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Como olha pra mim?

Um exercício de criação e alteridade

Luana Katielly Araújo1


João Victor Frazão2
Marlini Dorneles de Lima3
Robson Felipe dos Santos Leles4

RESUMO: Este artigo busca compreender as relações humanas dentro do processo


criativo de performance, esclarecendo a diferença entre ver e enxergar que são
norteadoras na compreensão das alteridades dos intérpretes criadores no encontro com
dança, que a mesma propicia para ambos um autoconhecimento, potencializando assim,
o compartilhar da vida por meio da dança com o outro.

Palavras-chave: Dança. Alteridades. Processos Criativos.

1. Introdução: Quem somos?

Nossas pesquisas começaram a partir do contato com a dança, que nos foi
apresentada dentro de uma metodologia distinta, outrora se distancia do senso comum,
pois se trata de uma ambientação que busca atender às necessidades ditas inclusivas. A
dança adotada pelo o projeto de extensão “Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e
Comunidade” desenvolvido na cidade de Goiânia-GO, é realizado pela a Universidade
Federal de Goiás, como cadastro de extensão, em parceria com o Grupo Dançando com
a Diferença (GDD) de Portugal dirigido por Henrique Amoedo, que desenvolveu o
conceito de dança inclusiva.

1
Luana Katielly Araújo Ferreira Reis- Graduada em História (UEG) e Habilitação Técnica
Profissional de nível médio em Arte Dramática pelo Instituto Tecnológico de Goiás em Artes Basileu
França, integrante do projeto de extensão - Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade.
2
João Victor Frazão de Oliveira- Graduando no Curso de Teatro (UFG), integrante do projeto
Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade.
3
Marlini Dorneles de Lima- Doutora em Artes pela IDA-UnB, docente do Curso de Dança e do
Programa de Pós- Graduação em Artes da Cena da UFG, Coordenadora e diretora artística do projeto
Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade. Coordenadora das Ações Afirmativas da
Universidade Federal de Goiás (UFG).
4
Robson Felipe dos Santos Leles- Licenciado em Educação Física (UFG), Graduando no Curso de
Licenciatura em Dança (UFG), Habilitação Técnica Profissional de nível médio em Arte Dramática pelo
Instituto Tecnológico de Goiás em Artes Basileu França e em andamento o Curso em Habilitação Técnica
Profissional de nível médio em Dança Contemporânea pelo Instituto Tecnológico de Goiás em Artes
Basileu França.
Deste modo faz-se necessário apresentarmos os sujeitos que se encontram em
diálogos com a nossa criação, que de maneira plausível vem contribuindo para o
crescimento perceptivo do nosso trabalho advindo de uma pesquisa que está em
processo dentro do “Projeto Dançando com a Diferença”, e vem se reconhecendo
enquanto performance “Como olha para mim?”.
Assim, precisamos nos apresentar, afinal de contas, quem somos e de onde
partimos enquanto sujeitos desta performance, Luana Katielly e João Victor Frazão,
artistas criadores, possuem vivências coletivas somadas com trabalhos na linha de
pesquisa sobre teatro inclusivo, e por conseguinte possuem formação em teatro, e
atualmente somos integrantes do projeto “Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e
Comunidade”.
Compreendemos que este trabalho não teve um diretor da maneira tradicional
como visualizamos num processo de criação em teatro ou dança, pois o mesmo foi
sendo construído de maneira fluida e não hierárquica, dentro do conceito de artistas
criadores num contexto da performance, e assim, muitos olhares e colaboradores
fizeram parte desta trajetória criativa e performática, o que denominamos neste relato de
lugares/olhares de direção.
Lugares/olhares que em primeiro instante se faz comum no teatro, no sentido em
que Luana Katielly e João Victor Frazão trazem questões individuais referentes ao
estado de presença dentro do projeto, que são despertadas por meio de inquietações, no
qual as mesmas conduz o encontro com Robson Leles, parceiro de trabalho no teatro.
Questões que trazem angústias, questionamentos sobre a existência de Luana Katielly e
João Victor Frazão no projeto mencionado: Porque estamos aqui? Como eu olho para
mim? Será que ver é o mesmo que enxergar? Estou sendo preconceituoso ao observar e
subjugar meus colegas na dança? Qual o papel da arte diante destes questionamentos
que acionam estados de alteridades?. Deste modo Robson Leles provoca nos artistas a
ânsia criativa, assumindo um lugar/olhar de direção, no provocar da arte como
transformação, possível de apresentar respostas, diante do que eram e gostariam de ser
dentro do projeto, reafirmando assim como parceiros de vida, que também se encontram
em olhares dançantes.
Estimulados por tais questionamentos que estavam em nós e nos lugares/olhares
dos sujeitos que estavam compondo este trabalho, podemos citar algumas reflexões que
enfatizam o papel da arte intrínseco à sociedade, que não só habita, mas produz e é
produzida intrinsecamente na sua época e na organização social vigente, Wolff (1982, p.
13), nos lembra que:

a arte é um produto social. Argumenta contra a noção romântica e mística de


arte como a criação do „gênio‟, que transcende a existência, a sociedade e a
época, e defende o ponto de vista de que ela é antes a construção completa de
vários fatores reais, históricos (WOLFF, 1982, p. 13).

Os lugares/olhares de direção se estabeleceram no âmbito coletivo, visto que a


nossa primeira orientação de trabalho foi sob o olhar de Robson Leles, que veio como
atribuição técnica em artes dramáticas que se estende a habilidades com a dança, pois se
apresenta como graduando em Dança (Licenciatura) na Universidade Federal de Goiás.
Levando em consideração que a arte é também uma construção completa de
vários fatores reais, e neste caso se tornam sociais, como citado acima, faz-se necessário
elencar o modo que Robson Leles se encontra neste processo com os artistas criadores,
mediante não se denotar até então como integrante do projeto “Dançando com a
Diferença”, nosso encontro como já citado anteriormente vem de um compartilhar da
vida, somos parceiros há algum tempo em distintos ambientes de trabalho e formação, e
em conversas conjuntas sobre nossos trabalhos, João Victor e Luana Katielly apontam
dificuldades ao lidar com o ambiente da dança inclusiva, alegando incômodos, anseios
em compartilhar daquele lugar como contribuição, estabelecendo uma transformação
que se sustenta na contrapartida de nós para eles e vice-versa. Robson nesta perspectiva
adentra ao processo, obtendo como método o instigar nossas angústias, todavia
favorecendo a nossa criação.
Em suma o que veio a nos conectar já era em síntese um fazer poético e o
começo do desenvolvimento da performance “Como olha pra mim?”, foi aos poucos se
consolidando a partir do lugar/olhar também da professora Dra. Marlini Dorneles de
Lima, coordenadora do projeto de extensão que nos agrega um olhar dançante, trazendo
movimentações, fluidez de ritmos, que levaram a caracterizar nossa performance como
um trabalho respaldado na dança. Dentro do campo da dança, éramos acionados a
conhecer nossos repertórios de movimento, mas mais do que isso, nos conhecer
enquanto corpo em movimento, nossas corporeidades em movimento, que em algumas
circunstâncias eram silenciados pelo nosso próprio olhar para nós mesmos. Como
caminho metodológico o contato improvisação foi uma ferramenta de investigação
corporal importante neste direcionamento em dança regido e conduzido por esta
professora.

2. Dos anseios ao processo de criação da performance “Como você olha para


mim?”

