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Com som! Sem som...

Com som! Sem som...


Liberdades políticas,
liberdades poéticas

Heloísa de A. Duarte Valente


Simone Luci Pereira [org.]

letraevoz
© Copyright 2016 Os autores
© Copyright 2016 Letra e Voz

Preparação de originais
Maria Zilda Gouveia

Diagramação
Estúdio Xlack

Capa
Luiz Fukushiro

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Com som! Sem som… Liberdades políticas, liberdades poéticas / Heloísa de A. Duarte
Valente e Simone Luci Pereira, (organizadoras) -- São Paulo : Letra e Voz / Fapesp, 2016.

ISBN 978-85-93467-00-4

Vários autores.
Bibliografia.

1. Música - Aspectos políticos. 2. Música de protesto. 3. Mídia. 4. Brasil - Política e


governo - 1964-1985. 5. Música - América Latina. I. Valente, Heloísa de A. Duarte. II.
Pereira, Simone Luci.
CDD-781.59

Índices para catálogo sistemático:


1. Música - Aspectos políticos : Música de protesto : Mídia : Brasil - Política e governo -
1964-1985 : Música - América Latina : Coletâneas 781.59
Sumário
Prefácio 7

Apresentação 11

Sobre o Centro de Estudos em Música e Mídia 17

Educação dos sentidos. O sentido de liberdade…

Arte, criatividade e vida do espírito:


O que a liberdade de expressão tem a ver com isso? 23
Daphne Patai

Tempo de tocar, tempo de cantar,


tempo de calar, tempo de inventar:
Notas a respeito do percurso da Educação Musical no Brasil 51
Marisa Trench de Oliveira Fonterrada

Liberdades políticas e poéticas: A música brasileira

A música como linguagem e os conceitos


de música universal e música nacional 67
Lina M. Ribeiro de Noronha

O papel do compositor em debate na imprensa escrita:


Brasil, décadas de 1920 a 1960 79
André Egg

Sambas de Adoniran em HQ:


Narrativas transversais na cultura midiatizada 97
Laan Mendes de Barros
Liberdades políticas e poéticas ibero-americanas

Grândola, Vila Morena, o povo unido jamais será vencido!


A canção de protesto como memória midiática da cultura 119
Heloísa de A. Duarte Valente

Canções mensageiras: A cumplicidade entre Brasil e Portugal


na construção das democracias através da palavra cantada 139
Susana Sardo e José Mário Branco

Música popular, migración, exilio, diáspora:


Uruguay en los siglos XX y XXI 161
Marita Fornaro Bordolli

Un comunista atípico: Osvaldo Pugliese, un caso


paradigmático de censura musical en la Argentina del siglo XX 199
Mercedes Liska

Tecnologías del sonido más allá de la urbe 219


Miguel A. García

Com som! Sem som… Memórias musicais, em primeira pessoa

La música en una cárcel de la dictadura chilena 237


Alfonso Padilla

Observar o inobservável:
Música e tortura no oratório digital A Geladeira 251
Paulo C. Chagas

Sobre os autores 283


Canções mensageiras
A cumplicidade
entre Brasil
e Portugal na
construção das
democracias
através da
palavra cantada

Susana Sardo
José Mário Branco

Este texto constitui um trabalho de reflexão – em progresso –


sobre os processos de transformação política e social suscitados
pelas canções quando elas atuam como dispositivos1 de militância
ideológica. O processo de análise e de escrita usa como princípio
a partilha de duas experiências diferentes: a de Susana Sardo,
etnomusicóloga, cuja ação vem sendo desenvolvida a partir
do seu papel como acadêmica e pesquisadora sobre diferentes

1 Sabemos o quanto o conceito de dispositivo é devedor à obra de Michel Foucault,


cujas reflexões constituíram exercícios matriciais retomados posteriormente por
autores como Gilles Deleuze, Hubert Dreyfus ou Paul Rabinow. Como refere Oscar
Moro Abadía (2003), a pulverização do termo por diferentes domínios do saber é
significativa dando lugar, frequentemente, a um uso conceptual despido de qualquer
preocupação teórica que corre o risco de empobrecer o próprio conceito ou mesmo
de o banalizar. No caso deste trabalho o conceito de dispositivo situa-se num plano
contra-hegemônico – ao contrário do que sugere Foucault – enquanto mecanismo
de subversão, de conscientização e de militância ideológica que se opõe a saberes
e poderes instalados a partir de linhas de fratura e de fissura que tornam visíveis os
saberes indizíveis (Deleuze, 1990).
140 Com som! Sem som...

práticas musicais associadas ao espaço da lusofonia, e a de José


Mário Branco, compositor e cantautor, cuja ação política pode ser
encontrada de forma expressa na canção A Cantiga é uma Arma,
abaixo descrita.
Usamos como universo de observação algumas canções que
circularam entre Portugal e o Brasil durante as ditaduras e o
período pós-ditaduras de ambos os países e optamos por uma
análise que inclui uma constelação de processos discursivos que
constroem e definem a vida de uma canção ao mesmo tempo que
a tornam geradora de novas formas de entendimento do mundo.
Interessa-nos a relação das canções com os seus compositores
e intérpretes, as razões e os processos individuais e coletivos
associados à sua criação e divulgação, e o modo como a recepção
da palavra cantada pode superar a eficácia da palavra escrita
oferecendo à canção um lugar importante enquanto ator no
processo de transformação social.
Centraremos a nossa reflexão em canções de Chico Buarque,
de José Afonso e de José Mário Branco, e no modo como elas
constituíram vozes de denúncia da situação política de ambos
os países gerando sentimentos coletivos de solidariedade e
contribuindo para uma verdadeira conscientização, enquanto
“desenvolvimento crítico da tomada de consciência” (Freire, 1979,
p. 15).2 Nas palavras de José Mário Branco, cuja voz foi tantas
vezes silenciada, a revolução em Portugal foi decisiva para o fim,
pelo menos, de duas ditaduras: a brasileira e a espanhola. E as
canções foram armas efetivas nesse processo. Vejamos então de
que forma as canções e os seus cantores inscrevem esse potencial
transformador e cúmplice e de que modo a tecnologia de mediação
e de divulgação permitiu amplificar esse papel.

