito entre as suas convicções inclusivas e o pensar construído
em sociedade que anulam a existência dos corpos com alteridades, onde de forma
consciente os “consumiram” enquanto criação, gerando sentimentos de impotência do
eu e do outro, e potencializando tais reflexões passíveis de uma compreensão, onde
assumimos que o inconsciente também pode revelar questões dentro de uma vontade de
ser, que enquanto consciente é anulada ao apontar padrões.
O performer quando está em cena tenta encontrar um elo entre arte e vida, e
não a separação de ambas. É neste contexto derrisório e árido que o
performer realiza sua insurgência com o objetivo de mostrar penosamente a
todos que participam de sua performance, as ações de sua cultura, pois diante
dessa lancinante circunstância em que os sujeitos viram meros espectros de
suas existências, o performer se rebela contra essa ideia, essencialmente
ocidental, de arte como separada da vida (OLIVEIRA, 2019, p. 30).
Nossas angústias mantém uma pressão interna, alimentando cada vez mais a
insegurança de não conseguir manter uma sincronia no jogo, visto que o mesmo se
estabelece dentro de uma sequência de movimentos corporais que devem ser executados
ao mesmo tempo pelos performers, onde só caminhando para o fim da cena, que se
repelem e assumem jogos distintos que se encaixam, conforme explicaremos mais
adiante. Essas angústias são de suma importância para manter o jogo vivo, conectado, e
ao mesmo tempo focado no olhar, de forma que mesmo ambos performers de costas um
para outro, eles estão se olhando, de maneira que o ver não é enxergar, quando o
enxergar assume a sensação, o sentir, o dar ritmo, a pulsação do outro, dilata o ver.
Exigindo uma responsabilidade na ação que engloba não só “Eles”, mas de toda a
humanidade.
O homem se define como angústia. Isto significa que, toda e qualquer escolha
de alguém, por mais particular que seja, envolve não apenas a ele somente,
mas a todos os seres humanos; com isto não há meio de se esquivar desta
constante responsabilidade plena. Porém, o autor de uma determinada ação,
pode tentar mascarar a ansiedade, para si próprio, achando que suas ações
envolvem apenas ele mesmo [...] (FERREIRA, 2009, p. 03).
Lima (2016, p. 201) adverte que Silva (1999, p. 27), a perspectiva do lugar do
corpo.
“Além de estar no lugar, o corpo é um lugar”, um corpo em movimento que
transgride a cada segundo o seu lugar, e o transforma em outros lugares,
passando a ser um outro lugar, potencializando as dimensões e os sentidos do
lugar. Partindo dessa compreensão, o autor ainda pontua que o corpo em
movimento é um corpo cartografante, um corpo que desenha mapas a partir
de seu percurso. E este, ao se movimentar, desvela os lugares por onde
passou, estabelecendo essa relação entre corpo e lugar.
O processo criativo que conduziu este trabalho artístico traz questões acerca do
corpo, dos lugares e olhares desse e para estes corpos, que remete a formação de
subjetividades de criação de vida e arte, que enaltece a possibilidade de encontrar no
conflito e nas inquietações provocadas pelas dimensões de vida e arte, que aponta um
caminho e permite traçar uma espécie de cartografia para não só descrever estes
momentos, mas, sobretudo se propõe a pensá-los e trazer para a escrita tais questões.
Neste sentido, o convite para acompanhar, observar, lapidar e provocar foi
realizado a outros corpos, a outros olhares, ou como mencionado anteriormente a
lugares/olhares de direção. Olhares que carregam tempos e espaços distintos, não só na
relação com os dois intérpretes, mas de experiência e lugares de fala nas artes da cena,
dança, teatro e em processos de formação. Entretanto este processo de troca vem a
agregar camadas e direcionamentos interessantes à performance, e por estes dois novos
corpos terem suas singularidades, serão apresentados neste momento em dois
momentos, com formas distintas de ver, perceber e colaborar com a performance.
A comunhão existente entre cada parte que constitui o fazer teatral abre o
espaço para o estudo da interatividade. A interação se liga ao teatro, porque
ele é uma arte que só acontece através da coletividade. O teatro é a arte da
dependência, pois necessita de um público. Essa carência é a motivadora
direta da influência que cada elemento de uma apresentação pode causar em
relação aos outros. Essa mistura nada mais é do que a interatividade
(BARROS, 2002, p. 09).
