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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA

Daniel Sarmento
Prefácio

Cláudio Pereira de Souza Neto


Apresentação

DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO


A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA À LUZ
DA RAZÃO PÚBLICA E DO PRAGMATISMO

Belo Horizonte

~Fórum
2014
304 I JOSÉ VICENTE SAl'>.'TOS DE MENDO/>.:ÇA
DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÓ:.IICO

1.6 Conclusão parcial: longe da metafísica ideológica, rumo CAPÍTUL02


ao (neo)intervencionismo democrático da eficiência
Eficiência na obtenção do interesse público tem a ver com pragma-
tismo; democracia tem a ver com razão pública. A interpretação consti-
tucionalmente adequada da intervenção direta do Estado na economia,
seja concorrencial ou monopolística, tem de superar traumas e tabus e A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS
orientar-se apenas por estes critérios: propor as mais eficientes soluções,
fundadas na realidade, antecipando e analisando consequências, descar- PRAGMATISMO E RAZÃO PÚBLICA
tando "verdades" apriorísticas, na perspectiva de que nossa Constituição COMO NOVÍSSIMOS LIMITES AO EXERCÍCIO
é plural e se abre ao entrechoque de ideias e de projetos existenciais.
DO PODER DE POLÍCIA

2.1 Introdução
Das atividades do Estado, a única que lida quase que exclusivamente
com a restrição e a conformação de liberdades individuais é o exercício do
poder de polícia. 756 Natural que seja aquela que desperte maiores atenções:
a bibliografia a respeito do controle do poder de polícia é copiosa. 757 No
capítulo que se inicia, percorremos questões conceituais acerca do poder
de polícia, sempre à luz do pragmatismo e da razão pública, mas tais
"princípios" aparecerão em especial na condição de novíssimos critérios
de controle do exercício de tal atividade pública. Seu eixo condutor é a
análise dos limites ao exercício da polícia administrativa.
Podem-se dividir os critérios de controle em duas categorias: quanto
à cronologia e quanto à abrangência do controle.
Há limites clássicos e limites novos ao exercício do poder de polícia.
Por limites clássicos referimo-nos aos elementos758 dos atos adminis-
trativos~ ao respeito ao devido processo e à circunstância de o exercício
do poder de polícia dever ser precedido de uma habilitação legal clara e

i% "Trata-se do tema que mais diretamente se insere na encruzilhada autoridade-liberdade,


Estado-indivíduo, que permeia o direito administrativo e o direito público, revelando-se, pois,
muito sensível à índole do Estado e às características históricas, políticas e econômicas dos
países" (MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Dirdto Administrativo, p. 89).
757
Na dogmática brasileira recente, recomenda-se, por todos, MEDAUAR; SCHIRATO (Coord.).
Poder de polícia ua atualidade.
753
Há variação, na doutrina, a respeito de como se devam chamar a competência, a forma, n finn-
lidade, o motivo e o objeto do ato administrativo. Alguns chamam de elementos do nto; outros,
de requisitos (por sua vez, divididos em intrínsecos e extrínsecos); outros, de pressupostos.
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SEGUNDA PARTE-AI'LICAÇÓES I 307
C:\l'ÍTULO 2-:\ DISCli'LINA 1),\SATIVIDADES I'R!V,\DAS ...

