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COTIDIANO

POESIA E ENSAIO

Adilson Aquino Silveira Júnior


COTIDIANO
POESIA E ENSAIO

Adilson Aquino Silveira Júnior

Ilustrador: Fabrício Maia Dantas

Recife
2020
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons -
Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

ISBN nº 978-65-00-05088-2

Revisão: Adilson Aquino Silveira Júnior e Soraia de Carvalho


Projeto gráfico e diagramação: Adilson Aquino Silveira Júnior e Soraia de
Carvalho
Imagem da capa: Desenho de Fabrício Maia Dantas, com o título Moradias,
produzido com técnica mista sobre papel, em 2020.

1ª edição: julho de 2020

Contatos:

Adilson Aquino Silveira Júnior (autor)


E-mail: j_r1987@hotmail.com

Fabrício Maia Dantas (ilustrador)


E-mail: fabriciomai@hotmail.com
https://wopita.com/fabriciomaia_art
Fabrico um elefante
De meus poucos recursos
[...]
Eis meu pobre elefante
Pronto para sair
À procura de amigos
Num mundo enfastiado
Carlos Drummond de Andrade
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...................................................................... 5

POESIA
I. CDU (Várzea) ............................................................. 7
II. HAICAIS URBANOS .................................................. 28
III. PEQUENA GAVETA DE CARTAS E NOTAS ........... 39

ENSAIO
DRUMMOND EM MIRÓ DA MURIBECA .................... 48
APRESENTAÇÃO

S
e tivesse nascido e crescido em Pernambuco, talvez não
existisse precisão deste livro. Mas sou agregado recente.
Necessito suprir a falta de ter chegado aqui atrasado. A falta
de não ter sido exposto a essa cultura e a essa paisagem
desde menino. Este livro prova que tenho me esforçado
para dar conta do tempo perdido. Reúno nele algumas
poesias e um ensaio de crítica literária. As poesias se
ramificam nessas três direções: CDU (Várzea), Haicais
urbanos e Pequena gaveta de cartas e notas. O ensaio não
passa de uma simples homenagem ao poeta Miró da
Muribeca. Um pequeno mergulho exploratório na relação
do poeta pernambucano com algumas de suas referências
artísticas. O título do ensaio é Drummond em Miró da
Muribeca.

Adilson Júnior
Várzea, junho de 2020

Cotidiano | 5
POESIA
PARTE I
CDU (Várzea)

Evocação da Várzea

Imagine como era a Várzea


no tempo da infância de Manuel Bandeira!
Devia ser uma dessas terras que,
ele menino, não sabia onde ficava.
Devia ser muito mais pra lá
do longínquo sertãozinho da Caxangá.
Muito depois de onde, ainda pequeno,
teve seu primeiro alumbramento.
No dia em que aquela moça no banho, nuinha,
pra ele se riu, do banheiro de palha.
E ele parado o coração batendo.

Cotidiano | 7
Poesia

Na umidade de ontem descubro


o capim-santo tal qual aquela
faca só lâmina de João Cabral.
Delicado fio natural de navalha,
fazendo mais espesso o corpo da noite do Recife.
Sangrava o discreto orvalho azulado,
assim como um corpo riscado pela mais pura lâmina
discretamente sangra, antes de cair ensanguentado.
Imaginei a enorme ausência que essa noite levava
nela enterrada.

Cotidiano | 8
Natureza

Os cavalos como cachorros.


Na coleira, puxados por seus donos.
Ou soltos
nas ruas da Várzea virando latas.

Os cachorros, gabirus
vagando no esgoto nu,
roendo, do lixo, ossos.
Todos sujos.

Os gatos, carrapatos
ruminando a ração
impregnados em cima
dos carros abandonados.

Só as galinhas, faceiras,
seguem as mesmas,
ciscando na rua da feira.

Cotidiano | 9
Entre destroços do presente

Várzea adentro
vejo Recife
naquele cavalo morto
de sorriso goro
na grama nova duma Pague Menos.
A rua detrás dá para o rio
onde Bandeira viu rolar, enorme,
o boi morto.
Agora são duas almas que ficam,
atônitas para jamais.
O corpo, esse vai com
o boi morto e o cavalo morto
que ninguém sabe o que foram.

Cotidiano | 10
Ciclo da morte e vida

Secou seu movimento vivo.


Aí fechado, marrom e rijo.
Pende, no canto, sozinha.
Folha murcha, velha de rugas.
Pária, da natureza expulsa.
Guarda uma alma delicada,
sem ameaça à espreita.
Logo há de beijar flores
outra borboleta.

Quase maio. E a chuva no Recife se agrava.


Mas a borboleta nova insiste em nascer.
Estende as asas e mira o céu.
Vai borboleteando amarelada.
Não seca ao sol de fevereiro como devia.
Que a cidade perdoe sua inocência.
Ao menos que ela aprenda cedo.
Quando chove aqui, logo se nota.
Metade perdeu a fibra de sair de casa faz tempo.
A outra metade, alertada pela prefeitura,
também deixa ficar, impotente.

Mas, para a borboleta nova, nascer já é voar.


Então, voa e calcula.
Olha do alto e voltará com a prova:
a visão do alagadiço nas ruas vazias
e o número de quantos levou a enchente.

Finda maio na clausura.


Crianças do arruado caçam tanajuras.
Borboletas amarelas livres pelas ruas.
Cotidiano | 11
Azeredo Coutinho, 245

Lili na sua janela.


Olhar leve de espera.
O que aguarda e imagina,
tão serena e muda?
Tudo repara adiante.
Nem por isso deixa
de encarar, elegante,
a rua onde desfilam amantes.
E outras tentações
pra seus instintos sensíveis.

Das criaturas resignadas,


a contemplarem, da plateia,
o mundo no palco,
Lili na sua janela,
dá um belo retrato.

Cotidiano | 12
Construção

A obra da Camargo Corrêa


não serve nem de sombra,
pro cochilo doze e meia.

Sol a pino.
Digestão na calçada.
Debaixo do pé de jambo,
no faro do vira-lata.

Cotidiano | 13
Poeta

Aquele pequeno todo arrumado.


Cabelo penteado e pano passado.
Deslumbrado com o mundo,
na sua aventura no rastro da mãe,
que lhe arrasta na cata da xepa da feira
e do troco nos bares da tarde.

É um poeta balançando as pernas


de carona na carroceria
do caminhão da miséria.
Encantado com o caminho que passa.
O horizonte que se abre colorido na estrada.

Cotidiano | 14
Alerta

As maritacas se aninham
perto daquele instante,
em que um céu laranja ardia
na Várzea anoitecendo,
com a cor do incêndio
de todas suas fogueiras de junho.

No sino das seis,


a Matriz no breu
solta o som sem muita luz.

Madrugada adentro,
chuva com trovoada.
Jorra vento.
O claro da lâmpada tremendo.
O coração na mão, pequeno.
Pelo ninho no coqueiro agitado,
pelas vidas por um triz na barreira.
Sem aviso foi cumprir suas promessas.
Ah, Apac traiçoeira!

Cotidiano | 15
Lembrança

Por um instante
Tomezinho perde a vista
na linha do horizonte.
No que Tomezinho pensa,
pra esquecer a brincadeira?
Na onda o castelo de areia.
O picolé de morango
escorrendo nos dedinhos.
A mãe reclama:
- Menino, a água está levando
as tuas havaianas.
O que a pequena alma,
num dia tão azul
guarda lá dentro?
Só sua avó conhece o mérito:
– Deixa lá filha, essa criança está
com saudade do exército.

Cotidiano | 16
Ocorrências de carnaval

Num traço de frevo,


a traça foi pra troça.
O destroço deu um troço.

A injustiça rói
madeira de lei
que no lombo de cupim dói.

Acomode-se pra ver


e até um carnaval de Olinda
chega a caber
na tua rotina.

Cotidiano | 17
Frevo de rua

Tem sono mais pesado do que o de criança cansada?


Ainda mais depois de quatro dias de catar lata.
Não mexe nem o pezinho
naquela cama do isopor da cerveja,
quando passam os metais da orquestra
do arrastão às seis da quarta-feira.

Cotidiano | 18
Brasilit em fim de expediente

1
No bar da fossa,
afogou a mágoa
no fundo do poço.
E foi-se
pela rua de lama.

2
Com o alcatrão puro,
sem mel nem limão,
no fiteiro da praça,
fitou o copo descartável.
Pensava nos poços de piche
fossilizando dinossauros.
Não via mais outra solução
pra levar o vazio à extinção.
E por apenas dois reais.

3
Depois de pintar parede
o dia inteiro com sede,
parou num pega bêbo
pra um latão gelado
um copo de caldo.
De volta pra vida,
entrou no beco
todo salpicado.

Cotidiano | 19
Ao redor da CDU

A família puxando carroça.


Seus cavalos jantando lixo.
Num escuro, quarto, sala e cozinha,
entre o meio fio e o canto do muro.
Um santuário de jardim florido
nos jarros de vasos sanitários,
arranjados na sarjeta.
E os cachorros da casa
soltos no terreiro enorme
das ruas da Várzea.

Cotidiano | 20
Três crônicas dos últimos dias

1
No templo dos constrangidos
pelo amor divino,
foi pego em flagrante no ato.
E um testemunho fiel garante:
– Jesus estava no barco.

2
Está tão raro dormir profundo,
na loucura desse mundo.
Até nos classificados deu anúncio:
TROCA-SE
UMA NOITE DE SONHOS SERENOS
POR TRÊS PAGUE MENOS.

3
Uma tortura
ter que torrar seu amor
guardado num baú de prata,
pra fazer aquele café de soldado.
Acordou de sobressalto.
Pulou da cama atrasado.
Um embrulho no peito.
Lembrou que não tinha
nada em casa.
Tomou um pingado amargo na esquina.
Naquele dia
a vida ia ser dura.

Cotidiano | 21
Start up

Vivia resmungando
que aquilo não cabia mais na vida.
Toda hora um subir e descer escada.
Vinte litros d‖água nas costas.
Chacoalhando umas notas magras
e mil moedas na pochete.
Tudo arriado.
Uma gentileza insossa ou nem isso,
ao entrar descalço nas casas dos outros.
Odiado por todos os cachorros.
As mesmas caras aguadas
duas vezes (ou mais) por semana.
O sol do Recife sem perdoar,
abafando o suor da roupa ensopada.
Vez por outra sem um banho decente.
Depois do dia, conta da Compesa atrasada.
Assim num tem amor que aguente!

Planejou subir de patente.


Trocou a caloi cargueiro e o nome limpo
por uma honda e um plano da vivo.

Agora a grana vai direto pra conta no cartão.


As entregas não precisam passar do portão
das mil caras que nunca viu mais gordas.
Não leva mais a pequena pra escola,
cedo balançando as perninhas
na dianteira da bicicleta.
Nem consegue encontrar em casa

Cotidiano | 22
a mulher acordada
pra amor nenhum.
A vida coube toda
na mochila térmica quadrada
que carrega sempre nos ombros
arqueados.

Cotidiano | 23
Cidade

Na altura da Faculdade de Direito,


perdeu o juízo
vendo gente no lixo.
Pegou pra Rua do Hospício.
Cortou o apetite
o Beco da Fome.
A 7 de Setembro
fez se sentir pequeno.
A miséria cheirando cola
do lado das americanas.
Cruzou na Boa Vista
o ônibus pra Linha do Tiro
e um instante tranquilo.

Cotidiano | 24
A Recife

Só o sol ilumina
as ruas do bairro do Recife.
A Celpe até tenta,
mas não consegue.

Entre os eletrônicos da Concórdia


desfilam aqueles pássaros
enraizados no estuário da velha ponte.
Ainda não voaram da porta aberta
da gaiola de ferro e sombras trançadas,
há duzentos anos escancarada.
São camaradas dos passarinhos da Brasilit,
que todo dia fazem seu passeio matinal
nas gaiolas carregadas pelas bicicletas,
depois da noite inteira na batalha da BR.

Com a criança nos quartos,


tateando os peitos secos,
em plena Ilha do Leite,
a solidão passeia muda,
jogando sua placa
na nossa cara:
PRECISO DE AJUDA.

Cotidiano | 25
Banzo

Tem domingos que Recife acorda


com um banzo sem remédio.
Em frente a praia lotada,
nas cercas duns prédios:
NÃO PISE NA GRAMA.
PROPRIEDADE PRIVADA.
E antes do mar, aquela desolação:
ÁREA SUJEITA A ATAQUE DE TUBARÃO.
A ilha do Antigo, também intolerante,
grava nas fachadas de cores:
EVITE ACIDENTES. NÃO SUBA NAS MARQUISES.
Até seu beco sujo cria tabu:
ÁREA SUJEITA A ATAQUE DE GABIRU.

Nesses dias,
a cidade quer ficar só,
em casa com suas dores.

Cotidiano | 26
Chuva nova

Pros problemas da Cidade,


a cura sopra no vento
que ela semeia e rebate.
Mas o banho na rua promete
gente com shampoo e sabonete
bebendo a tempestade.

Cotidiano | 27
PARTE II
HAICAIS URBANOS

Pra lá da Luz

Uma ponte de São Paulo


corta um Capibaribe, um Beberibe
de sem-teto, moto, carro.

Praça, esquina, viaduto.


Gente feita lodo humano.
Erva, mofo, musgo

O cheiro do mijo é o mesmo da Agamenon.


Só que temperado, na calçada,
pelo último que vomitou.

Cotidiano | 28
Pra cá da Luz

Bem junto à Igreja da Efigênia.


Gente cisca.
É enxotada.
Como pombo na praia do Pina.

E o segurança do bar,
pra despachar,
usa o resto do arroz.

São Paulo é fogo.


– Ah, se fosse sopa também...
Sonham suas barrigas vazias,
na calçada, fuçando restos
de comida fria.

Cotidiano | 29
Luz

Não tem poesia em Alto de Pinheiros.


Tem na Ipiranga com a São João.
Augusta, Angélica, Consolação.
Em frente ao Mercado das Flores.
Num breu no Trianon.
No Adoniran.
Ah, quanto trabalho pro poeta
pra lá da Luz!

Cotidiano | 30
SE FOR BEBER, NÃO DIRIJA.
Adverte o PCC
(Perigo de morrer).
FIM DE MÃO DUPLA.
Assinado CV.
GDE deixa mensagem:
PROIBIDA ULTRAPASSAGEM.
FDN afiança:
COLOQUE O CINTO, CUIDE DA SEGURANÇA.
VERIFIQUE OS FARÓIS. USE A SINALEIRA.
O trânsito do Ceará
não está pra brincadeira.

Cotidiano | 31
Cotidiano1

Estampa o jornal do dia


alguém com sorte na loteria.
No meio de um monte de notícia triste,
escapa um sorriso
da cara de alegria.

1
Tradução livre da primeira estrofe da música A Day in The Life (The
Beatles).
Cotidiano | 32
Dia de alegria

O pão, os ovos, alguns frascos.


Voltava aos pulos da mercearia.
Da mãozinha escapou o saco.
Todos temos nosso dia de alegria
precoce findo. Na calçada, os cacos.
Compensação, nem dos trocados.

Cotidiano | 33
Confissões do Quarto de Despejo2

1
Estar sempre em falta, o que era?
Não ter sapato pros pezinhos de Vera.
E Vera não gostar de andar descalça.

2
Na cabeça o peso do saco,
mais o de Vera Eunice nos braços.
Revolto-me. Depois me domino.
Essa pequena inocente de tudo,
sem culpa de estar nesse mundo.

3
Fiz o café cedo.
Caí da cama.
Fui carregar água.
Ia alta a Estrela d‖alva.
Como é horrível pisar na lama.

4
Um menino aqui na favela
morreu, tinha dois meses.
Ia passar fome, se vivesse.

2
Poema-citação do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960),
de Carolina Maria de Jesus.
Cotidiano | 34
Dia de festa3

Calmo óleo quente.


Gota na frigideira.
Gordura frigindo.

3
Poema-citação do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960),
de Carolina Maria de Jesus.
Cotidiano | 35
São Paulo Carolina4

Uma completa moradia:


o Palácio é a sala de visitas;
a Prefeitura é a sala de jantar;
a cidade, o seu jardim;
o quintal é a favela.
Onde o lixo vai parar.
Pro chiqueiro, a rota.
Pros objetos fora de uso,
quarto de despejo.
De cativa e justa revolta.

Rainha vaidosa é ela.


Ostenta coroa de ouro:
seus arranha-céus.
Veste veludo e seda.
Do seu corpo nu, de bela,
escapam uns pés que calçam
velhas meias de algodão cru:
a favela.

Na cidade, seu jardim,


as lágrimas da pobreza
rolam dos olhos
nas sedes do Serviço Social,
matriz do purgatório.
Pros desajustados, seu trato
de irônico apreço:

4
Poema-citação de Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de
Carolina Maria de Jesus. Em celebração aos 60 anos do livro.
Cotidiano | 36
troca de dramas pungentes
por nomes, endereços.

De jardim, a cidade vira morcego.


Chupa o sangue dos jardineiros.
E estampa marcas no lombo
dos empregados das fábricas:

Alguns homens em São Paulo


Andam todos carimbados
Traz um letreiro nas costas
Dizendo onde é empregado

Assim mesmo as paisagens,


mulheres e crianças sublimes,
casas com vasos de variadas cores,
do jardim, são as vitrines.
Encantam os olhos
de quem visita São Paulo
e ignora que a cidade
mais afamada da América Latina
segue enferma com suas úlceras – as favelas.
Onde até as crianças,
que não nascem com senso,
criam revolta da miséria
e lamentam sua condição
no mundo.

Favela: quintal na lama do Tietê.


Lixo, chiqueiro e despejo.
Lugar, vida e pele pretos.
O céu, as aves e as árvores,
tudo amarelo. É a fome.
Cotidiano | 37
Um soco no estômago.
Um nó no intestino.
De matar o Jânio,
enforcar o Adhemar,
queimar o Juscelino.

Seu povo oprimido,


o poeta vê, enfrentando a morte.
E enfrenta a morte,
quando vê seu povo oprimido.
As lágrimas dos pobres
comovendo poetas do lixo.

Sua poesia clama:


Os bons eu enalteço!
Os maus eu critico!
Minhas palavras suaves,
só para os operários
e para os mendigos!
Da miséria, os escravos.
Desde tenra idade,
predestinados a catar.
Só não catam a felicidade.

Cotidiano | 38
PARTE III
PEQUENA GAVETA DE CARTAS E NOTAS

Leminski e Itamar

Dois mil e dezenove


deixou este ovo
(pra que outro o choque).

Aí vai dois mil e vinte


gerando outro mais
(pra desovar o seguinte).

É apenas o mesmo ovo de sempre


(que choca o mesmo novo).

Cotidiano | 39
Coaxo de um sapo,
de tarde às quatro,
encharca o charco.