2 Adotamos a proposta de Paulo Freire, inspirada no resultado dos projetos educativos


do Instituto Superior de Estudos Brasileiros desenvolvidos durante a década de 1960,
segundo a qual a conscientização “implica, que ultrapassemos a esfera espontânea de
apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera critica na qual a realidade se
dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica”
(Freire, 1979, p. 15).
Canções mensageiras 141

A canção, o cantor e a arte da presença

A canção ou cantiga – como também designamos em língua


portuguesa o processo de cantar as palavras – tem constituído
um universo de estudo e de análise profundamente pulverizado.
A atenção sobre a canção tem estado a cargo de linguistas,
fonologistas, psicólogos, musicólogos, etnomusicólogos,
folcloristas, semiólogos, estetas, músicos, antropólogos e
sociólogos. As abordagens a que tem estado sujeita refletem
inevitavelmente interesses e orientações teóricas particulares
e disciplinares: ora priorizando a palavra sobre a música ou o
seu contrário, ora priorizando o fenômeno performativo, ora
incidindo sobre a análise da voz no sentido da redução do ato de
cantar a uma espécie de classificação universal do som corpóreo,
ora, ainda, buscando no ato de cantar formas de expressão e de
construção de uma espécie de cosmogonia individual e coletiva
que confere sentido à ação humana. Para os etnomusicólogos,
a palavra ‘canção’ parece mesmo ser incômoda talvez pela
associação que acaba por ter ao formalismo clássico que a
remete para um universo erudito quando, curiosamente, ela é,
para os musicólogos, frequentemente tratada como um produto
menor da produção erudita. Talvez por essa razão Fernanda
Teixeira de Medeiros, Elizabeth Travassos e Cláudia Neiva de
Matos, optaram, por chamar-lhe “palavra cantada”, em duas
importantes edições de encontros acadêmicos sobre a canção
(2001; 2008). É na introdução do livro que registra o segundo
desses encontros que Ruth Finnegan, respondendo à pergunta “O
que vem primeiro, o texto, a música ou a performance?”, averba
o acontecimento performativo enquanto fator determinante
para o entendimento das “artes de enunciação vocal”, definindo
a canção como algo que tem lugar “(…) em um espaço e tempo
específicos através da ativação da música, do texto e do canto,
e talvez também do envolvimento somático, da dança, da cor,
de objetos materiais, reunidos por agentes cocriadores em um
evento imediato” (2008, p. 23-4).
Por outro lado, a experiência de compor e cantar canções
– fortemente associada a um dos autores deste texto – permite
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inscrevê-la no quadro da criação concebendo-a como algo que


está para lá da palavra e da música onde o cantor corporiza o
que é necessário dizer. Neste contexto a canção não é a palavra
mais a música ou o seu contrário. É algo diferente: quando a
canção acontece tudo é significado. Este princípio reflete uma
experiência oficinal: a de um cantautor português cuja biografia,
enquanto compositor de canções ou cantigas, se inicia no exílio
no final da década de 1960. José Mário Branco nasceu em 1942,
na cidade do Porto e em 1963 exilou-se em Paris, tal como outros
“cantores de Abril”, ficando impedido de entrar em Portugal onde o
regime ditatorial de raiz fascista silenciava qualquer tentativa de
posicionamento crítico. As canções eram então o modo possível de
se fazer ouvir em Portugal animadas pelo sonho político de contribuir
para a construção de um país livre. Na verdade – e assumindo agora
a escrita no singular – para fazer uma canção é preciso sonho, paixão,
impulso irreprimível! Foi aquilo que me levou a mim, que não fazia
cantigas, a pegar numa velha viola que foi esquecida na minha casa
em Paris e a pensar ‘deixa ver como é que isto se toca? Como é que
eu canto as canções do Zeca?’… e de repente decidi: eu também quero
dizer umas coisas! Preciso de dizer umas coisas! Não consigo deixar de
dizer umas coisas! Que vêm de dentro! É muito orgânico!
Este testemunho deixa claro que não podemos elidir da
canção a presença do indivíduo que lhe dá voz e, em particular, do
cantautor. Nos casos analisados neste texto trata-se de cantores
que compõem as próprias canções que cantam, assim reunindo
no momento da performance uma intencionalidade que está
expressa na ação prévia de concepção e de articulação da palavra
com a música. A biografia de uma canção confunde-se, portanto,
com a do seu cantor/criador e inscreve uma temporalidade que
é anterior à sua performance e se pode prolongar para além dela
quando a canção se torna resiliente. Para que isso aconteça é
necessário que o indivíduo que dá voz à canção esteja presente
em todos os momentos em que a canção acontece. Porém, esta
“arte da presença” pode ser fragilizada pela mediação tecnológica
quando esta se torna na única forma possível de aceder à música. A
experiência asfixiante do exílio, por exemplo, ao mesmo tempo que
pode ser superada pela possibilidade da voz do cantor ultrapassar
as fronteiras vedadas ao corpo, torna inevitável a separação entre
Canções mensageiras 143