consistente. O poder de polícia classicamente válido é aquele materializado Ora, razão pública e pragmatismo como critérios de controle do
num ato administrativo respeitaclor ela competência, ela forma legal, ela poder de polícia são critérios mais recentes do que os mais novos dos
finalidade pública, com motivo existente e válido e objeto idem. É o exercício controles modernos- daí o "novísshno" do tíhllo do capíh1lo -,e, assim
ela polícia que se faz com base numa autorização legal e cuja imposição ele con1o a grande maioria, são, também, limites materiais. Pressupõem uma
sanção submete-se a um processo prévio. análise de fundo do ato adn1inistrativo com base no qual se vai exercer a
Novos limites são o resultado ela elaboração clouh·inária elos últimos polícia. É por isso que são, ao mesmo tempo, interessantes e perigosos.
anos. Estamos falando, em primeiro lugar, elo respeito à cligniclacle da pes-
soa humana, e, logo após, dos conceitos-chave da proporcionalidade e da
preservação do núcleo essencial elos direitos (eventualmente fundamentais) 2.2 Poder de polícia: revisão doutrinária
restringidos ou condicionados pelo poder de polícia.
2.2.1 Origem e sentidos da expressão "poder de polícia".
Há, ainda, limites formais e lin1ites materiais incidindo sobre o exer-
cício da polícia administrativa. Base legal e constitucional. Em defesa de um "poder
Formais são alguns dos limites clássicos: a competência é o respeito de polícia" que ousa dizer o nome
a uma norma legal autorizativa do exercício de deveres-poderes; a forma É até difícil dizer o que significava, na origem, o termo "polícia".
é, por definição, e por n1ais que não se reduza ao respeito anódino de for- Provavelmente significava toda a ação do Estado. Sua origem etimológica
malidades, o cumprimento ele deveres insubtanciais (uma licitação dirigida é polis, palavra grega para cidade. 760 761 No século XVIII, toda atividade
[e, portanto, substancialmente inválida] pode ser formalmente válida, desempenhada pelo Estado era chamada de polícia - et pour cause, o
para isso bastando que seus atos constitutivos hajam sido publicados na Estado então constituído chamou-se Estado de Polícia -,daí a existência
imprensa oficial com a antecedência devida etc.). de termos como ius politiae, empregado para se referir ao Direito Público
Materiais são alguns dos outros limites clássicos - finalidade, motivo como um todo. Nesse sentido, "polícia" aparece até em Os Lusíadas. 762
e objeto - e todos os limites mais recentes. 759 É dizer: ao analisar se, por Mesmo então já se identificavam duas modalidades para essa superabran-
exemplo, um ato de polícia fere a dignidade do homem, está-se verificando gente polícia: uma polícia da ordem (cura avertendi nzalafutura) e uma do
algo além do encaixe entre previsão normativa e realidade praticada pela bem-estar e da prosperidade (cura pmmovendae saiu tis) (v., a esse respeito,
Administração. Os limites materiais são, em termos dogmáticos, os mais o próximo capítulo, na distinção entre fomento e polícia). Dois conteúdos
férteis, mas tmnbém os mais perigosos. Boa parte dos avanços doutrinários que, grosso modo, ainda se preservam até hoje.
no Direito Público dos últiinos tempos veio do "descobrimento" de novas
liinitações ao conteúdo dos atos administrativos; porém, há o risco de, sob
a capa do controle, estar-se exercendo a asfixia ou o decisionismo.
