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Patrimônio imaterial: reflexões sobre a rebeldia da matéria

DOI:http://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2020.v5.n14.p490-507

PATRIMÔNIO IMATERIAL: REFLEXÕES SOBRE A


REBELDIA DA MATÉRIA

Ana Clara de Rebouças Carvalho


http://orcid.org/0000-0002-3976-1857
Universidade Federal da Bahia

resumo O debate contemporâneo sobre patrimônio, em suas múltiplas


nuances, tem enfatizado a chamada dimensão imaterial das mais di-
versas culturas desde o nascer do novo século. Este artigo objetiva
contribuir com estas trocas a partir de problematizações em torno
da emblemática dicotomia: de um lado o mundo da cultura mate-
rial, do outro, tudo aquilo que vem se compreendendo em termos
de imaterialidade. Em abordagem ensaísta, o texto estrutura-se em
dois momentos confluentes: um que contempla reflexões em torno
da dimensão (i)material de duas experiências artísticas, e em diálo-
go com proposições de Ingold (2015) e Tarde (2007), outro, que busca
aprofundar os desdobramentos das abordagens ali em relevo, agre-
gando aí a dimensão ética proposta por Jonas (2006). Os principais
eixos reflexivos aqui propostos enfocam a natureza contraditória da
dualidade material/imaterial, bem como o que é posto em termos
dos “pontos cegos” decorrentes ou vinculados em alguma medida a
tal polarização, a exemplo dos riscos de aprofundamento dos desa-
fios geralmente encontrados pelas políticas patrimoniais. Ademais,
este artigo visa estimular a inclusão de perspectivas pouco usuais
ao debate patrimonial, sobretudo, em seus desdobramentos éticos,
pragmáticos e políticos.
Palavras-Chave: Patrimônio imaterial. Cultura material. Imateriali-
dade.

abstract IMMATERIAL HERITAGE: REFLECTIONS ON THE


REBELLIOUSNESS OF MATTER
The contemporary debate about heritage, in its many nuances, has
emphasized the immaterial dimension of the most diverse cultures
since the dawn of the new century. This article aims to contribute to
these exchanges from problematization around the emblematic di-
chotomy: on the one hand the world of material culture, on the other,
everything that has been understood in terms of immateriality. In an

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essayistic approach, the text is structured in two confluent moments:


one that contemplates reflections around the (im)material dimen-
sion of two artistic experiences, and in dialogue with propositions
of Ingold (2015) and Tarde (2007), another, which seeks to deepen
the unfolding of the approaches there, adding the ethical dimen-
sion proposed by Jonas (2006). The main reflective lines proposed
focus on the contradictory nature of material / immaterial duality,
and the “blind spots” related to such polarization, such as the risks
of deepening the challenges often encountered by heritage policies.
In addition, this article aims to encourage the inclusion of unusual
perspectives on the heritage debate, especially in its ethical, prag-
matic and political developments.
Keywords: Immaterial heritage. Material culture. Immateriality.

resumen PATRIMONIO INMATERIAL: REFLEXIONES SOBRE LA


REBELIÓN DE LA MATERIA
El debate contemporáneo sobre el patrimonio, en sus múltiples ma-
tices, ha enfatizado la dimensión inmaterial de las culturas más di-
versas desde los albores del nuevo siglo. Este artículo tiene como
objetivo contribuir a estos intercambios desde la problematización
en torno a la dicotomía emblemática: por un lado, el mundo de la
cultura material, por otro, todo lo que se ha entendido en términos
de inmaterialidad. En un enfoque ensayístico, el texto se estructura
en dos momentos confluentes: uno que contempla reflexiones en
torno a la dimensión (in)material de dos experiencias artísticas, y en
diálogo con las proposiciones de Ingold (2015) y Tarde (2007), otro,
que busca profundizar estos enfoques, agregando la dimensión éti-
ca propuesta por Jonas (2006). Las principales líneas reflexivas pro-
puestas se centran en la naturaleza contradictoria de la dualidad
material / inmaterial, así como en lo que se expresa en términos de
“puntos ciegos” que surgen o están relacionados en cierta medida
con esta polarización, como en el caso de los riesgos de profundizar
los desafíos a menudo vistos entre políticas culturales. Además, este
artículo tiene como objetivo fomentar la inclusión de perspectivas
inusuales en el debate del patrimonio, especialmente en sus desa-
rrollos éticos, pragmáticos y políticos.
Palabras clave: Patrimonio inmaterial. Cultura material. Inmateriali-
dad.

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Patrimônio imaterial: reflexões sobre a rebeldia da matéria

Notas introdutórias exemplo do que se pode conceber como “pa-


trimônio arquitetônico”, ou “patrimônio urba-
O debate acerca de “patrimônio” tem sido in-
nístico”, ou “etnográfico”, ou “paleontológico”,
tenso no vasto campo das ciências e para além
ou “científico”, entre outros (LIMA, 2012, p. 35).
dele, sobretudo, desde o século XIX, em suas
Em face disso, este artigo visa contribuir
radicais transformações em múltiplos campos.
com tais reflexões, mais precisamente, a partir
Para Choay (2001), trata-se de uma “bela pala-
do que se convencionou chamar de “patrimô-
vra, antiga e enraizada no espaço e no tempo”,
nio imaterial”. Nessa perspectiva, e de acor-
mas também um conceito “nômade”, dadas as
do com Lima (2012, p. 36), justo em meio aos
suas diversas e complexas inserções (patrimô-
processos de ampliação e aprofundamento do
nio histórico, patrimônio natural, patrimônio
conceito de patrimônio, “ocorreu consolidar-
genético, cultural, material, entre outras), e
se a tipologia Patrimônio Intangível” através
que segue “trajetória diferente e retumbante”
da emblemática “Convenção para Salvaguarda
que outrora, conforme aquela autora discorre
do Patrimônio Cultural e Imaterial”, da Orga-
em termos de uma “alegoria do patrimônio”,
nização das Nações Unidas para a Educação,
em sua renomada obra.
a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 2003. Ain-
Século XXI, e um breve sobrevoo em um im-
da para aquela autora, e em que pese o “lento
portante portal de periódicos científicos reve-
processo cultural” para a incorporação desta
la mais de 30 mil ocorrências a partir do único
categoria enquanto “ integrante da questão
termo “patrimônio”.1 Ao agregar outras com-
patrimonial”, o seu reconhecimento “firmou-se
plexas dimensões, a exemplo da ética ou da
no foco internacional” (LIMA, 2012, p. 36). Em
cultura, é notória uma queda vertiginosa na-
termos de definição, a UNESCO (2003) assim o
quele número, o que não significa necessaria-
concebe:
mente um silenciamento ou uma despreocu-
pação com tais aspectos, no entanto, confirma Entende-se por patrimônio cultural imaterial as
práticas, representações, expressões, conheci-
a intensa dinâmica e diversidade que incidem
mentos e saber-fazer – assim como os instru-
sobre tal debate.
mentos, objetos, artefatos e espaços culturais
É, portanto, bastante disponível uma lite- que lhes são associados – que as comunidades,
ratura acerca dos processos de mudanças em os grupos e, em alguns casos, os indivíduos re-
torno da noção de “patrimônio”, bem como a conhecem como fazendo parte de seu patrimô-
difusão desta entre os mais diversos contex- nio cultural. (UNESCO, 2003)

tos, inclusive, de modo não exclusivo e inter- Já nessas linhas, fica patente a impureza do
disciplinar, tal como pontuaram Souza e Crip- conceito, isto é, a imaterialidade parece não se
pa (2011, p. 238). Neste bojo, Lima (2012, p. 35), depurar dos vestígios materiais; e as contro-
ao revisar importantes referenciais acerca da vérsias acerca disso não são de agora. Assim,
temática, detalha as “modulações que lhe fo- tal como há uma literatura relativamente farta
ram sendo agregadas” ao longo do tempo e acerca de “patrimônio” amplo senso, o mesmo
a partir das múltiplas reflexões multidiscipli- pode ser dito em relação às noções de “ imate-
nares, a ponto de chegar à contemporaneida- rial” e de “ imaterialidade”, as quais, a propó-
de enquanto uma expressiva diversidade de sito, subjazem à definição acima. Ou seja, bem
“territórios de ação indicados pelos títulos”, a anterior àquela Convenção, as construções em
1 Trata-se aqui do Portal Capes de Periódicos, com
torno do que se compreende, ou de que se ad-
acesso e pesquisa em 10 de novembro de 2019. mite enquanto “ imaterial” ganham fôlego, ao