ele e a canção, que fica agora entregue ao percurso errático das


tecnologias de divulgação da música.
As canções gravadas são como garrafas de náufragos atiradas
ao mar… Ou como filhos que crescem e saem de casa para irem
viver a sua vida. Quem as vai ouvir? não sei. Quem vai sentir
o que eu senti? Não faço a mínima ideia. As canções passam a
existir fora de mim. Deixa de haver coincidência entre sujeito
e objeto. Tal como no palco, elas também são apropriadas e
recriadas do lado de lá, só que, no caso da canção gravada, eu
não sei por quem. (…) Foi assim no distanciamento insuperável
do exílio. Presumi que as pessoas que ouviriam a Ronda do
Soldadinho ou a Queixa das Almas Jovens Censuradas ou os
Perfilados de Medo, lá nesse Portugal longínquo, cinzento e
sofredor de uma ditadura jesuítica, provavelmente sentiriam
o que eu senti, que era o que eu queria que elas sentissem.
(Branco, 2009)
Ora, a impossibilidade de ter o cantor presente associada ao
inevitável recurso à gravação e registro em disco, deve conduzir
à “criação partilhada em diferido” que obriga a conceber a canção
como uma encenação sonora teatral, sonoplástica, porque ela
deve criar as condições para uma presença diferida do cantor. Ela
deve tornar o cantor presente e isso é decisivo para que a própria
canção se torne sempre presente e possa cumprir a sua missão, ou
seja, transforme o ato de cantar em valor (mettre en valeur).
O etnomusicólogo Thomas Turino, inspirado por Charles
Keil, designa este processo por “high-fidelity performance”, num
conjunto axiomático que inscreve a performance participativa –
quando não se reconhece a distinção entre o performer e o público
– e a performance apresentativa, quando se estabelece uma clara
distinção entre o performer e os receptores. Turino concebe a
performance de alta fidelidade como um tipo de construção do
som que procura reproduzir a performance ao vivo envolvendo,
por isso, um conjunto de recursos humanos, técnicos e práticos
que concorrem para esse fim a partir de um trabalho laboratorial
de manipulação do som em estúdio.3
3 “High fidelity refers to the making of recordings that are intended to index or be iconic
of life performance. While high fidelity recordings are connected to live performance in
a variety of ways special recording techniques and practices are necessary to make
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Porém, nas situações em que a conjuntura política não permite


a presença efetiva do cantor junto do público ao qual se dirige –
como é o caso dos cantores exilados – o processo de relação entre
a performance ao vivo e a performance de alta fidelidade inverte a
equação proposta por Turino, ou seja, torna-se necessário colocar
na performance ao vivo aquilo que o cantor colocou inicialmente
no disco. Na verdade o disco é, nestes casos, o recurso possível
para superar a impossibilidade da presença do cantor que é, no
entanto, desejada e, por isso, idealizada e projetada para um
futuro possível.
A adaptação ao disco nem sempre foi pacífica e a transição
dos anos 1960 para os anos 1970, do “baladeiro andarilho”
para a canção gravada – o disco –, tem como pano de fundo
uma discussão muito viva que se esgrimia entre os diferentes
cantautores sobre o que é uma canção e qual é o papel da música
numa canção. O convite para gravar um disco produzia inevitáveis
reflexões introspetivas: o que é que eu faço agora? Eu, em cima
de um palco com a minha viola, a olhar para as pessoas e a cantar
para elas posso fazer uma correta gestão da minha comunicação. No
disco não! Estou fechado num estúdio, a gravar uma coisa, não sei
quem é que vai ouvir, como é que vai ouvir, não sei quem são essas
pessoas, não estou a vê-las, não sei em que estado é que vão estar,
não sei se têm preconceitos em relação a mim ou se pelo contrário – o
que é igualmente negativo – têm a prioris favoráveis… não sei, não
controlo essa parte. É aí que intervêm as encenações sonoras como
recurso para a arte da presença. Isto significa que no “vestir” de
uma canção para um registro fonográfico devemos incorporar um
conceito que é teatral – porque implica criar as condições de uma
presença diferida –, e é radiofônico na medida em que é construído
a partir de um processo sonoplástico. A experiência na rádio e no
teatro é central nesta forma de ver a música porque assim como
no teatro o ator deve sintetizar tudo, também no disco o músico
o deve fazer. Fazer teatro, embora seja diferente de fazer música,
this connection evident in the sound recording, and additional artistic roles – including
recordist, producers, and engineers – also help delineate high fidelity as a separate field of
practice. Studio audio art involves the creation and manipulation of sounds in a studio or
on a computer to create a recorded art object (a ‘sound sculpture’) that is not intended to
represent real-time performance” (2008, p. 27).
Canções mensageiras 145