7 1
'" LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 305-306.
7 1
'' Odete Medauar traça um histórico da noção: se, na Antiguidade, a palavra "polícia" signifi-
cava a constituição do Estado ou da Cidade- isto é, o Ordenamento Político do Estado -,
O debate tem sabor doutrinário. E a polêmica continua ao momento da própria identifica- seu uso na Idade Média acompanhou tal tendência ao menos até o século XI, quando, de seu
ção dos elementos (ou seja lá como se d1amem). Apenas registraremos a existência da polêmica, conteúdo, foi retirado o aspecto referente <ls relações internacionais. A autora informa que,
mas adotaremos, por sua popularidade, os aspectos do ato administrativo indicados por já na Idade Média, utilizava-se a noção em sentido próximo ao atual, e nesse uso medieval
Hely Lopes Meirelles. E, por simplicidade, vamos chamá-los de "elementos". V. MEIRELLES. estariam os antecedentes da concepção moderna, não nos regulamentos de polícia do Código
Direito administmtivo bmsileiro, p. 148-152. Para discussão sobre a variedade de nomendatum Gernl da Prússia, de 1794, muitns vezes citados como precursores. V. MEDAUAR. Poder de
existente na matéria, v. OLIVEIRA. Ato admi11istrativo, p. 73-77. polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 90. Outra boa análise histórica acerca das origens
m O respeito ao devido processo legal é critério, em princípio, formal. Diz-se em princípio porque da polícia está em, Bartolomé A. Fiorini (Poder de policín: teoría jurídica, p. 24-46) ("La polida
é comum a referência a um devido processo legal de nah1reza substantiva, expressão de origem en la historia"). Para uma revisão da história do conceito especificamente na história frnncesa,
americana que possui índole material, confundindo-se com o juízo de razoabilidade e/ou de v. MINET. Droit de In police ndministrative, p. 8-14.
proporcionalidade. A respeito do tema, v. CASTRO. O devido processo legal e os princípios dn m::tl.1· ;t.~ No final da obra, Canto X, estrofe 92, numa parte da apresentação da Máquinn do Mundo - o
bilidnde e dn proporcionalidade; MARTEL. Devido processo legal substantivo: razão abstrata, função c funcionamento do Universo de acordo com o modelo das esferas de Ptolomeu - feita pela ninfa
características de aplicabilidade. Já o respeito à legalidade pode ser entendido em duas acepções, Tétis a Vasco da Gama, ela lhe fala (grifas nossos): "Vês Europa Cristã, mais alta e clara/ Que as
variando, aí, o qualificativo: quando se fala numa legalidade em sentido formal, está-se pen· outras em polícia e fortaleza". O sentido do tred10 é claro: n Europa cristã era superior às outras
sando num critério insubstancial, isto é, num critério que se presta à aplicação por intermt!dio regiões do mundo em poder (fortaleza) e na qunlidade de sua administração. Há outros dois
de subsunções simples. Quando se fala numa legalidade em sentido mnterial, está-se referindo usos da palavra ao longo do poema (no Cnnto VI, estrofe 2, e no Canto VII, estrofe 12), mas o
à inclusão, na aplicação ou na interpretação dnlei, de juizos de conteúdo. sentido relatado no corpo do texto nparece de modo mais evidente na estrofe que transcrevemos.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
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3os 1 DIREITO CONSfiTUCIONt\l ECONÔMICO
CAPÍTULO 2 -A DISCII'LlNA DAS ATIVIDADES PRIVADAS ...