Luana chama de anseio o seu prévio contato como espectadora da remontagem


do espetáculo de dança “ENDLESS”, que foi apresentado pelo Grupo Dançando com a
Diferença (GDD) sob a direção de Henrique Amoedo, em parceria com o projeto
“Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade”, na cidade de Goiânia-GO,
no ano de 2018. Em que se concretiza o seu primeiro contato também com a dança,
atingindo instâncias do seu observar, entretanto dentro de um olhar limitador nos
requisitos de pensar a vim querer aguçar um desejo de dançar, isto até então era
“surreal”, pelo fato de se posicionar criticamente com relação às práticas de dança
visualizadas em seu ambiente de formação, o Instituto Tecnológico de Goiás em Artes
Basileu França, a qual observa que a rotina dos dançarinos (as) era conduzida na busca
de um corpo perfeito, e por sua vez ao achar que seu corpo devido à alteridade, não
atendia os requisitos, diante disso, seu olhar para a dança sempre foi desde então
aversivo.
Mediante o olhar que observa o percurso de seus questionamentos e desejos
futuros de compor o Projeto Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade,
que em perspectiva a tocou, reforçando o seu acreditar na arte, como uma ferramenta de
transformação, que lida com o desenvolvimento do potencial humano, e compreende a
limitação como dispositivo criador, é plausível o querer pela dança no momento que
oportuna um conhecer a si mesmo, dentro de um contexto distinto a qual observava no
seu cotidiano.
Na esteira destas questões e dos acontecimentos, os dois criadores intérpretes se
faziam presentes enquanto corpos dançantes, porém sem deixar–se apagar e ou
apaziguar-se por suas questões inicias, entretanto a temática e a metodologia de ensino
da dança, conduzia-nos a não só ver o outro e sua dança, como também nos ver com
nossas danças e isso potencializávamos de formas e intensidades diferentes, tudo isso
sempre nos intrigou.
Vale enfatizar que a questão orientadora “Como você olha pra mim?” nas aulas
do projeto no ano de 2019, eram conduzidas com orientações de um processo de criação
em si, na própria aula podíamos experimentar jogos de olhares, trocas de
movimentações, toques corporais no campo da improvisação, e estes procedimentos não
comprometiam o tempo da criação.
Assim esta discussão facilitou a minha percepção ao ver aqueles distintos
corpos, com particularidades presentes que se encontravam em cena coletivamente,
atentos e dispostos a se complementarem como dispositivos de transformação, no
âmbito de assumirem a deficiência, mas não aceitá-la de forma pejorativa invalidando o
processo de criação, pois o corpo ali presente nas suas alteridades era o diferencial do
incluir por incluir, estava claro que era incluir e ser. A palavra inclusão no contexto do
espetáculo “ENDLESS” me veio como exclusão, no sentido de que não se inclui o que
existe, mas propaga a sua existência.
Ter assistido o “ENDLESS”, possibilitou a uma captação de mensagem, que se
denota como a transformação da Arte em mim que dialoga com o outro, onde o perfeito
estava no atingir a igualdade em potência, ressignificando às alteridades presentes.
Visto que João Victor compartilhava daquele palco como dançarino, compondo e
ressignificando também as suas alteridades. O espetáculo “ENDLESS”, ressignifica ao
ponto de atingir o público por meio de distintas sensações, denotando a transformação
pessoal, social e coletiva por meio de sua arte viva, pois não só representavam em cena,
exprimia uma verdade, a qual era cênica, mas dialogava com possíveis realidades
presentes naquele local de fazer arte, que se fez também no conhecer de si através do
olhar do outro.
O espetáculo “ENDLESS” foi um divisor de águas ao influenciar
significativamente a vontade de conhecer a dança, a qual Henrique Amoedo propunha,
onde da mesma tive a oportunidade de compartilhar, por meio de convite do projeto
“Dançando com a Diferença; Arte, Inclusão e Comunidade” para participar deste
espetáculo, mas recusei por preconceitos pré-concebidos, como citado anteriormente.
No entanto sentir-me a necessidade de procurar o projeto a fim de conhecê-lo e
levantar-me um desafio pessoal: dançar e confrontar minha própria repulsa de imaginar
meu corpo dançando.
Este encontro com o projeto ocasionou um conflito além do dançar, pois apesar
de ser considerada “inclusiva”, devido também a minha alteridade física, era-me
estranho estar naquele local, mesmo sendo um anseio desde sempre conviver com
pessoas “iguais” a mim, já que dentro do meu contexto social sempre fui considerada “o
Ser diferente”, “o Ser deficiente”, então agora era novamente “o Ser diferente”, de
modo que emitia preconceitos sobre os corpos que ali se propunham a dançar. Em
registros de diários de bordo afirmava uma luta diária a cada encontro do projeto, pois a
sensação de me sentir diferente estava cada vez mais intensa, sentia-me mau e mal ao
julgar a capacidade daqueles corpos compostos de alteridades, não vendo possibilidade
alguma de tornarem dançarinos, usava sempre à expressão de desabafo fora da aula
“Essas professoras são doidas, e eles os coitados”.
Era intrigante e ofensivo, o comportamento preconceituoso que estabelecia nas
aulas, veio à necessidade de solucioná-lo ou desistir de participar do projeto, mediante a
dificuldade de não compreender as capacidades dos meus colegas e por vez não me
sentir como contribuinte no processo. Opto por considerar um marco essencial dentro da
minha noção inclusiva, e que me fez crescer e conviver dentro do projeto, o receptivo
convite da professora Marlini para a participação de um seminário realizado no Centro
Cultural da UFG na cidade de Goiânia-GO, onde o mesmo propunha um debate sobre
temáticas inclusivas, que norteavam sobre relatos de experiência obtidas no espetáculo
“ENDLESS”.
O Convite foi para participação em relatar a minha experiência, e
consequentemente decidi “desabafar” a minha dificuldade de conviver com alteridades
distintas, pois me causava angústia ao perguntar para mim mesma: Se luto contra o
preconceito, porque estou sendo preconceituosa com os meus colegas e professoras do
projeto Dançando com a Diferença?. A professora ao apresentar o termo
“estranhamento” solucionou a destreza que havia adquirido com o convívio entre ambas
alteridades, me mostrando que o estranhamento se tem daquilo que não conheço,
portanto não estava sendo preconceituosa, só me faltava conhecer o que me era novo.
Coincidentemente Silva (2012 apud Lima, 2016, p.49), contribui inevitavelmente para a
reflexão sobre fronteiras: eu e outro, nós e eles, o dentro e o fora, o centro e as margens.
“Se as fronteiras por si só promovem a diferenciação e o estranhamento, esse „espaço
entre‟ pode promover o (re) conhecimento, a troca e a empatia” (SILVA, 2012, p. 159-
160 apud LIMA, 2016, p. 49).
A partir das dificuldades de certa forma solucionadas, os anseios também de
João Victor dialogavam com os de Luana, de modo que foram percebidos em vivências
ao longo de um semestre, frequentando as aulas ofertadas pelo projeto, sob a regência
das professoras, Marlini e Adriana, as quais trabalhavam sob a temática: “Como você
olha para mim?”. As aulas eram desenvolvidas através de exercícios que estimulavam a
pensar o olhar de dentro para fora, ou seja, buscando por meio da metodologia em
dança, instigando o conhecer a si mesmo e ao outro em processos de improvisação
corporal, que promovia um contato coletivo por meio de um olhar perceptivo, sensível e
reconhecedor das suas próprias capacidades, mediante as alteridades que poderiam vir a
ser somadas e, por conseguinte desenvolvidas em contato com o outro.
As experiências nas aulas eram de certa forma um Re-criar em si mesmo, dando
sentido a uma expansão do EU que ora era visível em capacidades e por vezes se
escondia na limitação de um pensar em possibilidades, ficando perceptível, que para
alcançarmos a potência de um corpo dançante, teríamos que somar desafios, ativando o
estar vivo no nosso corpo, deixando os nossos limites criarem proporções de
movimentos, provocando um bailar de si mesmo de dentro para fora, acionando passos
dançantes no encontro do outro.
“[...] debates em torno da noção de identidade e de lugar de fala, busco
investigar os modos como a alteridade aciona diferentes níveis de afecção corporal,
inclusive aqueles mais imperceptíveis e nem sempre conscientes [...]” (GREINER,
2019, p. 54).
Nesses encontros de olhares que se reverberam no corpo como estado somático,
através de elementos que promovem o ato de dançar como uma troca que possibilita o
conhecer e se reconhecer, por meio de jogos de improvisação que se denominaram
como pausas fotográficas, no intuito de despertar o olhar que observa, se encontra e
promove uma interação, na perspectiva de unidade enquanto estado corporal, que pode
denominar-se nas palavras do neurologista António Damásio segundo Greiner (2019, p.
54, grifo do autor), como:

[...] o nome de estado somático (soma em grego significa corpo). Além disso,
ele observou que todo estado corporal „marca‟ uma imagem ou um fluxo de
imagens como uma espécie de cartografia que o cérebro faz o tempo todo
mapeando aquilo que acontece no corpo [...] (GREINER, 2019, p. 54, grifo
do autor).

