No enterro de Quebra-coco, Amadeu foi o único a acender uma vela e
rezar. Não porque era o único religioso presente, mas porque era a única pessoa a velar o morto. Deu trabalho para carregar o caixão até a cova, só veio um funcionário da funerária para ajudar Amadeu e o coveiro. Quebra-coco era um bêbado conhecido do bairro. Aparentava ter mais de 60 anos, mas ninguém sabia muita coisa sobre ele. Se morava perto, seu nome, idade, trabalho, família, nada. Apenas que era educado e que mesmo bêbado não fazia mal a ninguém. Quando começou a frequentar o Bar e Mercearia do Amadeu tinha algum dinheiro para pagar as pingas e umas fichas de bilhar. Depois só para um rabo de galo, mais tarde não tinha dinheiro nem para a pinga. Mesmo que sempre muito educado, Amadeu perdia a paciência quando ele insistia em pedir fiado. Até que um dia o dono do estabelecimento, vendo que Quebra-coco provavelmente não veria manga amadurecer, procurou saber mais sobre o cliente e sobre seguro de vida. Certificou a ausência de família e parentes próximos e adquiriu um seguro de vida para o amigo ébrio como único beneficiário. Após isso se tornaram grandes amigos e o compadre não pagava mais nada até morrer em decorrência de complicações de uma cirrose hepática. Com a bolada, Amadeu trocou de carro. Despertou olhares desconfiados e à boca pequena afirmava que ele começara a fazer um pé de meia. Sobretudo, depois que Chaparral, Luís Aranha e Diabo Loiro também foram para a terra dos pés juntos. Contudo, nem seus amigos mais chegados sabiam de nada com certeza. Cido bebia cerveja no balcão e dizia “o povo anda comentando que cê tá matando os bêudo, tudo. Mas eu digo que não! Te defendo e brigo com quem tiver inventando uma coisa dessas!”; Carlão, passando giz no taco “tem que matar memo! O cara morre feliz ainda. Cê é um anjo, Amadeu! Uma alma boa.”. Amadeu só escutava. O Bar e Mercearia do Amadeu ficava no térreo de um sobrado localizado em uma esquina bem próximo à rodovia. Alguns professores que trabalhavam nas cidades próximas decidiram parar para comer algo antes de seguirem viagem. E não se sabe por que cargas d’água depois desse dia o bar se transformou no reduto da intelectualidade e toda sorte de gente complicadinha da região. Alguns clientes antigos deixaram de frequentar lugar, sobretudo no fim da tarde e começo da noite. Durante o dia tudo ficou igual. As donas de casa corriam lá para buscar uma cebola, um vinagre, uma lata de óleo, um pote de massa de tomate que faltou na hora de preparar o almoço; as crianças para comprar paçoca, guaraná, linha 10, pipa, ioiô, bolinha de gude leiteira e time de botão; e os bêbados residentes mantiveram-se. Mas ao entardecer o público mudava e uns procuraram outro bar por não se dar com o povo que falava difícil, discutiam política sem falar palavrão e levavam mulheres para o boteco. Outros, poucos, acharam bom. Saíam do serviço e já paravam no Amadeu para tomar uma gelada, ver as meninas e rir dos moleques que não sabiam conversar com uma mulher. Cido e Carlão riram a valer no balcão quando ouviram um gaiato falar para uma menina que ela tinha o cheiro das tardes de outono. “Que diabo quer dizer isso?” e riam. Os amigos encostaram no balcão e deram conselhos empresariais. “Amadeu, por que cê não aproveita esse movimento e dá uma reformada nesse lugar? Contrata uns garçons, o povo toda hora tem que vir buscar as coisas no balcão. Esses playbas gostam de ser servidos. Nem cartão cê passa aqui”, disse Cido. “Quem tiver fome e sede que venha buscar. Vou ficar servindo ninguém, não. Nunca fiz isso”. Disse Amadeu lavando copos. “Cê tá por fora, Cido!” Disse Carlão. “Esses dias eu vi um livro lá do meu sobrinho, esse povo é hipster. Eu não sei bem o que é isso também, mas parece que eles precisam se sentir fazendo algo autêntico, mas não pode ser autêntico de verdade. O ambiente precisa ser retrô e um pouco antissistema, mas sem jamais mencionar essas coisas. O hipster não é um turista, ele é uma pessoa autêntica e alternativa agindo conscientemente como turista no ambiente dos turistas.” “Não entendi merda nenhuma do que disse”, disse Cido e Amadeu concordou. “Eu também não, só li essa parte do livro que tava aberto na casa da minha irmã”. “Já disse e vou repetir, não vou mudar nada aqui. Quem quiser que venha”. O não marketing do Bar e Mercearia do Amadeu era o melhor marketing para aquele público. Eles adoravam falar na faculdade e nos seus círculos que conheceram um bar bacanudo em uma cidadezinha próxima que não era um ‘bar fita’ para a classe média levar a esposa para jantar. Era um lugar de gente de verdade, do povo, sem frescura. E quando descobriram que no andar de cima moravam um casal de mulheres a coisa ficou perfeita para Amadeu ganhar seus trocos. “Lugar super simples, mas não é conservador, ninguém implica com as minas. O dono é um corinthiano gente boa demais”. Thiaguinho de 11 anos levou um tombaço de bicicleta tentando empinar em frente ao bar para impressionar as meninas. Amadeu saiu correndo acudir o menino e pediu pra chamar a mãe dele que morava ali pertinho. O público levantou das cadeiras, colocou os copos nas mesas e aplaudiu Amadeu. “Que ser humano esse Amadeu! Ele é muito gente!”. O professor Arthur Crnkovic, empolgado, aproveitou o ensejo e fez um discurso inflamado sobre humanismo, solidariedade, desapego e intolerância; foi seguido de palmas e comentários que problematizavam os conceito de humanismo, solidariedade, desapego e intolerância. Por sorte não virou debate. Com o passar do tempo, o movimento diminuiu. Dez anos depois o cenário era bem diferente. Não tinha mais gente em pé na rua segurando cerveja e falando daquela banda indie sueca que você tem que ouvir. As coisas mudaram um pouco. Só de vez em quando aparecia alguém para conhecer o lugar por ouvir falar de um amigo de um amigo que na época da graduação frequentava um bar descolado e bem melhor que os bares de hoje. Amadeu não se abalou, continuou como sempre. Em uma tarde chuvosa de pouco movimento, deu uns tapinhas no ombro de um senhor embriagado debruçado sobre a mesa. “Ei, acorda! Ei! Vou jogar água, hein?” “Que que foi? Eu não paguei? Fica sossegado que semana que vem eu pago tudinho.” “Carece, não. Como é seu nome?” “Meu nome?” “É. Seu nome.” “É Tuia. Não me conhece, Amadeu, porra?” “Não. Seu nome mesmo. Isso é apelido, não é?” “Ah, é Arthur, mas ninguém me chama assim. Só Tuia.” “Arthur. Arthur de quê?” “Arthur Crnkovic.” “Sancrovique? Como escreve isso?” “Pega uma caneta lá que eu escrevo pra você.” Amadeu foi atrás do balcão e demorou para encontrar uma caneta que escrevesse. Quando voltou, Tuia estava debruçado outra vez em cima da mesa. “Ei, acorda! Tuia, acorda!” Tuia nem se moveu. “Tuia, vou jogar água, hein?” Tuia sofrera um infarto fulminante enquanto Amadeu procurava a bic e não houve água fria que o fez levantar daquela mesa.