Com o tempo, foi-se definindo de modo mais próximo ao atual 0 Apesar de não ser mais o ''toda a atividade administrativa" do século
que significaria a ação de polícia: atuação pública de restrição do exercício XVIII, seu espectro de abrangência é amplo: há uma polícia dos costumes;
de direitos individuais em favor da coexistência em sociedade. Ficaram uma polícia sanitária; urna polícia industrial; urna polícia das construções
contudo, resquícios dessa polícia .como ação 51eral do Estado: até hoje: etc. Em relação aos conteúdos relativos à ordem econômica, nos últitnos
polzce power, nos Estados Umdos, e uma atuaçao ampla do Estado, espe- tempos referências a urna polícia administrativa econômica caíram em
cialmente em sede legislativa. 763 No Brasil, também há essa acepção de desuso, nem tanto por demérito da expressão, mais pela ascensão do termo
11 regulação" (ver discussão adiante, ainda neste capítulo, sobre a distinção
polícia administrativa corno edição de leis ou atos normativos, apesar de
que tal sentido, aqui, é bem menos comum. entre poder de polícia e regulação). Em rigor, há mesmo impossibilidade
De Camões, passando pelos Estados Unidos, até o Brasil de hoje, lógica na delimitação da abrangência, já que seu objeto será toda ativi-
fala-se num sei! tido amplo e num selltido estrito para a polícia administrativa. dade humana com possível repercussão social e que escape à esfera da
O sentido amplo é o sentido de seu uso nos EUA, do qual, se adotamos a intimidade/privacidade."' É possível imaginar, por exemplo, uma polícia
exp~~ssão - "po~er de polícia"_, corrente no Brasil, é tradução do inglês, administrativa da internet - se isso seria bom ou ruim é outra discus-
e fm mcorporada a nossa doutrma graças a Ruy Barbosa e Aurelino Leal são. 767 Na França, país onde, tradicionalmente, o fundamento da polícia
-, não adotamos o sentido: "no Brasil, poder de polícia é, sobretudo, era apresentado como sendo a defesa da Ordem Pública, conceito-chave
atividade administrativa" .764 O sentido estrito é o sentido próprio: ativi- no qual se incluem apenas a segurança, a saúde e a tranquilidade públi-
dade765 do Estado que consiste em limitar o exercício de direitos privados cas, a expansão da abrangência policial levou, inclusive, alguns autores a
em função do interesse coletivo. Da frase simples, ternos três conteúdos colocaretn o conceito "em crise" 768 - coisa que não se resolve rejeitando a
significativos - a atividade é do Estado, ela limita o exercício de direitos noção, mas lhe expandindo os limites. Mas já retomaremos o ponto.
privados e ela se faz em virtude do interesse coletivo. O Direito Positivo brasileiro possui definição de poder de polícia,
contida no art. 78 do Código Tributário Nacional, cuja listagem de conteúdos
é exemplificativa:
7
&.J É n:sse sentido que a~arec~ na obra de Ern_st Freund, Professor da Universidade de Chigaco
Pol1ce Powcr (1_905). D1spom~el em: <http://w360608.us.archive.org/1/items/policepowerpubli Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da Administração Pública
OOfreuuoft/pohcepowerpubhOOfreuuoft.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2010. No mesmo sentido, em que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prá-
texto mais recente - embora afirmando que "os poderes de polícia do Estado são assunto con- tica de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à
sid~rado morto e sepultado p~la maior parte do século XX" -,v. REYNOLDS. The Evolving segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do
Pohce Power: Some Observahons for a. New Century. Hastings Collstitlltiollal Lmv Quarte/v.
mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão
Caio Tácito informa-nos que a expressão police power surgiu, nos Estados Unidos, num vaiO
de Marshall havido em 1827 no caso Brown vs. Maryland (Temas de direito público: estudos c ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à
pareceres, v. 1, p. 549). Ainda sobre a expressão americana, inclusive citando o trecho do voto propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
no qual a expressão aparece pela primeira vez (CRETELLAJÚNIOR. Tratado de direito admini;;-
tmtivo: poder de polícia e polícia, p. 4-5). Não é a única referência ao terna em nosso Direito Positivo. A própria