Cotidiano | 40
Almoço e jantar

1
Hoje é sem tempero rebuscado.
Volta simples do tempo passado.
Feijão só no sal arroz só no alho.

2
Boa pressão de panela
amolece até o coração
duma macaxeira velha.

Cotidiano | 41
Fermentação

Adoro o pãozinho caseiro que ela faz.


Tão delicada, passa dias cevando o fermento natural.
Só me dá uma aflição esse negócio
de sovar em cima da pia.
Em tempo de quebrar a casa, desabar o prédio.
Tudo por causa do pãozinho de fermento natural.
Ninguém diz que esconde tanta revolta.

Cotidiano | 42
Rede

No sereno do alpendre,
o preto do cabelo balança pesado.
Acalma a varanda branca
que se lança leve.

A cabeça é movimento
de rede e movimento de mundo.
No movimento, se lança leve.

Cotidiano | 43
Sol

Touca preta na cabeça.


Vestido estampado da sulanca.
Sandálias rasteiras.
Pela terceira vez,
passa o pano com água sanitária na sacada.
Arrasta pra fora o varal com roupas molhadas.
Novamente o pano com água sanitária.
Arrasta mais um pouco o varal,
até alcançar o sol.
O resto da manhã,
aquela sensação de alma lavada.

Cotidiano | 44
Luck

Se falasse,
com certeza diria,
o velho yorkshire:
– Vida de vira-lata
deve ser massa
pra cachorro.

Cotidiano | 45
Notas para a sabedoria popular

1
Vade retro
todo veto.
Deusulivre
de pieguice.

2
Maior a pia,
maior a louça
pro outro dia.

Cotidiano | 46
ENSAIO
DRUMMOND EM MIRÓ DA MURIBECA

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade

1.

Quem repara nas marcas de Drummond que Miró carrega no


coração de sua poesia? E vejam que ela está impregnada de
Drummond. Essa presença ilustre, a poesia e o poeta confessam. E
ainda há testemunhas. Sabemos: nada passa impune a uma presença
como essa; nada passa impune a uma convivência de quatro décadas
com o poeta de Itabira do Mato Dentro. A presença de Drummond é
pega em “flagrante deleito” nos poemas. A presença de Drummond
consta nos autos de tantas das entrevistas e depoimentos de Miró.
Enfim, até os pesquisadores da obra de Miró estão aí para denunciar
essa presença de Drummond.
No livro Quase crônico (2010) consta o longo poema
autobiográfico Confesso que também vivi meio século – título que
sugere, diga-se de passagem, guardar alguma inspiração em Confesso
que vivi (1974) de Pablo Neruda. Nesse poema, Miró apresenta os
seguintes versos, para a estrofe que dedica à entrada na vida adulta:
“aos vinte e um anos / conheceu o corpo de uma mulher / nada sentiu
/ pois amava Drummond” (2016, p. 60). Como prova adicional desse
vinculo, os trabalhos de edição do Quase crônico flagram5 o próprio
Miró recitando, de memória, estrofes dos poemas de Drummond,

5
Trata-se do vídeo intitulado Muribeca.com - Bastidores livro Quase Crônico Poeta
Miró, publicado em 2011 no site do YouTube.
Cotidiano | 48
intercalando ilações: “Drummond disse [...] ―como pode o homem
sentir-se a si mesmo quando o mundo some?‖6 Como é que eu me sinto
quando o mundo sumiu dos meus pés, agora que o meu amor foi
embora ou que minha mãe morreu ou que... [...] E ele diz ―Deus,
porque me deixaste sozinho se sabia que eu não era Deus?‖7 Se eu não
sou Deus como vou suportar tanta angústia, tanta tempestade na
minha vida?”
Antes da declaração em Confesso que também vivi meio século,
já havia referências a Drummond no livro Tu tás onde? (2007). Nesse
conjunto poético nutrido por notícias, situações e personagens do
cotidiano, Miró apresenta uma sequência de dois poemas em que
novamente Drummond comparece com grande significado humano:
um bastante centrado em conflitos existenciais de Miró e outro que
privilegia a resposta a pequenos dilemas ético-valorativos diários –
este último com o título dedicado ao amigo poeta então falecido.

Pra Espinhara

um trem azul bateram na porta


passa na paisagem verde e essa hora
eu fico com minha bagagem um céu azul estúpido cobrindo meu bairro
notícias de morte as mazelas de sempre
amores incuráveis
não vou atender
o trem passa azul deve ser alguém querendo ajuda:
na paisagem verde um alimento não perecível
na bagagem um real pra tomar cachaça
um livro de Drummond uma foto de uma menina com câncer
para os primeiros socorros (pra comover meu coração matinal)
poesia:
respiração boca a boca não vou abrir
quero esta manhã só pra mim
o trem passa azul egoisticamente pra mim
na paisagem verde Drummond que me perdoe
eu fico preso aos trilhos mas hoje não quero carregar nos ombros
preso a tanta confusão as dores do mundo
que é estar vivo os ombros do mundo que o carreguem
(MIRÓ, 2016, p. 93). (MIRÓ, 2016, p. 94).

6
Composição, do livro Novos Poemas (1948).
7
Poema de sete faces, do livro Alguma Poesia (1930).
Cotidiano | 49
Como se não bastasse essa evidência tão íntima e explícita, a
presença de Drummond na construção poética de Miró é reiterada
frequentemente em entrevistas ou depoimentos fornecidos para
documentários e programas televisionados. Basta cotejar produções
como Miró: Preto, Pobre, Poeta e Periférico (2008, dir. Wilson Freire,
2008) ou Onde estará a Norma (2007, dir. Bárbara Cristina, Jacqueline
Granja e Patrícia Gomes). Também o atestam a pesquisa
Corpoeticidade: Poeta Miró e sua literatura performática (ROSÁRIO,
2007) e o livro-reportagem Poesia, Mesa de Bar e goles decadentes
(SOARES, 2013). Ao descrever o ambiente cultural que iniciara Miró na
poesia, o livro-reportagem revela seu envolvimento com as famílias
dos amigos oriundos de outros estratos sociais. O envolvimento
oportuniza trabalhos em serviços domésticos e o acolhimento num
círculo afetivo e intelectual novo. Em especial, na casa de Dona
Godiva, mãe de Maurício Silva – ambiente onde ocorre o acesso a
poesia escrita, justo pela via de Drummond.
Lá dormia, tinha a oportunidade de comer bem [...] e, entre uma
faxina e outra, escutava discos que os irmãos Maurício Silva [...] e Alex
gostavam. Conheceu, assim, Milton Nascimento, Gal Costa, Djavan,
Caetano Veloso (esse, achava-o incompreensível) e uma de suas
grandes paixões: Gilberto Gil. [...] Passou a ter quatro casas e receber
muito carinho a ponto de não o deixarem voltar para casa à noite.
Eram famílias bem liberais que acabaram gerando muitos artistas.
Miró acabou convivendo com músicos, poetas e pintores desde cedo.
Cansou de ver Lenine e Paulo Rafael irem ensaiar com Zé Rocha,
irmão de Maurício Silva, as músicas da banda Flor de Cactus. [...] A
primeira vez que leu uma poesia foi quando Geraldinho lhe emprestou
um livro de Drummond. Bem verdade que não entendeu muito , mas
alguma coisa naquela maneira de se expressar o cativou . Mas não foi
de Drummond, e sim de Maurício Silva, a primeira influência poética:
“Farda verde verde verde / Praça verde verde verde / E o coração bate
continência / a toda mulher que passa.” Os olhos dele brilhavam.
Aquilo de trazer uma cena do dia-a-dia para o papel era maravilhoso.
Queria um dia escrever como o amigo: “Maurício Silva foi minha
primeira parabólica” (SOARES apud ROSÁRIO, 2007, p. 52-53).

O que tudo isso nos mostra sobre a presença de Drummond? A


primeira vez que Miró leu uma poesia foi quando lhe caiu nas mãos, de

Cotidiano | 50
empréstimo, um livro do poeta, cativando-o por “alguma coisa
naquela maneira de se expressar”. Mais que isso, em atitudes de
egoísmo humano, ele reconhece uma espécie de falta para com
Drummond. E pede perdão. Quem sabe alentando expiar os pecados de
poesia que se quer também engajada com o sentimento social. Por
último, em caso desses acidentes cotidianos, dos quais podem ser
vítimas a alma do poeta e da poesia, um livro de Drummond é algo para
os primeiros socorros de Miró. É a própria respiração boca a boca da
poesia salva-vidas na poesia desfalecida. É isso que se conclui do
flagrante, da confissão e das testemunhas. Mas tudo isso é pouco.
Desconfiamos que exista mais de Drummond para todos os lados,
ecoando.
Por hora, teríamos pelos menos quatro ressonâncias explícitas
para agregar, localizadas em alguns livros de Miró. De início, uma que
aflora a partir de um depoimento do próprio artista: “Drummond, o
poeta que eu amo, uma vez disse assim ―... O primeiro amor passou. / O
segundo amor passou. / O terceiro amor passou. / Mas o coração
continua. ‖ Aí, eu escrevi no meu primeiro livro, Quem descobriu o
Azul Anil? eu tinha 25 anos, iluminado por Drummond, aí eu fiz
esse...” E cita o tal poema, publicado sem título, e inspirado na
segunda estrofe de Consolo da Praia, do seminal livro A Rosa do Povo
(1943-1945). A citação inteira, em paralelo, dos dois poemas, será
proveitosa aqui. Antes, porém, um pequeno adendo. Esse depoimento
que transcrevemos foi retirado de uma matéria jornalística8 sobre o
processo de recuperação de Miró após uma crise provocada pelo
consumo excessivo de álcool; nela, consta ainda essa referência a
Drummond: “Décimo quinto dia após a internação, João Flávio [Miró]
pôde sair da clínica pela primeira vez e voltou à antiga residência –
uma pensão próxima ao largo de Santa Cruz, ironicamente o ―câncer
alcoólico do Recife‖ – para pegar documentos e uns livros de
Drummond, alguns exemplares de ―Adeus‖ (que fez depois da primeira
morte).” Dito isso, aí estão as duas poesias:

8
Matéria com o título Miró (re)nasce como poeta, publicada em 28 de novembro de 2016,
produzida por Tatiana Notaro para o jornal Folha de Pernambuco.
Cotidiano | 51
Consolo na Praia
o amor quando invade
Vamos, não chores... arde bem dentro
A infância está perdida. risos e lágrimas se confundem
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu. o amor quando invade
deixa cores alegres
O primeiro amor passou. e tristes paisagens
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou. o amor quando invade
Mas o coração continua. deixa a pele vermelha
e a pálida saudade
Perdeste o melhor amigo. (MIRÓ, 2016, p. 128).
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,


em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.


À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias


precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
(DRUMMOND, 1977, p. 180).

Segunda ressonância: na poesia Manifesto Alegrista, que tanto


contrasta com o tom amargo das demais que constam no livro aDeus
(2015). Numas das estrofes, Miró tenta encontrar sua própria fórmula
para os versos de Drummond: “nas ruas do mundo / imundo vasto
mundo / não precisaria nem me chamar Raimundo / nem usar lentes
para enxergar tuas misérias” (2015, p. 43).
Terceira ressonância: quis Miró compor seu próprio poema à
maneira de José num livro seu com alto grau de politização, o Quebra a
direita, segue a esquerda e vai em frente (1999). É válida a exposição,

Cotidiano | 52
novamente em paralelo, do famoso poema de Drummond, encontrado
no livro homônimo de 1942, e daquele de Miró, produzido mais de
meio século depois.

José

E agora, José? e agora, velho


A festa acabou, que tu tás ficando velho?
a luz apagou, que as bundinhas durinhas
o povo sumiu, do falso sentimento rebolado
a noite esfriou, já não te excitam mais?
e agora, José?
e agora, você? logo agora, velho
você que é sem nome, que tens todas
que zomba dos outros, as fichas telefônicas
você que faz versos, e só encontras pela frente
que ama, protesta? orelhão de cartão?
e agora, José?
logo agora velho
Está sem mulher, que foi provado que
está sem discurso, em Belo Horizonte
está sem carinho, tem doze morenas para um homem
já não pode beber,
já não pode fumar, velho, e agora?
cuspir já não pode, que os americanos mandaram
a noite esfriou, uma maquinazinha de merda
o dia não veio, para Marte
o bonde não veio, e querem derrubar
o riso não veio, o presidente por uma suposta
não veio a utopia proposta de uma chupadinha?
e tudo acabou quem nunca deu uma chupadinha?
e tudo fugiu quem nunca deu
e tudo mofou, uma chupadinha
e agora, José? que atire a primeira pedra
ou o primeiro prato de comida
E agora, José? ao Coque, aos Coelhos
Sua doce palavra, ou à Etiópia
seu instante de febre, (MIRÓ, 2016, p. 153).
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Cotidiano | 53
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
(DRUMMOND, 1977, p. 130).

Por último, também topamos com Miró parafraseando o


famoso Poema de sete faces – que mais adiante será comentado – numa
poesia do já referido Quebra a direita, segue a esquerda e vai em frente
(1999). Trata-se de um poema sem título dedicado ao poeta Pedro
Raymundo, criado após a leitura do seu livro O pássaro que criou raízes
(1981). Assim aparece na primeira estrofe: “sabe, Pedro / eu lhe direi o
que venho procurando neste / mundo / vasto mundo / se eu me
chamasse Pedro Raimundo / seria todo silêncio / ou não? (2016, p.
157). De acréscimo, veja-se como nos primeiros versos publicados, a
imagem da “pedra no caminho” usada para agregar significado às
interdições, ausências, dores, no poema Coisas certas do livro Quem

Cotidiano | 54
Descobriu o Azul Anil? (1984-1985): “certas coisas diante de mim /
parecem água / outras facas / e eu nem sei mais distinguir / no meu
caminho / o que seja pedra e espinho” (2016, p. 221).
Ressalte-se: nenhum outro poeta, no sentido estrito da
palavra, alcança esse grau de refração tão direta, afirmada por tantas
fontes, percorrendo tanto tempo da vida criativa de Miró. É certo seu
mais remoto fascínio pelas letras das músicas de Roberto Carlos,
Reginaldo Rossi, Fernando Mendes, Djavan, Gilberto Gil e tantos
outros – este último, considerado “talvez o maior poeta / da nossa
musilíngua” no já citado Confesso que também vivi meio século. É
certo seu reconhecimento a Maurício Silva, que o despertara com a
decisiva inspiração poética. É certa a influência na criação advinda do
intercâmbio com poetas do Movimento dos Escritores Independentes
(MEI) e o contato com a dita poesia jovem alternativa dos anos 1970. É
certa a inspiração provocada pela recitação do poeta baiano Manuca
Almeida para a construção da identidade expressiva de Miró. É certo
que os romances, contos e crônicas de Ignácio de Loyola Brandão
produziram grande efeito a partir dos anos 1990 – ele próprio
reconhece a impressão que causaram as leituras, quando estava em São
Paulo, de Não verás país nenhum (1981) e Cabeças de segunda-feira
(1983). É certo, ainda, que pirou quando fez tantas outras descobertas
em São Paulo: “descobri Mario Varga Llosa / Gabriel García Márquez,
Glauber Rocha / Caetano Veloso, Ednardo, Geraldo Azevedo...” 9
(2016, p. 60-61).
Mais ou menos nessa altura Miró já havia lançado os livros
Quem Descobriu o Azul Anil? (1984-1985) e São Paulo é fogo (1987). E,
como declara sempre, já amava Drummond. Isso, todavia, não
relativiza o impacto, por exemplo, da obra literária de Ignácio de
Loyola Brandão na sua poesia. No mínimo, ela o teria estimulado a
acentuar a crueza da expressividade, e as tonalidades mais viscerais,
nos seus versos de crítica social. Em seu livro dizCrição (2012), Miró
chega mesmo a prestar homenagem ao escritor no poema-pílula
intitulado Ressaca: “tem gente doido / pra dar um tiro na cara da
segunda-feira” (2016, p. 28).

9
Versos do já citado Confesso que também vivi meio século.
Cotidiano | 55
Em suma, isso tudo é certo. Mas é certo também a insistente,
confessada e transversal presença da poesia de Drummond; presença
que, se acrescente, tudo indica provir de uma fruição fragmentária,
não sistemática e baseada em interpretações auto-referenciadas da
obra. Ademais, existem outras coisas menos certas, localizadas ainda
no plano das sugestões: um escritor amigo de Miró opinou certa feita
que ele seria a versão atualizada do poeta pernambucano Solano
Trindade;10 outro observador percebeu nele a influência de Manuel
Bandeira, o qual a poesia de Miró deixaria entrever nas cenas de solidão
e nas fotografias da miséria e da violência;11 um comentador
reconheceu – no mesmo espírito – o legado de Manuel Bandeira no
despojamento da linguagem e no olhar voltado para o cotidiano
premido pela opressão econômica.12
Mencionamos essas alusões porque pretendemos também
explorar as duas últimas pistas que insinuam os vestígios de Manuel
Bandeira, ao lado da presença de Drummond, na poesia de Miró.
Vestígios, aliás, que nada surpreendem – seja pela proximidade (e
admiração mútua) que Drummond e Bandeira cultivaram em vida,
resultando em influências recíprocas na feitura poética de ambos; seja
pela origem pernambucana deste último e sua recorrente evocação do
Recife. Por sinal, Bandeira até hoje continua sentado na Rua da Aurora,
contemplando a imagem do Capibaribe com o arco da mão esquerda
premendo e recostando levemente a testa, como quem tivesse a
conjurar mais um poema para a cidade. Impossível um observador
sensível da vida urbana do Recife – como Miró demonstra ser – passar
alheio a esse quadro.
Se, pretendendo ser justos, ousássemos especular invertendo
os termos da questão? Se interrogássemos à poesia de Drummond

10
Essa alusão foi feita por Wilson Freire na p. 12 do Suplemento Cultural do Diário Oficial
do Estado de Pernambuco, Nº 125, de julho de 2016, publica com o título Miró: um retrato
de corpo inteiro de um dos poetas mais inventivos do Brasil.
Referimo-nos ao comentário do jornalista Igor Gomes na matéria Miró e a importância
11

de dar um penúltimo olhar sobre todas as coisas, do mesmo Suplemento citado na nota
anterior.
12
Essa observação foi feita pelo escritor e pesquisador Pedro Américo, no programa
Opinião Pernambuco da TV Universitária, realizado em 20 de março de 2015, com o tema
Poetas Marginal do Recife.
Cotidiano | 56
sobre a presença de Miró em seu seio? É saudável imaginar. No
mínimo, ele seria a encarnação daquele anjo torto – do tipo dos que
vivem na sombra – que atentou e aliciou o acanhado itabirano na sua
chegada ao mundo. Com contorções e exclamação arrebatada dizendo:
“Vai Carlos! ser gauche na vida”. O tal anjo torto aparece no poema
que abre o primeiro livro publicado por Drummond, o Alguma Poesia
(1930). Um poema que, sozinho, já esboça tanto de nuances da
personalidade poética do autor, a vocação dramática da poesia, o
périplo do poeta e do seu personagem Gauche13: a sensibilidade do
olhar; a valorização de elementos prosaicos com grande potencial
lírico, esboçados por uma veia quase crônica; o esboço inicial dos
conflitos do poeta com o mundo (respondida, nesse momento, com a
fórmula eu maior que o mundo, depois alterada); a expressão coloquial
e arredia à métrica e ao convencionalismo nas rimas, com gestos
inusitados e fórmulas populares, além de um gosto pela repetição (mas
que não significa aversão às formas clássicas e ao verso rimado, como
também se vê na evolução de Drummond); o humor que o poeta
oferece destilando certa ironia e, ao mesmo tempo, consolando nossos
nervos sensíveis, depois do arrebatamento que provoca. Como se fosse
um clown de Shakespeare – que convocasse o poeta para uma vida
desajustada ou deslocada no mundo – assim aparece o dito anjo torto
no Poema de Sete Faces:

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto


desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens


que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:


pernas brancas pretas amarelas.