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menos, na arena das ciências sociais e huma- e sigam convivendo, ainda que em suposta
nas, desde as últimas décadas do século XX. harmonia, ou cobertos de toda sorte de escu-
Não sendo em si mesma uma novidade sas ou da boa-fé de um senso crítico sobre a
inaugurada por uma organização internacio- mesma.
nal, a questão da imaterialidade vem suscitan- É, portanto, sobre esta insistente polari-
do novas e velhas inquietações no cenário dos dade que este artigo busca refletir. Para tanto,
complexos desafios patrimoniais na contem- a argumentação que se segue inspira-se nas
poraneidade, sendo, inclusive, uma espécie de contribuições de dois autores separados por
“lugar comum” a constatação da indissociabi- um século de distância, consideradas as suas
lidade das dimensões material e imaterial, so- datas de nascimento: um, do efervescente XIX,
bretudo, no âmbito das práticas. Esta é, talvez, o outro, do conturbado século XX. Estamos fa-
a mais proeminente, ou, de certo, a mais per- lando de Gabriel Tarde (1843-1904), “o mais fi-
sistente das inquietações: a já esgarçada pola- lósofo dos sociólogos, ou o mais sociólogo dos
ridade entre “materialidade” e “imaterialida- filósofos”, como definiu Vargas (2007, p. 11), e do
de”, que então se institucionaliza a partir da antropólogo contemporâneo Tim Ingold (2015),
criação de uma categoria técnico-conceitual com quem iniciaremos as primeiras trocas em
como a de “patrimônio cultural imaterial”, em diálogo com duas experiências materialmente
suas pretensões universalizantes ou de algu- vividas, uma por uma artista guatemalteca, ou-
ma validade global. tra por mim.
Em face disso, os mais recentes debates Os fios argumentativos seguem seus ali-
parecem buscar novos posicionamentos em nhavos, de modo a agregar as reflexões de
relação às demandas que emergem daquela Tarde (2007) e, também, a discutir alguns pon-
famigerada e pouco convincente dualidade. tos cegos vinculados ou mesmo decorrentes
Tanto assim que, Souza e Crippa (2011, p. 237), da dualidade em foco: de um lado, o mundo
ao revisarem os discursos e as condições que material, do outro, o que se costuma conceber
produziram historicamente a referida dicoto- enquanto imaterial e imaterialidade. O objeti-
mia, buscam demonstrar de que se trata mais vo deste artigo é, pois, contribuir com possi-
de uma “oposição apenas circunstancial” e bilidades analíticas pouco convencionais e de
menos uma sustentável dicotomia na “relação natureza ética acerca do debate patrimonial
da sociedade com os seus produtos culturais”. contemporâneo.
Esses autores, em diálogo com seus pares,
confirmam a falta de sentido em “uma sepa- A matéria e dois casos de
ração entre patrimônio tangível e intangível
rebeldia
ou objeto e processo”, uma vez que “ele só
se explica nesta relação”; e ainda defendem No ano de 2010, a poetisa e artista visual gua-
a perspectiva de “patrimônio como processo” temalteca Regina José Galindo doava ao mun-
enquanto “uma ideia que supera a oposição do mais uma das suas incisivas expressões:
material-imaterial” (SOUZA e CRIPPA, 2011, p. a obra intitulada Looting.2 Nela, Galindo sub-
247). Todavia, a insistente dualidade em ques- mete-se à perda voluntária de parte dos seus
tão parece não desaparecer em definitivo, nem tecidos dentários – através de um desgaste
na ideia de “processo”, nem em outra ideia 2 O termo pode ser traduzido do inglês para o portu-
qualquer em que, e por contradição, os termos guês como “pilhagem”, e a descrição detalhada desta
encontra-se disponível na página eletrônica da artista
“material” e “imaterial” se mantenham ilesos, em: http://www.reginajosegalindo.com/.

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prospectado por um dentista da Guatemala Tais processos interpretativos, em que pe-


– e, em substituição, recebe incrustações em sem a densidade crítica que podem lograr, não
“ouro nacional de mais alta pureza”3 naquelas são exatamente o foco desta reflexão, mas sim
cavidades abertas. Tempo depois, em Berlim, a sua dimensão material, mais precisamente,
tais incrustações são removidas, e substituí- o que o título desta seção sugere enquanto
das por outro material restaurador, uma vez rebeldia da matéria. Além de Looting, e como
que aquelas pequenas peças em ouro teriam uma segunda experiência em relevo, miremos
outro destino. as experimentações cerâmicas que emergiram
O destino: as oito pequeninas formas em a partir do projeto que concebi e intitulei de
metal nobre seguiram à exposição museológi- Amostra: ensaio sobre (in)significâncias, então
ca. A poética de base dessa obra é assim des- inspirado, em parte, por aquele trabalho de
crita na página eletrônica da artista: “por um Galindo.
lado, a conquista, a guerra, a política que de- Em linhas bem sintéticas, busquei produzir
vastou a terra, a exploração do solo, os humi- em diferentes expressões escultóricas cerâ-
lhados; por outro lado, o conquistador, aquele micas a mutilação dentária em seus múltiplos
que comanda, o homem do mundo frio, aquele desdobramentos individuais e coletivos. Antes
que levanta a mão e guarda o ouro”.4 As fotos de prosseguir, cabem aqui algumas linhas de
disponíveis neste mesmo domínio virtual tes- natureza autobiográfica, considerando dois
temunham todo o processo: desde a progra- aspectos relevantes desta abordagem ao es-
mada mutilação tecidual dos molares da ar- copo deste texto, a saber: um, da potência da
tista ao acondicionamento das peças em uma narrativa autorreferente para fins da constru-
espécie de relicário acrílico, onde estas repou- ção intersubjetiva de saberes; outra, de uma
sam, tal como “objetos de arte”, assentadas breve demarcação do território existencial de
sob uma pequena almofada de veludo rubro. quem vos fala, e uma vez que uma porção do
Cerca de uma década depois, em um ponto que chamo aqui de rebeldia da matéria emer-
mais abaixo do centro do continente america- ge de experiências pessoais.
no, mais precisamente, na cidade de Salvador Ainda sobre o primeiro aspecto, e de acor-
da Bahia, licencie-me a prestar uma singela do com Santos e Torga (2020, p. 140), é impor-
homenagem a essa artista, ao tomar conheci- tante ressaltar o espaço e a legitimidade que
mento dessa sua ação. No bojo de uma expe- o relato autobiográfico logram na contempora-
riência de aprendizado cerâmico em um movi- neidade por razões diversas e, dentre elas, por
mentado ateliê universitário, busquei expres- pautar “uma subjetividade a revelar sua inti-
sar materialmente o espanto diante da obra midade, a compartilhar com sua coletividade
daquela artista. Mais especificamente, tratou- aquilo que a preocupa, que acredita, a vivência
se de uma reprodução em cerâmica das oito que resulta das marcas da ação do tempo, da
unidades dentárias, as quais Galindo doou às história e das interações sociais sob o coti-
reações das mais diversas, tantas quanto as diano de indivíduos em sua singularidade”. E
interpretações humanas possam tocar. é justo nesta perspectiva que, ao desnudar a
profunda e inquietante relação que tenho com
3 Fragmento da descrição contida na página eletrônica o fenômeno da perda dentária, recrio, e recria-
da artista: http://www.reginajosegalindo.com/; mi-
nha tradução; acesso em: 5 nov. 2019. mos juntos, a partir do olhar do outro, novos
4 Fragmento de descrição contida na página eletrônica processos de produção de sentidos e significa-
da artista: http://www.reginajosegalindo.com/, minha
tradução; acesso em: 5 de nov. 2019. dos em torno dos processos aqui em foco.