71>1 MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 95. Marcelo Caetano afim1a Constituição da República de 1988, em seu art. 145, inciso li, ao distribuir
que a expressão "lei de polícia" não deve confundir: significa, apenas, que a polícia pode ser
~bjeto ~e at!v!dade leg~s~ativa .."Mas a actividade pela qual o Estado cria as leis de polícia n3o
a competência tributária, fala que a União, os Estados, o Distrito Federal
e, em SI, activ1da.de pohc1al, pms esta tem natureza administrativa e aquela caráter legislativo" e os Municípios poderão instituir taxas em razão do exercício do poder de
(Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 270). Eliezer Martins investe contra a deno· polícia. É por essa razão que o poder de polícia também é estudado no
minação "poder de polícia" (veremos que isso é comum entre os que escrevem sobre o assunto),
com b<1se na amplitude significativa da expressão: "Trata-se de designativo manifest<1mente infeliz.
A expressão engloba, portanto, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas
a regimes de inconcili<ível diversidade: leis e atos administrativos". Ora, essa crítica aplicar-se·
ia a qualquer termo abrangente. Por exemplo: Justiça designa tanto um aparato institucion<~l 7''' "A polícia intervém nas actividades individuais susceptíveis de fazer perigar i11feresses gerais.
quanto a qualidade dos atos justos. Seria a designação Justiça "manifestamente infeliz"? De Só aquilo que constitua perigo susceptível de projectar-se na vida pública interessa à Polícia, c
resto, a verdade é que ninguém nunca se confundiu quanto a qual polícia se esteja referindo: não o que a.fecte interesses privados ou a intimidade das existências pessoais" (CAETANO.
em primeiro lugar, porque o uso de polícia no sentido de edição de leis é raro no Bmsil; em Princípios fimdamelllais do direito administrativo, p. 270-271, grifús no original).
segundo, porque, nos casos em que é utilizado, ou o sentido é deduzido pelo contexto, ou :;e 767 Falando de uma "polícia bromatológica" (higiene dos alimentos) e de uma "polícia genética",
usa o termo lei de polícia, que também não deixa dúvida acerca de sobre o que se está tratando
(MARTINS. Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS. Cur.,tl tlc v. PESTANA. Direito administrativo brasileiro, p. 507.
direito administrativo econômico, v. 2, p. 345).
718
LINOITE. L'unité fondamentale de l'action administra tive ou l'inexistence de la police admi-
710 "Atividade" ou "hmção", e não instituição ou grupo de funcionários públicos (CHAPUS. Droit nistra tive en tant que catégorie juridique autonome. In: LINOTIE (Org.). La police admiuistm-
administmtif générn/, t. I, p. 697). tive: existe-t-elle?, p. 10-28, especialmente p. 10-19.
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Direito Tributário, como qualificativo de uma espécie tributária; no Direito por fim, tratar-se-ia de expressão metodologicamente insustentável nos
Adminish·ativo, como modo de ação administrativa, poder jurídico Ott Estados modernos, na medida em que partiria da ideia do poder do
poder administrativo; e no Direito Constitucional, como atuação do Estado Estado corno noção fundante do sistema de Direito Público, quando se
que se limita pelos direitos fundamentais e pela proporcionalidade. Pois deveria partir da ideia de direitos dos indivíduos para depois se chegar à
por muito estudado que seja, e talvez até por isso, não lhe cessam as con: atuação pública (questão essencialmente de ênfase, mas que diria muito).
trovérsias. Vejamos então. Em suma: a polícia administrativa é acusada de ser ou um grande
O poder de polícia, ao contrário dos serviços públicos, não vive nada e/ou urna noção velha, perigosa e com passado sinistro. A partir daí,
em crise, o que é de se estranhar, já que pouca gente parece gostar dele. duas são as opções: ou se abandona o uso do conceito, ou se modifica a
Acusa-se-lhe de ser ou inútil ou equivocado (e se h·ataria de equívoco perigoso). sua denominação- as sugestões são variadas: limitações administrativas
A primeira crítica, a da inutilidade, foi verbalizada por Agustín Gordillo à liberdade e à propriedade, 773 atividade administrativa de lirnitação/74
em 1960: o poder de polícia seria inespecífico; confundir-se-ia com a ati- teoria dos atos de gravarne, 775 atividade de ordenação, 776 Administração