13
Sobre isso, consultar a importante pesquisa Drummond, o gauche no tempo, de
Affonso Romano de Sant‖Anna (2008).
Cotidiano | 57
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode


é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste


se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer


mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
(DRUMMOND, 1977, p. 53).

Repare então naquele quadro que sugerimos de Miró como anjo


torto de Drummond. Seria a pintura de uma sensibilidade nova, de
outro mundo e ainda não nascida, cúmplice de uma sensibilidade
anterior, recém parida. O exercício imaginativo não é gratuito. Serve
para introduzir uma das características íntimas de Miró, também
marca pessoal de Drummond: a sensibilidade.14 E, de cara, já estamos
sugerindo que este último tenha ajudado a fertilizar o solo para
desabrochar poeticamente essa característica tão penetrante na figura
de Miró. Obviamente com as grandes diferenças em termos dos
conteúdos humanos e sociais objetos dessa sensibilidade. Além disso,
de contrabando, a imagem serve para insinuar uma das notáveis
diferenças entre ambos no plano mais amplo da expressão e recepção

Com a qual o caracteriza Mario da Andrade no pequeno artigo Fortuna Crítica, incluído
14

na edição de 1977 do livro Carlos Drummond de Andrade – Poesia Completa e Prosa, da


Editora Nova Aguiar (DRUMMOND, 1977).
Cotidiano | 58
poética. O que a caracteriza? De antemão, busque tirar algumas
conclusões próprias tentando novamente outra imagem: um recital em
que Miró e Drummond revezassem na bancada. Isso, naturalmente, se
o Drummond, tão tímido que era, topasse a empreitada.
Enquanto tem esse alumbramento, aproveitamos para advertir
que não queremos propor nada de pretensioso. Nada de ficar querendo
inventar a pólvora ou a roda. Nada de ficar buscando um Drummond
reencarnado num beco ou pensão do Recife. Ninguém é Drummond. E
Miró é rosa do povo. Por essa imagem, outra vez aparece Miró na
poesia de Drummond. Diríamos que ambos cantam juntos o último
verso de Consideração do poema – que introduz o livro A Rosa do Povo
(1943-1945): “... Tal uma lâmina, / o povo, meu poema, te atravessa”
(1977, p. 138). Diríamos que Drummond, contemplando a poesia de
Miró, cantou em A Flor e a Náusea, também de A Rosa do Povo:

[...]

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(DRUMMOND, 1977, p. 140-141).

Retomado, enfim: nossa questão é mais humilde. Assim


lançada em tom acadêmico: Que efeitos criadores o contato com a
poesia de Drummond pode ter produzido para tornar tão penetrante a

Cotidiano | 59
feitura e expressão poética de Miró? Ou, simplesmente: e Drummond
em Miró da Muribeca?

2.

Voltemos ao exercício imaginativo anterior. Ele nos ajuda a


aludir a uma diferença vital no campo da expressão e recepção poética
entre Drummond e Miró. Diferença que, ademais, não deixa de
impregnar a esfera da própria criação artística. Ou seja, em
Drummond, o instrumento primordial para sua expressão poética, e
para a recepção dos seus poemas, foi essencialmente o texto escrito,
editado em revistas, jornais ou livros. Em raríssimas ocasiões o próprio
poeta se aventurou por outras vias. Salvo engano, apenas nuns poucos
álbuns em discos de vinil Drummond arriscou divulgar a poesia através
de registros fonográficos de suas próprias recitações.15 Suas aparições
em vídeos são mais discretas ainda, servindo basicamente para
depoimentos de seu percurso biográfico.16 Não é pelo registro dessas
raras – e um tanto apagadas – aparições que Drummond tocou seu
público. A bem da verdade, essa difusão também foi auxiliada por
outros que se engajaram na recitação de seus versos e na apropriação

Nos LP‖s Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade (1978, Philips), Vinicius &
15

Drummond (1981, Polygram) e Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade (Sem


data, Rádio Petrópolis-Festa).
16
Pense-se no documentário O Fazendeiro do Ar de Fernando Sabino e David Neves de
1972, na icônica entrevista com Leda Nagle em 1981 para o Jornal Hoje da TV Globo, e no
filme o Poeta de Sete Faces (2002, Dirigido por Paulo Thiago).
Cotidiano | 60
deles como base para outras produções artísticas. Mesmo nesses casos,
não consta que a projeção tenha ultrapassado modestos círculos.17
Essas observações parecem um tanto banais. Porém possuem
grande significado. De partida, elas apontam algo fundamental: não foi
por qualquer desempenho no campo da récita e da expressão gestual,
ou por quaisquer invenções tipográficas e semióticas nos impressos,
que Drummond exerceu efeito direto sobre Miró. Ademais, esse
suporte praticamente encerrado na linguagem escrita permite que o
conteúdo poético da obra de Drummond sobreviva mais
autonomamente em face do próprio poeta. A poesia consegue
caminhar com as próprias pernas. O corpo da poesia pode – sem
grandes traumas – se desprender do corpo do poeta que a gestou e –
também sem grandes perdas – provocar os efeitos artísticos esperados.
Tal Michelangelo após esculpir Moisés, Drummond teria o direito de
exclamar ao seu Gauche: Parla! Mas que contraste impressionante com
a poesia de Miró!
Sua amiga, a poetisa pernambucana Cida Pedrosa, já havia
observado: Miró é sua própria poesia.18 Sem encarnar no próprio poeta,
a poesia, nesse caso, se amofina. E, advirta-se, mesmo mofina essa
poesia é penetrante, do mesmo modo como nos comove aquela
criatura mofina que, apesar da condição, preserva sua doçura. Mesmo
o leitor mais perspicaz poderia ao menos desconfiar dos grandes efeitos
artísticos de um filme de Chaplin apenas perscrutado o roteiro? Pois
bem, quanta dó desse leitor perspicaz que tenta fazer o mesmo com a
poesia de Miró, folheando as páginas da sua última coletânea! E, no
entanto, assim mesmo quanta razão para se emocionar ele não

17
Basta verificar os casos escassos em que seus poemas foram veiculados na linguagem
musical. O maior sucesso nesse campo se deveu a versão de Canção amiga, musicada por
Milton Nascimento, no álbum Clube da Esquina II (1972). Uma iniciativa maior
envergadura – porém de pouca audiência – foi o CD duplo As várias caras de Drummond,
lançado por Belchior em 2004, em parceria com a revista Caras, com 31 poemas
musicados. Ademais, a edição da poesia e prosa completa da Editora Aguilar registra, em
apêndice, outras composições musicais sobre poemas de Drummond – além de uma
discografia em torno de sua obra - no geral ainda mais inacessíveis e desconhecidas
atualmente.
18
Em documentário Onde estará a Norma (2007, Dirigido por Bárbara Cristina,
Jacqueline Granja e Patrícia Gomes).
Cotidiano | 61
encontraria, com toda a poesia que transborda para o texto envolvendo
esse leitor perspicaz!
As tentativas para classificar e caracterizar tal fazer poético
resultaram em diferentes rótulos. Além de Cida Pedrosa, com a ideia-
síntese de que Miró é sua própria poesia, outros observadores
sinalizaram o traço distintivo, ora do que seria uma “vocalidade” ou
“vocalização”, ora de que seria uma “oralidade”.19 Enquanto algum
rótulo já se havia esboçado com a alcunha de bricolagens grafico-
sonoro-gestuais.20 Um estudo mais formal, e de maior fôlego, foi
oferecido por André Telles do Rosário, em seu livro Corpoeticidade:
Poeta Miró e sua literatura performática (2007). O pesquisador recorre
a ideia de “literatura performática” para apanhar a natureza formal
dessa criação, apontando sua “corporalidade”. Isto é, a materialização
pela mediação do corpo, com a finalidade de modular as manifestações
do poema. Ela seria a resultante de um híbrido de expressões
tipográficas e corporais. Nas primeiras se incluindo, além da base
textual, desenhos, colagens, gravuras, arranjadas nos impressos
publicados com diversas roupagens. E as segundas remeteriam à
recitação, que abarca as dimensões orais e gestuais. Ocorreria, por esse
meio, a execução do poema como leitura corporal do texto poético.
Onde se agrega a linguagem corporal para compor o significado do
poema. E onde a interação com o público, o espaço e seus objetos leva
aos resultados sempre inusitados – mesmo irrepetíveis – da recitação.
Aí, o poema ganha vida pelo corpo do poeta – ou pelo corpo dos livros
através da recorrência a imagens, colagens e outros meios gráficos. No
sentido inverso de Drummond, a poesia de Miró olha para seu criador a
exclamar: Parla! O poema requer o corpo do poeta como a extensão
orgânica sem a qual não alcançaria manifestar plenamente todo o
significado que possui.
Não é que se dissolva o lastro textual da poesia. Entretanto, na
medida em que Miró encontra esse caminho próprio de criação e
expressão, progressivamente aquele lastro textual passa a ser

19
Veja-se o debate no programa Opinião Pernambuco da TV Universitária, realizado em
20 de março de 2015, com o tema Poetas Marginais do Recife.
20
Jomard Muniz de Brito na apresentação Ilusão de Ética (1995), de Miró.
Cotidiano | 62
condicionado pela recitação, o poema passa a ser moldado
acusticamente, a segmentação dos versos forjada pelas pausas da
apresentação. Mas não se trata de uma característica que absorve o
conjunto da produção. Ela aparece latente no primeiro livro, Quem
Descobriu o Azul Anil? (1984-1985), onde ainda o autor começava a
desbravar o caminho para sua expressão poética. Pode-se dizer
também que essa característica oscilaria, a julgar por comentários ao
livro aDeus (2015), segundo os quais, nele, o texto estaria falando mais
por si mesmo.21 Em todo caso, trata-se da característica que mais se
destacou como traço original de Miró.

3.

Com tudo isso, tem sentido insistir mais nessa procura dos ecos
de Drummond em Miró? Para além das pistas antes levantadas, o que
mais dessa presença poder-se-ia captar numa obra poética que
relativiza tanto a dimensão textual através da expressão oral e gestual,
que é tão moldada pela criação espontânea e instantânea, e pela base
do autodidatismo? O ponto de partida pode ser justo os traços de
coloquialidade e oralidade na linguagem poética e na forma poema! É
bem onde Drummond pode estar à espreita – com Manuel Bandeira de
consorte e sob a regência amiga de Mário de Andrade – navegando pela
corrente do modernismo, com a valorização e uso da linguagem
coloquial.
Não foi Manuel Bandeira que, em Evocação do Recife – do livro
Libertinagem (1930) – ao lembrar a infância na capital de Pernambuco,
expôs de modo tão direto e afrontoso uma das principais pelejas
daquele movimento renovador? Dizia ele: “[...] A vida não me chegava
pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada
do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o
português do Brasil / Ao passo que nós / O que fazemos / É macaquear

21
Trata-se da resenha do livro aDeus feita por Thiago Corrêa, com o título A
metamorfose de Miró, publicada em 22 de outubro de 2015 no site Vacatussa.
Cotidiano | 63
/ A sintaxe lusíada [...]” (1967, p. 255). Não foi, por seu turno,
Drummond quem se envolveu numas das maiores profanações dos
cânones poéticos tradicionais do século XX no Brasil ao optar pelo
coloquial “tinha” ao invés do normativo “havia” no seu conhecido
poema No meio do caminho do livro Alguma Poesia (1930)? Reparem
vocês no desacato despudorado a “sintaxe lusíada”: “No meio do
caminho tinha uma pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho /
Tinha uma pedra / No meio do caminho tinha uma pedra / Nunca me
esquecerei desse acontecimento / Na vida de minhas retinas tão
fatigadas / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / Tinha uma
pedra / Tinha uma pedra no meio do caminho / No meio do caminho
tinha uma pedra” (1977, p. 61). Em meados dos anos 1940, o próprio
Manuel Bandeira oferece uma síntese explicativa do modernismo que,
a partir das primeiras décadas do século XX no Brasil, enformava essas
manifestações no campo da poesia “oficial”:
Os modernistas introduziram em nossa poesia o verso livre,
procuraram exprimir-se numa linguagem despojada da eloqüência
parnasiana e do vago simbolista, menos adstrita ao vocabulário e à
sintaxe clássica portuguesa. Ousaram alargar o campo poético,
estendendo-o aos aspectos mais prosaicos da vida, como já o tinha
feito em seu tempo do romantismo Álvares de Azevedo. Movimento
a princípio mais destrutivo e bem caracterizado pelas novidades de
forma, assumiu mais tarde cor acentuadamente nacional, buscando
interpretar artisticamente o presente e o passado brasileiro, sem
esquecer o elemento negro entrado em nossa formação. Foram seus
pioneiros e principais porta-vozes Mário de Andrade e Oswald de
Andrade, em São Paulo, Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto, no Rio
de Janeiro (BANDEIRA, 1967, p. 705).

Manuel Bandeira sugere, ainda, que um movimento intestino


em direção a essas mudanças já operava antes. Quando a poesia
transitou de um conceito mais plástico – próprio das formas
parnasianas – para aquele mais musical dos simbolistas. O passo
seguinte foi esse dado pelos modernistas no caminho para uma
aproximação à prosa, à linguagem coloquial e o despojamento das
fórmulas tradicionais de metrificação e eloquência, estimulando a
blague do poema-piada, a expressão concisa do poema-pílula e as
formas mais fugazes dos poemas de ocasião. As convulsões do sistema
colonial, o crescente domínio mercantil e a emergência da realidade
Cotidiano | 64
tipicamente capitalista ou urbano-industrial – nas circunstâncias
mundiais do início do século XX – assim reagiam na produção poética
de cunho erudito: o maior individualismo nas expressões, a
experimentação formal, a reação contra o tradicionalismo estético, a
necessidade de conexão com a realidade nacional cotidiana, e suas
manifestações populares. Por sua vez, essa reação apanhava recursos
legados de outras vanguardas pelo mundo, germinadas e
desenvolvidas sobre a base das amplas contradições sociais e políticas
do advento do imperialismo.
A poesia de Miró se nutre – com mais ou menos incidência,
direta ou indiretamente, de modo intencional ou não – de toda essa
movimentação poética de cunho renovador, da qual Drummond é um
dos elos. Assim sintetiza André Telles do Rosário em seu já citado
Corpoeticidade (2007, p. 20):
Incipientemente, desde a introdução da linguagem popular nos
poemas (principalmente com o modernismo), da ruptura com a
métrica e a rima como conhecidas nos tratados de versificação (com
todos os futurismos), até as inovações na programação gráfica das
obras (com os formalistas russos e com Mallarmé, por exemplo),
inserindo a preocupação formal com os elementos visuais na
construção do poema (com o Concretismo), e depois inclusive
reinventando o próprio material em que essa poesia ia transmitida
(Poema Objeto, poesia Marginal, poesia Intersignos, Polipoesia),
foram sendo acrescentados elementos que possibilitaram mudanças
na maneira de se ler poesia. A arte resultante destas novidades é mais
performática que a anterior por possibilitar outra relação do poema
com a realidade cultural de seu meio de produção e divulgação, no
momento mesmo da recepção deste produto cultural.

Novamente: mas e Drummond em Miró da Muribeca? Já


fizemos menção à contribuição de Drummond para a cristalização da
coloquialidade na linguagem do poema. Em seu caso, sempre arranjada
e comedida segundo a finalidade do autor, afetando-se mesmo pelo
que José Guilherme Merquior (2016) decifra como “mescla dos estilos”
– da qual se afasta mais ou menos em certos momentos da obra.
Eventualmente ela aparece com o despojamento e a informalidade de
uma confissão pessoal, como ao final do já referido Poema de Sete
Faces: “Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque /

Cotidiano | 65
botam a gente comovido como o diabo.” Parece que uma confidência
repentina e espontânea saltou da boca do poeta para a estrofe do
poema – lembrando um procedimento criativo de Miró destacado por
nós. Em seu livro dizCrição (2012), uma poesia sem título se utiliza
desse mesmo recurso de Drummond, ao encerrar com a confissão
espontânea e coloquial, inclusive reiterando a escandalosa heresia de
substituir o normativo “há” pelo vulgar “tem”:

as calçadas de São Paulo


já não suportam o peso de tantos bêbados
de seres esquecidos

tudo aqui é tudo muito grande


daí ficamos pequenos
rascunhos de gente
fiapos que a FIESP esquece
que Abílio Diniz nem pão nem açúcar
que Antônio Ermírio de Moraes não ergue
sequer um saco de cimento de coisas boas

desculpa, São Paulo


gosto muito de tuas luzes
mas tem um ser humano largado na calçada
nessa hora
o coração do poeta se apaga
(MIRÓ, 2016, p. 29)

Embora o decoro verbal e a linguagem culta também tenham


sido cultivados por Drummond, num estágio posterior do seu
desenvolvimento poético, foi bastante significativa a penetração da
linguagem cotidiana, espontânea – e mesmo de expressão idiomática –
sobretudo nas suas obras iniciais. A rudeza a que pode chegar o
mergulho no vocabulário popular – além da virtude poética de tal
procedimento – era reconhecida mesmo por Manuel Bandeira, ao
comentar seu poema, Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá, do
livro Estrêla da Manhã (1936): “A mim sempre me agradou, ao lado da
poesia de vocabulário gongorinamente seleto, a que se encontra não