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Assim sendo, o espanto com a perda, ou que são quase que absolutamente evitáveis?
mesmo, a possibilidade de perder dentes, O transitar pela área da saúde pública, mais
chegou-me ainda quando dentes de leite eu precisamente, pelo campo da saúde coletiva,
possuía. Diferente do encantamento de Már- trouxe-me algumas respostas mais alentado-
quez (2003, p. 76) quem, em sua autobiografia, ras. Contudo, e logo conclui, uma história se-
considerava ser um “privilégio mágico” este de cular de exclusão de cuidados e uma tradição
poder “tirar” os dentes para “lavá-los, e deixá assistencial essencialmente mutiladora não se
-los num copo d’água”, referindo-se ali à sua resolveriam com um punhado de boas iniciati-
cuidadora quando seguia ao leito para dormir, vas políticas: a boca quase ou totalmente ban-
sofrimentos dentários e todos demais males guela ainda é uma realidade para muitos aqui,
bucais sempre me constrangeram em alguma inclusive, mundo afora; e a escova e o creme
medida. Recordo-me muito vivamente das do- dentais também não revolucionaram a saúde
res de dente lancinantes que uma das minhas do sorriso tanto quanto podem alcançar.
cuidadoras recorrentemente sofria: seu sorriso De volta ao projeto em relevo neste texto,
era quase sempre triste, quase completamen- tratou-se, portanto, de uma releitura do fe-
te lacunar, e absolutamente contrastante com nômeno da perda massiva de dentes no país
a pessoa de alma leve e alegre que era. Foi a através de uma reelaboração crítico-poética
partir dela que comecei a notar difusamen- dos indicadores nacionais que atestam tal fe-
te o quanto de identidade porta um sorriso. nômeno. Em termos práticos, passei a ler as
E, a partir disso, uma profusão de perguntas estatísticas oficiais em termos de volumes de
atravessavam-me com certa insistência: afinal, tecidos dentários perdidos: em um dado re-
como “ser” inteiramente sem dentes? Ou ain- corte temporal, algo em torno de 1 bilhão e 24
da: como seria possível perder o que fora feito milhões de quilos relativos aos 16 milhões de
para durar? desdentados totais no Brasil, segundo as es-
Assim, sorrisos parcial ou completamente timativas do Instituto Brasileiro de Geografia
arruinados, dentes postiços, bocas desdenta- e Estatística (IBGE) e do Ministério da Saúde,
das, em geral, quase sempre acompanhadas relativas à segunda década do século XXI.5
de injustas histórias de vida, não raro provo- 5 Números disponíveis na matéria do jornal O Globo,
cavam-me inquietantes interrogações. As per- publicado em 06 de fevereiro de 2015, na reportagem
da autoria de Carol Knoploch, na qual são referidos
guntas de criança de certo me conduziram, dados relativos à Pesquisa Nacional de Saúde do
IBGE, em convênio com o Ministério da Saúde, reali-
junto a outros motivos de ordem prática, às
zada no ano de 2013. Este estudo contou com 80 mil
minhas escolhas profissionais. Anos mais tar- visitas, em 1.600 municípios do Brasil, sendo, portan-
to, resultados representativos da perda dentária no
de, a graduação em Odontologia, todavia, só país (KNOPLOCH, 2015). Isto é, trata-se de um recorte
fez acirrar aquelas velhas inquietações, além amostral da realidade do edentulismo em território
nacional. Além desses números, artigos científicos
de provocar novos constrangimentos. Recor- tendem a evidenciar taxas de perda e de adoecimen-
do-me bem, ainda graduanda, de recusar-me to dentários acima dos parâmetros e metas recomen-
dados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a
a extrair um molar permanente de um jovem exemplo dos estudos de Cardoso et al. (2016) que
de 12 anos: a meu ver, a mutilação precoce não apontam um decréscimo do edentulismo entre jovens
e adultos no país, porém uma tendência de aumento
poderia ser uma regra. expressivo entre idosos até o ano de 2040. Especifica-
Negando-me a este perverso modelo, se- mente sobre aquela cifra, a de 1 bilhão e 24 milhões
de quilos de tecido dentário perdido, cabe frisar que
gui questionando: mas como pode haver tan- se trata de uma estimativa feita por mim, tratando-
tas tecnologias preventivas para o alcance de se, portanto, de um cálculo aproximado e baseado
em peso médio da unidade dentária perdida (algo em
tão poucos? Ou como admitir tantas perdas torno de 2,3 gramas é o peso médio de uma unidade

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Patrimônio imaterial: reflexões sobre a rebeldia da matéria

Tentei, então, traduzir a dramaticidade des- ideia imbuída da sua poética, forçaram-me a
ses números naquele fazer cerâmico, isto é, re- repensar o comportamento da matéria para
presentar em barro a perda massiva de dentes além dos possíveis sentidos e significados
no país, muitas vezes, de modo precoce, evitá- que o projeto pretendia lograr mais adiante,
vel e socialmente injusto. Trata-se de um pro- enquanto produto acabado e disponível ao
jeto em aberto, em franca construção: há ainda olhar do outro. A partir disso, passei a perce-
muitos encaminhamentos possíveis e muitas ber que as simbolizações ou representações
peças a serem produzidas em torno daquela a priori pretendidas podem ser facilmente
provocação. No entanto, as peças concluídas traídas pela matéria em suas rebeldias. No
até aqui falam sobre isto, e o próprio processo caso, o fazer cerâmico tem exatamente disso:
de feitura tem mais a dizer a este texto. já partindo da complexa constituição da sua
Assim, a primeira porção de argila que che- matéria-prima, perpassando os processos do
gou a minhas mãos pediu-me para ser um pe- manejo humano em suas intenções, até o seu
queno cubo, em realidade, mais próximo de mais ou menos imprevisível comportamento
uma forma retangular. De imediato, tornou-se forno adentro e vida afora.
um pequeno bloco maciço próximo a este for- Foram, então, exatamente essas inquieta-
mato. Naquela ocasião, mais atenta à dimen- ções que me levaram a buscar uma literatura
são técnica, a orientadora logo me advertiu: que as acolhessem de forma menos fragmen-
“cerâmica pede leveza, a argila precisa respirar tada, isto é, uma abordagem talvez mais sensí-
leve”. Dito isso, e em face daquele pequeno e vel à velha trama matéria-intenções (as minhas
adensado objeto, disse-me prontamente: “es- e as do material em seus processos físico-quí-
cave”. E assim o fiz. micos ou de outra natureza). Assim, ao invés
Desde este simples ato, e que logo se tor- de me debruçar sobre a produção bibliográfica
nou tão corriqueiro, não demorou muito para mais habitualmente referenciada quando se
eu perceber que, de fato, o barro tem as suas trata das grandes temáticas da “materialida-
regras, mas também suas rebeldias. Os mais de” e de “cultura material”, decidi iniciar pelas
diversos manuais técnicos dizem isso ao seu “ inflexões” propostas por Ingold (2015).
modo, assim como a ciência é farta das expli- Este autor parte então do seguinte enigma:
cações sobre o comportamento das ínfimas o desaparecimento dos próprios materiais na
partes que fazem do barro, o barro. Todavia, literatura que trata propriamente daquelas te-
entre teoria e prática, há um saber tácito, ou máticas. Citando um dos autores que, no seu
algo mesmo de inefável, que mais conhece entender, vão além das “reflexões abstratas
quem faz: a mão na massa revela coisas que os de filósofos e teoristas”, assim delimita: “por
escritos não alcançam. E o fazer cerâmico é as- materiais, refiro-me às coisas de que as coisas
sim: prenhe das tensões entre teoria e prática. são feitas, e um inventário aproximado pode
Tais tensões me inquietaram – me inquietam –, começar com algo como o seguinte, tirado da
e é também sobre isso este texto. lista de conteúdo do excelente livro de Henry
As provocações que o barro então me Hodges, Artefacts (Artefatos)”, e são eles, “ce-
causou, sobretudo, para dar cabo de uma râmica; esmaltados; vidro e laqueados; cobre e
ligas de cobre; ferro e aço; ouro, prata, cobre,
dentária). Usualmente, a literatura técnica e científica
da área odontológica emprega como unidade de refe- chumbo e mercúrio; pedra; madeira; fibras e
rência o indivíduo, em termos de número de unidades
perdidas por pessoa, e não o peso de tecidos dentá-
fios; têxteis e cestas; peles e couro”, entre tan-
rios perdidos tal como aqui proposto. tos outros. Isso posto, afirma Ingold que:

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Este volume pé no chão está repleto de infor- de materiais e das maneiras como tenham sido
mações sobre todos os tipos de materiais que utilizados em processos de produção; mesmo
os povos pré-históricos têm usado para fazer
na antropologia, existe algum trabalho etno-
coisas. No entanto, nunca o vi referido na lite-
gráfico sobre o assunto”. E acresce este autor:
ratura sobre materialidade. Procurando pelas
minhas prateleiras encontrei títulos como: The O meu ponto é simplesmente que este traba-
Mental and the Material (O mental e o material), lho não parece interferir de forma significativa
de Maurice Godelier (1986); Mind, Materiality na literatura sobre materialidade e cultura ma-
and History (Mente, materialidade e história), terial. Para estudiosos que dedicaram grande
de Christina Toren (1999); Matter, Materiality parte de suas energias ao estudo dos materiais,
and Modern Culture (Matéria, materialidade e essa literatura se lê mais como uma rota de fuga
cultura moderna), editado por Paul Graves-Bro- para a teoria – uma que, confesso, eu mesmo já
wn (2000); Thinking through Material Culture usei. Portanto, meu argumento é dirigido tanto
(Pensando através da cultura material), de Karl para mim quanto a qualquer outra pessoa, e é
Knappett (2005); Materiality (Materialidade), parte de uma tentativa de superar a divisão en-
editado por Daniel Miller (2005); Material Cultu- tre trabalho teórico e prático. (INGOLD, 2015, p.
res, Material Minds (Culturas materiais, mentes 50, grifos nossos).
materiais), de Nicole Boivin (2008) e Material
Agency (Agência material), editado por Lambros E é justo esta tentativa, a “de superar a divi-
Malafouris e Karl Knappett (2008). Em estilo e são entre trabalho teórico e prático”, que mais
abordagem, esses livros estão a um milhão de se aproxima das motivações daquele projeto
milhas da obra de Hodges. Seus compromissos, que, por sua vez, inspira as reflexões neste ar-
na sua maior parte, não são com as coisas tan-
tigo. Os questionamentos daquele autor diri-
gíveis de profissionais e manufatureiros, mas
gem-se mais diretamente à antropologia em
com as reflexões abstratas de filósofos e teoris-
tas. Eles discorrem, muitas vezes, em uma lin- seus modos de lidar com a “cultura material”
guagem de impenetrabilidade grotesca, acerca e da “materialidade”, e cujo exemplo por ele
das relações entre materialidade e uma série oferecido é suficientemente claro: “um carpin-
de outras qualidades igualmente insondáveis, teiro é alguém que trabalha com madeira, mas
que incluem agência, intencionalidade, fun-
como Stephanie Bunn observou, a maioria dos
cionalidade, espacialidade, semiose, espiri-
antropólogos se contentaria em considerar o
tualidade, encarnação. Procura-se em vão, no
entanto, qualquer explicação compreensível trabalho em termos da identidade social do
do que ‘materialidade’ realmente significa, ou trabalhador” ou, ainda, “das ferramentas que
qualquer explicação dos materiais e suas pro- ele ou ela usa, da disposição da oficina, das
priedades. Para entender a materialidade, ao técnicas empregadas, dos objetos produzidos
que parece, precisamos ficar longe quanto pos-
e seus significados – tudo menos a madeira
sível de materiais. (INGOLD, 2015, p. 50)
mesma” (INGOLD, 2015, p. 51).
Antes que o leitor mais apressado se esqui- Tais argumentos talvez não bastem a quem
ve, ou pior, abandone de vez esta perspectiva siga desconfiando que a cisão acima referida
de argumentação, e mesmo antes de tocar no estaria muito bem resolvida uma vez que to-
que tais ponderações teriam a ver com as in- das aquelas coisas materiais, ao menos em
crustações de ouro de Galindo ou bilhões de sua constituição física, caberiam às chamadas
tecidos dentários perdidos no Brasil, é pruden- ciências exatas ou da natureza e, à filosofia e
te uma ressalva que o próprio Ingold (2015, p. às humanidades, restaria todo aquilo intangí-
50) propõe no seu texto: “apresso-me a acres- vel e que, ao que tudo indica, parece apenas
centar que, obviamente, a maior parte da ar- apreciável se distanciado da sua existência
queologia é dedicada precisamente ao estudo palpável. No entanto, o desconforto com esta

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emblemática dualidade data, pelo menos, de zando matéria-espírito, isto é, processos mes-
mais de um século, no próprio bojo das ciên- mos da vida.
cias sociais e humanas, aqui em particular, nas No caso da produção dos primeiros dentes
reflexões de Gabriel Tarde, as quais recorrere- cerâmicos, recordo-me bem uma das primeiras
mos mais à frente. inquietações que me ocorreu: no afã de conci-
Por ora, voltemos ao instigante desapareci- liar o comportamento da argila, em seus im-
mento dos materiais apontado por aquele últi- plicados aspectos técnicos, com os possíveis
mo autor que, ao fazê-lo, passa a dialogar com repertórios semânticos a partir dos produtos
outros atores para além da produção cientí- dali emergentes, passei a cogitar o quanto de
fica mais referenciada. Foi o caso de Stepha- afinidade aqueles minérios que a constituem
nie Bunn, quem buscando uma “antropologia teriam com os milhões de toneladas de mi-
de sua experiência como artista e artesã, foi nérios dos tecidos dentários perdidos Brasil
direcionada para a literatura sobre a cultura adentro. É evidente que não estamos falando
material” (INGOLD, 2015, p. 51). Entretanto, ad- de uma relação direta entre aquelas poucas
verte este, “em nenhum lugar nessa literatura porções de argila e a dissipação destes mine-
ela poderia encontrar qualquer coisa corres- rais de origem dentária, onde quer que eles
pondente ao ‘pouco que fez’”: isto é, “o traba- tenham ido parar (possivelmente no mesmo
lho com materiais que repousa no coração da solo onde o barro se forma). Mas, em algum
sua própria prática como fabricadora” (BUNN, momento, estive sim pensando se haveria um
1999, p. 15 apud INGOLD, 2015, p. 51). outro destino para essa perda – diria até etica-
Este relativo silenciamento com o qual mente mais digno – a exemplo da sua incorpo-
Bunn se deparou pareceu-me bastante fami- ração a outras estruturas cerâmicas propria-
liar naquilo que encontrei ao longo dos pro- mente.
cessos de produção das dezenas de dentes Em perspectiva afim, tomemos o caso da
cerâmicos que fiz no interior do projeto aqui adição de cinzas de ossos bovinos na produ-
em foco. Possivelmente, Galindo poderia tam- ção de corpos cerâmicos, o que já é uma prá-
bém tê-lo encontrado caso pretendesse expli- tica estabelecida em alguns países, a exemplo
car que, para além das representações e dos de China, Inglaterra e Estados Unidos, em seus
significados daquelas oito pequeninas peças diversos fins, sobretudo, em função da bio-
em ouro, tratou-se, antes de tudo, de um cor- compatibilidade que tais compostos logram
po à serviço, isto é, foram tecidos dentários alcançar. De certo, não parece ser apenas os
próprios, sadios e irregeneráveis, que se dis- fins simbólicos que, por si só, motivariam a fa-
siparam naquela ação. Ou seja, em tese, pode- bricação em larga escala deste tipo cerâmico,
ríamos participar da mesma sensação de que mas sim questões mercadológicas e, talvez,
“este fabricar é para Bunn, como o é para mui- ambientais o fariam. Tanto assim que a lite-
tos artistas, um procedimento de descoberta: ratura acerca do tema, relativamente escas-
nas palavras do escultor Andy Goldsworthy, sa, não enfatiza propriamente isso, mas tende
‘uma abertura para os processos da vida, den- mais a descrever processos físico-químicos da
tro e em volta’ (FRIEDMAN & GOLDSWORTHY, produção, e a apontar para as vantagens téc-
1990, p. 160)”, conforme reflete Ingold (2015, p. nicas deste tipo cerâmico, incluindo, aspectos
51). E é justo este “procedimento de descober- estéticos e de durabilidade.
ta” que encontra importantes limites em uma No caso da adição de minerais de origem
literatura que segue confortavelmente polari- dentária a corpos cerâmicos, essa tecnologia,