vidade ad1ninistrativa em geral; com a ampliação da área de atuação da Ordenadora.m E muitos outros nomes ainda surgirão.
Administração, e com a pluralidade de Ineios para isso, haveria uma in~ Vamos refutar as críticas partindo da segunda para a primeira.
distinção entre a atuação "de polícia" e a atuação geral da Administração, Os críticos têm razão quando sublinham a origem autoritária da
ontologicamente inseparável da função de condicionar direitos. O poder expressão, mas exageram quando falam dos riscos de sua manutenção.
de polícia seria inútil: confundir-se-ia com a atuação administrativa do Ao tempo que se reconhece que palavras têm poder,ns também se afirma
Estado.769 770 que muitos símbolos podem ser depurados. Não há nada de errado em se
A segunda crítica não diz respeito ao conteúdo do poder de polícia, utilizar expressão consagradíssirna na doutrina, nacional e internacional,
mas à ascendência histórica da noção e a um mau uso potencial implícito na desde que fazendo ressalva quanto à evolução do conteúdo.
expressão (e que se pretenderia exorcizar pela não utilizaçao). 771 Explica-se. A questão não é nem a referência constitucional, embora isso seja im-
O poder de polícia seria atributo essencial do Estado de Polícia, não portante.'" É o pouco ganho, em termos de acréscimo de poder explicativo,
dos atuais Estados Democráticos de Direito. Por conta disso, a expressão
teria envelhecido mal. Mais ainda, haveria urna espécie de desvio con-
ceitual intrínseco no termo, já que a palavra "poder" remeteria à época onde não existem, que legitima a criação de poderes implícitos ou 'naturais' onde não podem
em que Administração Pública exercia-o antes e independentemente da existir ou, quando menos, que propicia interpretações expansivas e ampliadoras das potesta-
lei. Sem contar que a expressão poderia fazer supor a existência de um des criadas pela lei, em prejuízo da liberdade" {SANTAMARÍA PASTOR. Principias de derec/10
ndmi11istrntivo general li, p. 250). É verdade que, em usos doutrinários remotos, como no de Otto
poder discricionário implícito e ilimitado de interferir na vida privada.m Mayer, o poder de polícia estava, sim, associndo num dever geral, imposto aos administrados,
de respeitar a bon ordem social - coisn que é incompatível com o Estado de Direito, ao menos
na forma como entendido hoje, em que corretamente se postula que só existem, para os admi-
nistrados, deveres legais.
>n "Não existe hoje em dia urna 'noção' autônoma c suficiente de 'poder de polícia'; não existe
:Tl PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade.
porque essa função se distribuiu amplamente dentro de toda urna atividade estatal. A coaçJo
estatal atual ou virtual aplicada por algum de seus órgãos sobre os particulares para a conse· ;;.; Snnti Romano trata do tema no Livro IV de seus Princípios de direito administrativo italiano, sob a
cução de determinados objetivos de bem comum ou de ordem pública segue sendo um,l n•a, rubrica "Teoria das Limitações Administrativas à atividade privada". Apesar da referência da
lidade no mundo jurídico, porém não é que exista urna parte dessa coação, uma parte desses Professam Odete a essa obra do autor italiano {em seu artigo Poder de polícia, já citndo), parece-
órgãos e urna parte desses objetos que se encadeiem entre si diferenciando-se do resto da açiío nos que Santi Romano não elaborou, aqui, proposta substitutiva da expressão "polícia", tanto
est.:ttal e institucionalizando-se no mencionado 'poder de polícia"' {GORDILLO. Tmtado tlt assim que, nos subitens do capítulo, e ao longo do texto, utiliza-se largamente da palavra {o
dcrcclw administrativo, t. II, p. V, 13, 14). subi tem 2 se chama "Polícia de Segurança", o 3, "Polícia Sanitária", o 4, "Polícia dos Costumes",
o 5, "Polícia Rural", etc.) {ROMANO. Principii di diritto nmministmtivo ita!imw, p. 243 et seq.).
" 0 Outros autores, sem necessariamente aceitarem as conclusões de Gordillo quanto à não utili-
:T> CASSAGNE. Dereclw admiuistmtivo, v. 2, p. 319-325.
zação da expressão, também mencionam a dificuldade de se precisar um "poder de polícia"
diferenciado da ah1ação executiva geral. Assim, Bartolomé A. Fiorini (Poder de polida: tcoría :Tv SANTAMARÍA PASTOR. Princípios de derecho administrativo general li, p. 243-290.