Cotidiano | 66
raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão. Assim, a expressão
―ficar safado da vida‖, em que o adjetivo ―safado‖ só pode ser superado
por outro que não se deve escrever, continua para mim preservando,
na sua condição de lugar-comum, a mesma virtude poética inicial”
(1967, p. 105). Segundo a origem, condição e ambiente social e cultural,
além do tempo histórico, a partir dos quais Miró produz sua poesia,
esse confessado recato de Manuel Bandeira acaba por cegar a lâmina da
poesia. O poeta precisa descortinar o adjetivo que “não se deve
escrever”, como instrumento cortante da expressão e como forma
orgânica da sua personalidade social. O que Miró faz com capacidade
de modulação e efeito lírico.
Talvez aí outra possível identificação com Drummond, que
viveu duas décadas a mais que Bandeira, e pôde conhecer um ambiente
cultural menos hostil a temas e termos inconfessáveis no terreno
poético, permitindo-se publicar discretamente alguns de seus poemas
eróticos ainda em vida. Mas sem ultrapassar certos limites. Deixou para
edição póstuma a matéria e a linguagem desnudada do livro O amor
natural (1992). Nas divagações em seu livro de prosa, Passeios na Ilha
(1952), Drummond mesmo reconhecia as fronteiras de classe que
separam – no universo da produção e expressão literária – a veia
criadora dos “[...] exemplares da boêmia ou da miséria fecundas, que
nos legaram obras imperecíveis”, em face da extração a qual ele
próprio pertencia, junto com Manuel Bandeira; ou seja, do “escritor-
funcionário” ou “funcionário-escritor” que “[...] constrói, sob a
proteção da Ordem Burocrática, o seu edifício de nuvens, como um
louco manso e subvencionado” (1977, p. 842-843).
Acreditamos que a coloquialidade representa uma das nuances
daquela “maneira de se expressar” que tenha cativado Miró no seu
primeiro contato com Drummond. Uma “maneira de se expressar” que
serviu para efetivar um dos fulcros da obra de Drummond: o gosto pelo
cotidiano – o qual se alarga dando eficácia, por exemplo, a sua poesia
de cunho social. Pela figuração desse plano, as várias inquietudes da
poesia ganharam vida: inquietude frente ao próprio ser “torto” do
poeta, em face de sua relação com o “mundo caduco”, até a inquietude
em relação à própria poesia. Mesmo quando a criação revela um estado
mais sereno do poeta, o gosto pelo cotidiano representa um canal para
Cotidiano | 67
retratar o mundo. De diversas formas isso ocorre: seja na fixação da
vida do dia a dia nos seus quadros mais pitorescos e anedóticos, seja,
em momentos de maior força política, na transfiguração do destino
individual na malha das circunstâncias, como discernimento da
condição humana em certos dramas corriqueiros da sociedade
moderna (CANDIDO, 1995). Em suma, aí se corporifica a excelente face
de crônica que a obra de Drummond possui, não apenas em poesia,
mas igualmente em prosa. Exercitou de tal modo essa verve de crônica
no campo da poesia que, quando publicou, em dois livros, a seleção da
produção poética que mais puramente se enquadrava nesse campo,
achou necessário identificá-la com o neologismo versiprosa. O
primeiro dos dois livros saiu com o título Versiprosa: crônica da vida
cotidiana e de algumas imagens (1967). Com a seguinte justificativa
para a invenção da palavra: “Versiprosa, palavra não dicionarizada,
como tantas outras, acudiu-me para qualificar a matéria deste livro.
[...] Crônicas que transferem para o verso comentários e divagações da
prosa. Não me animo a chamá-los de poesia. Prosa, a rigor, deixaram
de ser. Então, versiprosa” (1977, p. 433). O enquadramento crônico da
figuração lança-se no raio da experiência pessoal, se projeta nas
reminiscências da memória familiar dos ambientes provincianos e
rurais, se espraia nas facetas da vida urbana.
Insistimos nessa característica de Drummond porque nos
parece que ela possa ter servido como um importante estímulo (dentre
outros) para a construção da identidade da criação poética de Miró.
Sempre que precisa definir o que perfila sua expressão, Miró aponta
para a crônica. Diz retratar a crônica do campo da poesia, e
comumente oscila na auto-identificação das obras entre a poesia e a
crônica. Já se declarou mesmo uma espécie de repentista sem rima22,
sugerindo, não apenas esse enraizamento no cotidiano, mas a
espontaneidade e a oralidade que permeia sua criação, o seu ancestral
do trovadorismo. Também nomeou alguns de seus livros com essa
identificação – pense-se no explícito Quase crônico (2010) ou nos
sugestivos dizCrição (2012) e Flagrante deleito (1998).

22
Programa Tesão Literário, TV Pimenta ( YouTube), apresentação de Sidney Nicéas, de
23 de março de 2018.
Cotidiano | 68
Já observamos que o modernismo no Brasil impeliu esse
alargamento do campo poético, estendendo-o aos aspectos mais
prosaicos da vida. Manuel Bandeira e Drummond foram dos que mais
representaram e tornaram perene esse traço, que translada a tal ponto
para a poesia que ela se traveste de página jornalística no livro, ao
mesmo tempo em que habita as páginas da imprenssa roubando o
papel das notícias – tudo isso sem ser mera reportagem: evocam
flagrantes de episódios diários da vida urbana, incluídos os quadros da
vida privada, dos hábitos e costumes, da miséria e opressão social; da
cena política da cidade ou do país; dos acontecimentos histórico-
mundiais. Em seu poema Carta a Stalingrado – Rosa do Povo (1945) –
Drummond chega mesmo a anunciar, por ocasião das notícias de
vitória naquela frente de guerra: “A poesia fugiu dos livros, agora está
nos jornais / Os telegramas de Moscou repetem Homero. / Mas
Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo.” (1977, p.
195). Sobre o verso que abre essa sentença, diz Antonio Candido: “Este
verso manifesta a faculdade de extrair do acontecimento ainda quente
uma vibração profunda que o liberta do transitório, inscrevendo-o no
campo da expressão” (1995, p. 82). Já antes – no livro Sentimento do
mundo (1940) – o apelo para esse mergulho mais direto e intenso na
realidade se faz sentir em Os ombros suportam o mundo: “Chegou um
tempo em que a vida é uma ordem / A vida apenas, sem mistificação”
(1977, p. 111); ou na poesia seguinte, Mãos dadas: “Não serei o poeta de
um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou
preso à vida e olho meus companheiros. [...] O tempo é a minha
matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”
(1977, p. 111). Isso se mostra mesmo uma inclinação perene na poesia
de Drummond. Além desses exemplos da produção intermediária,
pense-se em poemas do livro Alguma Poesia (1930) como Poema do
Jornal (p. 64) e Nota Social (p. 64) ou – mais de quarenta anos depois,
no livro As impurezas do branco (1973) – num poema como Diamundo
– 24h de informação da vida do jornaledor (DRUMMOND, 2015, p.
433), praticamente uma colagem de recortes de matérias jornalísticas.
A pulsão de figurar as nuances mais corriqueiras da vida, de
transfigurá-las para a forma poética, Manuel Bandeira apontava
explicitamente, quase como uma declaração, por exemplo, em seu

Cotidiano | 69
livro Libertinagem (1930) – o mais equalizado, na sua bibliografia, com
a técnica e a estática do modernismo – com o Poema tirado de uma
notícia de jornal: “João Gostoso era carregador de feira livre e morava
no morro da Babilônia num barracão sem número. / Uma noite ele
chegou no bar Vinte de Novembro / Bebeu / Cantou / Dançou / Depois
se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.” (1967, p. 257).
Noutro poema – do mesmo Libertinagem – Manuel Bandeira apresenta
uma variação dessa abordagem no seu retrato, com nuance mais lúdica
e crítica, da Pensão Familiar: “Jardim da pensãozinha burguesa. Gatos
espapaçados ao sol. / A tiririca sitia os canteiros chatos. / O sol acaba
de crestar os gosmilhos que murcharam. / Os girassóis / amarelo! /
resistem. / E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais. / Um
gatinho faz pipi. / Com gestos de garçom de restaurant-Palace /
Encobre cuidadosamente a mijadinha. / Sai vibrando com elegância a
patinha direita: / – É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.”
(1967, p. 245).

4.

Parece-nos que essa abordagem crônica projeta uma


identidade para boa parte da poesia de Miró. Ela manifesta-se nos seus
poemas que demonstram maior poder de penetração e envolvimento –
ou seja, naqueles que têm como objeto as cenas urbanas de injustiça,
miséria e opressão. Esse foco encontra correspondentes na poesia de
Drummond e, de modo muito emblemático, na de Manuel Bandeira.
Mas a posição social a partir da qual Miró busca reproduzir esses
quadros resulta numa intensidade diferenciada na sua criação. O
contato com as iniquidades retratadas não é apenas visual. É nesse
aspecto, também, que ele é sua própria poesia. Como exemplo,
poderíamos cotejar, em paralelo, conhecidos poemas de Drummond e
Bandeira, que apresentam esses motivos com bastante concisão.
Vejamos os casos dos poemas O Bicho – do livro de Bandeira Belo Belo
(1948) – e o Fim de Feira – do já referido As impurezas do branco (1973)
de Drummond.

Cotidiano | 70
O Bicho Fim de Feira

Vi ontem um bicho No hipermercado aberto de detritos,


Na imundície do pátio ao barulhar de caixotes em pressa de suor,
Catando comida entre os detritos. mulheres magras e crianças rápidas,
catam a maior laranja podre, a mais bela
Quando achava alguma coisa, batata refugada, juntam ao passeio
Não examinava nem cheirava: seu estoque de riquezas, entre risos e gritos.
Engolia com voracidade. (DRUMMOND, 2015, p. 498-499).

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.


(BANDEIRA, 1967, p 332).

O poeta, nesses casos, é um espectador que acompanha a cena


a partir de certa distância. O quadro social é relativamente externo a
sua posição. Por isso, embora se conecte a essa realidade – e expresse
essa conexão através da poesia – o grau de intimidade que alcança com
ela apenas permite que seus personagens assumam um perfil mais ou
menos genérico ou abstrato. É o “bicho” concretizado no “homem”.
Ou são indiferenciadas “mulheres” e “crianças”, distinguidas por
características exteriores de magreza ou agilidade. Mesmo no caso de
um poema como Morte do Leiteiro (1977, p. 169-170) – do livro Rosa do
Povo (1945) – onde ganha maior nível de detalhamento a crônica da
morte do entregador de leite confundido com um ladrão noturno, o
próprio narrador admite sua desinformação sobre aquele personagem.
Ele é reconhecido pelo que personifica da sua profissão. Noutro
exemplo, em Operário no Mar (1977, p. 103-104) – do Sentimento do
Mundo (1940) – o poeta lança um olhar perscrutador sobre o operário
que passa na rua, especula sobre seus passos, supõe uma incapacidade
de entendimento com ele, reconhece uma fascinação que o impele para
o contato com o operário. E, ao final, revela a carência dessa ligação
com a incerteza: “Daqui a um minuto será noite e estaremos
irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em
Cotidiano | 71
terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação
entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas
liquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa,
as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma
esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o
compreenderei?” (DRUMMOND, 1977, p. 104).
A partir da experiência da espoliação social e da opressão
urbana, a crônica social que brota da poesia de Miró se constrói – com
muita freqüência – desde dentro dos quadros retratados. E mesmo
naqueles exemplos em que o narrador se mostra um espectador, ele
não deixa de revelar uma intimidade orgânica – talvez aquele estado de
compreensão que Drummond vislumbrava.23 Os exemplos são vários.
No livro Tu tás aonde? (2007), numa estrofe do Meu lado Greenpeace
(2016, p. 83), fazendo a degradação humana atravessar um poema que
pretendia um discurso raso de proteção ecológica: “por falta de árvores
/ o beija-flor invade meu apartamento / e beija as flores artificiais / que
minha mãe comprou na feira / por falta de almoço / Dona Zefa enfia a
cara no lixo / e come qualquer merda / sem a menor cerimônia / e
tempo de validade [...] e eu / perdi a chance / de escrever um grande
poema / era só voltar ao beija-flor.” No livro Quebra a direita... (1999),
o poema Lar, doce lamento, dedicado ao amigo poeta Wilson Araújo,
expõe as necessidades amontoadas pelo círculo familiar – desde as
elementares até as atiçadas pela propaganda comercial – que impelem
a luta pela sobrevivência, marcada pela incerteza da subsistência e pela
possibilidade de alcance apenas do mais trivial: “acordou decidido /
não voltaria para a casa sem o leite / das crianças / há dias que seus
dias eram aquela merda: / a filha pedindo para ele comprar / uma
sandália da Xuxa / o filho, uma bolsa Company / a mulher querendo
sexo / e um pacote de leite Itambé” (2016, p. 155). No livro dizCrição
(2012), o poema Elza caga na rua (2016, p. 39) captura uma cena
corriqueira expondo o primitivismo visceral – social e humano –
naturalizado no núcleo da maior metrópole do país. Mais dois

23
Nesse ponto, uma diferença importante pode ser localizada no fato de que o núcleo
social que buscava Drummond alcançar a “compreensão” era a classe tipicamente
operária. Enquanto Miró se liga com vários estratos espoliados mais localizados na esfera
de um universo social de despojados e pauperizados do exército industrial de reserva.
Cotidiano | 72
exemplos – integralmente expostos abaixo em paralelo –
respectivamente, dos livros Onde estará Norma? (2006) e Poemas para
sentir tesão ou não (2002). Eles materializam as duas formas de
expressão poética da injustiça e opressão discutidas até aqui: a
abordagem crônica – que se imbrica com a narrativa jornalística – e a
cumplicidade com a miséria social – quando o poeta demonstra uma
intimidade que faz os personagens ganharem um colorido mais
singular.

Linha de risco

Recife conheci Carla catando lata


é o sol saindo
e a Bandeira Dois anunciando seus mortos seus olhos brilhavam
como alumínio ao sol
foi um tiro lá na Linha do Tiro São Paulo ardia
três facadas na Bomba do Hemetério num calor de quase quarenta graus
eu passando manteiga no pão pisou na lata
e pensando como pisam os policias
quem será o próximo? nos internos da Febem
jogou no saco
mataram a pedradas com a precisão que os
lá pras bandas do Coque internos jogam
encontrado enforcado monitores dos telhados
nas matas de Apipucos e rápido foi embora
estupraram mais uma mulher tal qual sequestro relâmpago
em Casa Amarela deixando a lembrança
sangra a periferia bem de manhãzinha de um tempo em que
o café esfria de tanta dor não havia sequestros
e o pior Febem
é que não adianta chorar nem tanta polícia
o leite derramado. muito menos catadores de lata
(MIRÓ, 2016, p. 103)
os olhos de Carla
nem desse poema precisavam
(MIRÓ, 2016, p. 137)

O roteiro de miséria e violência da rádio jornal de notícias


policiais Bandeira Dois é acompanhado com a apreensão e desolação de
quem vive e circula no coração do território em conflito permanente.
O suspense de quem será o próximo? se cria na medida mesma em que
Cotidiano | 73
a vítima seguinte pode ser próxima; pode ser esse próprio que
acompanha o Bandeira Dois com sangue, dor, pão com manteiga e café
frio no desjejum. Não fosse a tragédia final do leite derramado, seria
mais rica a primeira refeição do dia. E o ser que cata lixo, nem é um
bicho qualquer, nem um homem indistinto, nem uma indefinida
mulher magra. É Carla, de olhos brilhantes, rápida e com gestos
precisos, com a violência social recalcada e desforrada nas latas. Uma
personagem que – pelo nome e ocupação – evoca uma força ainda mais
viva e concreta, como a de Carolina Maria de Jesus.
Mas a crônica social – colada ao cotidiano, e íntima dos seus
personagens – se reverte de outras formas de figuração, para além
daquela dada pela diagramação jornalística ou a rememoração direta.
Num poema homônimo ao livro em que foi publicado, no ano de 2004,
o poeta reproduz uma colagem de imagens e personagens – cuja
existência se configura por alienações diversas, decorrentes da
exploração e opressão contemporânea – impressa num fluxo, quase
que de curta metragem, que remete à simulação do cinema nas
técnicas da poesia modernista dos anos 1920-1930:

Pra não dizer que não falei de flúor

Neide acaba de flagrar seu último olhar


no espelho
Neide trabalha na esquina da Raposo Tavares
falo na esquina mesmo
das dez até não sei que horas
peitos jogados pra fora nos vidros
dos carros importados
do escarro de saber que seu filho tá preso
por querer calça de grife

Renato tem várias passagens pela polícia


e alguns passeios pelo shopping
seu sonho era tomar um milk shake

Rita tá louca pra colocar um piercing


a tatoo ela já tem
sua mãe viu uma
nas costas de uma atriz de novela

Cotidiano | 74
Seu Cláudio vende vale-transporte
no início da Dantas Barreto

antes de ser kombeiro


Nelson levava a vida carregando compras
nas manhãs de sábado
em pequenos supermercados

Durval virou matador


no dia em que sem quê nem pra quê
lhe deram chutes nos rins

Angélica descobriu o amor


quando viu flores vestindo ruas no outono

há quase quarenta e três anos


faltavam dois dias para eu vir ao mundo
normalmente todo puxador de carroça
tem um vira-lata que o guia

ciganas vagam pelo mundo


lendo nossos destinos
mesmo que o relógio pare
o dia continua
(MIRÓ, 2016, p. 130).