conduz – pela própria oficina das coisas – ao entendimento do que


é essencial num disco: o cantor. E aqui nos referimos não apenas à
voz do cantor mas também ao seu corpo, à sua identidade pessoal
e patrimonial. Tudo o que se coloca num disco deve contribuir
para esse entendimento. Por isso é tão importante o conceito de
presença em diferido: o cantor tem que estar presente mesmo para
quem o ouve no futuro. Tornar isso possível obriga à obediência a
três princípios básicos: (1) ter uma consciência ajustada do que é
uma canção; (2) ter a noção de que a música é uma linguagem que
tem uma gramática, uma morfologia, uma sintaxe, uma prosódia e
uma semântica, e que, portanto, não é só subjetividade porque diz
efetivamente coisas; (3) adequar a construção da canção ao modo
de produção. Ou seja, a gravação de um disco deve ter um objetivo
de busca da verdade no contato diferido com o auditor e não se
pode colocar no disco algo que ele depois não consiga ouvir ao
vivo. É importante representar, com o mesmo nível de verdade,
a estética, a ética e a técnica. E quando a técnica se sobrepõe a
qualquer uma das anteriores deixamos de ter verdade.
E o que é a verdade numa canção? É fundamentalmente
a mensagem ética que, no caso das canções de protesto ou de
réplica4, reside na intenção específica do cantor de “construir
valor político” transformando a canção numa arma de militância
ideológica e, por consequência, de conscientização.

A Cantiga é uma Arma

A Cantiga é uma Arma é o título de uma canção que foi composta


por José Mário Branco no Verão de 1973, durante o exílio na
França. Foi editada pela primeira vez em disco pelo Grupo de Ação
Cultural – Vozes da Luta (GAC), um grupo formado imediatamente
após a revolução de 25 de abril de 1974, que pôs fim à ditadura
fascista em Portugal. O grupo foi oficializado no dia um de maio,
4 Sobre a dificuldade de definição deste tipo de canções associadas à Revolução de
Abril de 1974 em Portugal, ver Sardo (2014) e as demais referências bibliográficas
deste capítulo.
146 Com som! Sem som...

por iniciativa de Branco, então sob a designação de Coletivo de


Ação Cultural (CAC). Reunia um conjunto de intelectuais e artistas
de vários quadrantes políticos em torno de um mesmo ideário:
a publicação e divulgação de mensagens que designavam por
“político-culturais”, utilizando a música e as canções como
instrumentos de militância e de propaganda ideológica.
O GAC apresentou-se publicamente pela primeira vez em 5
de maio de 1974, no I Encontro Livre da Canção Popular que teve
lugar no Pavilhão dos Desportos no Porto. Editou o seu primeiro
disco, justamente com o título A cantiga é uma arma, em 1975,
que incluía um conjunto de canções maioritariamente compostas
por José Mário Branco e que eram cantadas ao vivo pelo grupo
em contextos extremamente diversos de um país que aprendia
a viver em democracia. Referimo-nos a contextos como fábricas,
quartéis, piquetes de luta, comissões de moradores, manifestações,
comícios, campanhas eleitorais, empresas em autogestão, unidades
coletivas de produção, escolas, entre outros (Guerreiro & Roxo,
2010). E o GAC, como muitos outros agrupamentos e músicos
individualmente, atuava gratuitamente nesses contextos estando
os seus membros imbuídos pelo objetivo de usar a música e a canção
como instrumentos de transformação social, de conscientização
e de construção de um país democrático. Como referem vários
cantores de abril em múltiplos depoimentos, faziam-se canções
nos bastidores para cantar no palco. Outras eram feitas após a
saída dos jornais da noite para serem cantadas no dia seguinte
na rádio, porque as canções eram verdadeiras ferramentas de
combate político, como podemos ver neste exemplo restaurado
pelas memórias de um dos autores deste texto, a propósito da
composição de uma canção que viria a ser conhecida como A Luta
dos Bairros Camarários5:

5 Os Bairros Camarários foram iniciativas da administração local em Portugal (Câmaras


Municipais) instaladas durante os anos 1950 e 60, que visavam ao realojamento de
populações de baixos recursos, transferindo-as, habitualmente, de zonas centrais das
cidades para zonas periféricas. Estes bairros eram controlados por fiscais das Câmaras
Municipais e, especialmente na cidade do Porto, conduziram a situações de extrema
violência social uma vez que o livre arbítrio dos fiscais podia decidir a expulsão/despejo
de moradores considerados, segundo o chamado Regulamento Abel Monteiro, “indignos
do direito concedido” (Rodrigues, 1999).
Canções mensageiras 147

Havia uns amigos do Porto – Ricardo Sousa Lima, Alexandre


Alves Costa, entre outros – que estavam ligados a um jornal
chamado ‘Primeiro de Maio’ e que me dizem assim: “há ali uma
malta que está a fazer um trabalho no Bairro São João de
Deus e tu podias ir lá cantar umas coisas”. Eu fui ao bairro e
perguntei “mas o que se passa aqui?”. ‘É pá, o que se passa aqui
é que há aí uma malta que está revoltada, querem expulsar
um fiscal da câmara que fez trinta por uma linha, reprimiu
as pessoas, reprimiu famílias, por causa de um regulamento’…
aquilo era ao ar livre, cheio de gente, o povo todo do bairro
ali. E eu perguntei: ‘Há aí alguma salinha? E quem é que está
a trabalhar aqui?’. Quem estava a trabalhar no bairro era uma
socióloga ou assistente social que estava a fazer trabalho
social no bairro, ou seja, ‘político’! Então fui com ela e pedi-
lhe que me contasse a história do bairro. Ela contou como
o bairro se formou, quais os problemas que tinha naquele
momento, como as pessoas estavam revoltadas, disse-me
como se chamava o fiscal da câmara municipal, relatou o
modo como ele enviava camionetas para expulsar as famílias
e retirar os recheios das casas para “os despejos”, e contou-
me toda a história. Eu pedi um quarto de hora. Fiz uma letra,
peguei na viola, ensaiei sozinho e pedi se podia ir começar
a cantar. Dirigi-me às pessoas e disse: ‘Malta, eu tenho aqui
uma canção que fiz e que vocês se calhar vão gostar!’. Cantei a
canção pela primeira vez e aquilo ficou a ser o hino do bairro
São João de Deus! Ao segundo refrão já estava tudo a cantar
comigo! Este hino aparece depois publicado pelo GAC com
o título ‘A Luta dos Bairros Camarários’. (José Mário Branco,
transcrição de registro gravado em 13 set. 2014)