jurídica, p. 9-10). m SUNDFELD. Direito admiuistmtivo ordenador.


m GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de dereclw administmtivo li, p. 104-106. A critica :7,, "Esta polivalência significativa do conceito de polícia possui causas históricas que é preciso
vem desde a doutrina germânica e tornou-se comum em setores das doutrinas espanhola, resenhar, e não por simples gosto pela erudição: no Direito, as palavras e seus significados
italiana e argentina. possuem hnbitualmente uma função prática capital; são veículos de expressão, mas também
m "Daí o perigo da contaminação semântica que implica utilizar o conceito de polícia para l'D· são arrnns, ou, quando menos, instrumentos desenhados ou utilizados com notórias finalidades
globar o que não é mais do que um conjunto inorgânico de atividades administrativas de lí· pragmáticas" (SANTAMARÍA PASTOR. Principias de dereclw administrativo general !I, p. 245).
rnitação; um conceito que gera uma tendência n supor a existência de potestades interventorilS :79 CARVALHO FILHO. Mmwa! de direito administrativo, p. 70.
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DIREITO CONSf!TUC!ONt\L ECONÓMJCO
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CAPÍTULO 2 -A DlSC!l'LINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS ...
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em contraposição ao ônus de se alterar denominação consagrada.'" Long adote "Administração Ordenadora" por "poder de polícia", ou qualquer
de estarmos adotando raciocínio conservadot~ esta1nos, sim, procedend~ outra proposta, vai-se precisar modificar uma gama de textos legais, con-
a análise pragmatista (ver capítulo 1, primeira parte): para além de quo}. teúdos ensinados em sala, indexadores de pesquisa de jurisprudência em
quer preconceito pró ou contra o termo (não adotamos nenhuma teoria de tribunais etc. E isso para quê? Para que algum administrador não se sinta
base, sendo, assim, antifundacionalistas)/81 projetamos as consequências no Estado de Polícia do século XVIII? Para se exorcizar o risco de eventual
prováveis da mudança (consequencialismo) a partir do contexto atual da abuso de poder que, de qualquer jeito, já seria detectado?
doutrina, da legislação e da jurisprudência (contextualismo) e concluímos Quanto à difusão da polícia por todas as outras atividades da
que mudar é mais difícil e menos útil do que manter e fazer as ressalvas Administração Pública, tornando o termo indistinto, a verdade é que não
- ressalvas, aliás, cujo conteúdo continuaria sendo destacado mesmo que houve negação da noção, senão modificação e expansão de conteúdo.
se adotasse outra denominação. Se fôssemos rejeitar palavras por algum Continua existindo urna atividade de limitação ou condicionamento do
péssimo passado, deveríamos começar por "dernocraciau, palavra en1 cujo exercício de direitos, assim como o reconhece o próprio Gordillo. 783 De
nome ascendeu o Estado Nacional-Socialista. E o Estado de Polícia, por mais a mais, se o poder estatal é uno, coisa de que ninguém duvida, fala-se
pior que tenha sido, não se compara ao Estado Nazista. em "poder de polícia" apenas corno simples agregação de atividades com
São contrapostos riscos virtuais, afirmações simbólicas da cenh·alidade perfil homogêneo, "o que facilita sua consideração, estudo e regulação
do ser humano e pressuposições de poderes implícitos (que, na prático, normativa adequada" .784 Em muitos casos, pode até ser difícil separar
jamais chegariam a ser exercidos, simplesmente porque o Estado de Direito a atividade de polícia da de prestação de serviços públicos (mais a esse
com eles é incompatível) a dificuldades práticas que, por menores que respeito adiante), mas isso só demonstra que as atividades do Estado
possam ser tidas, são reais, no sentido mais singelo da palavra. 782 Caso se são multifacetadas e que não admitem inteira tradução em conceitos lin-
guísticos ou em categorias doutrinárias formais. Assim, por exemplo, o
780
oferecimento público de serviço de interesse coletivo pela via da delegação
"Não parece adequado alterar o título de noções jurídicas consolidadas, mesmo que seu con-
teúdo sofra evolução. A mudança dificulta a pesquisa nas obras e dificulta a pesquisa jurispnt·
contratual pode envolver a imposição de restrições a direitos, e contar
dencial. E também impede a percepção clara da linha evolutiva da figura" (MEDAUAR. Poder
de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 93).
;g
1
Ao contrário de certa crítica à utilização da expressão, que, sem favor, faz parte do mal cuja é majoritária -,e, ao mesmo tempo, defendem a validade do conceito tradicional de polícia.
cura pretende ser: ao denunciar a ideologia dns construções tradicionais, ingressa numa critica Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que, nas últimas edições de seu manual, vem defendendo a