Existe um ponto de Arquimedes a partir do qual Miró pode se


elevar a esse grau de aproximação, em contraste com a poesia que lhe
inspira. A origem e posição social, enredadas na condição racial e
forjadas pela espoliação econômica, pela segregação urbana, pela
violência estatal. Para ilustrar essa diferença de perspectiva, bastar
colocar, como dois personagens da mesma cena, Manuel Bandeira e o
próprio Miró. Vendo-se surpreendido pelas privações materiais da
pobreza na década de 1920, Manuel Bandeira passou a habitar um
apartamento no alto do velho casarão, quase em ruína, no morro do
Curvelo (Santa Tereza, Rio de Janeiro), que era “[...] pelo lado dos
fundos, posto de observação da pobreza mais dura e valente, e pelo
lado da frente, ao nível da rua, zona de convívio com a garotada sem lei
nem rei [...]” (1967, p. 75). Após 1933, muda-se, levando consigo a
produção de um núcleo de grande potência crítica da sua obra: “Lá
escrevi quatro livros, três de poesia – O Ritmo Dissoluto,

Cotidiano | 75
Libertinagem, e quase toda a Estrela da Manhã, e um de prosa – as
Crônicas da Província do Brasil” (1967, p. 75). A nova morada,
igualmente modesta, mas no coração da Lapa, permitiu que da janela
do quarto pudesse “[...] contemplar a paisagem, não como fazia do
morro do Curvelo, sobranceiramente, mas como que de dentro dela: as
copas das árvores do Passeio Público, os pátios do Convento do Carmo,
a baía, a capelinha da Gloria do Outeiro...” (1967, p. 104). Bandeira
avançava um degrau a mais para dentro da paisagem social que
contemplava, admitindo: “No entanto, quando chegava à janela, o que
mais me retinha os olhos, e a meditação, não era nada disso: era o
becozinho sujo embaixo, onde vivia tanta gente pobre – lavadeiras e
costureiras, fotógrafos do Passeio Público, garçons de cafés” (1967, p.
104). Esse sentimento de solidariedade com a miséria, a partir de uma
contemplação meditativa tão próxima, eternizou-se na concisão lírica
do Poema do Beco, escrito em 1933, e publicado no livro Estrela da
Manhã (1936): “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do
horizonte! // – O que vejo é o beco.” (1967, p. 272).
Agora imaginemos onde Miró estaria nessa cena se amargasse a
mesma situação social de sua infância e juventude no Recife dos anos
1960-1970, mas transportado para a Lapa carioca daquelas primeiras
décadas do século. Uma ideia já bastante clara é dada pelas primeiras
estrofes do seu próprio poema autobiográfico Confesso que também
vivi meio século: “sua vida não valia nada / tudo que passava pela sua
cabeça / era estourar os miolos de alguém / morava num beco que se
estivesse bêbado / nem a metade passaria // quando criança, foi jogado
num caminhão / se mudou a pulso / pois a classe média precisava
construir / seus arranha céus” (2016, p. 60). Com que potência, com
que expressão, teria se configurado a poesia de Manuel Bandeira, acaso
descesse mais alguns degraus para dentro da paisagem social que
retinha seus olhos, se sua solidariedade com a miséria passasse a
germinar desde o beco?24 Talvez o poeta divisasse seu próprio destino,
acaso tivesse brotado nessa origem social despossuída, quando, em

24
Isso não significa que a lírica de Manuel Bandeira não tenha legado, para o campo da
poesia social, figurações de grande realismo, tais como Meninos Carvoeiros (p. 228), do
livro O ritmo dissoluto (1924). Uma abordagem da qual muito se aproxima Miró, por
exemplo, em Rua da Palma (p. 205), do livro Quem descobriu o azul anil? (1984-1985).
Cotidiano | 76
Evocação do Recife, fez aquela observação à remota lembrança da vida
infantil: “A gente brincava no meio da rua / Os meninos gritavam: //
Coelho sai! / Não sai! // À distância as vozes macias das meninas
politonavam: // Roseira dá-me uma rosa / Craveiro dá-me um botão /
(Dessas rosas muita rosa / Terá morrido em botão...) (BANDEIRA, 1967,
p. 253-254).
O caso é que Miró possui essa origem. A infância vivida no
conjunto de casinhas da Quadra José Revoredo, no núcleo de Santo
Amaro, berço de explorados e oprimidos do Recife longínquo. O
ambiente e a composição social do lugar – é provável que não tenha
variado muito daqueles delineados por Josué de Castro, pouco mais de
duas décadas antes, na descrição do Recife em seu texto Cidade:
―Afogados‖, ―Pina‖, ―Santo Amaro‖, zonas dos mangues, dos
―mocambos‖, dos operários, dos sem-profissão, dos inadaptados, dos
que desceram do sertão na fome e não puderam vencer na cidade, dos
rebelados e dos conformados – dos vencidos. Zona dos ―mocambos‖.
Cidade aquática, com casas de barro batido a sopapo, telhados de
capim, de palha e de folhas de flandres. Cumbucas negras boiando nas
águas. Mocambos – verdadeira senzala remanescente fracionada em
torno às Casas Grandes da Veneza Americana. Poesia primitiva de
negros e mestiços fazendo xangô e cantando samba. Fisionomia
africana (CASTRO, 1968, p. 17).

Miró tinha a mãe como família, uma comerciante, depois


lavadeira. Talvez o núcleo fosse maior se a tuberculose não tivesse
levado a irmã Fátima aos seis anos – outra rosa dentre daquelas que
morreram em botão no presságio da Evocação do Recife. A construção
de um hospital provoca o despejo da quadra José Revoredo, que
encerra a fase da infância nesse cinturão pobre do Recife dos tempos de
Manuel Bandeira e Josué de Castro. O destino da família se une ao
destino dos muitos “proletários” dos mocambos da cidade que cresce:
a dispersão pelos subúrbios na periferia metropolitana, seus morros ou
suas terras fronteiriças. Em seu primeiro livro, Quem Descobriu o Azul
Anil? (1984-1985), Miró revisita (e recorda) esse lugar da sua infância
no poema Quadra José Revoredo. Aí emergem a experiência (e o
sentimento) de dispersão e desabrigo da demolição:

Cotidiano | 77
Quadra José Revoredo

estou velho
lembro dos amigos
com estilingue no pescoço
sacos de seixos
pedras de matar passarinhos

amor, crianças, morte


tudo corta, até as vagas
lembranças

nada resta da quadra José Revoredo


ou resta?
gente dispersa
ontem meus olhos
não tinham essas cores
amarelas da saudade
quantos amigos!
tantas histórias!
inocência a toda prova
céu azul
nuvens brancas
silêncio
(MIRÓ, 2016, p. 214).

Nos anos 1980, a política habitacional da Ditadura estende a


mão insidiosa: a família pousa no apartamento doado pelo governo do
estado no Conjunto Habitacional Muribeca. Numa fronteira sul de
Recife, o aglomerado de prédios caixão se avizinha do enorme lixão do
qual é homônimo. Um destino da cidade para seus rejeitos. Um destino
da cidade para seus despejados. Projeto de cidade fantasma do Banco
Nacional de Habitação que começa a se concretizar ainda naquela
década, quando os blocos progressivamente passam a ser condenados
por problemas estruturais – desde as fundações em alagadiços até
alvenaria precária.
Com três décadas acumuladas de gente desarvorando da
Muribeca, como um dos moradores remanescentes, sem a mãe,
falecida em 2012, ali Miró viverá uma das suas fases mais agudas de
solidão e corrosão alcoólica, figurada no livro aDeus (2015). Um poeta

Cotidiano | 78
sensível e só nos escombros de uma espécie de Sarajevo. Transborda
para a poesia: a angústia, o deserto vazio, a incapacidade de se deslocar
da penumbra, a sombra da morte, a solidão quase irremediável, o
pessimismo, o silêncio de sepulcro dos prédios caixão. Fazendo uma
poesia impulsionada por um drama pessoal, Miró concretiza a
contradição da especulação imobiliária, vínculo inarredável das
empreiteiras com o Estado desde o nascimento do capitalismo no país.
O regime social liga dois dramas. A “montanha pulverizada” na
pequena Itabira de Drummond, corroída com a exploração do minério
de ferro pela empresa Vale do Rio Doce, primeiro para a Segunda
Guerra, depois para o comércio mundial de aço; tragédia de uma
pilhagem secular que nenhuma barragem por ela criada pode conter –
testemunham a poesia de Drummond, Mariana e Brumadinho.25
Décadas depois do despertar do “sono rancoroso dos minérios” em
Itabira, Drummond ainda denunciava a exploração que se alastrava.
Em 1965, olhava para a cidade de Itabirito, onde era a vez do seu pico
ser dinamitado: “O Pico do Itabirito / será moído e exportado / mas
ficará no infinito / seu fantasma desolado.” (1977, p. 502). A Muribeca
de Miró ruindo e indo embora, voltando ao barro (os prédios e as
pessoas), depois do capital da construção civil sugar toda a riqueza
social que o Estado poderia oferecer – ciclo tão perdulário e insistente,
como testemunha o estado atual de muitas das obras dos mega-
eventos esportivos no Brasil. O ponto crítico da trajetória da vida
urbana nos prédios e edifícios que expelem e absorvem a substância
humana confinada em apartamentos; crescimento vertical da cidade
cuja arrancada Drummond abordou – a partir da experiência na capital
federal do Rio de Janeiro – em poemas como Edifício Esplendor (1977,
p. 123), de José (1942), Edifício São Borja (1977, p. 160), de A rosa do
povo (1945) ou A torre sem degraus (p. 430), de A falta que ama (1968).
Duas poesias sem título do livro aDeus (2015) retratam essa
nova espécie de despojamento material e humano na vida de Miró em
meio aos escombros da Muribeca. A primeira parece evocar a falta da

25
Sobre isso, ver a poesia A montanha pulverizada, do livro de Drummond, Boitempo II
(Menino Antigo) de 1973. A relação entre a obra de Drummond e a história da mineração
do Brasil foi largamente explorada por José Miguel Wisnik, em seu livro de 2019,
Maquinação do mundo: Drummond e a mineração.
Cotidiano | 79
mãe, o retorno para Muribeca sozinho, depois de uma estada breve na
cidade natal de São Bento do Uma, onde ela faleceu. A segunda é a
própria Muribeca personificada erodindo; embora nua, patrulhada pela
repressão policial; a decisão do poeta de mudar-se:

solidão é no caixa eletrônico levaram paredes, janelas


esquecer a senha e olhos dela

solidão é planta só sobrou o chão


sentir falta d‖água ainda é pouco para ser feliz
ver Muribeca indo embora
tá na hora
solidão é você partindo estradas no mundo
sem ninguém na rodoviária é que não faltam
lençóis, camas, colchões
as lágrimas caindo batons chocolates
e você com a esperança cachaça
de que a chuva molhe o chão
(MIRÓ, 2015, p. 24). talvez me falte tempo
de escolher a roupa de ir

Muribeca tá ficando nua


com os peitos caídos de tanta injustiça
em silêncio de doer a alma

daqui a pouco nem os cachorros


por não ter pra quem latir
só vão restar os ladrões de janela
e a polícia pra lá e pra cá
gastando gasolina
(MIRÓ, 2015, p. 31).

Mas, até esse ponto, foram mais de uma dezena de livros


publicados e um intricado périplo urbano pelo Brasil – que foi,
naturalmente, se refletindo na poesia. De meados dos anos 1980 ao
início dos anos 2000, um esboço dos rastros da trajetória geográfica de
Miró: Recife – Petrolina – Juazeiro – São Paulo – Petrolina – Recife
(Muribeca) – São Paulo – Mauá (interior do Rio de Janeiro) – Recife
(Muribeca) – Fortaleza – Recife (Muribeca) – São Paulo – Recife
(Muribeca) – Fortaleza – Recife (Muribeca). Acrescente-se: compôs
Cotidiano | 80
todo esse roteiro sobrevivendo com a venda de livros (além de outros
veículos de expressão da poesia – cartões, camisetas, etc.) e
apresentações – fonte de sobrevivência eventualmente satelizada por
outras ocupações pontuais. Um camelô da poesia – como já se disse –
que se equilibra entre uma existência modesta e a penúria. A condição
social interditada do artista é uma das mais sensíveis fotografias da
miséria que a cidade gera, capturada na poesia Recife – do livro Quebra
a direita... (1999): “cidade das pontes / e das fontes / de miséria //
poetas mendigando passes / para voltar pra casa // e sua poesia /
passando despercebida / aliás / nem passa” (2016, p. 156).
Aqui, a crônica social frequentemente revela uma aspereza
incontida porque se faz como reação lírica à opressão mais dura, da
qual o próprio poeta é objeto permanente. Como no episódio de
agressão policial sofrida na juventude. Um acontecimento reconhecido
como um dos gatilhos para que a crítica social na criação ficasse mais
ácida. Donde a denúncia no poema Poesia? já no primeiro livro, e
novamente a reprodução da cena numa estrofe de Fotografia 3x4, do
livro Ilusão de ética (1995): “[...] veja bem: / no dia 5 de agosto eu levei
umas porradas / de um policial só porque / eu estava sorrindo / eu
estava tão inocente que por um instante / pensei não ser eu aquele /
mas era // Aí a dor foi maior [...]” (2016, p. 181). O próprio Miró
reconhece esses efeitos na sua criação, recordando quando seus versos
ficaram mais inflamados: “Ficaram mais inflamados [os versos] é... O
meu primeiro livro era muito lirista, eu imitava Drummond, Maurício
Silva e tal. E aí, num aniversário meu, eu levei umas porradas de uns
policiais. E aí fiquei transtornado com isso, traumatizado. [...] E estou
processando eles até hoje com a minha poesia, dizendo a verdade, a
injustiça das ruas.”26 Uma reação que alude de imediato àquela
figurada por Drummond no poema A flor e a náusea, já citado. Antes de
ser surpreendido por aquela flor que nasceu na rua (um símbolo da
própria poesia), antes do seu arroubo de proteção para com ela, em
meio à cidade caótica, o poeta admite: “Não, o tempo não chegou de
completa justiça / O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações
e espera. / O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo

26
Miró em matéria no programa Nosso Povo, realização TV Gamera (YouTube), repórter
Luma Araújo, 19 mar. 2013.
Cotidiano | 81
impasse. [...] Pôr fogo em tudo, inclusive em mim. / Ao menino de 1918
chamavam anarquista. / Porém meu ódio é o melhor de mim. / Com
ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima. // Uma flor
nasceu na rua! [...]” (DRUMMOND, 1977, p. 140).

5.

Mas seria enganoso sugerir que a obra de Drummond esteja


recheada de quadros com manifestações tão diretas, prosaicas e
corrosivas da miséria (ou opressão), como ocorre no exemplo do seu
citado poema Fim de Feira. Talvez a maior realização sua nesse sentido
diga respeito ao longo poema Favelário Nacional, incluído no último
livro lançado em vida – Corpo (1984) – num tom de resposta a Alceu
Amoroso Lima, que o havia convidado a lançar um olhar direto sobre
as favelas do Rio de Janeiro. Em suma, trata-se de algo mais fundo da
contribuição de Drummond para a poesia brasileira do século XX que
certamente instigou a construção da identidade de Miró como uma
espécie de “poeta das ruas”.
Na vaga do movimento modernista – anunciado na forma da
Paulicéia Desvairada (1922) de Mário de Andrade – Drummond é
reconhecido como aquele que galgou mais maturidade e alcance na
absorção da metrópole urbana na via central da poesia brasileira. José
Miguel Wisnik é peremptório quanto a isso: “Ninguém duvida que
Carlos Drummond de Andrade abriu a avenida central da modernidade
urbana e cosmopolita na poesia brasileira, independentemente de sua
confissão de íntima e profunda pertinência ao mundo originário
provinciano e mineral” (2018, p. 122). Não será coincidência que a
poesia de Miró – em contato com essa tradição poética e com a
materialidade de uma megalópole em finais da explosiva década de
1980 – tenha se tornado mais visceral, e mesmo seus impressos,
bricolagens visuais e textuais, justo no impacto com as primeiras
vivências em São Paulo, donde seu segundo livro São Paulo é fogo
(1987). Não será mera coincidência que o poema de abertura desse
pequeno impresso tenha saído como Manifesto contra a cultura lata de

Cotidiano | 82
sardinha: “quantos sacos de cimento / há em ti São Paulo? // quiçá
meu coração não fique concreto / alguma coisa acontece? // a elite vai
em massa a eletra / substantivo concreto // quem lê os campos? /
substantivo abstrato // náufragos dessa onda / atenção para o toque de
8 segundos” (2016, p. 195).
Na criação de estímulos poéticos, certos motivos de
Drummond parecem como que resgatados e traduzidos, em Miró, para
um ponto mais avançado do desenvolvimento da vida urbana.
Vicissitudes que atravessam o tempo, os espaços e o aprofundamento
das relações mercantis. Cenas cujo perfil se distingue pelas iniquidades
amplificadas que resultam desse avanço, a degradação humana e a
opressão decorrente. Basta notar como isso ocorre em Cabaré Mineiro,
do livro Alguma Poesia (1930), e no poema sem título do livro de Miró
Poemas para sentir tesão ou não (2002):

Cabaré mineiro

A dançarina espanhola de Montes Claros botecos da Luz:


dança e redança na sala mestiça. putas
Cem olhos morenos estão despindo homens esperando mulheres
seu corpo gordo picado de mosquito. para o sexo relâmpago
Tem um sinal de bala da coxa direita, espermas por 10 reais
o riso postiço de um dente de ouro, beijos com gosto de torresmo
mas é linda, linda, gorda e satisfeita. cocaína e Sula Miranda
Como rebola as nádegas amarelas! (MIRÓ, 2016, p. 135).
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...
(DRUMMOND, 1977, p. 72).

Além disso, a própria perspectiva crítica da modernização,


presente em Drummond desde seu primeiro livro, demonstra ser outra
das ligações que Miró assume com ele. A adoção dessa perspectiva
decorre no registro negativo da novidade moderna da mecanização, da
simbiose entre o homem e a máquina, evidenciando o que é embargado
e alienado pelos mecanismos da acumulação e suas mercadorias, a
perda de sentimentos genuínos, não artificializados ou burocratizados.
José Guilherme Merquior (2016) assim anotou essa abordagem: “A

Cotidiano | 83
poesia de Drummond é o lirismo mais antifuturista que se possa
imaginar. A modernização nunca é por si mesma matéria de apologia;
ela não é celebrada, é sofrida. O progresso começa com a brutalização
dos costumes” (2016, p. 35). Se Drummond se deparou com essas
alienações nascentes durante a germinação de um imperialismo total27
no país, com sua força ainda em germinação, com a racionalização
ainda se impondo sobre os poros da vida social e estatal, com as
mercadorias modelares da expansão capitalista ainda despontado para
a generalização; por sua vez, Miró enfrenta essa avalanche,
experimentada como puro desperdício e perdularidade, agregada aos
novos aparelhos e tecnologias informacionais, à inaudita capitalização
da cultura e à barbárie social fruto de intricadas crises. Sem embargo, a
crítica da modernização aparece em Miró no mesmo espírito de
Drummond, como nos poemas citados abaixo em paralelo, onde nota-
se, não apenas esse cerne da crítica, mas a forma lacônica do poema-
pílula, a utilização (significativa) do estrangeirismo e as interdições e
perdas provenientes da modernização. Miró parece mesmo invocar
aquele verso do poema O sobrevivente, de Alguma Poesia (1930), em
que Drummond divisa, também abordando a modernização: “Amor se
faz pelo sem-fio” (1977, p. 70).