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até então, não existe. Ao menos, ainda não há abrem a partir daqui parecem mais distancia-
relato técnico ou científico de ampla divulga- das dos velhos vícios das explicações dicotô-
ção sobre produções dessa natureza. Assim micas. Ou próximas de algo como já rebatia
sendo, e de volta àquelas inquietações que Gabriel Tard:
tive ao tecer dentes cerâmicos, imaginando se
[...] se os corpos vivos [...] são máquinas, a natu-
tratar de uma ação impregnada de simbolismo reza essencial dos únicos produtos e das únicas
e de representação do fenômeno do edentulis- forças resultantes de seu funcionamento que
mo em massa no Brasil, ocorreu-me pensar o nos são conhecidos até o fundo (sensações,
quanto daquelas perdas poderiam retornar ao pensamentos, volições), nos mostra que seus
alimentos (carbono, azoto, oxigênio, hidrogê-
artefato produzido: será que assim cumpririam
nio, etc.), contêm elementos psíquicos ocultos.
com menor fragmentação seus fins mais sim- (TARDE, 2007, p. 71-72, grifos nossos)
bólicos e mais pragmáticos, incluindo, aqueles
de reabilitação dentária a partir de corpos ce- Aqui, e antes que o leitor se atenha apenas
râmicos constituídos dos próprios tecidos de à datada compreensão de corpo vivo enquanto
origem, ao menos, em parte? “máquina”, e, de fato, procederia assim admitir
Antes de qualquer risco de duvidosa inter- tal datação, a tônica do argumento em ques-
pretação disso, cabe aqui uma salutar ressalva tão estaria justo na fonte comum onde espíri-
de ordem ética: é evidente que não se cogita to-matéria se alimentam: afinal, o mesmo car-
que tecidos humanos, no caso, de origem den- bono ou o oxigênio que constitui o objeto são
tária, esteja à serviço de quaisquer interesses, aqueles que nos fazem seres sensíveis, pen-
sejam eles qual for. Mas a leitura é justamente santes, volitivos. Tarde (2007), parece arriscar
a inversa: os interesses, sejam eles quais fo- mais do que isto: ao atribuir “elementos psí-
rem, devem se voltar ao que andamos perden- quicos ocultos”, ou seja, elementos da anima
do de “processos de vida”, ainda que em mili- aos supostos inanimados, tais como ao “car-
métricos volumes, como poeiras de nós que se bono, azoto, oxigênio, hidrogênio, etc”, propõe
dissipam no ar. Ou seja, no caso aqui, tecidos romper em definitivo a última ou a principal
que se esvaem em suas variadas dinâmicas de barreira entre matéria e espírito, isto é, a pró-
perda, e que então se antecedem a qualquer pria anima. Assim, para ele, “matéria é espírito,
intenção de uso ou fim. Em termos análogos, nada mais”, sendo esta tese, inclusive, a “única
um coração só revive em alguém à sua espera que se compreende e que oferece realmente a
quando este parou de bater em outro peito. redução exigida” (TARDE, 2007, p. 65).
De volta àquela última indagação, ela mes- Mais recentemente, e para Latour (2013, p.
ma se desdobra em outra: a ideia proposta, 11), ao revistar criticamente as “promessas da
fruto daquelas inquietações do fazer, ajudaria modernidade”, conclui que a “nossa vida in-
a romper aquela velha dualidade ou a endossa, telectual é decididamente mal construída”. E
ainda que involuntariamente? Posto de outro avança esse autor: “a epistemologia, as ciên-
modo, estaria aí presente a esgarçada arma- cias sociais, as ciências do texto, todas têm
dilha polarizadora: de um lado, abstrações e uma reputação, contanto que permaneçam
simbolizações, de outro, a concretude da vida distintas”; ou seja, “caso os seres que você
como ela é, no caso aqui, dos materiais em esteja seguindo atravessem as três, ninguém
si mesmos? Sem pretensões, ou mesmo, sem mais compreende o que você diz” (LATOUR,
condições de um sim ou um não com alguma 2013, p. 11). Lá atrás, para Tarde (2007), e em li-
segurança, as perspectivas de reflexão que se nhas bem breves, trata-se tão somente de uma

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questão do olhar, isto é: “esses elementos últi- caberia mesmo ali, nesta pretensiosa dupla
mos aos quais chega toda ciência, o indivíduo macro categorial. Neste bojo, uma das ques-
social, a célula viva, o átomo químico, só são tões postas por ele seria: “onde, nesta divisão
últimos da perspectiva de sua ciência particu- entre paisagem e artefatos, poderíamos colo-
lar” (TARDE, 2007, p. 57). car todas as diversas formas de vida animal,
No compreender de Vargas (2007, p. 23), es- vegetal, fúngica e bacteriana”? (INGOLD, 2015,
taria posto neste olhar tardiano que “o anima- p. 52). E avança:
do e o inanimado se confundem in minimus”, e
Será que a chuva pertence ao mundo material,
este parece ser um dos pontos chaves da su- ou apenas as poças que ela deixa nas valas e
peração da dualidade que se pretende discutir buracos? Será que a neve que cai participa do
em termos de “rebeldia” da matéria. A rebel- mundo material somente quanto pousa sobre o
dia aqui teria, então, o senso da contrariedade chão? Como engenheiros e construtores sabem
todos muito bem, chuva e geada podem romper
com as tendências antropocêntricas de leitu-
estradas e edifícios. Como então afirmar que
ra e de concepção da complexidade da vida, estradas e edifícios sejam parte do mundo ma-
e também de uma persistente ilusão de con- terial, se a chuva e a geada não o são? E onde
trole absoluto da matéria em função das in- poríamos o fogo e a fumaça, a lava incandes-
tencionalidades humanas. Antes disso, e se “o cente e as cinzas vulcânicas, para não mencio-
animado e o inanimado se confundem in mini- nar líquidos de todos os tipos, da tinta à água
corrente. (INGOLD, 2015, p. 52)
mus” (VARGAS, 2007, p. 23), haveria sim alguma
coisa de matéria que dita certas regras antes Evidentemente, a lista é enorme, incluindo,
ou, na melhor das hipóteses, simultaneamen- o ar, a lua, o sol, as estrelas, conforme esse au-
te às vontades e intenções humanas, tal como tor segue a desdobrando, e transitando entre
sugerem as reflexões de Gabriel Tarde. críticas e possibilidades acerca de uma possí-
Adiando mais um pouco o que “sociólogo- vel reconciliação entre o “mundo material” e
filósofo” ou “filósofo-sociólogo” tem a nos di- a “materialidade”. Nesse empenho, e em meio
zer, voltemos à rebeldia da matéria, retomando a tantas incertezas, fato é que “enquanto na-
o fio da meada com uma das questões substan- dam neste oceano de materiais, os seres hu-
ciais proposta por Ingold (2015) no debate so- manos, obviamente, desempenham um papel
bre materialidade: “se o meu corpo realmente nas suas transformações”, do mesmo modo “o
participa do mundo material, então como pode fazem criaturas de todos os outros tipos”, diz
o corpo-que-eu-sou se comprometer com esse Ingold (2015, p. 57). E conclui em um ponto cha-
mundo?”. Antes, no entanto, é interessante co- ve da sua reflexão e também para este texto
nhecer o contexto da pergunta, que está jus- que “muito frequentemente os seres humanos
tamente na crítica daquele autor a uma das continuam a partir de onde não humanos pa-
várias tentativas de superação da polaridade ram, como quando extraem a cera secretada
entre teoria e prática, mais precisamente, entre pelas abelhas para fazer paredes dos alvéolos
o mundo material e a materialidade, no caso do favo de mel para posterior utilização no fa-
aqui, também a “imaterialidade”. brico de velas” (INGOLD, 2015, p. 57).
Particularmente dirigindo-se à proposição Isso posto, e do mesmo modo, a lista de
de Gosden (1999, p. 152) acerca de uma divisão transformações de mundo partilhadas entre
didática do mundo material em “dois amplos humanos e não humanos segue igualmente
componentes”, isto é, “paisagem e artefatos”, incomensurável, incluindo coisas como secre-
Ingold (2015) indaga se tudo que é “material” ções, peles, osso, chifres, penas, esterco etc. No

