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OLHANDO REVERÓN (VENEZUELA, 1889–1954): O processo criativo, a

dupla articulação e a imagem especular1

Jorge Cabrera Gómez


Resumo. A obra artística de Armando Reverón, no trópico venezuelano, realizada apartir de 1939
apresenta procedimentos criativos que chamaremos de dupla articulação e imagem especular. Este
primeiro recurso é similar ao utilizado por Nicolas Poussin, só que Reverón confeccionava bonecas
de pano e simulacros de objeto, inclusive possava para ele mesmo imitando outros personagens. Os
objetos simulacros, hoje, adquiriram valores artísticos não reconhecidos na sua época.

Palavras chave: dupla articulação, efeito colagem, arranjos, imagem especular.


Abstract. The artistic work of Armando Reverón, the Venezuelan tropics, held starting at 1939
presents creative procedures that call the double articulation and mirror image. This first feature is
similar to that used by Nicolas Poussin, only Reverón confection of cloth dolls and mock object,
including possession for himself imitating other characters. The mock objects, today, acquired artistic
values are not recognized in his time.

Keywords: double articulation, collage effect, arrangements, mirror image.

Armando Reverón é um artista venezuelano nascido em Caracas em 1889 e falecido na


mesma cidade em 1954. O cojunto de sua obra tem sido estudado como precursora de um
modernismo latinoamericano e seu trabalho adquiriu mais um degrau de importância
internacional com a exposição individual de suas telas, organizada em 2007 pelo MoMA de
Nova York. Contudo, podemos afirmar que “as abordagens especializadas em algum tema em
particular [da obra de Reverón] continuam sendo escassas” (Huizi, 2005, p.46).

Nesta reflexão pretendemos olhar três aspetos da obra artística de Armando Reverón: o
processo criativo, a dupla articulação e a imagem especular. Para atingir este objetivo
utilizaremos como referência os conceitos utilizados por Claude Lévi-Strauss na análise da
obra de Nicolas Poussin e de outros artistas que utilizaram o efeito colagem em suas
composições artísticas.

Reverón possuia um processo criativo particular: o conjunto de suas telas revela a utilização
de bonecas de pano e simulacros de objetos como modelos. Assim, Reverón construia
primeiro quadros vivos antes de serem transformados em obras bidimensionais. Outro
conjunto particular de seu trabalho revela que além de incorporar as bonecas de panos como

1Este breve artigo faz parte de um trabalho maior apresentado para meu título de mestre em artes, na
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil, 2012.
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personagens, o artista se autorretratava imitando outros personagens, utilizando sua imagem
refletida no espelho. Observados estes procedimentos valorizamos a existência de três
produções artísticas no conjunto reveroniano: os objetos simulacros e as bonecas de pano
como esculturas moles, os arranjos artísticos ou instalações e as telas como tal.

A dupla articulação e a imagem especular

A dupla articulação é um conceito utilizado por Claude Lévi-Strauss para se referir ao efeito
imagético utilizado por Katsushika Hokusai, Nicolas Poussin e Georges Seurat na suas telas e
de Proust na Literatura. Este conceito é transferido da linguística para as artes plásticas como
uma técnica de colagens e montagens. Isso significa que existem unidades de primeira ordem
que representam uma obra de por si e que combinadas e dispostas de outra forma produzem
uma obra de um nível ainda mais elevado (Lévi-Strauss, 1997). Em outras palavras, unidades
imagéticas justapostas dão como resultado um conjunto que, por sua vez, pode dar resultado a
outros conjuntos dependendo de suas possíveis combinações. No livro deste mesmo autor, O
pensamento selvagem, Lévi-Strauss chama de bricolage a um tipo de pensamento, de
narrativas míticas, que são resultado da junção de imagens pré-fabricadas.