Cota Zero Stop Love

Stop. Nossa selfie


A vida parou se foi
ou foi o automóvel? até a paisagem
(DRUMMOND,1977, p. 71). perdeu
o riso...
(MIRÓ, Página Facebook).28

Todo esse arsenal de recursos e motivos desenvolvido na poesia


de Drummond – em seu mergulho na sociabilidade urbana – nos
parece que tenha se apresentado como uma ponte robusta no percurso

27
Sobre o tema, conferir Florestan Fernandes (1975; 1976).
28
Disponível em: https://www.facebook.com/mirodamuribeca/photos/a.19508206729
8785/1075190232621293. Acesso em: 28 mai. 2020.
Cotidiano | 84
de Miró, no itinerário em busca da própria identidade artística. É, por
exemplo, sob o prisma desse importante cerne da vida na metrópole
que talvez possamos divisar uma das diferenças vitais que separam
Drummond de um grande poeta como João Cabral de Melo Neto. Por
sua figuração mais orgânica da geografia natural e humana do
Nordeste, sua força e suas contradições, seria de supor um grande
poder de influência em Miró. Porém, ele próprio se reconhece mais
refratário à poesia de João Cabral, cujo perfil percebe, legitimamente,
marcado por uma feitura mediada por maior minúcia formal, em
contraste com sua própria inclinação para a criação mais espontânea e
instantânea.29
Se avançássemos, desbravando outros contrastes que
bloquearam os caminhos que levariam as afinidades de Miró para com
João Cabral? Por exemplo: este último, em seus próprios depoimentos,
revelava a sua busca criativa por uma poesia com textura áspera, por
uma poesia que fosse difícil de ser lida em voz alta, por uma poesia que
não embalasse o leitor, em que cada palavra fosse um obstáculo ao
leitor – malgrado o seu auto de natal pernambucano Morte e Vida
Severina e, digamos, outros “poemas em voz alta”. Intenção que
parece oposta à de Miró, na sua expressão projetada para a récita.
Diferente da textura áspera, ela exige muito mais uma fluidez, que não
é incompatível, aliás, com as estocadas bruscas, agudas ou
interpelativas. Ademais, João Cabral se esmerava para afastar-se de
exaltações do confessionalismo, de saturação subjetiva das mensagens,
desejando mesmo exilar a musicalidade e o sentimentalismo. Algo tão
destoante de uma obra como a de Drummond, na qual Antonio
Candido chega a identificar uma “constante invasão de elementos
subjetivos”, apontando mesmo a presença de uma “subjetividade
tirânica”!30 Inclinação essa que se nota largamente na poesia de Miró,
onde, mesmo na crônica social, o objeto, por vezes, é o próprio poeta,
onde são constantes os poemas memorialísticos, onde tanta coisa se
confessa. Acrescente-se outros traços de João Cabral que Drummond
capturou num texto de 1948 – publicado através de pseudônimo –

29
Ver Poesia urgente (2009, Documentário Miró da Muribeca – Poeta Pernambucano,
Dirigido por Daniel A. Rubio).
30
Sobre esse debate, ver Candido (1995).
Cotidiano | 85
comentando o livro Psicologia da Composição (1946-1947), lançado
um ano antes. Nesse livro de João Cabral, Drummond visualizava a
característica principal do hermetismo, uma poesia de onde se
encontrava excluído o elemento sensual, na qual estava proscrita a
emotividade romântica e ressaltada a frieza e incomunicabilidade.31
Uma lista de nuances que dificilmente poderiam servir de estímulos
construtivos para a direção da criação e expressão poética aspirada e
desenvolvida por Miró, voltada para a comunicação direta, a recepção
e o acesso mais imediatos, a comunicação aberta. É provável que Miró
encarasse tais tendências do dito poeta-engenheiro da construção
laboriosa, pensando na necessidade pessoal de uma poesia com
comunicação mais acessível e direta, e cismasse – como o faz em seu
poema Reflexões sobre a construção civil: “cimento na cabeça / dos
outros / é isopor” (2016, p. 166).
Se regressarmos àquele cerne da vida na metrópole, talvez
consigamos entender a razão pela qual sejam praticamente ausentes,
em Miró, referências a elementos tão enraizados na composição social
e nas origens de uma capital como Recife: aqueles dados pela
sociabilidade rural, seus referenciais simbólicos, brinquedos
populares, suas tradições culturais e religiosas; ou reminiscências de
signos das religiões de matriz africana e indígena, também suas
manifestações culturais. A depuração dessas referências na poesia
parece corresponder – ao menos em parte – a depuração que o próprio
metabolismo urbano tende a operar com a expropriação e exploração
econômica, a opressão social e cultural. A crônica social da poesia,
debruçada sobre quadros mais drásticos de miséria ou desigualdades,
já decantados pela ação da opressão capitalista, acaba por ser um
documento dessa profunda liquidação e alienação. Apenas excepcional
e genericamente, se pode divisar a figura do retirante da seca sendo
evocada de modo mais direto na crítica social do poeta, como em ... e
ainda nos chamam de vagabundos, do livro Quebra a direita... (1999).
Mas aí essa figura social também aparece já ressequida na relação com
a grande cidade: “quatro séculos de seca / quatro séculos de orações /

31
Trata-se de um texto resgatado por Affonso Romano Sant‖Anna, e comentado pelo
mesmo no artigo ao Estadão, Uma relação delicada, de 29 de outubro de 2011.
Cotidiano | 86
pra São José / [...] quatro séculos de solidão / e os pés rachados de
tanto / tentar a vida na cidade de São Paulo [...] (2016, p. 149).
O mesmo ocorre quando cotejamos a participação, na
figuração, do meio ambiente natural, ou aquilo que na paisagem dada
pela poesia corresponderia aos interesses da geografia física. É
impossível que qualquer elemento incluído nesse plano apareça isento
da ação ou significação dada pela mediação do metabolismo urbano. Os
elementos da natureza humanizados pela mediação do capital. Quase
em sua totalidade, parecem já ter sido engolidos pelas contradições
intrínsecas da metrópole. O próprio binômio província-cidade foi
transfigurado na dialética periferia-centro; os recursos e elementos
naturais, absorvidos pela lógica industrial, seus efeitos artificializantes
e destrutivos – como ocorre na já mencionada poesia Meu lado
Greenpeace (2016, p. 83). A geografia física assim apropriada pela
acumulação pode se apresentar, quando muito, como mais um dos
palcos onde os dramas do antagonismo social, e seus corolários, se
apresentam para a crônica poética. Um dos poemas mais
representativos disso é Outras ostras, do livro Onde estará Norma?
(2006). Talvez o único momento onde o rio, que passa a cidade inteira,
é mencionado nominalmente na obra de Miró: “lá vai Recife / em mais
um fim de tarde / as águas do Capibaribe cor de sangue / nos ombros
dos negros / que moram nos Coelhos / unhas na lama e a classe média /
comendo ostras / de frente ao Acaiaca” (2016, p. 102). Ou no seu
poema sem título no livro Ilusão de Ética (1995) – também talvez o
único verso onde conste a referência nominal, na forma de um
trocadilho, a famosa praia da capital de Pernambuco: “[...] quantos
negros moram em frente ao mar / de Boa / Viagem? [...]”. Ou, ainda,
no seu poema sem título, e cheio de trocadilhos, do livro São Paulo é
fogo (1987), que trafega pelas regiões e assimetrias da cidade até chegar
ao seu rio mais conhecido, na estrofe: “[...] miséria / miséria / do norte
ao sumaré / do carandiru ao brás / ninguém agüenta mais / nem eu /
nem tu / nem tietê” (2016, p. 197).
A fauna dessa geografia natural também é escassa. Mesmo
assim oferece sua contribuição lírica. Salvo engano, seus exemplares
aparecem com três funções poéticas ou figurativas. Alguns são
oferecidos como signos da degradação humana (espiritual e material)
Cotidiano | 87
na situação da miséria, em especial onde a precariedade habitacional e
a poluição forjam uma situação coletiva crítica. Urubu, jumento,
cavalo, moscas e mosquitos, vira-latas ajudam a pintar esses quadros,
em alguns casos assumindo um papel lírico e emotivo. Eventualmente
aparecem no duplo papel de lenitivo cômico (ou lírico) e de baliza para
nuançar, por contraste, o grau de determinadas formas de
desumanização. Como na poesia sem título do livro Quase crônico
(2010) onde, numa espécie de desabafo cru, o poeta resgata, e como
que inverte, uma injúria vulgar de longínqua raiz moura. E o vira-lata
praticamente assume a mesma função que o gatinho no já citado
poema Pensão Familiar de Manuel Bandeira: “os cachorros, mesmo
sem falar, conversam / tem pessoas que falando nem sequer latem /
essa raça nem ração merece / quem dera / tivessem a elegância de um
vira lata” (2016, p. 67). Ou como na poesia Em Fortaleza também, do
livro Onde estará Norma (2006), na qual a imagem de um jumento
inquieto evoca tanto uma pobreza das mais rústicas no núcleo rico de
uma grande capital, uma reminiscência de gesto humano e um suspiro
de enternecimento na asfixia do concreto:

Em Fortaleza também

o amor passou na tarde


com a mão direita sobre o ombro de um
filho com Síndrome de Down, em frente
ao Edifício Roma

no coração finesse da
Aldeota, um jumento espera inquieto a
volta do seu dono que foi tomar uma
sopinha com pão, com o dinheiro das
migalhas que catou

e eu fiquei tão emocionado


que não consegui escrever mais nada
(MIRÓ, 2016, p. 111).

Cotidiano | 88
Aí notamos mesmo aquela abordagem sobre as criaturas que
Drummond enaltecia em Manuel Bandeira, numa estrofe do poema A.
B. C. Manuelino: “Na sua lira moderna / a dor de cada criatura / colhe
um eco de ternura” (1977, p. 509). Mas outros exemplares da fauna
dessa geografia natural, por suposto quase extintos no âmago da
metrópole, surgem ajudando a compor o cotidiano de Miró (em
poemas dos anos 1980) ou a recordação nostálgica de um passado com
reminiscências da ruralidade sufocada pela urbanização. Como as
práticas alimentares ainda não mediadas pela industrialização e
mecanização: desde o ato de abater a galinha em casa, hoje apenas uma
lembrança remota do poeta, até a alusão a rincões onde talvez
personagens – evadidos da grande capital – ainda pudessem ordenhar
caprinos. Basta cotejar os poemas O dia a dia (2016, p. 209) e Passagem
para Gualrapes (2016, p. 150). O primeiro, do livro inicial Quem
descobriu o azul anil? (1985), o segundo, do livro Quebra a direita...
(1999). Nesses casos, tais referências produzem o efeito de realçar as
resultantes da industrialização nos hábitos mais corriqueiros, antes
infiltrados no cotidiano social em fase de modernização capitalista
selvagem.
Enfim, de modo mais episódico, encontram-se imagens de
animais que representariam sinais de uma natureza ainda poupada pela
cidade – borboletas, beija-flores. Mas hora aparecem feridas pela
artificialidade – como na citada poesia Meu lado Greenpeace (p. 83),
onde o beija-flor confuso ensaia se alimentar das plantas artificiais;
hora sugerem mais elementos figurativos ou metáforas para um estado
de espírito – como no poema-pílula dizCrição: “quando se está feliz /
até as borboletas de levam até a esquina” (2016, p. 42).
Restam as referências a elementos ou paisagens naturais. Nesse
espectro, se encontram as imagens aquáticas quase que circunscritas
ao par mar-praia e chuva. Pelos quadros com imagens aquáticas
compostas através do mar-praia e chuva, o poeta parece vocalizar tudo
aquilo vetado ou interditado pelas opressões e alienações condensadas
na cidade sob domínio do capital. Sonho, efetivação da vida (ou a vida
plena de sentido), possibilidade de consciência de si no mundo e no
tempo. O que, em parte, nos remete aos significados que assumem as
mesmas imagens aquáticas em Drummond. Affonso Romano de
Cotidiano | 89
Sant‖Anna (2008) já havia verificado que Drummond adota largamente
as imagens aquáticas como expressão de tomada da consciência
espaço-temporal. Água: possibilidade e fonte de vida, sentido de
fluição vital, portanto consciência da decomposição cotidiana da vida,
da transitoriedade, da finitude. Em Miró, esse sentido das imagens
aquáticas é identificado. E a ele se acrescem conotações positivadas
para as cenas com mar-praia e chuva.
Tomemos esses significados, em Miró, através de um olhar
panorâmico e a partir de uma mirada cronológica. Em quase todo livro
publicado aparece algum poema agregando sentido às imagens de
mar-praia ou chuva: em Quem descobriu o azul anil? (1984-1985) elas
se associam a atitudes de abandono das tristezas e tormentos,
compondo palco de cenas esperançosas e de fruição da vida (2016, p.
204), de tranquilidade interior, consolo e oportunidade de instantes
meditativos, perpassados pela consciência do tempo e do
amadurecimento (2016, p. 211), de ativação das lembranças felizes e
amorosas, da construção de projetos (2016, p. 216); em Ilusão de Ética
(1995), as imagens aquáticas remetem a ideia de alcance de posição
social superior (2016, p. 183), da construção de sonhos, projetos e
utopia, alegria e passagem do tempo (2016, p. 188), de resgate de um
passado infantil onde a imaginação proporcionava acesso ao lúdico
(2016, p. 190); em Poemas para sentir tesão ou não (2002), essas
mesmas imagens pintam lembranças de realização amorosa (2016, p.
142); em Onde estará Norma? (2006), elas associam-se à quebra do
ritmo frenético urbano que oportuniza a reflexão sobre o mundo (o
tempo e a passagem ou transitoriedade da vida) (2016, p. 101), à
esperança de mudança da vida (2016, p. 105), à ativação do prazer
sexual (2016, p. 109); em Tu tás onde? (2007), o acesso ao mar-praia
vincula-se à fruição da vida (2016, p. 92); em Quase crônico (2010), as
imagens aquáticas ligam-se às mudanças existenciais provocadas pela
passagem do tempo, que levam a maturidade e perda da inocência
(2016, p. 52), à sensação de bem-estar, de esperança de mudança na
humanidade (2016, p. 53), à projeção de uma vida sem alienação (2016,
p. 66); em dizCrição (2012), elas relacionam-se com a perda da
inocência, superação de superstições e a tomada de consciência da
realidade (2016, p. 34), à percepção do tempo e da destruição da vida

Cotidiano | 90
(2016, p. 21), aos efeitos do estrago ou destruição dos planos amorosos
(2016, p. 37).
Em Drummond, a consciência espaço-temporal – representada
pelos referentes aquáticos que se avolumam nos seus livros
intermediários, como José (1942) e A Rosa do Povo (1945) –
representou uma conquista do poeta na sua trajetória humana e
artística. Os referentes aquáticos são – diz Sant‖Anna – indicadores
“[...] do mergulho do gauche no mar do tempo” (2008, p. 177). Um
rico complexo histórico, com variáveis microscópicas e
macroscópicas, explicam esse mergulho de Drummond: seu
deslocamento na estrutura de classes e no espaço social – desde a
confessada ruína pequeno-burguesa em face da origem oligárquica, até
sua transferência para o então Distrito Federal no Rio de Janeiro, onde
a dinâmica urbana pungente se impõe e o mar penetra sua rotina; sua
simpatia temporária com o campo político e valorativo do socialismo, a
partir do qual se acirra o impulso para os dramas histórico-mundiais,
assim como a necessidade de ligação com os trabalhadores. Em suma,
todas as dimensões decisivas de sua vida cambiadas pelos abalos sociais
da transformação capitalista no país premido pelo domínio mais
absorvente e contraditório do imperialismo no século XX: a infiltração
dos monopólios internacionais na exploração das riquezas naturais,
nas operações financeiras, industriais e nos serviços; a crescente
urbanização do país, com suas amplas vicissitudes e mazelas sociais; a
hipertrofia, modernização e racionalização da intervenção estatal
sobre a vida social e os conflitos entre capital e trabalho; a angustiosa
visão internacional da ascensão do fascismo e do nazismo, da irrupção
da Guerra Civil Espanhola, a conflagração da Segunda Guerra Mundial,
o embate ideológico e geopolítico entre capitalismo e os regimes de
transição socialista.
Por seu turno, em Miró os referentes aquáticos –
expressamente representando uma consciência espaço-temporal – se
apresentam desde um momento inicial da sua criação, marcando uma
presença relativamente equilibrada entre os livros lançados. No seu
primeiro livro, consta inclusive um pequeno poema – Estória compacta
da origem do mundo (2016, p. 222) – pretendendo o rastreio do ponto
de origem do homem, sugerindo a consciência instintiva da raiz
Cotidiano | 91
ontológica da linguagem-cultura. Não acreditamos ser coincidência
que o título do poema tenha seu cerne na palavra “mundo” – a mais
colada à identidade da poesia de Drummond. Assim definido, o título
tanto pode estar se referindo ao “mundo” como base natural da vida,
da humanidade e da cultura, quanto pode estar aludindo ao
fundamento do “mundo” enquanto léxico de significado complexo
extremamente rico do universo poético de Drummond. Em todo caso,
assim se desdobra o poema: “há milênios atrás / uma luz / não sei se
vinda de / outra luz / fez-se luz / e vieram os homens / e logo ali ao
lado / as palavras / dando nome às coisas” (2016, p. 222). Uma
preocupação com as raízes mais remotas e originárias da vida subjetiva
e espiritual que Drummond demonstrou na abertura de Lição de Coisas
(1962) com o poema A palavra e a terra (1977, p. 323), regressando,
também através de uma fórmula lacônica, ao estágio aurinaciano –
uma cultura material do período paleolítico superior.
Isso sugere que, em Miró, tal consciência espaço-temporal já
estaria dada no instante em que despertava para a produção poética. É
verdade que, ao ser influenciado por Drummond, Miró já conseguiria
partir daquele legado de conquistas no plano dos motivos, imagens,
símbolos oferecidos por sua referência poética. Porém os elementos
selecionados e recolhidos desse legado, por parte de Miró, apenas se
explicam segundo os conflitos íntimos e atuais do próprio poeta – com
suas evidentes raízes históricas e sociais – os quais demandaram a
escolha pelas imagens aquáticas, por exemplo. Havíamos mencionado
em que consiste, minimamente, o conteúdo dessa consciência espaço-
temporal representada dos referentes aquáticos: sentido de fluição
vital, consciência da decomposição cotidiana da vida, da
transitoriedade, da finitude.
Mas o que explica, histórica e socialmente, a presença
prematura dessa consciência em Miró? Ele já brotou na condição social
que impele para essa consciência, e em circunstâncias muito mais
regressivas do que aquelas que jogaram uma sombra sobre a vida de
Drummond – cujos condicionamentos, mesmo assim, também
impeliram para a tomada de consciência do tempo, da transitoriedade
e da destruição da vida. Miró é um poeta espoliado numa época da
barbárie imperialista que se acelera. Ameaça diária da liquidação da
Cotidiano | 92
vida, colocada pela penúria econômica, pela violência urbana e pela
opressão estatal. O deslocamento permanente no espaço como
condição existencial de quem brota nos ditos “aglomerados
subnormais” e convive com o despejo desde o nascimento. A vida
mergulhada numa geografia e num universo cultural onde os
fenômenos e paisagens aquáticas entranham-se nos habitantes,
definem rotinas e os percursos urbanos, delineiam a segregação social:
Recife com seus rios-mangues estruturantes, suas praias segregadas,
suas chuvas e alagamentos. Depois uma vida adulta com aquele
intricado circuito de viagens por diversas cidades e capitais no país.
Se o já referido poema Estória compacta da origem do mundo
(2016, p. 222) demonstra essa força da consciência espaço-temporal a
partir de uma angulação – digamos – filosófica, noutros poemas –
ainda do primeiro livro Quem descobriu o Azul Anil? (1984-1985) –
essa mesma percepção aparece penetrando a crônica social
propriamente dita, para não falar daqueles poemas diretamente
memorialísticos. A sensação do peso do tempo sob os ombros do poeta
pode aparentar até certo exagero. Naquele livro de estreia, por
exemplo, com seus vinte e poucos anos, Miró inicia o anteriormente
citado poema Quadra José Revoredo com esses versos – onde,
inclusive, se encontra tacitamente o rio através dos seus seixos: “estou
velho / lembro dos amigos / com estilingue no pescoço / sacos de
seixos / pedras de matar passarinho” (2016, p. 214). Já no retrato da
vida e opressão urbana reproduzido no premiado poema Quatro horas
e um minuto – ainda do livro de 1984-1985 – a temporalidade é
patente, não apenas no título e conteúdo das cenas, mas no andamento
dos versos, na sensação de fluxo acelerado dos verbos:

Quatro horas e um minuto

quatro horas
quatro ônibus
levando vinte e quatro
pessoas
tristonhas e solitárias

quatro horas e um minuto

Cotidiano | 93
acendi um cigarro
e a cidade pegou fogo

cinco horas
cinco soldados
espancando cinco pivetes
filhos sem pai e
órfãos de pão

seis horas
o Recife reza
e eu voando pra
ver Maria
(MIRÓ, 201, p. 215).