A performance a despeito de apresentar as novas contribuições atribuídas dos
olhares sensíveis, resulta também em novas lacunas encontradas em alguns fatores que
precisam ser trabalhados. Ensaios extras foram programados para a resolução dos
problemas, um desses foi realizado na sala de dança três da Faculdade de Educação
Física e Dança (FEFD) da Universidade Federal de Goiás (UFG). A filmagem sugerida
como envio à professora Marlini concretizava a ideia de manter um contato direto com
as suas contribuições, os corpos se moldaram nos diferenciados ângulos filmados, um
olhar mais profundo foi permitido, uma releitura e um material de vídeo haviam sido
produzidos, coincidência ou não, energias novas foram geradas nesse exercício de
captação, energias presentes em seus corpos, mas que ainda se encontravam
inconscientes sem um estímulo adequado, quando absorvidas gerarão impulsos
energéticos grandiosos para a soma do trabalho existente.
Em relação às apresentações, uma delas ocorreu no segundo semestre de 2019,
em um evento na Faculdade de Educação Física e Dança da UFG, este estava associado
à inclusão. A música “All of Me”, de John Legend se tornou parte do trabalho dos
performers em um dos ensaios, a proposta era que essa música fosse encenada no ato
final compondo a dramaturgia, onde os corpos (consciente e inconsciente) se afastam e
voltam a se encontrar em movimento contínuo e constante, sob a minha percepção o
movimento ocasionado caracteriza a busca pela outra metade de si, a parte que te
complementa, o abraço (o reencontro) é o símbolo representante do encerramento desse
ato e da sintetização da performance.
Uma grande parte da FEFD estava preenchida pelas atividades do evento, a
apresentação que estava programada na sala de dança dois transferiu-se para o pátio, a
mudança de espaço não interferia no processo, contudo o problema remetia-se enquanto
ao ambiente ser externo, ou seja, ao ar livre, nessa ocasião como alertado aos
performers, uma projeção maior tinha que ser atribuída pelo fato citado e pelo
quantitativo de pessoas superior ao que estavam acostumados, se não houvesse projeção
o trabalho perderia qualidade, pois as suas vozes não preencheriam todo aquele espaço.
Espaços abertos e fechados são muito diferentes, sem considerar se são
arquitetados para um cunho artístico ou relacionado com a arte, como por exemplo, os
teatros, uma preparação para todos esses locais deve compor os ensaios de quem se
performa, sendo esse um meio de garantir estar preparado para uma segunda ou terceira
alternativa caso aconteça. Os teatros são construídos como uma espécie de caixa de
ressonância permitindo que o som seja reverberado e projetado por todo aquele
ambiente, o corpo humano também se constitui como uma caixa de ressonância, quando
trabalhado pode estimular o seu potencial máximo.
Vale ressaltar que projetar não se assemelha a gritar, nessa situação a garganta
pode ser prejudicada causando calos e a rouquidão pelo mau uso do aparelho vocal,
nesse dia infelizmente por algum empecilho não identificado no momento, a performer
Luana Katielly acabou gritando e a sua voz se tornou um pouco inaudível dificultando
consideravelmente em termos de sonoridade a sua performance, por isso é importante
frisar nos ensaios um aquecimento e preparação vocal para o fortalecimento desse
aparelho. O trabalho sensível do corpo por outro lado manteve-se de acordo com os
ensaios.
O Centro Especial Elysio Campos, uma escola de surdos localizada nas
proximidades do terminal Praça da Bíblia em Goiânia-Goiás, foi o local da última
apresentação de 2019. Essa escola é um dos campos de estágio do curso de Dança da
UFG, como finalização do semestre naquele campo, um festival foi organizado,
contendo apresentações artísticas estruturadas pelos professores da instituição e pelos
estagiários da UFG, o trabalho artístico “Como olha pra mim?” foi convidado a
participar da programação.
A apresentação sucedeu-se na quadra da escola, mais uma vez um espaço
externo que independente de sua ambientação concedeu um dia de experiência
memorável para os presentes, por conta da conscientização dos elementos, o
crescimento em cena, o trato com a projeção, a voz atingiu os olhares e os corpos, as
feições geraram comoções, o movimento corpóreo teve fluência com a conectividade
dos corpos que assistiam, aquele momento foi vivido, sentido, transportado para um
universo paralelo onde tudo ocorria em um espaço-tempo diferente, diferente no sentido
de transparecer que tudo era possível, de que as diferenças existem, mas por intermédio
do olhar as coisas podem mudar, depende de cada um esse papel.
O contato com o outro era imprescindível, um contato que não se trata a
princípio do físico, mas que se reverbera pelo olhar, um olhar que não se encerra nos
olhos dos performers, mas na extensão que está localizada nos olhos dos espectadores.