A Luta dos Bairros camarários

Os fascistas cá do Porto
Fazem Bairros Camarários
Escondem nossa miséria
Nas costas dos seus palácios

Opressão aos moradores


Nas costas do alvará
A opressão tem mil caras, tudo rouba e nada dá.
148 Com som! Sem som...

Figura 1 – Capa do disco A Cantiga é uma Arma,


VNL-LP / GAC ©1975.

A opressão tem mil caras


Tudo rouba e nada dá
Em Portugal libertado
Tudo isso acabará.

Moradores, povo unido


Todo junto lutará.
Atiremos p’rá lixeira
A camionete e o fiscal
Ajudaremos assim a libertar Portugal.

E gritemos todos juntos


Pr’ajudar o movimento
“Abaixo o Abel Monteiro mais o seu regulamento”

Portugal vivia em liberdade e, por isso, a euforia das canções


era permanente, sendo frequente a transformação de refrãos de
canções em slogans panfletários. As canções eram verdadeiras
armas que permitiam sedimentar e divulgar mensagens políticas
de uma forma bastante mais eficaz do que os textos escritos.6 Era,
6 Sérgio Godinho designa este processo por “grafitti sonoro” uma vez que frequentemente
alguns refrãos de canções eram apropriados pelos movimentos de reivindicação
política como palavras de ordem replicadas em situações de manifestação pública. E
Canções mensageiras 149

portanto, possível cantar em Portugal as canções censuradas


e proibidas nos países em ditadura. Por essa razão, e porque
tínhamos em comum uma língua, Portugal passou a cantar o
que no Brasil era censurado ora através de canções compostas
pelos cantautores portugueses, ora divulgando outras, compostas
por cantautores brasileiros, e que se dedicavam igualmente a
denunciar a ditadura militar.
Vejamos então o papel que algumas canções adquiriram
no eixo Portugal-Brasil, quando criadas e difundidas a partir
da mediação tecnológica. Algumas narram ou descrevem a
situação política no Brasil, outras descrevem a situação política
em Portugal. Todas são destinadas a interlocutores de ambos os
países enquanto forma de denúncia ou de celebração, e difundidas
através da intermediação de diferentes tecnologias de som. Em
todos os casos, pelas mesmas razões mas por processos diferentes,
as canções foram divulgadas e difundidas em situações políticas
que não permitiam a presença efetiva do cantor frente ao público
ao qual se dirigiam. Porém, todas estabelecem uma estreita relação
de filiação com o seu autor/criador/intérprete que, embora ofereça
a sua voz individual a uma espécie de representação coletiva,
não deixa, no entanto, de permanecer presente. Centremo-nos
no exemplo de três canções: Alípio de Freitas, do português José
Afonso, Meu Caro Amigo do brasileiro Chico Buarque, e Sangue em
Flor, de José Mário Branco.

As canções mensageiras

A canção Alípio de Freitas foi composta por José Afonso em 1976,


a partir de uma carta a que teve acesso, escrita pelo próprio
Alípio de Freitas quando este se encontrava detido no Brasil.
Alípio de Freitas nasceu em Vinhais, concelho de Bragança,
na região nortenha de Trás-os-Montes. Em 1952 foi ordenado
padre, e em 1957 decidiu imigrar para o Brasil tendo a seu cargo
desta forma a disseminação da palavra, uma vez cantada, tornava-se num processo
profundamente eficaz em termos operacionais e de conscientização.
150 Com som! Sem som...

uma paróquia da região suburbana de São Luís do Maranhão.


Aí iniciou uma função quase missionária, fundou uma escola
e um posto médico, e decidiu celebrar missa em português,
desobedecendo à ordem eclesiástica e antecipando de alguma
forma as decisões do Concílio Vaticano II, que só em 1962 aceitou
o ritual em línguas vernáculas. Em 1962, participou em Moscou
do Congresso Mundial da Paz, onde conheceu Pablo Neruda, La
Pasionária e Nikita Khrushchov. Na sequência desta experiência,
decidiu abandonar a hierarquia da igreja, naturalizou-se brasileiro
e iniciou um processo de ativismo e de militância política a favor
do movimento do campesinato pela ocupação das terras enquanto
membro fundador das Ligas Camponesas. Após o golpe militar de
1964, exilou-se no México e mais tarde recebeu treino político e
militar em Cuba, acompanhando Che Guevara na guerrilha. Voltou
clandestinamente ao Brasil em 1966, e em 1970 foi detido e
encarcerado da Fortaleza de Santa Cruz, na Baía de Guanabara.
Era então dirigente do Partido Revolucionário dos Trabalhadores.
Alípio de Freitas esteve detido durante nove anos e foi sujeito a
vários tipos de tortura – como 30 dias de privação de sono – e
reclusão solitária, tendo saído em 1979 como apátrida, refugiando-
se em Moçambique.
Em 1974, após ter tido conhecimento da Revolução de Abril
em Portugal, Alípio conseguiu fazer chegar a Lisboa uma carta de
denúncia da situação política do Brasil, cujo objetivo seria a sua
publicação em jornais de grande tiragem. Porém, o portador da
carta – Jacinto Rego de Almeida, à data Conselheiro Econômico da
Embaixada de Portugal no Brasil – decidiu que o conteúdo da carta
teria mais efeito se fosse cantado por José Afonso ao invés de ser
publicada num jornal. O resultado dessa decisão ficou expresso na
canção Alípio de Freitas, editada em 1976 no disco Com as Minhas
Tamanquinhas, que José Afonso dedicou a denunciar uma espécie
de retrocesso em relação à utopia socialista que de alguma forma
decidiu a Revolução de Abril em Portugal. A maior parte do texto
da canção usa as próprias palavras de Alípio na carta que escreveu
para um destinatário coletivo.
Canções mensageiras 151