6.

As mesmas razões pessoais e históricas são úteis para


entendermos como, desde o início e em toda a obra, essa consciência
espaço-temporal alcança plenas consequências na consciência da
morte, em tensão com a vida. Tensão entre a necessidade de viver e a
perspectiva de destruição da vida pelo tempo e pela sociedade. Em
Drummond, essa é uma inquietude e conflito crucial que se avoluma e
condensa quanto mais sua vida-obra avançam. Nele o germe da morte
vai crescendo quanto mais o tempo se abre através da maturação da
consciência espaço-temporal. Assim resume Affonso Romano de
Sant‖Anna: “À medida que a obra-vida avança, não só a percepção da
viagem mortal se torna mais evidente como mais pungente a
percepção a posteriori de que a morte já é um a priori, que o homem
vive antes mesmo que a descubra conscientemente” (2008, p. 203).
Miró também assume o tema da morte (com suas variações) no
núcleo central da sua poesia, expressando-se transversal ao longo da
obra. Da mesma maneira, os versos em que o tema penetra vão se
avolumando com o correr dos anos, ganhando mais densidade nos
livros de meados dos anos 2000 em diante. E chegam até aquela
candente tragédia interior, extravasando para os vários poemas do

Cotidiano | 94
livro aDeus (2015). Ali evidenciando a convivência pessoal com a
morte em meio à já falada solidão e decomposição da saúde, no estágio
habitacional crítico da moradia na Muribeca. Em face desse tema
particular, não apenas a poesia de Miró nos parece também precoce,
mas atacada pelos múltiplos lados através dos quais a morte pode
assolar a existência na vida urbana. Não se limitando a morte mais
discreta, menos percuciente, improvisada e repentina, que Affonso
Romano de Sant‖Anna encontra em Drummond, onde ela “[...] é uma
decorrência e transformação do fluxo, forma de fluir completamente,
último lance e um contínuo processo de entropia social” (2008, p.
209).
Seria maçante ilustrar as dezenas de ocasiões em que a morte se
faz presente na obra de Miró. Talvez relacionarmos suas nuances e
abordagens já sirva para dar ciência do seu enraizamento nos poemas:
a morte desponta nos versos que retratam as notícias de violência nas
bancas de jornal e nos noticiários, nas paisagens urbanas ou em
episódios pessoais nos quais funerárias e cemitérios surgem ou se
insinuam – nesses casos, ela é, ao mesmo tempo, identificada como um
produto passível de ser objeto de lucro, em algumas circunstâncias
observadas como um meio de subsistência assalariada, retratado na
figura do matador de aluguel; aí, como em outros poemas, a morte
também pode mostrar sua face pela ameaça ou o atentado concreto à
vida promovido pela violência urbana, que se estende, em certos
momentos, na forma da aniquilação coletiva provocada pelos conflitos
bélicos, desastres naturais ou regimes políticos violentos da nossa
época; a morte, ou a memória da morte, das pessoas do círculo familiar
e afetivo do poeta; a morte de outros que personificam a opressão, que
se afigura no ímpeto instintivo, mas recalcado, para reação violenta
(homicida) às injustiças pessoais ou sociais, em certas ocasiões
confessado pelo próprio poeta; a morte que joga uma sombra de
incerteza sobre o dia seguinte do poeta premido pela saúde degradada
e as condutas autodestrutivas correspondentes; a morte como finitude
irremediável – por vezes antecipada socialmente – que aguça a
meditação existencial sobre o valor da vida.
Vários dos poemas de Miró citados até agora refletem essa
presença visceral da morte, nas suas diversas nuances: um trem azul
Cotidiano | 95
(2016, p. 93), Confesso que também vivi meio século (2016, p. 60),
Ressaca (2016, p. 28), Linha de risco (2016, p. 103), Pra não dizer que
não falei de flúor (2016, p. 130), Quadra José Revoredo (2016, p. 214).
Acrescentaríamos apenas mais um exemplo que condensa alguns dos
vários referentes figurativos e líricos rastreados sob essa rubrica geral
da consciência espaço-temporal. Ele possui a vantagem adicional de
evidenciar um momento decisivo de perturbação existencial,
amplificando a solidão e angustia de Miró. O poema 16 de janeiro de
2012 – do livro dizCrição (2012) – evoca o velório da mãe, aglutinando
o referente aquático, os rituais da morte tomados como objeto de um
comemorado lucro que dilacera a comunhão de sentimentos, o
fenecimento das próprias flores correspondente aquela despedida da
vida que então ajudam a ornamentar, a própria finitude percebida
como um sono no qual inexiste conteúdo anímico:

16 de janeiro de 2012

faz sol em São Bento do Uma


se tivesse chovendo nada mudaria
talvez regaria as flores
que o dono da funerária festeja
mais um pouco de grana na sua conta bancária
e elegante
minha mãe dorme sem saber de nada.
(MIRÓ, 2016, p. 21).

O sono inocente (e elegante) insinua certa descrença na vida


para além da morte. Diferente de Drummond, como também de
Manuel Bandeira, na poesia de Miró não há imagens ou cenas de anjos,
bons ou maus, das sombras, ou iluminados; santos, santas, nem
romarias, padres, missas – talvez só um ou outro espectro de Igreja;
nem diabo, nem céu, nem inferno extra-humano. Se Jesus entra em
cena, é muito esporadicamente: seja na colagem de slogans no final de
São Paulo é fogo – “[...] sorria, Jesus te ama! / tomou Doril? é dose ter
um prefeito xarope” (2016, p. 196); seja nas imagens alusivas à
degradação do tempo sobre o homem indo “[...] capenga aceitar Jesus”
(2016, p. 104) na poesia Há Deus 1; seja como pura negação da
Cotidiano | 96
publicidade protestante, com essa pílula do livro Tu tás onde? (2007):
“Jesus não vem / prepara-te”. Apenas um Deus sans phrase é
convocado para a poesia, ou interpelado em meio aos versos. Um Deus
cuja existência, poderes sobrenaturais e papel na criação do mundo,
por vezes as poesias tomam como pressuposto, embora também
vacilem nessa crença – vacilação que correspondem mesmo a
momentos em que experiências de sofrimento pessoal de Miró se
agudizam. Nas entrevistas, o poeta revela uma inclinação agnóstica nas
suas incertezas em relação a Deus, embora reconheça uma simpatia
lassa com o espiritismo kardecista ao qual a mãe era profundamente
ligada.32
Com aparições raras nos primeiros sete livros, o referente de
Deus ganha corpo após meados dos anos 2000. Ele comparece como
um dos recursos simbólicos e figurativos permanentes a partir de Onde
estará Norma?(2006); um livro em que confluem, por exemplo, o tema
da memória, da morte e do autoconhecimento, o lirismo, a crítica
social e as menções a Deus; nele se estampa tal epigrama de abertura:
“hoje abri os braços mais que pude e abracei / o infinito céu, página
azul do livro de Deus” (2016, p. 99). Embora utilizada moderadamente,
ao longo das publicações que seguem, a referência apenas figurará com
uma centralidade temática no livro aDeus (2015). Portanto, em certa
medida, a trajetória desse elemento na poesia corresponde àquela
identificada pelo tema da morte – esse símbolo mais pungente da
destruição da vida dada pela consciência espaço-temporal. O próprio
título do livro aDeus (2015) é revelador dessa ligação entre o problema
da morte – aludida como despedia.
Parece que quanto mais Miró penetra esse elemento nas suas
poesias – referente transcendental e fantástico estranho a uma crônica
tão terrena – mais tem a necessidade de o antropomorfizar, de
atravessá-lo pelos conflitos sociais e psicológicos, e mesmo certas
restrições materiais, que dilaceram o próprio poeta. Nas poesias, Deus
anda de bicicleta, brinca de se esconder e de jogar pião, vai ao
shopping, fica largado no carnaval de Recife, fica bêbado e de ressaca,

32
Matéria do Diário de Pernambuco, produzida por Fellipe Torres, intitulada Poeta Miró
da Muribeca comemora renascimento com novo livro, "aDeus", de 6 ago. 2015.
Cotidiano | 97
está passível de amnésia e de falhar em sua função, eventualmente
sente-se confuso e perdido ou quer evadir e se esconder das situações
que trazem sofrimento.
Ao fazê-lo encarnar, Miró figura-o com traços que
personificam sua própria condição de classe, seus próprios sentimentos
em relação ao mundo e a humanidade. Quando isso ocorre, Deus
aparece mais como um alter ego do poeta que se coloca em estado de
confrontação com o mundo na sua universalidade; do poeta que
projeta o olhar mais abrangente e panorâmico que é capaz de lançar
sobre a sociedade e a humanidade. Ao lançar mão desse personagem,
com seus amplos poderes atribuídos pela tradição católica na formação
do nosso senso comum, o poeta como que legitima e valida uma mirada
sua que se quer maior e mais potente, que pretende o salto imediato
entre o que aparece na singularidade da crônica e a universalidade da
qual faz parte. Daí os poemas sob esse enfoque relacionarem quase
sempre a tríade de substantivos “Deus”, “mundo” e “humanidade”
(ou o correlato “homem”). Daí também as atitudes e sentimentos desse
Deus equivalerem aos que compõem as reações do próprio poeta em
face dos quadros sociais com os quais se depara no cotidiano. De modo
que Deus, ora pode aparecer como essa espécie de alter ego, ora como
aquela força extra-humana criadora, num significado mais afinado –
embora em certa tensão – com a cosmovisão católica. Dois poemas do
livro Quase crônico (2010) são representativos desses dois tipos de
abordagem:

Não esqueça da minha Caloi

Deus saiu pedalando sua bicicleta Deus não inventou nada


pra olhar melhor quem inventou foi o Homem
o que se passa nas esquinas óculos escuros
calça jeans de marca
Deus não entendeu nada celular que filma
quando viu uma mulher enquanto o ladrão fica lhe filmando
comendo coisas no lixo
e um homem vendendo água Deus não inventou nada
quem inventou foi o Homem
Deus deu uma paradinha essa urgência louca de ter um carro
na banca de revista e essa agonia besta de ter de brigar

Cotidiano | 98
e leu a notícia: por causa de um time
pai mata filha de cinco meses com cinco
facadas Deus não inventou nada
Deus só jogou um monte de gente
Deus largou a bicicleta aqui dentro
pegou um foguete e faz como Pilatos
e voltou pra casa lavou as mãos
(MIRÓ, 2016, p. 77). só não sei com que sabão
(MIRÓ, 2016, p. 74).

As referências a Deus estão sempre associadas a sentimentos e


ideias que configuram o terreno de uma consciência contra a
desumanização e alienação, em estado instintivo e primitivo, portanto
também problemático e ingênuo. Uma consciência que constitui – para
usar algumas fórmulas quase poéticas de Marx (2010) – a expressão da
miséria real e o protesto contra a miséria real, o suspiro da criatura
oprimida, o coração de um mundo sem coração, a alma de situações
sem alma. As referências a Deus em Miró ligam-se ao assombro e ao
sofrimento em face da violência e da injustiça social, a emulação da
força pessoal contra o embrutecimento e o abatimento, o impulso para
a ação harmônica e construtiva com a exterioridade, a percepção do
fluxo histórico e temporal e a valorização da realidade e da vida isentas
da distorção mercantil.
Na medida em que servem como porta-voz do estado de
espírito do poeta em relação ao mundo, essas referências a Deus podem
assumir conotações que se contradizem. Elas manifestam os conflitos
interiores e oscilações da visão de mundo de Miró na luta pessoal que
trava contra a desumanização – e da qual os poemas são testemunhos.
Assim, se em geral esse referente possui um conteúdo positivo, pode,
mais excepcionalmente, ser identificado com forças extra-humanas
que oprimem e cerceiam a intervenção ativa na história, condensando
um fatalismo religioso. Por exemplo, no mesmo livro onde se afigura o
poema sem título – citado anteriormente – anunciando a margem de
intervenção ativa do “Homem” sobre as invenções e atitudes que
saturam o cotidiano urbano, encontramos um poema como Sem
chance. Nesse caso, aquele protagonismo é anulado com a conclusão –
também em face das cenas caóticas e injustas da cidade – apontando o
Cotidiano | 99
sentimento de enclausuramento e emparedamento: “Deus foi perfeito
em não deixar nenhuma / chance pro homem / seja na Restauração ou
no Santa Joana” (2016, p. 107).
Os referentes do universo religioso são muito mais ricos e
complexos em Drummond, atravessando o conjunto da obra, através
de abordagens variadas. Apesar de se reconhecer rigorosamente um
agnóstico, ao longo de sua produção encontra-se um uso marcante e
diverso dos elementos que compõe a tradição cristã, desde cenários e
cenas dos rituais e seus personagens, até nuances da cosmovisão.
Drummond reconhecia que herdara, da experiência familiar, as baldas
da formação cristã. E buscou se afastar do sentimento religioso desde
ainda muito jovem, identificando que a própria criação poética
constituiu um processo de depuração interna desses valores
arraigados. Não é surpresa, portanto, que no poema mesmo de
abertura do seu primeiro livro, o já citado Poema de Sete Faces, conste
aquela estrofe: “Meu Deus, por que me abandonaste / se sabias que eu
não era Deus / se sabias que eu era fraco.” (1977, p. 53). E no estágio
que marca sua poesia social mais engajada, já a partir de Sentimento do
mundo (1940), anuncie em Os ombros suportam o mundo: “Chega um
tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta
depuração” (1977, p. 110). Mesmo nas poesias aí incluídas, José
Guilherme Merquior nota que a crítica da civilização não exclui o amor
à vida, em momentos onde uma “[...] espécie de aceitação cristã da
existência, bem distante da simples resignação estóica, acaba por
superar o desespero do cotidiano” (2016, p. 100). Merquior assim
exemplifica: os poemas Passagem da noite, Uma hora e mais outra e
Noite na repartição – todos de A Rosa do povo (1945) – “[...] em que a
pomba consoladora exprime um simbolismo ético que não poderia ser
mais cristão – descrevem de forma essencial a superação do desespero
rumo ao gosto de viver” (2016, p. 100). Após esse estágio, os referentes,
elementos e reflexões do universo religioso passam a ser objeto de
atenção explícita já em Claro Enigma (1951), até envolver as várias
cenas dos poemas centrados no seu esforço memorialístico, na série
Boitempo.
Certo fundo de matriz agnóstica talvez tenha fortalecido a
ligação de Miró com Drummond na abordagem poética da
Cotidiano | 100
problemática religiosa ou transcendental. Associada àquele processo
de depuração, revelado por Drummond, que acabou por resultar numa
abordagem crítica as visões de mundo arcaicas e enrijecidas ligadas ao
“Deus do catecismo”. Quando insurge em Drummond, percebemos
que a imagem de Deus é pintada com tons negativos. É o Deus que o
abandona sozinho na sua fraqueza, que rege o mundo por sua vontade,
ao mesmo tempo em que toma conta de todos, que se mantém
distante, e mesmo neutro ou indiferente, que se arrepende da sua
criação e se entristece com ela, chegando mesmo a não entender para
que a fez, que concede amores e é horrendo no seu amor, que não é
entendido pelos homens e nem essas suas criaturas o entendem.
Ao que nos parece, pode ter sido um estímulo para Miró – por
exemplo, no citado poema Não esqueça da minha Caloi – a abordagem
de Deus como um personagem antropomorfizado que acompanha, com
certa distância, confuso, arrependido ou mesmo chocado, o destino do
mundo e o homem que criou; abordagem dada por Drummond no
poema Romaria do Alguma Poesia (1930), em que, após narrar o
espetáculo religioso pródigo de vicissitudes humanas, encerra com a
estrofe: “Os romeiros pedem com os olhos, / pedem com a boca,
pedem com as mãos. / Jesus já cansado de tanto pedido / dorme
sonhando com outra humanidade.” (1977, p. 78). Com a diferença de
que, no grau de barbárie alcançado no tempo de Miró, a reação tem de
ser mais intempestiva e drástica: “Deus largou a bicicleta / pegou um
foguete / e voltou pra casa” (MIRÓ, 2016, p. 77). Já no tom dado pela
veia agnóstica no tratamento da questão, é sintomática a colocação de
Deus como uma incógnita por Drummond num dos últimos livros de
poemas publicado em vida. Em A paixão medida (1980) – onde se
afigura o horizonte da morte como importante eixo temático – vemos
como isso se traduz na poesia Rifoneiro Divino, recheada de
interrogações a partir de adágios populares. Tratamento correlato ao
desfechado por Miró na poesia do livro Atchim! (2019) em que resgata
os primeiros questionamentos colocados para a mãe na infância, em
teor memorialístico.

Cotidiano | 101
Rifoneiro Divino Atchim!

Responde, por favor: Deus é quem sabe? [...]


Sabe Deus o que faz?
Deus dá o pão, não amassa a farinha? e começam as perguntas...
Deus o dá, Deus o leva? – Deus fez a formiga pra quê, mãe?
Pertence-lhe o futuro? – Mãe, quando chove, é Deus
Deus te dá saúde? Deus ajuda [chorando?
a quem cedo madruga? – Quando faz sol, Deus vai à praia?
Será que Deus não dorme? – Mãe, logo cedinho, Deus vai na
E é Deus por todos, cada um por si? [padaria?
Deus consente, mas nem sempre? Deus – Mãe, com a licença da palavra,
perdoa, Deus castiga? [Deus cospe no chão?
Deus me livra ou salva? – Menino, Deus não é gente, não...
Deus vê o que o Diabo esconde? – Mãe, quando eu morrer, eu vou
De hora em hora Deus melhora? [encontrar com Deus?
Mas é se Deus quiser?
E Deus quer? [...]
Deus está em nós? E nós, (MIRÓ, 2019).
responde, estamos nele?
(DRUMMOND, 2015, p. 528).