Essa performance apresenta, transmite e reflete acerca do “sensível”, com o intuito de
atingir as pessoas internamente com uma mensagem, enxergar o outro precisa ser mais
valorizado, perdemos a chance de conhecer alguém toda vez que não olhamos ou
melhor quando não a enxergamos. A participação nesse processo tem sido revelador
para o trabalho com a inclusão e a diferença, dando novas possibilidades de estar sendo
atuante dentro desse meio instigador e questionador de valores como a sensibilidade.
Um olhar, um corpo que procura suas raízes....! foi assim que Luana descreveu
uma de suas parceiras de trabalho, a coordenadora do Projeto de extensão “Dançando
com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade”. Pensar em raízes, na perspectiva do
rizoma, é compreender a diferença, na potência de um devir, de um eterno recomeço
(DELEUZE, 2018), inspirada também na imagem de raízes de uma árvore que se
repetem nas suas diferenças de formas, cores e texturas, que se dizem a partir de sua
própria diferença e que ao encontrar outras raízes se relacionam e repetem o entrelaçar
que as diferenciam.
Estas reflexões expressam de alguma forma, como foi a participação e a relação
entre a coordenadora do projeto e os performers neste trabalho, que teve início nas aulas
de dança do projeto, mas que logo com o protagonismo e desejo inquieto de criação dos
dois intérpretes ganhou outros lugares e espaço de criação, e então passa a ser um
trabalho independente, mas que ao mesmo tempo foi também alimentada nas esferas
criativas, poéticas e técnicas pelas aulas do projeto e nos processos de socialização dos
diferentes momentos de criação da performance para o grupo.
Refazendo o caminho percorrido pelos intérpretes durante o processo criativo, é
importante lembrar da questão disparadora, enquanto potência para mover os corpos:
Como você olha pra mim? Tal questão surge na participação da coordenadora do
projeto de extensão, em julho de 2018, do ImPulsTanzme, em Viena/Áustria, neste
evento a mesma realizou um Workshop com o artista e coreógrafo Jess Curtis e a
artista e coreografa Claire Cunningham, esta vivência teve como tema disparador
partituras e questões abordadas na performance “Como você olha pra mim hoje à
noite” – desenvolvida e realizadas por estes artistas em colaboração com o filósofo da
percepção Alva Noë. Curtis e Cunningham, apresentaram uma investigação por meio de
diferentes linguagens, de como a diferença, enfatizada na fisicalidade e na experiência
vivida, pode moldar e é moldada pela maneira como construímos nossas
percepções. Este workshop foi acessível a pessoas de diversas fisicalidades, ou seja,
pessoas com e sem deficiência, as questões disparadas após as vivências corporais
individuais e coletivas, foram: Como nós olhamos? Como nos permitimos ser vistos?
Como nossos movimentos e fisicalidades influenciam a maneira como percebemos o
mundo ao nosso redor? Podemos aprender a nos perceber de maneira diferente?
Ao retornar ao Brasil e a Goiânia, tais questões permearam as aulas do projeto
de extensão que tem como uma das características a participação de pessoas e suas
diferenças, ou seja, de pessoas com e sem deficiência, aqui a perspectiva de diferença
vai para além da condição física, cognitiva e sensorial, entretanto ainda precisamos
utilizar esta nomenclatura “pessoa com deficiência”, sobretudo para compreender e
denunciar a biopolítica escrita e denunciada nos corpos, na presença desses corpos com
deficiência na cena da dança, nos discursos sobre inclusão social e na impossibilidade
de autonomia artística para estas pessoas. Ciane Fernandes (2017, p. 132) lembra que
“deficiência tem sido frequentemente associada à incapacidade de andar ou de realizar
atividades diárias sem ajuda, em oposição à maioria das pessoas, que podem se mover
livremente e são consideradas produtivas socialmente”, assim desejamos que chegue o
dia em que a dança é com pessoas e suas diferenças, sem precisar utilizar-se de
definições que as rotulem seja, no aspecto de gênero, faixa etária, etnia ou condição
social e suas fisicalidades.
Este questionamento do diverso, dos corpos diferentes e a pratica da dança,
passando por uma análise crítica e de superação de estereótipos, rótulos e ou
preconceitos, foi observada também na trajetória da entrada dos intérpretes no projeto
de dança, passou igualmente pelo impacto dos intérpretes ao conhecerem os corpos
diversos que frequentam as aulas do projeto, ou seja, o impacto e o estranhamento do
diferente, foi inevitável, e assim como já expresso neste escrito por uma das intérpretes:
Porque estamos aqui? Como eu olho para mim?, Será que ver é o mesmo que enxergar?,
Estou sendo preconceituoso ao observar e subjugar meus colegas na dança? Qual o
papel da arte diante destes questionamentos que acionam estados de alteridades?