Figura 2 – Capa do disco Com as Minhas


Tamanquinhas. 1976 © Orfeo – STAT 036.

Alípio de Freitas

Baía de Guanabara
Santa Cruz na fortaleza
Está preso Alípio de Freitas
Homem de grande firmeza

Em Maio de mil setenta


Numa casa clandestina
Com campanheira e a filha
Caiu nas garras da CIA

Diz Alípio à nossa gente:


“Quero que saibam aí
Que no Brasil já morreram
Na tortura mais de mil

Lá no sertão nordestino
Terra de tanta pobreza
Com Francisco Julião
Forma as ligas camponesas

Ao lado dos explorados


No combate à opressão
Não me importa que me matem
152 Com som! Sem som...

Outros amigos virão

Na prisão de Tiradentes
Depois da greve da fome
Em mais de cinco masmorras
Não há tortura que o dome

Fascistas da mesma igualha


(Ao tempo Carlos Lacerda)
Sabei que o povo não falha
Seja aqui ou outra terra

Em Santa Cruz há um monstro


(Só não vê quem não tem vista
Deu sete voltas à terra
Chamaram-lhe imperialista

Alípio, que então não conhecia José Afonso, descreve desta


forma o modo como ouviu a canção, ainda na prisão:
Era meados de 1977. Talvez maio, junho ou setembro. Não me
recordo. “Seu” Zezinho, o chefe da carceragem, pediu-me para
passar lá, pois tinha uma encomenda para me entregar. Fora,
disse-me ele, um Senhor da Embaixada de Portugal (Jacinto
Rego de Almeida) que me deixara.
Voltei para a minha cela e lá abri o pacote. Continha jornais
portugueses, entre eles o Expresso e uma cassete com
músicas de um cantor, que eu desconhecia, chamado José
Afonso. Coloquei a cassete num gravador e fui ouvindo, não
sem estranhar os temas e, sobretudo o seu engajamento
político. Aquilo era diferente de tudo o que até então tinha
ouvido. Só encontrava paralelo na música latino-americana de
intervenção.
Quando o gravador começou a debitar a última música, achei
que não estava a ouvir bem. Rebobinei a fita, acomodei-me na
cadeira onde estava sentado, carreguei no botão e comecei a
ouvir de novo:
“Baía de Guanabara
Santa Cruz na Fortaleza
Está preso Alípio de Freitas…”
Com o coração apertado, a emoção a subir-me pela garganta,
as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, cobri o rosto com
Canções mensageiras 153

as mãos e quando o gravador se calou, encostei a cabeça


na mesa de cimento à minha frente e chorei, chorei, até as
lágrimas secarem. Afinal nunca estivéramos sós na dura e
aparentemente interminável guerra que travávamos contra
a ditadura militar. Muitos, muitos e em muitos lugares do
mundo estavam a lutar conosco.
À noite, depois de jantar, na sala de convívio, todos os que ali,
na Frei Caneca (Rio de Janeiro), estávamos presos, escutámos
o Zeca. Quando, porém, a “minha cantiga” começou, todos
os que estivemos na “batalha” da Fortaleza de Santa Cruz,
fomos possuídos pela inabalável certeza de que foi ali que a
ditadura militar começou a ser derrotada. O Zeca foi a voz que
denunciou a opressão e o arauto que anunciou ao mundo o
triunfo de uma liberdade até então oprimida.7
O impacte desta canção trouxe para a discussão pública em
Portugal o tema da ditadura brasileira enfatizado ainda por outras
canções que nos chegavam agora do Brasil pela voz, sobretudo,
de Chico Buarque. São disso exemplo as canções Fado Tropical e
Tanto Mar. A primeira – com música de Chico Buarque e letra do
poeta moçambicano Ruy Guerra – foi composta em 1972 e editada
inicialmente no disco Calabar, que foi integralmente proibido
pelo Regime Militar. Um ano depois, “limpo” pelas obrigações da
censura e alterado o título e a capa, a Philips voltou a editar o
disco com o título Chico Canta. O texto desta canção e a música
– com arranjos de Edu Lobo – remete para o regime ditatorial
português considerado escabroso e alerta para os riscos do Brasil
se transformar num “imenso Portugal”. A perenidade desta canção
– que lhe valeu várias versões gravadas em momentos diferentes
da história dos dois países – está consagrada na sua inclusão no
Filme Fados de Carlos Saura (2007).8
A segunda canção, Tanto Mar, foi composta em 1975 como
forma de saudação à revolução dos cravos. No Brasil a censura
7 Este excerto faz parte de um texto mais amplo publicado no blogue Carta Varia, que
Alípio de Freitas mantém ativo desde 2012. Pode ser consultado em: <http://cartavaria.
blogspot.com/2012/03/esta-estoria-que-vos-conto-santa-cruz.html>. Acesso em: 27
fev. 2017. A sua inclusão neste texto foi autorizada pelo autor, com quem Susana Sardo
teve o privilégio de conversar sobre esta mesma experiência em dezembro de 2013.
8 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HiN5AqGaSM8>. Acesso em:
154 Com som! Sem som...