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caso aqui em relevo, as transformações parti- dos objetos para as propriedades dos materiais,
lhadas estariam entre as poeiras de tecidos proponho que levantemos o tapete para revelar
sob a sua superfície um emaranhado de meân-
dentários humanos, que tendem a se dissipar
drica complexidade, no qual – entre uma miríade
no ar ou a seguir ralo abaixo dos gabinetes de outras coisas – a secreção de vespas do buga-
odontológicos, e a argila em processo de pro- lho apanhadas com ferro-velho, seiva de acácias,
duções humanas a caminho de ser um artefa- penas de ganso e peles de bezerro, e o resíduo
to qualquer, inclusive, os próprios dentes para de calcário aquecido se mistura com as emissões
de suínos, bovinos, galinhas e abelhas. Pois ma-
fins de reabilitação das perdas, se as pesqui-
teriais como estes não se apresentam como sím-
sas tecnológicas avançarem para isso. No caso bolos de alguma essência comum – materialida-
de Galindo, por sua vez, e com o seu corpo “à de – que dota cada entidade mundana com a sua
serviço” da crítica visceral a que se propôs, é inerente ‘objetividade’, ao contrário, eles partici-
ali possível vislumbrar um corpo “realmente pam dos processos mesmos de geração e rege-
neração contínua do mundo, do qual as coisas
participando do mundo material”, portanto,
como manuscritos ou fachadas são subprodutos
um “corpo-que-ela-é” de fato e intensamente
impermanentes. Portanto, escolhendo mais um
“comprometido com este mundo”, tal como su- exemplo ao acaso, ossos de peixe ferventes pro-
gere a provocação acima de Ingold (2015). duzem um material adesivo, uma cola, e não uma
Avançando nessa perspectiva, uma outra materialidade típica de peixes nas coisas coladas.
leitura daquele mesmo autor pode nos aju- (INGOLD, 2015, p. 52, grifos nossos)

dar mais uma vez a pensar sobre a rebeldia da É justo este “levantar do tapete” de en-
matéria ante as pretensões humanas, inclusi- contro à propriedade dos materiais um movi-
ve, aquelas que creem ser viável prescindir da mento necessário às tentativas de superação
própria matéria para falar algo em termos de da dualidade matéria e materialidade e, como
uma suposta “imaterialidade” ou de uma cul- em destaque aqui, da matéria/i-matéria. Já os
tura “imaterial” qualquer. Como visto até aqui, grifos ao final daquela última citação servem
a contaminação pela matéria é inabalável: nem para nos alertar que, desde esse olhar, coisas
que seja de ar ou da atmosfera, a imateriali- produzem coisas e não “coisidades”, isto é,
dade estará sempre plenamente preenchida, matéria produz matéria, seja ela qual for, e não
ou até enquanto a vida no planeta sobreviver “materialidades” ou “ imaterialidades”. Inclusi-
à ação humana predatória, como diria Jonas ve, até as coisas que se julgam sem matéria –
(2006). Todavia, e tal como adverte aquele au- tais como pensamentos, volições, valorações,
tor, “uma vez que o nosso foco está na materia- representações, simbolizações, abstrações,
lidade dos objetos” e, acresço aqui, na suposta entre outros – e como já dito, estão, pelo me-
“imaterialidade” também, “é quase impossível nos, prenhes de ar. Ao menos, enquanto este
seguir as múltiplas trilhas do crescimento e não for rarefeito, no caso, em virtude da pró-
transformação que convergem, por exemplo, pria ação antiética humana diante das coisas,
na fachada de estuque de um edifício ou na como diz Jonas (2006), mas o deixemos para
página de um manuscrito” (INGOLD, 2015, p. 59, mais adiante.
grifos do autor). E segue esclarecendo:

Essas trilhas são simplesmente varridas para de- Outras rebeldias ou alguns
baixo do tapete de um substrato generalizado pontos cegos da “imaterialidade”
sobre o qual diz-se que as formas de todas as
coisas são impostas ou inscritas. Insistindo em Na seção anterior, o foco esteve na reflexão
que demos um passo para trás, da materialidade da rebeldia da matéria, isto é, na sua insis-

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tência em se pronunciar entre as “materiali- mento mesmo de recursos e insumos necessá-


dade” ou “ imaterialidade”, tal como pensa- rios aos processos (BENGIO et al., 2015; LEAL &
das, amplo senso, em uma literatura técnica LEAL, 2012; SOUZA FILHO & ANDRADE, 2012).
e científica afim. A partir daqui os processos Nessa mesma perspectiva, e ainda a título
reflexivos sobre a rebeldia material buscam de exemplo, o estudo desses últimos autores,
revelar alguns pontos cegos ainda passíveis acerca dos desafios da inventariação patrimo-
de serem creditados à polaridade em relevo: nial de quilombolas em Alcântara, no Mara-
as supostas dimensões material e imaterial nhão, aponta, dentre as diversas dificuldades,
do patrimônio. os “efeitos da separação arbitrária entre ma-
Antes de avançar, uma importante ressalva terial e imaterial”, de modo que “a caracteri-
deve ser feita: a de que a crítica que se bus- zação do patrimônio imaterial dos quilombo-
ca aqui, mais de natureza teórico-conceitual, las, nesse caso, depende e está relacionada à
não contradiz ou desmerece todo o empe- sua base material” (SOUZA FILHO & ANDRADE,
nho e desdobramentos práticos em torno do 2012, p. 92). Ou seja, o material e o “ imaterial”
que se alcançou em termos de fomento e/ou são mesmo indissociáveis e, no caso, fazem os
de salvaguarda de patrimônios mundo afora. processos culturais perder o sentido dentro de
Mas justo o contrário: os propósitos caminham uma lógica polarizadora. Isso posto, esses au-
muito mais no sentido de refletir o quanto da- tores ainda sublinham o que chamam de “cul-
quela dicotomia endossa, sobretudo, em seus tura do material”, a qual imprime um “tipo de
pontos cegos, os principiais desafios e limita- colonização do imaterial que a política insti-
ções que incidem sobre a efetiva implementa- tucional não conseguiu ainda resolver” (idem,
ção das políticas culturais patrimoniais. p.92). Com isso, querem dizer que a excessiva
Nessa mesma perspectiva, Bengio et al. abordagem materialista da patrimonialização
(2015, p. 19), ao refletir sobre “tensões” no acaba enfocando mais o produto do que o pro-
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial cesso, isto é, o “saber – fazer”, para o melhor
(PNPI), então vinculado ao Plano Nacional de uso do jargão.
Cultura, de 2010, interrogam-se sobre quais A crítica daqueles autores é bastante com-
“demandas” e quais “efeitos produzidos” se preensível e, de certo, endossada pela lite-
verificam a partir dos movimentos em torno ratura afim, contudo, é possível encontrar aí
da efetivação de direitos no campo da cultu- um dos pontos cegos aos quais esta seção se
ra no Brasil com esta política, no caminhar da dedica. Trata-se daquele que decorre da pró-
segunda década do século vigente. As conclu- pria dualidade em xeque: é, portanto, mais
sões destes autores, bem como as de outros um subproduto da cisão materialidade/ima-
neste mesmo viés de problematização, têm re- terialidade, mais precisamente vinculado ao
caído no terreno comum das dificuldades em uso corrente da noção de “processo” enquan-
suas mais variadas naturezas. Assim, faltas ou to um recurso, quase que um subterfúgio, que
insuficiências de toda ordem tendem ser a tô- supostamente resolveria aquela polaridade.
nica: desde as que perpassam as ações mais Assim, no esteio deste uso mais genérico da
burocrática e/ou institucional, a exemplo de ideia de “processo”, por vezes, em detrimento
certas incompatibilidades entre metodologias de “produto”, fato é que “estudos da chamada
de inventariar possíveis candidatos à patrimo- cultura material têm se centrado esmagadora-
nialização e a complexa realidade na qual se mente nos processos de consumo em vez de
inserem, àquelas que dizem respeito ao supri- nos de produção”, assinala Ingold (2015, p. 59),

