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Capitulo 5

A energia, ou seja, o pensamento


Para o ator a energia apresenta-se na forma de um como, não na forma de
um quê.

Como movimentar-se. Como ficar imóvel. Como mise-en-scene, ou seja,


mise-en-oision a sua presença física e transformá-la em presença cênica, e
portanto expressão. Como fazer visível o invisível: o ritmo do pensamento.

Contudo, para o ator é muito útil pensar neste como na forma de um quê,
de uma substância impalpável que pode ser manobrada, modelada, cultivada,
projetada no espaço, absorvida e levada a dançar no interior do corpo. Não
são fantasias. São imaginações eficazes.

O nosso pensamento pressiona os nossos gestos, como o


polegar do escultor quando imprime as formas - e o nosso
corpo, esculpido interiormente, se dilata. O nosso pensamento
pinça o reverso do nosso invólucro com o polegar e o indicador
- e o nosso corpo, esculpido interiormente, se contraiu. (Etienne
DECROUX, Paroles dur le mime, Paris, Gallimard, 1963, P:
30)

Metáforas. Indicações práticas de trabalho.

Ao final das oficinas de trabalho as pessoas trocam suas impressões. Às


vezes, depois de ter-me concentrado sobre o modo de modelar a energia,
escuto alguém que se aventura a dizer: "Na realidade, trabalhamos com a
alma". Podemos usar as palavras que quisermos. Mas as palavras podem ser
perigosas. Às vezes asfixiamos o que queremos gerar.

"Nunca mais esta palavra"

Algumas palavras são traiçoeiras porque enchem a boca. "Energia", em vez


disso, pode enganar inflando e enrijecendo a ação.

Um amigo, diretor na Alemanha, me escreve lembrando-me ironicamente


da minha solene promessa: "Nunca mais usarei a palavra energia com respeito
ao ator". Nos dez anos seguintes nunca deixei de dizê-la ou escrevê-la. Não se
pode evitar. Mas me lembro daquela promessa e do quanto foi justificada. Foi
um movimento de impa-ciência e uma reflexão sobre a malignidade de certos
termos do ofício.
Estávamos em Bonn, durante o cotidiano encontro com os diretores, de
manhã cedo, no outono de 1980, durante a primeira sessão da ISTA.
Havíamos visto um espetáculo na noite anterior. Os atores inundavam o
espaço com sua vitalidade, desenvolviam grandes movimentos, muita
velocidade e força muscular, exibiam deformações da voz, oposições .
mecânicas entre as diversas fases de cada ação, tensões exageradas,
remarcando irracionalmente os impulsos físicos, os sats. Um ritmo super-
excitado, convulsivo, pesado. Pareciam elefantes enfurecidos possuídos pelo
ímpeto de sua própria carga. De vez em quando, com a evidente intenção de
variar o fluxo do seu esbanja-mento energético, eles paravam, e então caíam
no extremo oposto: pausas atônitas. Depois voltavam à carga.

Pensar na sua presença cênica como energia pode sugerir ao ator a idéia de
que sua eficácia depende do quanto possa forçar o espaço do teatro e os
sentidos de quem o observa. Assim, em vez de dançar com a atenção do
espectador, ele a bombardeia e a distancia. Decidiu expandir sua potência,
trabalhar com toda a sua energia, mobilizá-la. E justamente por isso não está
decidido.

Para vencer a defesa do espectador (que vem ao teatro para que estas sejam
vencidas sendo estimulado por isso). São necessárias sutilezas, fintas e contra
fintas. Uma ação de força é eficaz somente em casos raros e bem
premeditados.

Quem não conhece a palavra kungjU? Um estilo de luta, uma arte marcial.
Mas olhem, o nome próprio Kung-íu-rsu, Confúcio, vem daí.

Em chinês, kungjU quer dizer agarrar alguma coisa com a mão, apreender,
pegar. Saber agüentar o adversário. Perceber com segurança o tênue fio no
labirinto, o conhecimento.

Esta é uma palavra muito comum e paradoxal no ofício dos atores


chineses. Ter kungjU pode significar estar em forma, estar treinado, ter
talento, ter uma qualidade pessoal que vai além da técnica.

Sobretudo kungjU quer dizer um exercício, um desenho de movimentos,


um esquema de comportamento, uma partitura de ações, mas também algo
imperceptível que é trabalhado e guiado através do exercício, através de um
desenho de movimentos, através de esquemas de comportamento ou
partituras de ações bem fixadas .

O ator ao representar percebe direções, sente as mudanças.


Sente-se continuamente orientado. Neste sentido, o personagem
é uma sucessão de impulsos, de movimentos do sentir. O ator é
posto à prova quando deve parar estes movimentos como
conseqüência da fala do outro .atol. (Louis JOUVET, Le
comêdien desincarn é, Paris, Flammarion, 1954, p. 182.)

Para um ator, ter energia significa saber como modelá-la. Para ter uma idéia
e vivê-la. como experiência, deve modificar artificialmente os percursos,
inventando represas, diques e canais. Estes constituem resistências contra os
quais -pressiona a intenção - consciente ou intuitiva - e que permitem a sua
expressão. O corpo todo pensa/age com uma outra qualidade de energia. Um
corpo-mente em liberdade afrontando as necessidades e os obstáculos
predispostos, submetendo-se a uma disciplina que se transforma em
descobrimento.

A inteligência de um ator é a sua vitalidade, o seu


dinamismo, a sua ação, a sua tendência, a sua energia.
Um sentimento que vive e provoca nele, a um certo
-ponto, por um certo costume, um olhar profundo, uma
condensação da sua sensibilidade, uma consciência de si
mesmo. É o pensamento-ação. (Ibidem)

Jouvet afirma que existe uma filosofia do ator, um modo de perceber e agir,
resultados de uma postura, uma prática, um método, uma disciplina. "O ator é
um empírico que desemboca no pensamento (... ).

O ator pensa por uma tensão e energia.

BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. 2.ed.


Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2009. 

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