Um interessante exemplo do uso figurativo de Deus como


aquele personagem que beira um alter ego do poeta é demonstrado na
poesia Carnaval do livro aDeus (2015). Na poesia Calma mente – de
Onde estará Norma? (2006) – Miró já havia se mostrado “[...] sem
nenhum tesão em ir pro Galo / nem vendo graça nenhuma em ficar /
subindo e descendo ladeiras de Olinda” (2016, p. 101). Em Carnaval,
Deus é transportado para as ruas em festa como um tipo sem jeito e
quase totalmente permissivo. Um pouco como aquele homem da
poesia Um homem e seu carnaval do livro Brejo das Almas (1934) de
Drummond, no qual o poeta, abordando o tema do eu, segundo José
Guilherme Merquior (2016), toma emprestado a Bandeira (Carnaval,
1919) o velho topos romântico da melancolia solitária no meio da
alegria coletiva. Cotejar as poesias em paralelo é revelador dessa
reprodução de certos motivos. Se no primeiro caso, foi Deus que
abandonou o poeta em meio à bagunça da celebração, no segundo é o
poeta quem larga Deus na confusão do festival. Da leitura em paralelo,
não deixa emanar uma sensação de desforra.
Cotidiano | 102
Um homem e seu Carnaval Carnaval

Deus me abandonou Deus largado pelas ruas de Recife


no meio da orgia não sabe se dança frevo
entre uma baiana e uma egípcia. ou vai atrás do maracatu
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca será que Deus também tem dúvidas?
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos nas ruas
passam por mim de raspão. igrejas e povo
Pobre poesia. Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser
O pandeiro bate
é dentro do peito são quatro dias
mas ninguém percebe. que Deus não tá nem aí
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas aí, na quarta-feira de cinza
riem para mim Deus de ressaca
demonstrando os corpos, perdoa quase todo mundo
os dentes. (MIRÓ, 2015, p. 14).
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las.

Deus me abandonou
no meio do rio.
Estou me afogando
peixes sulfúreos
ondas de éter
curvas curvas curvas
bandeiras de préstitos
pneus silenciosos
grandes abraços largos espaços
eternamente.
(DRUMMOND, 1977, p. 85)

7.

Por outro lado, o citado poema do livro Atchim! (2019) revela a


aproximação para o registro memorialístico com o foco na família, e
por meio de uma narração dos acontecimentos no presente. Em
Atchim!, o foco é colocado na relação da mãe com o filho quando a
Cotidiano | 103
criança apresenta suas primeiras perguntas sobre o mundo,
canalizadas sobretudo na exploração da figura de Deus. Aí a poesia
ajuda a revelar a personalidade e o tratamento ternos e pacientes da
mãe, além do perfil perscrutador e imaginativo do filho. O mesmo
ocorre no livro de 2016, O penúltimo olhar sobre as coisas, onde a
poesia mãe, como era pai? (2016a, p. 30) utiliza os mesmos recursos e
personagens. Ademais de novamente revelar – numa espécie de
entrevista do filho com a mãe – a relação cuidadosa e afetuosa, mesmo
brincalhona, coloca em cena o interesse, inexistente até então, sobre a
própria figura paterna de Miró através de especulações mais ou menos
respondidas. Uma preocupação em refletir sobre a presença do pai na
vida familiar que repercute, no mesmo livro, em poesias como pai
(2016a, p. 28) e o pai de Teco (2016a, p. 47). O lirismo mais existencial
presente no livro parece corresponder ao descolamento espacial e ao
ímpeto de reabilitação desabrochados após uma crise de saúde em
2015. Crise que o obrigou a mudança para o centro do Recife, no bairro
da Boa Vista, e a exercitar um comportamento pautado pelo
tratamento do alcoolismo. Assim registra essa mudança uma longa
reportagem realizada em 2016: “Foi nesse período que veio o nome
para o próximo livro [O penúltimo olhar sobre as coisas, 2016]. O
médico o advertiu sobre possíveis lapsos de memória e pediu que ele
sempre desse o penúltimo olhar sobre as coisas antes de fazer algo ou
antes de ir embora” (p. 12).33
A evocação do passado não deixa de sugerir essa espécie de
esforço de renascimento após aquela crise de saúde em que a morte –
cuja sombra pairava no cotidiano registrado no livro aDeus (2015) –
finalmente visitou o poeta. Foi uma carona breve naquele “ônibus de
Deus” que diariamente passa “sem destino” e segue por “uma estrada
que não se conhece” – como diz na poesia a Terra está doente (p. 11) de
aDeus (2015). Um livro cujo fechamento testemunha o sentimento de
adiamento de uma viagem – numa síntese elucidativa da articulação

33
Matéria escrita por Igor Gomes, intitulada Miró e o penúltimo olhar sobre as coisas, no
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Nº 125, de julho de
2016, publica com o título Miró: um retrato de corpo inteiro de um dos poetas mais
inventivos do Brasil.
Cotidiano | 104
entre o tema de Deus e da morte: “acordei / Deus me deu passaporte
para mais um dia / espero saber voar para lhe agradar” (p. 41).
O lirismo mais existencial, a poesia memorialística com a voz
do presente, a penetração da figura paterna em certas poesias,
principalmente em O penúltimo olhar sobre as coisas (2016a) e Atchim!
(2019) não deixa de nos provocar sobre algumas correspondências com
os caminhos da criação poética de Drummond, principalmente após A
rosa do povo (1945). Um repertório que igualmente poderia tanto
servir de estímulo e inspiração quanto de fonte de recursos para poesia
de Miro na trajetória atual da vida. Alcides Villaça (2006) avalia que a
adoção do tempo verbal no presente, nos poemas da memória da série
Boitempo, de Drummond, faz com que tudo que poderia ser pura
lembrança ressurja com o impacto do que é vivido no aqui e no agora
do menino antigo. Não apenas evocando a percepção pretérita, na
ilusão de revivê-la como se deu, mas construindo com ela (e para ela)
uma nova percepção. Também o ensaísta observa que a matéria bruta
da autobiografia impõe-se – numa velhice em que a revisitação do
passado é trabalhada pelo desejo de totalização da própria história –
como estímulo vital para um surpreendente re-enraizamento. Quando
se propôs a retorquir alguma resistência crítica em torno dessa nova
vereda tomada pela sua poesia, Drummond assim se manifestou na
sugestiva epigrafe Intimação, de Boitempo III (Esquecer para lembrar)
(1979): “– Você deve calar urgentemente / as lembranças bobocas de
menino. / – Impossível. Eu conto o meu presente. / Com volúpia voltei
a ser menino” (2015, p. 691) Em algumas de suas poesias recentes,
claramente Miró volta a ser menino, também com certa volúpia.
É inevitável não topar também com certas identificações que
Miró assume com Drummond em termos das opções estilísticas. Em
especial a opção de Drummond pelo “[...] trânsito nervoso da
consciência mais aguda ao lirismo mais desarmado e vice-versa” do
qual falou Alcides Villaça (2006, p. 48) no seu ensaio sobre o Alguma
Poesia (1930); algo já evidente mesmo no Poema de Sete Faces. Traço
que José Guilherme Merquior parece capturar sob a rubrica da “mescla
de estilos”, verificada em tradições literárias – primeiro presentes na
literatura cristã da Idade Média, depois encarnadas no romance realista
do século XIX – que se propuseram a erigir pessoas e coisas vulgares
Cotidiano | 105
em objeto de representação séria, problemática e mesmo trágica. Um
plano da realidade que, no classicismo antigo, estava relegado a níveis
inferiores de estilo, representados pelos registros leve-pitoresco ou
cômico-vulgar. Diz Merquior: “Aplicando a maneira sublime a
assuntos prosaicos e rotineiros, a literatura realista se torna séria (ib.);
assim fazendo, do ponto de vista da doutrina dos níveis, ela mescla os
estilos” (2016, p. 32). O ensaísta avalia, por exemplo, que uma grande
parte da importância de Baudelaire, em seu papel de fundador do
lirismo moderno, vem do fato de introduzir essa mescla dos estilos na
poesia, da qual a justaposição do tom sublime e do assunto vulgar é tão
característica. Assim, essa mescla, além de compor o universo de
recursos do lirismo moderno no plano poético, foi, apesar das
variações no conjunto da obra, uma característica de estilo decisiva da
poesia de Drummond.
É evidente que Miró estava, desde o início, exposto à influência
desse “estilo mesclado” pelo próprio ambiente cultural geral da poesia
e do lirismo moderno criado a partir do movimento modernista. Porém
acreditamos que o contato mais íntimo com a poesia de Drummond
deva ter potencializado e fertilizado sua sensibilidade criativa para esse
caminho estilístico. É impossível elencar aqui todos os exemplos que
ilustram esse estilo em Drummond – já amplamente demonstrados
pela crítica – e propor as várias correspondências em Miró. Ao invés,
talvez seja já revelador evidenciar isso com a reprodução de um motivo
aparentemente banal em que esse contraste entre o prosaico e o
sublime é radicalizado através do deslocamento entre detritos/sujeira-
alma/coração. O citado poema de Drummond encontra-se no livro
Versiprosa (1967), enquanto o poema-pílula de Miró está incluído no
dizCrição (2012).

Mosaico

Lá vem o limpa-praia: o pê pipoca o gari vai varrendo o mundo


em seu nome, mas limpa. Vamos, toca e nada fica limpo
a recolher o humano sujo esparso a sujeira tá no coração do homem
nas areias, e viva o oceano garço! (MIRÓ, 2016, p. 45).
Olha que é muita coisa: são detritos,
como nossos pecados, infinitos.

Cotidiano | 106
Mas que falta nos faz, ó maquininha,
um limpa-almas, pois não? Estás sozinha...
Não é por falar mal dos semelhantes:
a mim mesmo, serviços relevantes
prestaria esse insólito aparato. [...]
(DRUMMOND, 1977, p. 467).

Possivelmente, é sob essa rubrica da “mescla de estilos” que


também se compreenda o apego aos jogos de palavras ou trocadilhos, a
busca pela palavra imprevista e provocativa. Recurso bastante
difundido na poesia de Miró, e que é ricamente presente em
Drummond através de fórmulas profundas ou prosaicas e
humorísticas. Mas esses trânsito e justaposição entre o sublime (ou o
sentimento lírico) e o prosaico ou vulgar em Miró realiza um
movimento de maior extensão e agudeza, visto que esses pólos se
tornam muito mais contrastantes com as referências e imagens da
condição social de Miró. A sensação é mesmo de certa vertigem nessa
tensão alto/baixo, como no poema memorialístico Onde estará
Norma? Nele a lembrança da primeira dor amorosa, e da criatura
amada de então, aparecem numa descrição carregada de lirismo, em
uma cena cujos objetos revelam a condição de uma pobreza das mais
limitadoras, pintada com uma ternura leve.

Onde estará Norma?

acho que foi a primeira vez que conheci a dor


um domingo de 1971
naquele tempo
o domingo era o dia mais feliz
minha mãe fazia um macarrão
com carne de lata e Ki-suco
ficávamos brincando
de mostrar a língua vermelha
pra provar que éramos felizes
e que em nossa casa Ki-Suco não faltava

[...]

Norma tinha os olhos fundos


puxados pra dentro, castanhos claros

Cotidiano | 107
quase verdes
se ardesse o sol de domingo

[...]

Norma era tão linda


com seus cabelos negros
que me deu um branco aos 11 anos
quando me pediu um biscoito maizena e um
gole de Fratelli Vita

[...]

Agora, 35 anos depois, Norma vem como


Nuvem de algodão doce
E a matinê de domingo
Domingo era o dia mais feliz
antes de Norma beijar um outro na boca
(MIRÓ, 2016, p. 100).

A tensão e envergadura desse deslocamento alto/baixo, entre


um lirismo romântico e uma realidade da miséria mais crua,
imediatamente nos remete a certos efeitos de contraste presentes no
livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina Maria de
Jesus. Enfeixando sentimentos e situações que oprimiam sua vida em
meio à expansão do maior centro urbano do país nos anos 1950, os
depoimentos dos diários são ricos em digressões poéticas com alta
tensão entre elocução à maneira sublime e a sua penetração por
assuntos extremamente prosaicos e rotineiros. Basta contemplarmos
extratos como esse, do diário de 23 de maio de 1958:
... O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e
formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam
conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para
despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando
contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu
azul. Há várias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se.
Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras.
Ofusca todas as belezas que existe (2014, p. 43).

Essa passagem sugere como a tensão entre sublime e prosaico se


aprofunda quando ela se esboça a partir de uma situação extrema de
despojamento material e opressão.

Cotidiano | 108
Mas na poesia de Miró também encontramos ecos de outras
tendências estilísticas, tais como as que representam uma elocução
lírica mais “pura”, em contraste com a “mescla de estilos” de que fala
Merquior ao tratar das nuances criativas de Drummond. Por exemplo:
num poema de Miró como trago boas notícias (2016, p. 66) – do livro
Quase crônico (2010) – pode-se divisar traços de um pathos idealizante
– de cunho neorromântico – que Merquior localiza nas passagens
impregnadas de utopismo de Cidade Prevista em A Rosa do Povo
(1945). Se essa correspondência possui mesmo validade, então Miró
teria reproduzido um motivo que, em Drummond, foi tomado através
do veio estilístico do modernismo neorromântico – caminho através
do qual Merquior nota certa mutação estilística no lirismo do poeta
mineiro, manifesta numa certa poesia engajada de teor neorromântico,
muito presente no livro Sentimento do Mundo (1940).

8.

Em suma, a questão da afinidade de Miró com a poesia de


Drummond pode ter sido lastreada em tantas outras dimensões menos
tangíveis, que exigem incursões mais profundas nas obras, nas
trajetórias biográficas e nos cenários históricos dos poetas,
demandando acesso a documentação mais vasta. Basta cotejar o
ceticismo, no plano das convicções políticas, que Drummond alentou
após os anos 1950; postura que pode ter representando outra esfera de
identificação, por parte de Miró, com sua atitude arredia frente à cena
político-partidária e organizativa, sobretudo dos anos 1990 em diante.
É sempre importante inquirir sobre os efeitos na criação poética
produzidos pela ausência de conexão direta e consciente com forças
organizativas, sujeitos políticos coletivos ou tendências ideológicas da
época. Ademais, poder-se-ia perscrutar mais amplamente o uso do
humor que, combinado com uma grande sensibilidade e uma atitude
terna, resulta num efeito emocional penetrante. O próprio Drummond
elucida – em Explicação, de Alguma Poesia (1930) – que seu verso “às
vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota” (1977,

Cotidiano | 109
p. 77). Não encontramos descrição mais oportuna para revelar a
impressão que causa a bricolagem gestual e poética das apresentações
de Miró.
Certa feita, Georg Lukács salientou a importância de Goethe na
identificação do conflito básico que toda obra artística precisa dar
conta de solucionar, ou seja, aquele conflito posto pelo dualismo entre
universal e particular. Diz Goethe – citado por Lukács: “Compreender
e representar o particular é o específico da arte. E, ademais, enquanto
nos limitarmos ao universal, todos podem nos imitar, mas ninguém
pode imitar nosso particular. Por que? Por que os outros não o
viveram” (1970, p. 143). O crítico e poeta Affonso Romano Sant‖Anna
acredita que Drummond foi exitoso na resolução desse conflito básico,
na medida em que ele parece ter partido, na criação poética, da
aceitação da sua individualidade. Daí uma poesia onde o caráter
altamente pessoal se verifica até mesmo nas fórmulas impessoais. Diz o
crítico: “O poeta está falando dele mesmo o tempo todo, mas ninguém
nota” (2008, p. 30). Daí também uma poesia que forja aquela síntese
poderosa e penetrante entre a singularidade do poeta e as
transformações sociais decisivas da época de transição pela qual
passava seu país e o mundo em boa parte do século XX. Uma poesia que
expressa o núcleo de dramas humanos concretos e determinados, que
afetavam classes sociais concretas e determinadas, e que eram
correspondentes àquela época de transição. Daí, por último, uma
poesia que – nas suas realizações mais profundas e de maior vulto –
oferece um testemunho e reflexo dos dramas individuais mais perenes
e universais da luta humana pelo autoconhecimento e efetivação das
capacidades pessoais, em face de suas bases e barreiras naturais e
instintivas, por um lado, e em face, por outro lado, da alienação e
desumanização socialmente produzidas.
Vários momentos dessa incursão pela produção de Miró nos
provocam a sensação que algo correlato ocorre. A afirmação da
individualidade parece se impor – nesse caso – através do fato de que o
poeta é sua própria poesia. Os quadros sociais narrados na crônica
poética capturam circunstâncias e acontecimentos dramáticos nos
quais o poeta mesmo se encontra envolvido – como objeto,
personagem ou expectador participante, exprimindo suas reações
Cotidiano | 110
psicológicas e emocionais. A miséria e opressão vocalizadas e
documentadas na obra – seja nos poemas de cunho existencial ou
memorialístico, seja nas crônicas – são aquelas a que Miró está sujeito,
a partir de uma condição de classe definida pelo alto grau de
expropriação. Aqui também se identifica um forte testemunho de uma
luta pessoal intestina contra a desumanização, a alienação e a opressão
da vida urbana, num estágio de crescente degradação na periferia do
imperialismo. Ela captura o particular nessa síntese entre o destino
pessoal do poeta e as tendências sociais mais dilacerantes do seu
tempo.
Mas sugerimos isso apenas como hipótese. Não nos permitimos ir
mais além dessa nossa limitada entrada na obra de Miró, a partir da
questão de partida sobre sua inspiração e referência em Drummond.
Não foi nossa preocupação, nesse ensaio, medir a voltagem poética de
qualquer poema, avaliar a convencionalidade ou extraordinariedade
das imagens, sopesar as regularidades formais ou padrões métricos dos
versos, aquilatar a facilidade ou raridade dos seus simbolismos e rimas.
Ademais, frente aos intentos da crítica literária, nos parece mesmo que
a poesia é inesgotável. Pois os sentimentos humanos que são seu cerne
combinam-se de inumeráveis maneiras e provocam as reações mais
imprevistas nas inesgotáveis e irrepetíveis individualidades que
compõe o gênero humano. Este, por sua vez, inesgotável, porque
inesgotáveis suas possibilidades históricas no tempo. Por isso, mesmo
depois dessa nossa incursão, a pergunta pode ser repetida; uma
intocada e densa floresta de respostas se descortinará: e Drummond
em Miró da Muribeca?

Cotidiano | 111
Referências

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Documentários e Reportagens

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2009. 2 vídeos (14 min). Publicado pelo canal Artver2. Disponível em:
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Miró: Preto, Pobre, Poeta e Periférico. Dirigido por Wilson Freire.
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Onde estará a Norma. Dirigido por Bárbara Cristina, Jacqueline Granja
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Cotidiano | 114
Poetas Marginais do Recife. Opinião Pernambuco, TV Universitária,
realizado em 20 de março de 2015. Disponível em:
https://youtu.be/jxxb5kzm_RQ. Acesso em: 7 jun. 2020.
Programa Tesão Literário. 2018. 1 vídeo (37 min). Publicado pelo canal
TV Pimenta, apresentação de Sidney Nicéas, em 23 mar. 2018.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1EJoWm0AqIs.
Acesso em: 7 jun. 2020.

Cotidiano | 115
Este livro foi composto
em Glosa, corpo 10/9/8
e Century Gothic, corpo 12/11.

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