Às aulas no projeto foram passíveis de algumas reflexões, nós, ou seja, Luana e


João suspendem inquietações que levaram a questionar em conversas informais: qual
era o nosso lugar no projeto, enquanto atriz e ator, que se colocam no desafio de tornar-
se dançarinos?. Por meio da indagação a procura de sentir-se parte do projeto
“Dançando com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade”, suscita a necessidade de
fazer-se presente enquanto contribuição artística, já que portamos formações que
poderiam agregar ao trabalho que estava em desenvolvimento.
Luana alega após um semestre de aula, que não se sentia parte daquele lugar, e
não sabia o porquê de sua permanência, e decidiu então perceber-se por meio da escrita,
o provocar das palavras, que te despertam o motivo de estar, ser e permanecer sob seu
olhar reconhecedor de si e do outro como dissolução da sua vivência. A escrita cria a
sua forma por intermédio de uma conversa informal com a atriz Fátima Eugênio, a
mesma com alteridade visual, o bate-papo se da após a assistência de um espetáculo do
Grupo Vaidade na cidade de Goiânia-GO, a qual Fátima é integrante. Ao observar
Fátima em cena, percebo que sua companheira de cena Marineide é também
encarregada de guiá-la no palco, por horas é guiada por Fátima, invertendo os papéis.
Luana é despertada por uma curiosidade e procura Fátima para questioná-la a respeito e
ela por sua vez disse: Marineide vê a “cadeira” e eu enxergo a cadeira, de modo que eu
dou a ela características, detalhes, sentido ao percebê-la.
O diálogo com Fátima despertou uma escrita na qual deveria passar esse
aprendizado, pois a luz deste conceito apresentado é possível perceber o porquê não me
sentia parte do projeto “Dançando com a Diferença”, pois só portava em mim o ver,
denotando o físico, e se passasse a enxergá-lo saberia de suas capacidades, essenciais
para promover uma transformação na arte. O tecer do texto se consolida no diálogo
sobre ver e enxergar, mostrando ser plausível a minha continuidade no projeto,
despertando a vontade de compartilhar o texto com os demais, se fazendo necessária,
então decidi declamá-lo. Mas ao partilhar o texto com João, o mesmo estabelece um
conflito, indagando: Como você irá contribuir com a dança, recitando um texto?. O que
logo se efetiva como resposta, o convite para dançarmos juntos.

Como olha pra mim?


O que eu vejo no outro?
Será que ver é o mesmo que enxergar?
Eu olho o diferente todos os dias, mas enxergar o outro significa que:
Enxergo a mim mesmo, sei quem eu sou.
Ver a diferença não é o mesmo, que enxergá-la!
Quando a enxergo, sei que o Outro pode sim me completar no que busco Ser.

(Luana Katielly, Março 2019).


Para João Victor foi um desafio ser convidado por Luana, confesso que para
mim, foi um estímulo novo. Quando a Luana levantou a hipótese de propor para a
coordenadora do projeto “Dançando com a Diferença”, uma homenagem ao projeto e
me convidou para que nós criássemos uma performance, confesso que fiquei com um
pouco de receio de não conseguir apresentar a proposta devidamente correta.

A performance está ontologicamente ligada a um movimento maior, uma


maneira de se encarar a arte; A live art. A live art é a arte ao vivo e também a
arte viva. É uma forma de se ver arte em que se procura uma aproximação
direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento
do elaborado, do ensaiado (COHEN, 2002, p. 38, grifo do autor).

Nesta perspectiva que estamos propondo nos aventurar com esta performance, o
processo de criação foi estabelecido dentro de alguns parâmetros, que se constituem na
prática de exercícios percebidos/experienciados por nós em aula, sentamos no primeiro
momento e discutimos sobre quais movimentações gostaríamos de trabalhar, e
consequentemente teríamos que esquecer o texto já criado, para que não influenciasse
na criação de jogos e partituras corporais. Assim, achamos de extrema importância
trazer: o jogo do olhar, o jogo das cadeiras, às pausas fotográficas, passos de dança que
traziam referências ao bailar, neste caso optamos pela valsa, pois a nosso ver trazia um
corpo presente, elegante, e consciente de si mesmo, porém uma valsa ao ritmo de uma
das sonoridades presentes no espetáculo “ENDLESS”. Apesar de tudo parecer estar
organizado e a prática já estar na nossa memória corporal, era notável a nossa
insegurança, ao pensar como faríamos para dançar aqueles elementos, surge então à
ideia de trazer a nossa insegurança para dentro do trabalho, seria o nosso conflito que
nos levaria a percepção do jogo, diante disso estabelecemos que em cena tivesse: um só
jogador e sua sombra, que denotaria o fator da insegurança, estabelecendo assim que,
João Victor seria o jogador e Luana Katielly a sua sombra. Conforme Cohen (2002, p.
45, grifo do autor), afirma “o trabalho do artista de performance é basicamente um
trabalho humanista, visando libertar o homem de suas amarras condicionantes, e a arte,
dos lugares comuns impostos pelo sistema [...]”.
Estava claro que nossas amarras se constituíam desde conhecer o projeto ao
estender da nossa relação de estranhamento, desconforto ao aproximar de nossos
colegas, denotando a ambos os conflitos perceptivos, imbuídos de reflexões que traziam
consigo a indagação de quem sou eu?. Portanto ficou estabelecido que nosso objetivo
cênico fosse provocar um reconhecimento de si, usando o espelho do outro. Dito Cohen
(2002, p. 45, grifo do autor) que “[...] a performance trabalha ritualmente as questões
existenciais básicas [..]”, fica claro que nossa busca de compreender nossos “traumas”
construídos em vivências que delegam a nossa existência, pautada em construções
sociais que ora te afirmam e por conseguinte te excluem, ora te dão poder de fala, e num
fluxo continuo podem instigar o calar-se, e levam a uma percepção cega de si mesmo,
pois apontam para definições prontas, às quais são acatadas pelo homem no calor da
sua necessidade “obrigatória” de se ver enquadrado por padrões que ditam uma “
igualdade”, a qual às alteridades são ignoradas e cobradas como uma “diferença”,
rotulada por preconceitos, achismos, negativando, assim o seu potencial como humano.
“[...] A performance é basicamente uma arte de intervenção, modificadora, que visa
causar uma transformação no receptor [...]” (COHEN, 2002, p. 45-46, grifo do autor).
Nesta perspectiva visando uma transformação primeira de nós mesmos enquanto
artistas, ao apontar que o conflito do jogo partiria da nossa insegurança e ao determinar
que João Victor seria o “ EU” e Luana Katielly “A sombra”, mediante um caráter
revogador de encontrar a si mesmo nos papéis de opressor e oprimido, que hora são
assumidos de maneira consciente e inconsciente que moldam uma razão humana, marca
a sua existência através de julgamentos, e no ato de se defender sobressai com caráter de
emitir sentenças, apontando para uma dualidade que o “SER” rege em busca da
satisfação humana, visto que possuem características boas e ruins. Podemos assim dizer
que estão alienados a um confronto mental, que induzem suas respectivas ações dentro
da sua necessidade de sobrevivência. Jung (2008, p. 102) aponta que “[...] achamos, no
entanto, que o inconsciente se volta contra o consciente, numa atitude hostil ou
inadvertida, quando este último assume uma posição falsa ou pretensiosa”. Essa atitude
falsa desencadeada dentro do conflito anuncia para os performers memórias de
vivências, que ao executar os exercícios no projeto, os seus corpos se olhavam emitindo
julgamentos conscientes com os demais corpos que compartilhavam o local de dança,
deixando os seus olhares “inclusivos” ofuscados, de forma que o inconsciente punha-os
em alerta, gerando um conflito entre as suas convicções inclusivas e o pensar construído
em sociedade que anulam a existência dos corpos com alteridades, onde de forma
consciente os “consumiram” enquanto criação, gerando sentimentos de impotência do
eu e do outro, e potencializando tais reflexões passíveis de uma compreensão, onde
assumimos que o inconsciente também pode revelar questões dentro de uma vontade de
ser, que enquanto consciente é anulada ao apontar padrões.
O performer quando está em cena tenta encontrar um elo entre arte e vida, e
não a separação de ambas. É neste contexto derrisório e árido que o
performer realiza sua insurgência com o objetivo de mostrar penosamente a
todos que participam de sua performance, as ações de sua cultura, pois diante
dessa lancinante circunstância em que os sujeitos viram meros espectros de
suas existências, o performer se rebela contra essa ideia, essencialmente
ocidental, de arte como separada da vida (OLIVEIRA, 2019, p. 30).