vetou o texto desta canção que foi inicialmente gravada ao vivo


com Maria Bethânia e posteriormente gravada e divulgada apenas
em Portugal. O texto desta canção é alterado e regravado em 1978,
alertando agora para o fim do sonho socialista em Portugal que de
alguma forma se esvai com o fim do PREC (processo revolucionário
em curso), e o golpe de 25 de novembro de 1975. A resiliência desta
canção manifesta-se, entre outras coisas, pela sua inclusão no filme
Viagem a Portugal 2014, do realizador Sérgio Tréfaut, a propósito da
celebração do 40º aniversário da revolução de 25 de abril.9
Mas para o argumento deste texto, a canção Meu Caro Amigo, é
um exemplo singular, sobretudo porque ela inscreve o paradigma
das canções mensageiras enquanto encenações sonoras que
oferecem ao cantor o privilégio da “presença em diferido” e, com
ela, a voz coletiva que procura representar. Esta canção de alguma
forma se assemelha àquela que conferiu protagonismo à canção
de José Afonso sobre Alípio de Freitas. Foi composta em 1976 e
editada no disco Meus Caros Amigos pela Phonogram. Na altura,
o teatrólogo Augusto Boal, estava exilado em Portugal mas
mantinha contato com os amigos no Brasil a quem pedia notícias
e de quem recebia cartas enviadas frequentemente em mãos por
portadores confiáveis. Chico Buarque decidiu responder ao apelo
de Boal compondo esta canção com música de Francis Hime, cuja
primeira versão é uma gravação doméstica, feita em sua casa com
Hime ao piano, e que a mãe de Boal transportou para Portugal
em mãos. A audição desta cassete aconteceu durante um almoço
em casa de Boal, em Lisboa, na companhia de Paulo Freire, Darcy
Ribeiro, e outros brasileiros exilados e, também, de José Mário
Branco. A “carta-cassete”, como ficou conhecida em Portugal e
também no Brasil, é uma denúncia da situação que o Brasil vivia
e imediatamente é divulgada nas rádios portuguesas, apesar
da precariedade do suporte tecnológico. No entanto ela oferece
uma dimensão de presença muito singular como uma espécie de
27 fev. 2017. O filme Fados faz parte de um conjunto de trabalhos que o realizador
espanhol Carlos Saura dedicou a diferentes gêneros musicais icônicos, como são o caso
do Flamenco – expresso numa trilogia – e do Tango.
9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hdvheuHhF2U>. Acesso em: 27
fev. 2017. O filme Viagem a Portugal 2014 é a primeira experiência ficcional do cineasta-
documentarista português de origem brasileira Sérgio Tréfaut.
Canções mensageiras 155

pedido de ajuda, pelo modo informal como foi gravada, e mesmo


improvisada, na própria casa de Chico Buarque.
A divulgação desta canção através da rádio – sobretudo
– valeu a Chico Buarque um convite para participar na edição
de 1980 da Festa do Avante, uma festa com a duração de três
dias, anualmente organizada pelo Partido Comunista Português,
de grande projeção nacional e internacional. A Festa do Avante
é, desde 1976, um lugar de circulação de músicos politicamente
engajados mas cujo impacte abrange públicos diversificados. Foi,
e continua a ser, um espaço de conscientização política intensiva,
onde a música tem um lugar quase permanente. Durante os três
dias de Festa músicos e públicos relembram as celebrações de abril
de 1974 e hoje partilham repertórios sonoros que, como referido
noutro lugar por Susana Sardo (2014), são agora ressemantizados
e (con)sentidos. Chico Buarque foi, efetivamente, um dos músicos
mais esperados na Festa do Avante assim como nos espaços mais
nobres das salas de concerto em Portugal como os Coliseus de
Lisboa e Porto. E a sua música tinha assento permanente na rádio,
tal como hoje continua a ter.

Figura 3 – Diário de Lisboa, 11 jul. 1980 (recorte).


156 Com som! Sem som...

Figura 4 – Cartaz da Festa do Avante, 1980

Finalmente incluímos na nossa análise uma última canção,


composta pelo GAC em 1977 de autoria de José Mário Branco e
Luis Pedro Faro. Por intermédio de vários brasileiros que viviam
em Lisboa e que pertenciam ao PCdoB – Partido Comunista do
Brasil integrado em Portugal no PC(R) maoísta –, o GAC teve
conhecimento da morte de três brasileiros na Chacina da Lapa,
durante interrogatórios levados a cabo pela polícia política no
Brasil. José Mário compôs então Sangue em Flor, que foi editada
num single que inclui, no lado B, um poema de Sophia de Mello
Breyner, por ela declamado.
Canções mensageiras 157

Figuras 5 e 6 – Capa e Lado A do disco Sangue em Flor, 1977 © Edição


“Vozes da Luta” – Cooperativa de Ação Cultural, SCARL e C.A.L.P.A.P

Sangue em Flor

Foi na noite dos chacais


Foi no Brasil dos generais
Morrendo pela revolução
Foi Pedro, Ângelo e João
Companheiros, sereis imortais.