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apoiado em Miller (1995; 1998) e Olsen (2003). E de, mesmo que de forma bastante inconscien-
avança aquele primeiro autor: te, aprofunda o fosso entre matéria e “i-maté-
ria”, reforçando assim a falsa noção de que o
Pois tais estudos tomam como seu ponto de
partida um mundo de objetos que, por assim suposto imaterial prescinda do material (aqui
dizer, já se cristalizou a partir dos fluxos de enquanto recursos variados), uma vez que es-
materiais e suas transformações. Neste ponto taríamos tratando afinal de um “saber – fazer”
os materiais parecem desaparecer, engolidos em abstrato, e não de matérias.
pelos objetos mesmos aos quais deram à luz.
Em contraposição a tais tendências dico-
É por isso que comumente descrevemos mate-
riais como ‘brutos’, mas nunca ‘cozidos’ – pois tômicas, um breve passeio sobre etimologias
no momento em que se congelam em objetos pode ser, por vezes, esclarecedor: assim como
eles já desaparecem. Por conseguinte, são os “patrimônio” remete, em seu prefixo, à pala-
próprios objetos que captam a nossa atenção, vra “pai”, o termo “material” é uma “extensão
não mais os materiais do que são feitos. É como
do latim mater (‘mãe’)”, sinaliza Ingold (2015,
se o nosso envolvimento material só começas-
se quando o estuque já endureceu na fachada p. 61). Assim, materiais, enquanto “mater” de
ou a tinta já secou na página. Vemos o prédio e tudo que há, estão “longe de serem a coisa
não o reboco das paredes; as palavras e não a inanimada tipicamente imaginada pelo pen-
tinta com a qual foram escritas. (INGOLD, 2015, samento moderno”, mas, “materiais, neste
p. 60, grifos do autor)
sentido original, são os componentes ativos
Diante disso, a apreensão deste mundo de um mundo-em-formação” (INGOLD, 2015, p.
de objetos já cristalizados pode explicar, ao 61). Assim sendo, não parece por um acaso ser
menos em parte, aquela primazia do produ- mais fácil conceber sem titubeios a noção de
to sobre o processo e, em especial, sobre os “patrimônio material” do que aquele que su-
processos de produção; e, ao que tudo indica, põe prescindir ou renunciar, ainda que parcial-
isso parece não fazer muito bem aos recentes mente, da “mater”, isto é, dos materiais que
esforços de patrimonialização do “imaterial”, “onde quer a vida esteja acontecendo, eles es-
sobretudo, do “saber – fazer”, conforme discu- tão incansavelmente em movimento – fluindo,
tido acima. Além disso, um outro ponto, que se deteriorando, se misturando e se transfor-
também parece embaçado, estaria nos riscos mando” – acresce aquele mesmo autor (2015,
do “esquecimento” de que processo é também p. 61).
consumo, portanto, consumo de algo, ainda Um último ponto cego estaria na linha de
que “apenas” do ar que inspira e faz respirar encontro da dimensão ética que a dualidade
o sujeito que sabe fazer. Dito de outro modo, do material/imaterial pode comportar. Aqui,
a “imaterialidade” do saber fazer não é tanto são as reflexões de Hans Jonas (2006) que mais
imaterial assim, no limite, de imaterial não te- atenderiam às premências desta discussão,
ria propriamente muita coisa. mais precisamente, a partir do que ele conce-
Ademais, e ainda no bojo dos possíveis be em torno do “princípio da responsabilida-
efeitos da dicotomia em termos políticos, so- de”. Este autor, ao revisar o pensamento filo-
bretudo, em seus desdobramentos práticos, sófico ocidental acerca da ética, destaca que
é sempre interessante manter a vigília sobre “todo o trato com o mundo extra-humano, isto
certos discursos. Assim, na seara do fomento é, todo o domínio da techne (habilidade) era
ao campo da cultura e aos mais amplos e di- – à exceção da medicina – eticamente neutro,
versos interesses patrimoniais, convém se in- considerando-se tanto o objeto quanto o su-
terrogar o quanto do discurso da imaterialida- jeito de tal agir” (JONAS, 2006, p. 35). E avança:

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Patrimônio imaterial: reflexões sobre a rebeldia da matéria

Do ponto de vista do objeto, porque a arte só Mas, o que esta pauta excessivamente eco-
afetava superficialmente a natureza das coi- lógica, “ indigesta” ou, quiçá, inconveniente,
sas, que se preservava como tal, de modo que
teria a ver ou mesmo a dizer ao inócuo debate
não se colocava em absoluto a questão de um
entre o que é e o que não é material ou “ ima-
dano duradouro à integridade do objeto e à or-
dem natural em seu conjunto; do ponto de vis- terial”? Uma indagação afim parece oportuna
ta do sujeito porque a techne, como atividade, para pensar tal questão: a propósito, que lugar
compreendia-se a si mesma como um tributo de conforto e de isenção as “ imaterialidades”
determinado pela necessidade e não como um todas logram em um mundo em alta vulnerabi-
progresso que se autojustifica como fim pre-
lidade e materialmente posto em xeque? Dito
cípuo da humanidade, em cuja perseguição
engajam-se o máximo esforço e a participação de outro modo: o que o mundo etéreo das re-
humanos. A verdadeira vocação do homem en- presentações, das abstrações, das simboliza-
contrava-se alhures. Em suma, atuação sobre ções, enfim, das imaterialidades todas, então
objetos não humanos não formava um domí- desvencilhadas da sua concretude, endossa
nio eticamente significativo. (JONAS, 2006, p.
ou aprofunda, ainda que involuntariamente,
35, grifos nossos)
as tantas mazelas do mero mundo mortal dos
Os grifos acima pretendem enfatizar o fato materiais?
de toda ética tradicional ser antropocêntrica, Antes disso, as tendências de leitura pare-
segundo a ótica desse autor, uma vez que “a cem inversas, e perguntas podem daí emergir:
significação ética dizia respeito ao relaciona- seria pois o mundo materialista e das mate-
mento direto de homem com homem, inclusi- rialidades o “grande vilão” de uma vida etica-
ve o de cada homem consigo mesmo” (JONAS, mente viável, então naquela perspectiva de Jo-
2006, p. 35). Todavia, e especialmente a partir nas (2006), enquanto, do outro lado, o mundo
do crescente tecnológico sem precedentes em das imaterialidades todas aprecia, em distân-
muitas das histórias da humanidade, emerge o cia segura e confortável, tais processos de de-
imperativo do deslocamento daquele antropo- gradação e iniquidades, em que pesem as suas
centrismo, uma vez que “a promessa da tecno- ferozes e contundentes capacidades críticas e
logia moderna se converteu em ameaça” para reflexivas? A propósito, a própria noção “éti-
o próprio ser humano em virtude das suas da- ca”, ao menos como tradicionalmente pensa-
nosas e potencialmente letais consequências da, não pertenceria apenas a este mundo isen-
(JONAS, 2006, p. 21). to e confortável das supostas imaterialidades?
Dito de outro modo, tal imperativo se tra- Isso posto, e considerado aquele último
duz em: “age de tal maneira que os efeitos da ponto cego, como se comprometer eticamente
tua ação sejam compatíveis com a permanên- a partir de uma perspectiva que fragmenta um
cia de uma vida humana autêntica”; ou mes- mundo em sua matéria e espírito? Ou, aqui é
mo, “não ponhas em perigo a continuidade o equivaleria a dizer que uma abordagem di-
indefinida da humanidade na Terra”, daí o ci- cotômica de mundo não seria compatível com
tado “princípio da responsabilidade” (JONAS, uma ética por inteiro, tal como aquela propos-
2006, p. 18). Isso posto, a linha de argumen- ta por Jonas (2006). A esta altura, fica evidente
tação desse autor expõe a “crítica vulnerabili- que o acúmulo de questões tão complexas que
dade da natureza provocada pela intervenção se desdobram a partir da crítica à dualidade
técnica do homem”: tanto e de tal forma a, de em relevo não se esgotaria nestas poucas li-
fato, ameaçar a própria continuidade da vida nhas, mas o retorno ao foco deste texto pode
no planeta. sugerir algumas pistas.