Além disso, a estratégia cênica de abordar tais questões expressadas, na forma


de jogo, também tinham a intenção de provocar, deveria causar uma transformação no
público, provocando um pensar crítico que se estabelece na compreensão das condições
humanas dos performers diante as suas alteridades, e os reflexos positivos que elas
provocam ao ser evidenciadas como potências que estimulam o projetar de uma
existência que é plausível em condições distintas, de modo que não devem ser anuladas
perante o humano.
Evidencia Sartre (1987, p. 6 apud MARQUES; TIBAJI, 1998, p.77) “O homem
nada mais é do que aquilo que ele faz a si mesmo: é esse o primeiro princípio do
existencialismo”. Essa base existencial é que nos sustenta no trabalho, fomentando a
nossa vontade que se efetiva enquanto escolha de fazer-nos resistir/existir perante os
nossas travas, concedendo a nós um “Poder” de autonomia na criação. Promove a
construção de possibilidades que vão capacitar o “Eu” nas suas escolhas de “Ser”, e
reconhecer por meio da sua sombra, o espelho que limita e expande a sua capacidade
perante o transformar da vida, onde coloca em evidência as suas escolhas que emite
expressões de mudança e aceitação de si através do outro, que, por conseguinte pode
estabelecer-se até como a sua própria sombra, pois se dar relevância a “sombra” ela
tornar-se o outro que dialoga com o “Eu”, isto fica claro quando os performers em jogo
estimulam as trocas de papéis, mantendo como critério o confronto entre “Eu” e
“sombra” que são assumidos em cena por ambos. Sartre (1987, p. 6-7 apud FERREIRA,
2009, p. 2), esclarece que:

Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que


estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que
escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para
todos. Se por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos
existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida
para todos e para toda nossa época (SARTRE, 1987, p. 6-7 apud
FERREIRA, 2009, p. 2).

Nossas angústias mantém uma pressão interna, alimentando cada vez mais a
insegurança de não conseguir manter uma sincronia no jogo, visto que o mesmo se
estabelece dentro de uma sequência de movimentos corporais que devem ser executados
ao mesmo tempo pelos performers, onde só caminhando para o fim da cena, que se
repelem e assumem jogos distintos que se encaixam, conforme explicaremos mais
adiante. Essas angústias são de suma importância para manter o jogo vivo, conectado, e
ao mesmo tempo focado no olhar, de forma que mesmo ambos performers de costas um
para outro, eles estão se olhando, de maneira que o ver não é enxergar, quando o
enxergar assume a sensação, o sentir, o dar ritmo, a pulsação do outro, dilata o ver.
Exigindo uma responsabilidade na ação que engloba não só “Eles”, mas de toda a
humanidade.

O homem se define como angústia. Isto significa que, toda e qualquer escolha
de alguém, por mais particular que seja, envolve não apenas a ele somente,
mas a todos os seres humanos; com isto não há meio de se esquivar desta
constante responsabilidade plena. Porém, o autor de uma determinada ação,
pode tentar mascarar a ansiedade, para si próprio, achando que suas ações
envolvem apenas ele mesmo [...] (FERREIRA, 2009, p. 03).

Ao se enxergarem o processo se inverte, tomando proporções mais expansivas,


pois agora através do olho que tudo vê, se faz necessário se reconhecer fisicamente para
que ambos possam exercitar o enxergar por meio do outro, que na metáfora é a própria
sombra e de dentro para fora, na contínua busca de conhecer a si mesmo, mas no
espelho do outro, que na performance é expressada por dançar uma valsa juntos, ao som
emitido pelos dois corpos em um só pulsar, uma sonoridade que não tem sentido fora do
contexto de trabalho, uma linguagem que extrapola o reconhecível, mas que remete ao
cantar nos campos de concentração no Holocausto, onde o encontro consigo vinha como
um último encontro com o mundo, esta sonoridade aparece no espetáculo “ENDLESS”,
como já foi mencionado e que os performers decidiram trazer para este momento da
performance.
Momento este que acabou gerando um encaminhar para a extensão de dois que
se cria um só, uma só pessoa, um só ser humano, que ao promover ações define de
maneira responsável a existência, o cuidado com o outro a sua volta, o olhar agora que
conecta, antes de qualquer ação. O homem define suas ações, escolhe e é o único
responsável por si e a humanidade, sendo assim Sartre (1973, p. 9-10 apud FERREIRA,
2009, p. 2) aponta que:
Toda e qualquer ação humana seria exercida necessariamente por um homem
em seu cotidiano, ou seja, uma ação seria condicionada pela subjetividade,
„Em todo o caso, o que desde já podemos dizer é que entendemos por
existencialismo uma doutrina que torna a vida possível e que, por outro lado,
declara que toda a verdade e toda a acção implicam um meio e uma
subjetividade humana‟ (SARTRE, 1973, p. 9-10 apud FERREIRA, 2009, p.
2).

Sob o mesmo ponto de vista, o jogar em cena cria e recria sensações de


"percepção do reconhecer, negar-se, estranhar, aderir tais enfrentamentos que motivam
para um pensar racional que ao mesmo tempo despertar-se para o sensível, admirável,
reconhecendo assim o seu potencial no ato de escolher “Ser” e “Não Ser”, remetendo
possíveis respostas, para as perguntas que norteiam todo trabalho: O que eu vejo no
outro? Será que ver é o mesmo que enxergar?. Quando os performers propõem a
sentarem de frente um para o outro nas cadeiras, a “sombra” dá-se o lugar para o
reconhecimento do outro e o enfrentamento do “EU” de modo que se concebem como
espelhos, neste momento, o “um” transformar-se em “dois”, João Victor e Luana
Katielly, se libertam de suas sombras, e assumem de forma consciente o seu papel de
humano, ou seja dão ação às próprias existências, fazendo referência à humanidade,
pois os mesmos tem como responsabilidade representa-la, à vista disso as “diferenças”
entre ambos são anuladas, de modo que não estabelecem diálogos de parâmetros sociais.
classe, gênero, raça, cor, etc, mas reafirmam-se como humanos, desnudados de
impressões e prontos para decidirem o seu próprio caminho. É o nascer de um que se
define na separação de dois, invertendo o início do jogo que era dois lutando para “Ser
um”.
Não restam dúvidas que às provocações entre nossas descobertas e
reconhecimento, causou-nos também uma transformação pessoal, visualizamos a
mudança como possibilidade, logo esse ato de mudar repercute em nós, mesmo diante
das nossas subjetividades, facilitando assim uma aderência ao novo, que é o assumir de
transformações desde o pensar de si mesmo como potência que pode sim transformar a
nossa situação existencial, até o afetar da humanidade, o humano agora passa a ser o
responsável consciente de seus atos não mais impostos, porém pensados, refletidos, que
são somantes nas novas configurações de ser humano.
Certamente os atos de pensar e refletir, nos proporcionou uma visão de algo
verdadeiro que o nosso orgulho, a nossa consciência cultural/social, talvez não quisesse
aceitar. Mas alguma coisa em nos diz: Sim, aceito.
[...] Muita gente acha isso irritante, protesta e, vendo o esforço que isso
requer, nem mesmo quer admiti-lo. O fato de o homem ter um lado sombrio é
terrível, convenhamos, pois esse lado não é feito apenas de pequenas
fraquezas e defeitos estéticos, mas tem uma dinâmica francamente
demoníaca. É raro que o homem, o indivíduo, saiba disso. Parece-lhe
inconcebível que possa, em algum ponto ou de alguma forma, exceder-se a si
mesmo [...] (JUNG, 1980, p. 28).