Brasil, irmão
Teu povo vencerá
Para vingar a tua dor
O sangue em flor renascerá.

Onze vidas na prisão


Com planos de justiça e pão
Nas mãos sangrentas da tortura
Não há sol na ditadura
Nem sangue que vença a razão.

Brasil, irmão
Teu povo vencerá.
Para vingar a tua dor
O sangue em flor renascerá.
158 Com som! Sem som...

Companheiros que lutais


Somos milhões a vós iguais
Lutando para vos libertar
Unidos todos a gritar
Que já sois o sol que anunciais
Em 20 de maio de 2013, Sangue em Flor foi interpretada pelo
Grupo Coral do Município de São Paulo numa homenagem a Pedro
Pomar, um dos militantes a quem a canção é dedicada, no dia em
que Pomar completaria 100 anos.10 A canção foi composta para ser
interpretada em coro e juntar tantas vozes quantas as necessárias
para acabar com a chacina e denunciar as atrocidades que se
passavam no Brasil.

Considerações finais

Os exemplos acima descritos permitem-nos estabelecer pelo


menos três planos de análise. O primeiro mostra-nos que as
canções – ou algumas canções – constituíram efetivos dispositivos
para o estabelecimento de relações solidárias entre Portugal e o
Brasil, na denúncia de ambas as ditaduras. Portugal, em especial, foi
não só o destinatário e depositário das canções de Chico Buarque
– quando o Brasil o silenciava – como os próprios cantautores
portugueses juntaram a sua voz à dos cantores brasileiros
criando as suas próprias canções de denúncia. O caso das canções
Alípio de Freitas e Sangue em Flor, definem exemplos evidentes
deste processo. O segundo mostra-nos que a canção, enquanto
encenação sonora sujeita à cosmética da gravação de som, pode
superar o imediatismo da performance ao vivo e transformar-se
numa “arte da presença”, convertendo em valor todos os meios de
produção que lhe permitem construir sentido e significado (mettre
en valeur). Um deles é, seguramente, o uso da tecnologia de som
como forma de divulgação da mensagem estética e ética cujo
10 Pedro Pomar (1913-1976) foi fundador do Partido Comunista Brasileiro, e
perseguido pela ditadura militar num processo que culminaria com o seu assassinato,
por fuzilamento sumário, no dia 16 de dezembro de 1976 durante a “Chacina da Lapa”.
Dentre as várias obras publicadas no Brasil sobre a sua ação política, destaca-se a sua
biografia, reeditada em 2013 por Wladimir Pomar.
Canções mensageiras 159

alcance, embora desconhecido a priori pelos cantores, estabelece


um modo de identificação biográfica tornando a performance em
diferido numa efetiva forma de presença. Finalmente, 44 anos após
o 25 de abril de 1974 em Portugal e 33 após o fim da ditadura
no Brasil, as canções aqui descritas permanecem no repertório
central de uma espécie de cancioneiro político português e
brasileiro sendo regularmente invocadas como memória de uma
história recente que está, ainda, suficientemente presente. Para
além de Tanto Mar e Fado Tropical – atrás identificadas, – Alípio de
Freitas foi reinterpretada em 2014 pelo grupo Coupple Coffee (na
voz de Luanda Cozetti), e Sangue em Flor foi interpretada em 2013
pelo grupo coral UNEGRO do Município de São Paulo como hino
de homenagem aos presos políticos mortos pela ditadura.
Na verdade, estas canções ou cantigas, parecem ter superado
a própria arte da presença e permanecem hoje como “grafittis
sonoros”, nas palavras de Sérgio Godinho, adquirindo uma eficácia
muito superior a qualquer discurso político, dito ou escrito. A
cantiga parece continuar a ser uma arma não só como dispositivo
de militância ideológica e de conscientização mas como forma
de documentar a memória, emancipando-se do seu cantor
embora, na verdade, nesse processo de superação da ausência o
torne efetivamente presente. Nesse sentido talvez seja possível
recuperar para a canção, e para o seu cantor, a proposta profética
de Gabriel Celaya sobre a poesia. Nos casos aqui descritos as
cantigas constituíram efetivas armas carregadas de futuro

Referências

Branco, J. M. A oficina da canção (II): criação partilhada em diferido, 2009.


Disponível em: <http://passapalavra.info/2009/08/10781>. Acesso em:
27 fev. 2017.
Deleuze, G. “Que és un dispositivo?”. In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona:
Gedisa, 1990. p. 155-61.
Freire, P. Conscientização: Teoria e prática da libertação. Uma introdução ao
pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
160 Com som! Sem som...

Finnegan, R. “O que vem primeiro: O texto, a música ou a performance?”. In:


Matos, C. N.; Travassos, E.; Medeiros, F. T. (org.) Palavra cantada: Ensaios
sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p. 15-43.
Guerreiro, C.; Roxo, P. “GAC (Grupo de Ação Cultural-Vozes da Luta)”. In:
Castelo-Branco, S. (org.) Enciclopédia da Música em Portugal no Século
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Rodrigues, M. Pelo Direito à Cidade: O movimento de moradores no Porto
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Sardo, S. “Fado, folclore e canção de protesto em Portugal: Repolitização e
(con)sentimento estético em contextos de ditadura e democracia”. Revista
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Turino, T. Music as Social Life: The Politics of Participation. Chicago/London:
The University of Chicago Press, 2008.

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