E foi a partir destas questões que o trabalho tem um impulso inicial, um motor
de motivação, que avaliamos ser uma resposta quase de sobrevivência dos intérpretes
enquanto integrantes do projeto e daquela diversidade ali apresentada a eles, para além
da diversidade corporal chamamos a atenção para a dança que ali se faz, um proposta de
dança que instiga o percurso de conhecimento de si, de suas potencialidades, de suas
formas, ritmos e expressões, que foge da um ensino de dança que unifica os corpos, a
partir de algumas referências hegemônicas de dança, neste campo de ensino e criação
estamos interessados em não achar este lugar comum. Assim o diferente, os
movimentos diferentes criados por corpos diferentes podem num primeiro momento
ganhar contornos de inferior, e ou não identificado como dança.
Assim, com a passar do tempo, o trabalho de corpo e a dramaturgia deste
trabalho foi sendo desenhado no corpo dos criadores-intérpretes, que ao invés de desistir
de responder estas questões a partir da participação nas aulas e da relação com o
trabalho desenvolvido no projeto, os dois corpos se desafiaram a cada momento da
criação, dar contornos e instaurar no trabalho lugares e momentos de questionamentos,
alimentados pela relação com os outros corpos e logo com o exercício da alteridade,
pois falar do outro, é falar da diferença e de si, no diálogo, nas provocações e trocas
percebemos que os corpos foram sendo conduzidos pelas perguntas e pelas repostas de
como lidar consigo mesmo. Este exercício foi precioso, para o trabalho que lida com as
próprias subjetividades a partir de reflexões existenciais e ao mesmo tempo, pautadas
nas orientações técnicas e poéticas dançantes.
Fica claro que a riqueza dos diferentes olhares e das diferentes experiências
lançadas durante o caminhar da criação foi importante para que os dois criadores, se
aventurassem de forma competente e questionadora em estratégias criativas, que
necessariamente passaram por processos desestabilizadores, Greiner (2019) diz que a
arte deve se alimentar da diferença e jamais bani-la, e ainda que o poder que a mesma
pode nos conceder no sentido de dar visibilidades as crises, podendo explicitar estas
questões as vezes invisibilidades e ou silenciadas na vida cotidiana, o que pode ser
observado na descrição das sensações e percepções fomentadas nos dois artistas durante
a participação das aulas de dança, o quanto as imagens do outro e de si foram
provocadas, para pensar sobre o ser diferente.
Foi observado uma quebra na relação de poder entre os criadores e os outros
olhares, como os da professora Marlini e do artista Robson, a mesma foi permeada por
uma quebra de hierarquia que muitas vezes vista na pratica de direção nas artes cênicas
em geral. Assim, como a reação do público nas inúmeras vezes que esta performance foi
apresentada, podemos observar que o que ficou foi o sentir os corpos e o convite a
alteridade, que dança, canta e fala suas relações e suas construções subjetivas com o
outro e consigo mesmo, e assim os outros se reconhece nos dois corpos, às vezes em
um, as vezes nos dois, suas histórias, conflitos e anseios.
Colaborando com estas percepções que orientaram o olhar para este trabalho,
chamamos a atenção para questões que Ciane Fernandes (2017) nos coloca que os
processos de criação pautados na diferença e na diversidade vem borrando as fronteiras
entre normalidade e anormalidade, padrões sociais e conforto com as próprias certezas
pessoais e, portanto na construção da subjetividade. “Deste modo, a pesquisa através da
prática da dança instala um ambiente de desafio, re-adaptação e a transformação pessoal
e coletiva, exatamente como nos processos de crescimento da vida” (FERNANDES,
2017, p.132).
Assim, as raízes aqui entrelaçadas, digo entre os criadores intérpretes e a
professora de dança, são caminhos de aprendizagens mutuo, de entrelaçamento do ser,
de suas construções e quebras de padrões, de uma busca incansável do corpo em criação
pela “diferença em si” que estes dois intérpretes buscaram e se aliançaram no observar e
conhecer o outro e a si mesmo. “O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que
ele se diz, mas aquilo de que le diz difere: ele se diz da própria diferença” (DELEUZE,
2018. p. 63).
Referências Bibliográficas