Dentro desse cenário de exceder-se a si mesmo, Luana Katielly propõe utilizar


da experiência de descoberta, por intermédio da sua participação na oficina de processos
criativos, direcionada por Marco André, diretor do espetáculo “Caranguejo Overdrive”
oferecida nos dias 29 e 30 de março de 2019, pelo o Centro Cultural da Universidade
Federal de Goiás, na cidade de Goiânia-GO, em que Luana Katielly ao realizar um
exercício, Marco André aponta que, a mesma tem explorado técnicas da dança butô,
decorrente da sua inconsciência sobre a dança butô, lembra-se do processo e decidi
pesquisa-la como uma ferramenta de autoconhecimento na performance: Como olha pra
mim?

O butô é um dos gêneros da dança-teatro em evidência no cenário da estética


contemporânea. Nasceu no ambiente da vanguarda japonesa, em fins da
década de 1950, num contexto sociocultural marcado pela repressão e
agressão ocidentais. Seus espetáculos abordam temas como o nascimento, a
morte, o inconsciente, a sexualidade, o grotesco [...] (NÓBREGA;
TIBÚRCIO, 2004, p. 463).

Compreendendo o processo criativo desta performance que se desencadeia em


fases, dentro de metáforas que buscam um morrer, reconhecer, e renascer em si,
aprendendo a enxergar o outro, libertando o processo de percepção do inconsciente na
construção do consciente, é esclarecedor chegar com a dança butô na criação, pois a
mesma se mostra para os performers como um dispositivo, que visualiza um possível
despir e revestir de impressões que mapeiam a sua existência.

O butô questiona o corpo como um instrumento e o afirma como um


processo, como condição de existência de um corpo em crise, que tenta
dissolver constantemente as sedimentações que nele estão acumuladas. A
matéria-prima do butô é a incompletude e a precariedade humanas [...]
(NÓBREGA; TIBÚRCIO, 2004, p. 464).

O encontro dos performers nas cadeiras marca o nascimento do humano, pronto


para trilhar seu caminho, escolher, efetivar suas escolhas, já que agora não lidam com a
“sombra” que figura o inconsciente, mas assumem ambos para si, um “Eu”, que se
reconhece no espelho do outro, afirmando a sua existência. Sendo assim, agora são por
si e em si o consciente que resgata, molda, lapida o seu EU. Configura Nóbrega e
Tibúrcio (2004, p. 465), “o butô trilha um caminho que tenta romper com o
enfrentamento de si e se entrega à força do corpo próprio. É uma busca pelo reencontro
com um corpo perdido, um corpo que deseja ser ele mesmo, não mais rejeitado e
saqueado [...]”.
Esta separação dos performers para o encaminhar do nascer físico, expande para
a entrega de si, entretanto colocam em evidência quando assumem a postura corporal
que faz referência a um útero, que agora gera um humano apto a carregar a si mesmo,
saindo do papel de criação, a luz de ser o seu próprio criador.

O corpo aqui se destaca como condição ontológica e epistemológica de o


homem ser e estar no mundo. O corpo é afirmação da existência do ser. É
como corpos, como sujeitos encarnados que nos atamos ao mundo, que nele
vivemos, que nele nos situamos, que conhecemos. É como corpos que nos
movemos no mundo e que lhe atribuímos sentidos [...] (NÓBREGA;
TIBÚRCIO, 2004, p. 463).

O útero vai se desfazendo ao ritmo de impulsos latentes, que o desconfiguram,


trazendo o “caos” de uma mudança de Ser, que se mistura na insegurança do medo de
estar sozinho, busca uma dança interna através da dor do desapego do passado estável,
porque tinha a quem apoiar-se. “[...] Aqui, os códigos tradicionais são desconstruídos, e
a gestualidade dos dançarinos revela corpos que dançam num espaço e tempo de
contornos não nítidos, marcados pela inserção de descontinuidades dos movimentos”
(NÓBREGA; TIBÚRCIO, 2004, p. 464). Rastejar no trilhar de caminhos opostos são
construtivos, pois assumimos enquanto humanos que toda mudança é passível de dor, o
processo de deslocar-se no chão anuncia a chegada do novo, que em todo processo
demonstrava por meio de inquietudes que teciam o ampliar de possibilidades
transformativas.

O corpo na dança butô é ambíguo e revela o obscuro e o luminoso na nossa


natureza. É um corpo mutante, que se metamorfoseia. É um corpo que é
sendo, que é em processo, que respira com a vida-morte do mundo. É um
corpo que admite a sobreposição da vida e da morte, do nascimento e do
envelhecimento, admite uma contingência caótica, a possibilidade de criação
incessante de novos mapeamentos, a possibilidade de mudar a condição de
existência desse corpo, sempre aberto, inacabado (NÓBREGA; TIBÚRCIO,
2004, p. 465-466).

Lima (2016, p. 201) adverte que Silva (1999, p. 27), a perspectiva do lugar do
corpo.
“Além de estar no lugar, o corpo é um lugar”, um corpo em movimento que
transgride a cada segundo o seu lugar, e o transforma em outros lugares,
passando a ser um outro lugar, potencializando as dimensões e os sentidos do
lugar. Partindo dessa compreensão, o autor ainda pontua que o corpo em
movimento é um corpo cartografante, um corpo que desenha mapas a partir
de seu percurso. E este, ao se movimentar, desvela os lugares por onde
passou, estabelecendo essa relação entre corpo e lugar.

Os performers indicam ao rastejarem, um lugar, para Ser e estar, que é criado no


corpo e fora dele, no corpo, pois potencializa já não mais o “caos” da mudança, mas o
“desejo” de se tornar visível, de ser completo em suas alteridades, e fora por apresentar-
se no ritmo de suas escolhas. Os movimentos assumem os ritmos, criam-se formas, e o
ato da repetição, traz vida, vigor para o surgimento de suas danças, que agora não é
somente internalizada, mas dimensiona, dá sentido a outro lugar que se revelam
existências plausíveis.
“[...] Apoiando-se nas notas de trabalho de O visível e o invisível, a filósofa
retoma a idéia de diálogo entre esses saberes, filosófico e artístico, pois tanto o trabalho
do artista quanto o do filósofo exigem criação [...]” (CHAUÍ, 2002 apud NÓBREGA;
TIBÚRCIO, 2004, p.463, grifo do autor).
Chauí (2002, p. 152 apud NÓBREGA; TIBÚRCIO, 2004, p. 463) diz que não
favorece a repetição em si, mas:

se esses trabalhos são criadores é justamente porque tateiam em redor de uma


intenção de exprimir alguma coisa para a qual não possuem modelo que lhes
garanta o acesso ao Ser, pois é sua ação que abre a via de acesso para o
contato pelo qual pode haver experiência do Ser (CHAUÍ, 2002, p. 152 apud
NÓBREGA; TIBÚRCIO, 2004, p. 463).

Agora são capazes de conhecer, reconhecer a si e escolher o compartilhar com o


outro, dentro de seu próprio território de Ser, os mapas que cartografaram a existência
de ambos.
Mediante esta capacidade gerada de existir, os performers expõem o seu interno
aos poucos, aonde o processo de repetição de seus movimentos vão criando cada vez
mais intensidade, sensações, gerando a emoção de conhecer o novo que os espera,
causando assim também o conflito da dor da mudança, e ainda em sentidos dúbios entre
morte e vida.
Seus gestos trazem também a dor do corpo morto, tema central quando nos
referimos ao butô e que conduz à inovação de cada instante, a uma condição
de vida que se refaz e se afirma na morte. Nesse sentido a morte é necessária
e fundamental para que a vida possa florescer, para que possamos renascer
(NÓBREGA; TIBÚRCIO, 2004, p. 466).