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Assim, e já à guisa de conclusão, voltemos mais uma vez do jargão. Contudo, para poder
às contribuições de Tarde quando este perse- avançar nessa perspectiva, e não naquela que
gue a inexorável marcha do infinitesimal, isto cartesianamente mutila matéria-espírito, com
é, “a redução a uma só destas duas unidades, suas drásticas e nem sempre explícitas conse-
a matéria e o espírito” (TARDE, 2007, p. 53). Para quências, ou, como adverte Vargas (2007, p. 13),
esse autor, tal redução dirige-se ao “infinita- para se aproximar de “um conteúdo minima-
mente pequeno”, que é “a fonte e a meta, a mente realista”, é mesmo necessário “realizar
substância e a razão de tudo”, e é, portanto, um movimento desconcertante e admitir que
onde não há mais como fragmentar ou discer- há infinitamente mais agentes no mundo do
nir matéria-espírito: “tudo parte do infinitesi- que correntemente imaginam nossas ciências
mal e tudo a ele retorna” (TARDE, 2007, p. 60). humanas” (VARGAS, 2007, p. 13).
Neste ponto, onde “matéria” e “imatéria” se É, portanto, sobre este mundo não frag-
fundem a tal ponto, e se afetam mutuamente, mentado e revisto em sua pluralidade de
que sentido e, sobretudo, quais múltiplas con- agentes, inclusive, para além dos nossos irre-
sequências sucedem quando insistimos em freáveis vícios antropocêntricos, que a reflexão
partir da fragmentação? e a ação sobre o patrimônio devem ser consi-
Na leitura de Vargas (2007, p. 16), “quanto deradas, conforme as provocações neste texto
mais nos aproximamos do infinitamente pe- buscaram se aproximar a partir das aborda-
queno mais encontramos seres completos e gens acionadas. Do ponto de vista ético, e no-
complexos”; e, potencialmente, a ciência es- vamente concordando com Jonas (2006), é “a
taria aí para “evidenciá-lo, enquanto progride continuidade da mente com o organismo, do
multiplicando prodigiosamente os agentes do organismo com a natureza”, que a ética “tor-
mundo” (VARGAS, 2007, p. 16). Nas próprias pa- na-se parte da filosofia da natureza”, de modo
lavras de Tarde (2007, p. 65; p. 78), e em defesa que “somente uma ética fundada na amplitu-
de uma ciência radicalmente diferente daque- de do Ser pode ter significado” (JONAS, 2006, p.
la que tornou-se hegemônica e perigosamente 17). Uma ética “fundada na amplitude do Ser”,
fragmentada, há provas suficientes, e desde o por sua vez, só pode prever um mundo menos
século XIX, de que “a ciência tende a pulveri- fragmentado, um mundo por inteiro.
zar o universo, a multiplicar indefinidamente
os seres”, e ainda ela, “após ter pulverizado o
universo, acaba necessariamente por espiri-
Considerações finais
tualizar sua poeira”. As reflexões propostas neste texto partiram do
Lido de outro modo, e mais confluente que persegui problematizar em termos de uma
com o foco desta reflexão, é mesmo a poei- rebeldia da matéria, em especial, da sua insis-
ra universal, ou isto que nos chega enquanto tência em se sobrepor sobre o que se supõe
matéria que tudo constitui, que é prenhe de sob absoluto controle das intenções e ações
espírito, e que, segundo Tarde (1895), estaria humanas. Deslocadas tais reflexões para o âm-
passível de leitura pela ciência. A propósito, a bito da discussão patrimonial, uma das ques-
mesma molécula de oxigênio que respira nos tões centrais que se pretendeu levantar foi:
tecidos de Galindo, ou naqueles milhões de mas o que há mesmo de imaterial em conce-
tecidos dentários humanos, respira também ber, valorar, processar, saber fazer, transmitir?
em qualquer ínfima parte disto que conside- Ou ainda: quais efeitos do conceber “ imate-
ramos “patrimônio da humanidade”, usando rialidades” descoladas, em alguma medida, da

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Patrimônio imaterial: reflexões sobre a rebeldia da matéria

dimensão material que as sustentam em face BUNN, Stephanie. The importance of materials.
aos complexos processos culturais? Journal of Museum Ethnography, v. 11, p. 15-28,
Diante da complexidade de tais inquieta- 1999. Disponível em: <http://www.jstor.org/sta-
ble/40793620?seq=1>. Acesso em: 28 mai. 2020.
ções, é evidente que as linhas tecidas neste
texto estão muito distantes de saturá-las ra- CARDOSO, Mayra; BALDUCCI, Ivan; TELLES, Daniel de
zoavelmente, no entanto, busquei cumprir a Moraes; LOURENÇO, Eduardo José Veras; NOGUEIRA
contento o propósito de dialogar com aborda- JÚNIOR, Lafayette. Edentulismo no Brasil: tendên-
gens pouco usuais no debate sobre patrimô- cias, projeções e expectativas até 2040. Ciênc. Saú-
nio. Ou seja, em termos de contribuição a este de Coletiva, v. 21, n. 4, p.1239-1246, 2016. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/csc/v21n4/1413-
debate, eis aqui uma aproximação a perspec-
8123-csc-21-04-1239.pdf >. Acesso em: 28 mai. 2020.
tivas que podem adensá-lo em algum grau, a
exemplo do olhar de Tarde (2007), das contri- CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio. São Pau-
buições de Ingold (2015) e da ética de Jonas lo: UNESP, Estação Liberdade, 2001.
(2006). FRIEDMAN, Terry & GOLDSWORTHY, Andy. Hand to
Esta última, a dimensão ética, bem como Earth. Leeds: W.S. Maney, 1990.
a revisão do seu conceber mais convencional,
GOSDEN, Christopher. Anthropology and Archaeo-
podem então ser tomadas como mote para
logy: a changing relationship. Londres: Routledge,
outras reflexões que se desdobram em torno
1999.
dos processos de patrimonialização. No caso
deste texto, e ao enfocar as necessidades de HODGES, Henry. Artefacts: an introduction to ear-
superação da dualidade do material e do ima- ly materials and technology. Londres: Duckworth,
terial, o imperativo ético posto esteve (e está) 1964.

no desafio da compreensão de “mundo por INGOLD, Timothy. Estar vivo: ensaios sobre movi-
inteiro” enquanto uma noção a ser incorpo- mento, conhecimento e descrição. Pretópolis-RJ:
rada no debate técnico e científico em torno Vozes, 2015.
do patrimônio, e sobre a qual todo e qualquer
JONAS, Hans. O princípio da responsabilidade: en-
ato de distinção deve partir e/ou se reportar. saio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio
Além disso, o ínfimo e o plural deste “mundo de Janeiro: Contraponto – Editora PUC Rio, 2006.
por inteiro” deveriam interessar mais a fun-
KNOPLOCH, Carol. Brasil tem 11% da população sem
do a política patrimonial em qualquer canto
nenhum dente. O Globo [on-line]. 2015. Disponível
de um planeta em franca vulnerabilidade, ou
em: https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/
disso que podemos considerar um ameaçado
brasil-tem-11-da-populacao-sem-nenhum-den-
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Ana Clara de Rebouças Carvalho

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Ana Clara de Rebouças Carvalho é doutora em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Professora adjunta do Departamento de Odontologia Social e Pediátrica da UFBA. Membro
dos seguintes grupos de pesquisa cadastrados no Diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq): Laboratório de Estudos sobre Crime e Sociedade (LASSOS) da UFBA; e Comunidade, Família e Saúde:
sujeitos, contextos e políticas públicas (FASA) do ISC, da UFBA. E-mail: anaclarareboucas@gmail.com

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