Na obra de Georges Seurat, a Grande Jatte, observamos um conjunto de personagens imóveis


que, apesar de estarem num local público, cada uma parece muda e inerte, sem nenhum tipo
de articulação entre elas. O conjunto é resultado de uma justaposição de figuras que poderiam
sair ou entrar no conjunto sem grandes conseqüências. Segundo Lévi-Strauss, o procedimento
de construção desta obra, a Grande Jatte, é comparável com a forma como Hokusai compôs
as Cem vistas do monte Fuji. Em Hokusai, a dupla articulação é o resultado de uma colagem
ou junção de fragmentos de esboços com uma aparente falta de unidade no conjunto, devido
às diferenças de escala entre os elementos. Esse procedimento de Hokusai é relacionado com
aquilo que Proust realizava nas suas composições literárias:

(...) como Proust com seus papeizinhos, ele [Hokusai] reutilizou, justapondo-os,
detalhes, fragmentos de paisagem provavelmente desenhados in loco, anotados em
seus carnês, e posteriormente transferidos para a composição sem levar em conta as
diferenças de escala (Lévi-Strauss, 1997, p.12).

Esses resultados colagem presentes na obra de Seurat e Hokusai, estão presentes também na
obra de Nicolas Poussin, o que nos lembra Delacroix se referindo às obras de Poussin:
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“[existe] uma secura extrema [das] figuras sem ligação umas com as outras e [que] parecem
recortadas” (Lévi-Strauss, 1997, p.12). Só que em Poussin, assegura Lévi-Strauss, a dupla
articulação é tratada de maneira diferente. Por exemplo, se observarmos a obra Vénus
montrant ses armes à Enée a deusa, que flutua no centro, parece ter sido concebida fora e
depois transferida para a tela, como se estivesse costurada, enquanto que a figura do
personagem Enée parece petrificada ou mineralizada. Observando na mesma obra as figuras
femininas deitadas, notamos uma diferença de escala em relação aos outros personagens do
conjunto. Em Hokusai e Proust este resultado é conseqüência da junção de esboços que
constrõem o conjunto da obra. E em Poussin, como ele chega a esse resultado?

Sabe-se que Poussin gostava de preparar maquetes e modelar as figuras em cera antes de
iniciar a pintura. Vestia os bonecos de cera com papel úmido ou tafetá fino e marcava as
dobras dos tecidos com um pequeno bastão pontudo para posteriormente passar a cena para a
tela, afirma Lévi-Strauss (1997, p.13). A luz e a sombra da composição tridimensional eram
controladas com a inserção de pequenos furos numa caixa que continha a maquete. Poussim
também deslocava de um lado para outro os bonecos até definir a composição final. O
conjunto da obra deste artista apresenta as maquetes como obra tridimensional, por trás da
obra pictórica. Afirma-se ‘por trás’ pela visão da arte na época de Poussin, mas que sem
dúvida, numa perspectiva contemporânea, as telas em relação às maquetes seriam obras com
um mesmo grau de importância.

Este procedimento criativo de dupla articulação em Poussin, representado pela criação de


maquetes e bonecos de cera que posteriormente seriam representados na tela, pode ser
relacionado com o procedimento utilizado por Armando Reverón no trópico venezuelano.
Uma vez instalado em El Castillete, sua moradia e atelier, Reverón constrói um ambiente
propício para o que seria sua obra de maior maturidade artística. Nesse espaço de convívio
artístico criaria também as bonecas de pano e os objetos que habitariam suas obras:

Junto com Reverón e Juanita, as grandes donas e anfitriãs do lar eram as bonecas, de
imponente tamanho de mulher humana. Serafina, Graciela, Alicia, Niza. Terríveis e
hieráticas, de antecipada modernidade dentro da plástica venezuelana, as bonecas
exibem uma difícil e enaltecida beleza em sua fenomênica fealdade (Huizi, 2001, p.p.
55- 83).

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Reverón confeccionava as bonecas costurando panos e criando os recheios com papel jornal.
Sobre a superfície de pano pintava as partes íntimas e modelava os detalhes do rosto. Quando
observamos o produto final, é inegável o sentimento que despertam estes seres: uma mistura
de temor e respeito ao mesmo tempo. São criaturas particulares, cheias de mistério e erotismo
(figura.1). Observando os detalhes de suas partes mais íntimas não podemos evitar
lembrarmo-nos da famosa obra de Gustave Courbet, A origem do mundo (1866).