Os performers através de seus corpos em intensa dança, exploram em amplitude


os seus movimentos, assumem passos dançantes que os levam ao encontro do humano
não somente no sentido de nova criatura, mas também ressignificando o olhar que tudo
vê e que, todavia enxerga.

Os olhos na dança butô podem ser um exemplo bastante interessante para


pensarmos nessa possibilidade de deslocamento e amplificação de um corpo
que se refaz o tempo todo, descolonizando-se e recolonizando-se em fluxos
contínuos de intensidade, numa criação sempre móvel. Kazuo Ohno
interroga-se sobre o que são os olhos para o corpo e afirma que eles não estão
apenas olhando o mundo exterior, mas sim o próprio corpo. São olhos que
“sabem olhar através do corpo” (LUISI; BOGÉA, 2002, p. 33 apud
NÓBREGA; TIBÚRCIO, 2004, p. 466).

O encontro se dá agora, pois ambos existem, representam uma humanidade, no


lugar em que suas escolhas darão origem às suas essências, seu caminho é construído, o
caminhar se lapida com a presença do outro, que agora não é “Sombra” e nem
“Espelho”, é apenas EU. De fato o EU é presença em escolhas, que constituem, trilham
caminhos e se entrelaçam no eu do outro, pois o encontro de ambos permite um
recomeço, um recriar de si diante do olhar para si e para com o outro, onde suas
características não mudam, mas se expandem tornando-os essências que por meio de
escolhas, os concebe humanos possuidores de incessantes transformações, instigando o
ciclo da vida a um nascer e renascer constantemente.

3. Lugares/Olhares: entre olhares que observam, provocam (...)

O processo criativo que conduziu este trabalho artístico traz questões acerca do
corpo, dos lugares e olhares desse e para estes corpos, que remete a formação de
subjetividades de criação de vida e arte, que enaltece a possibilidade de encontrar no
conflito e nas inquietações provocadas pelas dimensões de vida e arte, que aponta um
caminho e permite traçar uma espécie de cartografia para não só descrever estes
momentos, mas, sobretudo se propõe a pensá-los e trazer para a escrita tais questões.
Neste sentido, o convite para acompanhar, observar, lapidar e provocar foi
realizado a outros corpos, a outros olhares, ou como mencionado anteriormente a
lugares/olhares de direção. Olhares que carregam tempos e espaços distintos, não só na
relação com os dois intérpretes, mas de experiência e lugares de fala nas artes da cena,
dança, teatro e em processos de formação. Entretanto este processo de troca vem a
agregar camadas e direcionamentos interessantes à performance, e por estes dois novos
corpos terem suas singularidades, serão apresentados neste momento em dois
momentos, com formas distintas de ver, perceber e colaborar com a performance.

3.1. Um olhar: contribuições que reverberam no trabalho como potencial criativo

Quando há consciência de que esteja inserido diretamente e/ou indiretamente em


um processo já iniciado? A resposta inicial aparentou confusa até mesmo inexistente por
um breve momento, o tempo foi o responsável por trazer e apontar respostas palpáveis
para o que ainda não parecia visível. A orientação que aqui também será considerada
como uma contribuição para o processo de criação passou a existir quando uma
concepção do trabalho para aquela ocasião já vinha sendo articulado, a ajuda remetia-se
sob a ótica de ter outro olhar sem ser a dos próprios intérpretes na análise e mediação de
algumas partes dessa criação que continha déficits. A primeira apresentação se
caracterizou a meu ver como uma forma de expressar as percepções e sensações
absorvidas pela Luana Katielly e João Victor dentro do projeto “Dançando com a
Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade” no ano de 2018, após esse período a
performance transcendeu para outro patamar afim de buscar por maiores
aprofundamentos e desdobramentos.
Como relatado, a minha inserção se deu posterior ao início do processo, ou seja,
os primeiros olhares da obra foram compostos unicamente pelos intérpretes e seus
anseios, considerando assim esse posicionamento muito importante, por isso a
necessidade de expor para ambos, a minha participação nesse processo ocorreu no
campo da orientação não interferindo no caminho traçado da composição, porém uma
melhor formatação foi atribuída quanto aos aspectos estéticos e técnicos em diálogo
com os questionamentos apontados pelos próprios intérpretes.
O olhar do outro que não está envolvido com um processo em geral promove
visibilidade de elementos não enxergados pelos performers anteriormente, por às vezes
não ter sido cogitado ou por ter passado despercebido. A primeira visão sempre foi
concebida pelas inquietações e percepções da Luana Katielly e João Victor, que
ganharam proporção dentro do projeto “Dançando com a Diferença”, por isso esse local
de reconhecimento precisa ser evidenciado, o impulso interno para o movimento
desenvolvido nasceu deles.
Esse impulso pode caracterizar como o local de nascimento dos desejos que
almejamos construir, Rudolf Von Laban (1879-1958) em sua vida, procurou expressar a
relação da energia interna que armazenamos em nossos corpos como um meio para o
desenvolvimento de um potencial criativo manifestado através do movimento corporal.
A respeito dessa relação, Sgarbi (2009, p. 41) diz que:

[...] Gastamos energia consciente e inconscientemente para manter a vida.


Laban se referiu a essa energia denominando-a “esforço”, que surge de
impulsos, desejos, intenções, estados de espírito e pressões internas e que se
manifesta no movimento do nosso corpo. Assim, segundo o autor, o
movimento com suas diferentes formas, ritmos, pesos e fluências é revelador
do corpo de cada pessoa, da maneira como ela estabelece a relação corporal
com o mundo, da sua expressão (SGARBI, 2009, p. 41).

Para salientar e evidenciar do que se trata o “esforço” seguindo os estudos de


Laban, Rengel & Mommensohn (1992 apud ROSSI, 2009, p. 143), abordam que:

Segundo Laban, o ser humano se movimenta devido à necessidade de se


expressar. Os impulsos internos, a partir dos quais se origina o movimento,
foram denominados por ele de esforços. O esforço se manifesta em
movimento e este, como observou Laban, é composto de quatro fatores, que
são Peso, Tempo, Espaço e Fluência (RENGEL; MOMMENSOHN, 1992
apud ROSSI, 2009, p. 143).

Há sempre possibilidades de aprimoramento de um trabalho artístico por meio


dos ensaios e apresentações, diante disso será possível responder, quando um trabalho é
finalizado?. Um tanto quanto complexo, como reflexão esboço que um projeto mesmo
apresentado, mas que tenha continuidade se torna passível de transformação
constantemente porque está ativo, na sala de ensaio e no decorrer das apresentações
ocorre igualmente um processo de reciclagem da composição, portanto analiso que
também não esteja concluído, será então que o encerramento de um trabalho artístico
acontece somente quando este não está mais ativo?
Um caminho planejado mediante objetivos pré-dispostos de espaço e tempo
pode almejar uma conclusão no sentido de ter edificado todas as etapas do projeto
chegando ao seu propósito inicial, todavia esse caminho em outro caso pode se tornar
impreciso quando não existe um norteamento claro para se trilhar. A estruturação da
performance “Como olha pra mim?”, seguiu a linha de raciocínio dos intérpretes, que
tinham um embasamento concreto dos elementos agregadores necessários para a
transmissão da mensagem, a primeira vista com os objetivos desenvolvidos declarava-se
por encerrado o processo, no entanto com a contribuição e olhar investigativo da
professora Marlini e instigação dos intérpretes, a performance ganhou continuidade.
Ânsia por aprendizado é uma virtude verdadeira para aqueles que buscam por
conhecimento, essa performance traduz esse anseio que parte de todos os envolvidos, a
evolução se encontra presente no que tomamos partido. O processo evolutivo
acompanha e compõem o ser humano desde a sua existência, sendo assim, um projeto
geralmente tem tendência progressiva cada vez que for trabalhado, com base nessa
comparação visa-se que o projeto progrida com os novos contatos.
Um trabalho artístico em parceria precisa que os intérpretes estabeleçam uma
boa relação/interação para que haja fluência na apresentação, performance e outros, essa
relação constrói-se na sala de ensaio, a priori uma amizade concreta residia entre os
dois, construída nos corredores do Instituo Tecnológico de Goiás em Artes Basileu
França por partilharem da mesma paixão pelo teatro e os seus desdobramentos. Mesmo
com uma amizade duradoura, dificuldades foram acarretadas e enfrentadas por
momentos de não separação entre a zona pessoal e a zona de trabalho, empecilhos
vieram à tona prejudicando momentaneamente o processo deles nos ensaios, que nesse
mesmo local eram resolvidos por consenso.
A interação não se remete apenas de um intérprete para com o outro, está
direcionada de natureza igual aos elementos que constituem a atmosfera de uma
apresentação, como, espaço, iluminação, texto e principalmente o espectador, pode não
haver uma interação direta, contudo deve ser estabelecida uma relação, e nesse trabalho
é perceptível o quanto essas características são marcantes. Barros (2002, p. 09) apesar
de relatar sobre o teatro em seu estudo, apresenta uma compreensão conveniente para
esse contexto:

