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O GLOBO › Annotations

Sobre lives, bolhas e ostentação


APRIL 08, 2020

Ana Paula Lisboa Foto: OGlobo

Ainda estamos em casa, certo? Eu estava aqui na sala pensando na bolha.


A bolha, aquela coisa de ficar sempre falando para os “nossos” e
aguardando os likes. A bolha é perigosa, vocês sabem. Especialmente
porque ela é muito fina e, quando a gente se distrai olhando pra sua
beleza de refletir o mundo e ao mesmo nos proteger, ela estoura. Aí a
gente fica perdido, sem proteção, com crise de pânico e o escambau.

Resolvi cozinhar um macarrão e pensei nas pessoas fora da minha bolha


que decidi não excluir, dos grupos que estou como “espiã”, não para
delatar algo, mas para me lembrar da bolha. O molho do macarrão é
jimboa com shoyo, uma receita minha. Engraçado misturar uma verdura
tipicamente angolana com um molho típico oriental, sou uma
estouradora de bolhas culinárias!

Enquanto lavava meu cabelo, eu ri do que considero coragem dos ricos e


celebridades em mostrar as suas casas nesse momento. Há uma piada
angolana sem graça de que o número de fotos nas redes sociais diminuiu
depois do decreto do Estado de Emergência, porque ninguém quer
mostrar a sua casa. Há uma outra piada sem graça de que, se você quiser
saber se uma pessoa tem realmente dinheiro em Angola, não adianta
olhar as roupas, os sapatos ou o carro. Você descobre se uma pessoa tem
dinheiro indo ao banheiro dela e verificando se ela usa bidons (galões) de
água como reservatório. A gente ri no canto da boca, mas é triste alguém
não ter acesso a água corrente em .<SW>

Enquanto isso, o Instagram está repleto de apartamentos iluminados por


grandes janelas, paredes com obras de arte, televisões gigantescas, estantes
abarrotadas de livros e discos, despensas cheias, receita de risoto de
shiitake.

Acho que já estava com a toalha na cabeça quando lembrei do trecho de


“Meio Sol Amarelo” da Chimamanda Ngozi Adichie. É a cena em que
Richard, um cara que está tentando escrever um livro, conhece e fica
hipnotizado por Kainene, filha de um rico empresário nigeriano. Eles
estão em uma festa, e ela pede para ele sair da frente porque um fotógrafo
quer tirar uma foto sua, sobretudo do colar que ela está usando.

“O colar vai figurar na edição de amanhã do ‘Lagos Life’. Imagino que


seja meu jeito de contribuir com o nosso recém-independente país. Estou
dando aos meus compatriotas algo para desejar, um incentivo para que
trabalhem duro”. Kainene é absolutamente sarcástica, e Chimamanda é
uma gênia.
Já comendo meu macarrão com jimboa a sensação que eu tenho é de que
os ricos estão tentando contribuir com o distanciamento social
exatamente como Kainene: “Olha como minha vida é incrível, lutem por
isso vocês também!” Ou “olha, eu nunca fiz faxina mas é possível, faça
você também!”

Lavando a louça, não me saía da cabeça o absurdo que é eles não saberem
que um dos motivos de todo esse caos e medo é eles serem ricos. Porque
é lógico saber que só existem ricos porque existem pobres, ou só existem
pobres porque existem ricos? Sei lá, se um dia eu ficar rica eu não vou
contar pra ninguém. Deveria ser vergonhoso ostentar no mesmo planeta
em que pessoas morrem de fome.

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