Figura 1. Armando Reverón. Detalhe das partes íntimas das bonecas de pano. Foto Luis Brito (2005).

O processo criativo de Armando Reverón passa pela dupla articulação se comparado a


Poussin. Em primeiro lugar, o artista monta os quadros vivos ou instalações com as bonecas
de pano e outros objetos simulacros. Para mantê-las em pé, Reverón pendurava as bonecas do
teto com arames ou similar (figuras 2 e 3). Temos assim uma obra com três produtos artísticos
acabados: as bonecas como esculturas moles, as instalações e as telas, o que ilustraria um
paralelo e uma articulação ao mesmo tempo entre diferentes produções artísticas, percorrendo
nove anos de trabalho, entre 1939 e 1948 aproximadamente. Dos produtos confeccionados por
Reverón, apenas as telas pussiam valor artístico para ele, pois eram as únicas que expunha e
comercializava na época (Elderfield, 2007).

Para Reverón não era suficiente com incorporar as bonecas de pano e os objetos na suas telas.
Ele fez várias obras utilizando a sua imagem refletida no espelho. Através deste objeto
conseguia se incorporar como um sujeito a mais entre os personagens da obra, como em
Cinco figuras (1939) (figura 4). Nesta tela o artista se localiza detrás das bonecas do primeiro
plano, à direita, sem olhar o espectador e como se estivesse executando aquela mesma

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composição na frente de um espelho. Observamos também as figuras femeninas detrás como
suspensas de um fio.

Notas finais

Em Reverón podemos afirmar que o efeito colagem ou de dupla articulação manifesta-se no


inicio do processo criativo, representado pela montagem das instalações e sua transfência,
posterior, para as telas. Observamos assim o mesmo conceito, como procedimentos artístico,
com diferente resultado plástico quando comparado com as obras citadas de Seurat, Hokusai e
Poussin.

O conceito de dupla articulação na obra de Armando Reverón o aproxima às escolas


européias que utilizaram este procedimento já em des-uso na época de Nicolas Poussin. A
imagem especular, por suas vez, é característica da obra Las Menimas (1656) de Diego
Velásquez. Em Reverón, este funciona como auto-retratos em primeira ou segunda pessoa.
Quando feitos em segunda pessoa é possível que o artista imitasse outros personagens
misturados com as bonecas, sendo que a imitação de personagens definiu em vida sua afição
pelo teatro e as encenações que Reverón improvisava para aqueles que o visitavam em El
Castillete.

Por último, em relação aos objetos confeccionados pelo artista asseguramos que para ele
representavam, aparentemente, simulacros que atendiam seu procedimento artístico, além de
moradores de seu universo criativo. Podemos, a diferença de Reverón, dar para seus objetos
um valor artístico ou simplesmente seriam objetos autorais?

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Figuras 2 e 3. À isquerda arranjo com bonecas de pano (Anónimo. Palenzuela, 2007). À direita tela resultado
final. Fundación Museos Nacionales, Venezuela.

Figura 4. Cinco figuras. 1939. Pintura à água e óleo/ tela. 162,8x227,5 cm. Galería de Arte Nacional,
Venezuela.

Referências

• Armando Reverón: el lugar de los objetos [Cat. Exp.] (2001). Fundación Galería de Arte
Nacional, Caracas. S/ISBN.
• Están allí. Fotografias de Luis Brito. [Cat.Exp.] (2005). Galeria Spazio Zero. Ex Libris:
Caracas. S/ISBN.
• Elderfield, John. Armando Reverón, [Cat. Exp.] (2007). The Museum of Modern Art, Nueva
York. Nueva York. ISBN: 978-0-87070-746-9.
• Lévi-Strauss, Claude (1997). Olhar, escutar, ler. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São
Paulo: Companhia das Letras. ISBN: 85-7164-6331-7.
• Palenzuela, Juan Carlos (2007). Reverón la mirada lúcida. Caracas: Banco de Venezuela.
ISBN: 980-12-2416-9.

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