A comunhão existente entre cada parte que constitui o fazer teatral abre o
espaço para o estudo da interatividade. A interação se liga ao teatro, porque
ele é uma arte que só acontece através da coletividade. O teatro é a arte da
dependência, pois necessita de um público. Essa carência é a motivadora
direta da influência que cada elemento de uma apresentação pode causar em
relação aos outros. Essa mistura nada mais é do que a interatividade
(BARROS, 2002, p. 09).
A performance a despeito de apresentar as novas contribuições atribuídas dos
olhares sensíveis, resulta também em novas lacunas encontradas em alguns fatores que
precisam ser trabalhados. Ensaios extras foram programados para a resolução dos
problemas, um desses foi realizado na sala de dança três da Faculdade de Educação
Física e Dança (FEFD) da Universidade Federal de Goiás (UFG). A filmagem sugerida
como envio à professora Marlini concretizava a ideia de manter um contato direto com
as suas contribuições, os corpos se moldaram nos diferenciados ângulos filmados, um
olhar mais profundo foi permitido, uma releitura e um material de vídeo haviam sido
produzidos, coincidência ou não, energias novas foram geradas nesse exercício de
captação, energias presentes em seus corpos, mas que ainda se encontravam
inconscientes sem um estímulo adequado, quando absorvidas gerarão impulsos
energéticos grandiosos para a soma do trabalho existente.
Em relação às apresentações, uma delas ocorreu no segundo semestre de 2019,
em um evento na Faculdade de Educação Física e Dança da UFG, este estava associado
à inclusão. A música “All of Me”, de John Legend se tornou parte do trabalho dos
performers em um dos ensaios, a proposta era que essa música fosse encenada no ato
final compondo a dramaturgia, onde os corpos (consciente e inconsciente) se afastam e
voltam a se encontrar em movimento contínuo e constante, sob a minha percepção o
movimento ocasionado caracteriza a busca pela outra metade de si, a parte que te
complementa, o abraço (o reencontro) é o símbolo representante do encerramento desse
ato e da sintetização da performance.
Uma grande parte da FEFD estava preenchida pelas atividades do evento, a
apresentação que estava programada na sala de dança dois transferiu-se para o pátio, a
mudança de espaço não interferia no processo, contudo o problema remetia-se enquanto
ao ambiente ser externo, ou seja, ao ar livre, nessa ocasião como alertado aos
performers, uma projeção maior tinha que ser atribuída pelo fato citado e pelo
quantitativo de pessoas superior ao que estavam acostumados, se não houvesse projeção
o trabalho perderia qualidade, pois as suas vozes não preencheriam todo aquele espaço.
Espaços abertos e fechados são muito diferentes, sem considerar se são
arquitetados para um cunho artístico ou relacionado com a arte, como por exemplo, os
teatros, uma preparação para todos esses locais deve compor os ensaios de quem se
performa, sendo esse um meio de garantir estar preparado para uma segunda ou terceira
alternativa caso aconteça. Os teatros são construídos como uma espécie de caixa de
ressonância permitindo que o som seja reverberado e projetado por todo aquele
ambiente, o corpo humano também se constitui como uma caixa de ressonância, quando
trabalhado pode estimular o seu potencial máximo.
Vale ressaltar que projetar não se assemelha a gritar, nessa situação a garganta
pode ser prejudicada causando calos e a rouquidão pelo mau uso do aparelho vocal,
nesse dia infelizmente por algum empecilho não identificado no momento, a performer
Luana Katielly acabou gritando e a sua voz se tornou um pouco inaudível dificultando
consideravelmente em termos de sonoridade a sua performance, por isso é importante
frisar nos ensaios um aquecimento e preparação vocal para o fortalecimento desse
aparelho. O trabalho sensível do corpo por outro lado manteve-se de acordo com os
ensaios.
O Centro Especial Elysio Campos, uma escola de surdos localizada nas
proximidades do terminal Praça da Bíblia em Goiânia-Goiás, foi o local da última
apresentação de 2019. Essa escola é um dos campos de estágio do curso de Dança da
UFG, como finalização do semestre naquele campo, um festival foi organizado,
contendo apresentações artísticas estruturadas pelos professores da instituição e pelos
estagiários da UFG, o trabalho artístico “Como olha pra mim?” foi convidado a
participar da programação.
A apresentação sucedeu-se na quadra da escola, mais uma vez um espaço
externo que independente de sua ambientação concedeu um dia de experiência
memorável para os presentes, por conta da conscientização dos elementos, o
crescimento em cena, o trato com a projeção, a voz atingiu os olhares e os corpos, as
feições geraram comoções, o movimento corpóreo teve fluência com a conectividade
dos corpos que assistiam, aquele momento foi vivido, sentido, transportado para um
universo paralelo onde tudo ocorria em um espaço-tempo diferente, diferente no sentido
de transparecer que tudo era possível, de que as diferenças existem, mas por intermédio
do olhar as coisas podem mudar, depende de cada um esse papel.
O contato com o outro era imprescindível, um contato que não se trata a
princípio do físico, mas que se reverbera pelo olhar, um olhar que não se encerra nos
olhos dos performers, mas na extensão que está localizada nos olhos dos espectadores.
Essa performance apresenta, transmite e reflete acerca do “sensível”, com o intuito de
atingir as pessoas internamente com uma mensagem, enxergar o outro precisa ser mais
valorizado, perdemos a chance de conhecer alguém toda vez que não olhamos ou
melhor quando não a enxergamos. A participação nesse processo tem sido revelador
para o trabalho com a inclusão e a diferença, dando novas possibilidades de estar sendo
atuante dentro desse meio instigador e questionador de valores como a sensibilidade.

3.2. Um olhar: caminhos provocativos em busca de uma “diferença em si”

Há raízes que se descobrem.


Há raízes que se entrelaçam.
Há raízes que trazem alimentos.
E a Raízes que te mostram caminhos.
Modelam seu caminhar.
Refazem seu jeito de andar.
Cada passo ao pisar, é um lugar para se cultivar…
Cada terra ao semear, é um florescer, um lugar que optamos por estar.
Você é a raiz que nos sustenta no ritmo.
A raiz onde a vida é dançada, conforme a melodia de existir.
É a raiz que determina nossos passos, que nos levaram a enxergar;
Como é gratificante dançar no seu movimento, nascemos e morremos
Se reafirmar a cada instante, como possíveis dançarinos dançantes, que compõe a
nossa própria coreografia.

(Luana Katielly, Abril/2020).

Um olhar, um corpo que procura suas raízes....! foi assim que Luana descreveu
uma de suas parceiras de trabalho, a coordenadora do Projeto de extensão “Dançando
com a Diferença: Arte, Inclusão e Comunidade”. Pensar em raízes, na perspectiva do
rizoma, é compreender a diferença, na potência de um devir, de um eterno recomeço
(DELEUZE, 2018), inspirada também na imagem de raízes de uma árvore que se
repetem nas suas diferenças de formas, cores e texturas, que se dizem a partir de sua
própria diferença e que ao encontrar outras raízes se relacionam e repetem o entrelaçar
que as diferenciam.
Estas reflexões expressam de alguma forma, como foi a participação e a relação
entre a coordenadora do projeto e os performers neste trabalho, que teve início nas aulas
de dança do projeto, mas que logo com o protagonismo e desejo inquieto de criação dos
dois intérpretes ganhou outros lugares e espaço de criação, e então passa a ser um
trabalho independente, mas que ao mesmo tempo foi também alimentada nas esferas
criativas, poéticas e técnicas pelas aulas do projeto e nos processos de socialização dos
diferentes momentos de criação da performance para o grupo.
Refazendo o caminho percorrido pelos intérpretes durante o processo criativo, é
importante lembrar da questão disparadora, enquanto potência para mover os corpos:
Como você olha pra mim? Tal questão surge na participação da coordenadora do
projeto de extensão, em julho de 2018, do ImPulsTanzme, em Viena/Áustria, neste
evento a mesma realizou um Workshop com o artista e coreógrafo Jess Curtis e a
artista e coreografa Claire Cunningham, esta vivência teve como tema disparador
partituras e questões abordadas na performance “Como você olha pra mim hoje à
noite” – desenvolvida e realizadas por estes artistas em colaboração com o filósofo da
percepção Alva Noë. Curtis e Cunningham, apresentaram uma investigação por meio de
diferentes linguagens, de como a diferença, enfatizada na fisicalidade e na experiência
vivida, pode moldar e é moldada pela maneira como construímos nossas
percepções. Este workshop foi acessível a pessoas de diversas fisicalidades, ou seja,
pessoas com e sem deficiência, as questões disparadas após as vivências corporais
individuais e coletivas, foram: Como nós olhamos? Como nos permitimos ser vistos?
Como nossos movimentos e fisicalidades influenciam a maneira como percebemos o
mundo ao nosso redor? Podemos aprender a nos perceber de maneira diferente?
Ao retornar ao Brasil e a Goiânia, tais questões permearam as aulas do projeto
de extensão que tem como uma das características a participação de pessoas e suas
diferenças, ou seja, de pessoas com e sem deficiência, aqui a perspectiva de diferença
vai para além da condição física, cognitiva e sensorial, entretanto ainda precisamos
utilizar esta nomenclatura “pessoa com deficiência”, sobretudo para compreender e
denunciar a biopolítica escrita e denunciada nos corpos, na presença desses corpos com
deficiência na cena da dança, nos discursos sobre inclusão social e na impossibilidade
de autonomia artística para estas pessoas. Ciane Fernandes (2017, p. 132) lembra que
“deficiência tem sido frequentemente associada à incapacidade de andar ou de realizar
atividades diárias sem ajuda, em oposição à maioria das pessoas, que podem se mover
livremente e são consideradas produtivas socialmente”, assim desejamos que chegue o
dia em que a dança é com pessoas e suas diferenças, sem precisar utilizar-se de
definições que as rotulem seja, no aspecto de gênero, faixa etária, etnia ou condição
social e suas fisicalidades.
Este questionamento do diverso, dos corpos diferentes e a pratica da dança,
passando por uma análise crítica e de superação de estereótipos, rótulos e ou
preconceitos, foi observada também na trajetória da entrada dos intérpretes no projeto
de dança, passou igualmente pelo impacto dos intérpretes ao conhecerem os corpos
diversos que frequentam as aulas do projeto, ou seja, o impacto e o estranhamento do
diferente, foi inevitável, e assim como já expresso neste escrito por uma das intérpretes:
Porque estamos aqui? Como eu olho para mim?, Será que ver é o mesmo que enxergar?,
Estou sendo preconceituoso ao observar e subjugar meus colegas na dança? Qual o
papel da arte diante destes questionamentos que acionam estados de alteridades?
E foi a partir destas questões que o trabalho tem um impulso inicial, um motor
de motivação, que avaliamos ser uma resposta quase de sobrevivência dos intérpretes
enquanto integrantes do projeto e daquela diversidade ali apresentada a eles, para além
da diversidade corporal chamamos a atenção para a dança que ali se faz, um proposta de
dança que instiga o percurso de conhecimento de si, de suas potencialidades, de suas
formas, ritmos e expressões, que foge da um ensino de dança que unifica os corpos, a
partir de algumas referências hegemônicas de dança, neste campo de ensino e criação
estamos interessados em não achar este lugar comum. Assim o diferente, os
movimentos diferentes criados por corpos diferentes podem num primeiro momento
ganhar contornos de inferior, e ou não identificado como dança.
Assim, com a passar do tempo, o trabalho de corpo e a dramaturgia deste
trabalho foi sendo desenhado no corpo dos criadores-intérpretes, que ao invés de desistir
de responder estas questões a partir da participação nas aulas e da relação com o
trabalho desenvolvido no projeto, os dois corpos se desafiaram a cada momento da
criação, dar contornos e instaurar no trabalho lugares e momentos de questionamentos,
alimentados pela relação com os outros corpos e logo com o exercício da alteridade,
pois falar do outro, é falar da diferença e de si, no diálogo, nas provocações e trocas
percebemos que os corpos foram sendo conduzidos pelas perguntas e pelas repostas de
como lidar consigo mesmo. Este exercício foi precioso, para o trabalho que lida com as
próprias subjetividades a partir de reflexões existenciais e ao mesmo tempo, pautadas
nas orientações técnicas e poéticas dançantes.
Fica claro que a riqueza dos diferentes olhares e das diferentes experiências
lançadas durante o caminhar da criação foi importante para que os dois criadores, se
aventurassem de forma competente e questionadora em estratégias criativas, que
necessariamente passaram por processos desestabilizadores, Greiner (2019) diz que a
arte deve se alimentar da diferença e jamais bani-la, e ainda que o poder que a mesma
pode nos conceder no sentido de dar visibilidades as crises, podendo explicitar estas
questões as vezes invisibilidades e ou silenciadas na vida cotidiana, o que pode ser
observado na descrição das sensações e percepções fomentadas nos dois artistas durante
a participação das aulas de dança, o quanto as imagens do outro e de si foram
provocadas, para pensar sobre o ser diferente.
Foi observado uma quebra na relação de poder entre os criadores e os outros
olhares, como os da professora Marlini e do artista Robson, a mesma foi permeada por
uma quebra de hierarquia que muitas vezes vista na pratica de direção nas artes cênicas
em geral. Assim, como a reação do público nas inúmeras vezes que esta performance foi
apresentada, podemos observar que o que ficou foi o sentir os corpos e o convite a
alteridade, que dança, canta e fala suas relações e suas construções subjetivas com o
outro e consigo mesmo, e assim os outros se reconhece nos dois corpos, às vezes em
um, as vezes nos dois, suas histórias, conflitos e anseios.
Colaborando com estas percepções que orientaram o olhar para este trabalho,
chamamos a atenção para questões que Ciane Fernandes (2017) nos coloca que os
processos de criação pautados na diferença e na diversidade vem borrando as fronteiras
entre normalidade e anormalidade, padrões sociais e conforto com as próprias certezas
pessoais e, portanto na construção da subjetividade. “Deste modo, a pesquisa através da
prática da dança instala um ambiente de desafio, re-adaptação e a transformação pessoal
e coletiva, exatamente como nos processos de crescimento da vida” (FERNANDES,
2017, p.132).
Assim, as raízes aqui entrelaçadas, digo entre os criadores intérpretes e a
professora de dança, são caminhos de aprendizagens mutuo, de entrelaçamento do ser,
de suas construções e quebras de padrões, de uma busca incansável do corpo em criação
pela “diferença em si” que estes dois intérpretes buscaram e se aliançaram no observar e
conhecer o outro e a si mesmo. “O Ser se diz num único sentido de tudo aquilo de que
ele se diz, mas aquilo de que le diz difere: ele se diz da própria diferença” (DELEUZE,
2018. p. 63).
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