ideológica de sinal invertido. superação da ideia de polícia, sustenta a interpretação ampla de executoriedade (executoriedade
732
Sempre vai ser possível insistir que, mesmo fazendo as ressalvas, o uso da expressão continuará como regra, e não apenas nos casos previstos em lei ou em situações de urgência). (ii) Obras mais
dando azo a um não sei o quê de autoritarismo. Alguns trechos de Luis Manuel Fonsecu Pires recentes não trazem tal ênfase no aspecto da força física como finalidade do poder de polícia. Ao
caminham nesse sentido, verbis: "[ ... ]Não basta dizer que o Estado contemporâneo encontra-se contrário, são cautelosas ao afim1ar que se trata de urna possibilidade, mas não da essência do
sob um arquétipo democrático e juridicamente axiológico de bens caros à sociedade[ ... ], pois instituto. (iii) Também não há mais preocupação excessiva com a coação: na apresentação mais
persiste a influência, diante de casos de difícil interpretação c aplicação do direito, de 11m atavismo que atual do instituto, a ênfase é nas potencialidades de compatibilização de direitos e no controle ao
externa a origem e o evolver arbitrário deste instituto. [... ]fatos históricos aliados ao a11tigo instituto exercício da função administrativa de polícia. Na obra de Raquel Urbano, por exemplo, são gas-
"poder de polícia", os quais sugestionmn, cquivocndamente, a interpretação do direito - normalmen- tas duas páginas na questão conceitual, e pelo menos cinco no tratamento dos limites à polícia.
te, em prejuízo do administrado porque dissonante da ordem jurídica estabelecida na Carta Detalhe: a autora é das que defendem a denominação tradicional. (iv) Não se confunde poder de
Magna". Se for esse o caso - coisa que não acreditamos -, será a primeira vez que o elemento polícia com sanção. O tratamento doutrinário contemporâneo é claro quanto à distinção entre o
histórico da interpretação, que, entre nós, possui reduzida importância, vai prevalecer contra poder de polícia- competência ou poder administrativo -e a sanção de polícia, fase do "ciclo
as advertências uníssonas da doutrina. E não se trata do uso do elemento histórico: tratar-se-ia de polícia". Registre-se que, inclusive, a referência a um ciclo de polícia é cada vez mais comum
de completo mau uso dele. É uma força inédita para algo que se define como a "influência de em livros e manuais, seja dos que defendem a polícia, seja dos que pretendem superá-la, o que
um atavismo". Mas, para sermos honestos, o autor, em outro momento, traz o que considera só incrementa a diferenciação. (v) Por fim, não se vê, de modo algum, desenvolvimento doutri-
exemplos da tal influência: (i) os artigos doutrinários e precedentes judiciais que entendem que nário ou jurisprudencial subótimo do tema dos limites ao poder de polícia. Ao contrário: para o
a autoexecutoriedade é ínsita à função da administração ordenadora; (ii) a ênfase no exercício assunto, esse é o gmude tema, seja com qual denominação for. Em suma: para nós, a questão da
da força fisica ao se circunscrever a finalidade do poder de polícia; (iii) a preocupação excessiva troca da denominação é, no fundo, urna simples questão de estilo, que se pretende mais impor-
com a coação, o que conduz "a uma maior legitimidade do uso da força pública na interpretação tante do que de fato é. Para as citações da nota, v. PIRES. Limitações admiuistratívas ir liberdade e ir
e aplicação do direito"; (i v) a confusão entre o instituto do poder de polícia e a ideia de s.:mção propriedade, p. 16 (primeiro trecho), p. 153-155 (segundo momento).
7 13
administrativa; (v) o não desenvolvimento, ao menos com a magnitude que deveria ter, do estu· ' Basta reler parte do trecho citado em nota de rodapé anterior, aqui repetido para maior cla-
do sobre os limites do poder de polícia, já que o pressuposto é a ação coativa da Administração reza:"[ ... ] A coação estatal atual ou virtual aplicada por algum de seus órgãos sobre os par-
Pública. Continuamos discordando. Ponto por ponto: (i) não há relação biunívoca entre defesa ticulares para a consecução de determinados objetivos de bem comum ou de ordem pública
de uma interpretação restritiva dn autoexecutoriedade e defesa da superação da ideia de poder segue sendo uma realidade no mundo jurídico[ ... ]" (GORDILLO. Tmtado de derec/10 adminis-
de polícia, o que seria o caso se houvesse relação entre os conceitos. Odete Medauar e José dos trativo, t. li, p. V, 13, 14).
Santos Carvalho Filho defendem a interpretação restritiva da executoriedade- aliás, tal posiç5o 71
H MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 94.
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA SEGUNDA PARTE -APLICAÇÓES
3}4 I Ol!tt:rTO CONSTnDCIONAL ECONÓ~J!CO CAPÍTULO 2- A DISCIPLINA OASATlV!DADES PRIV,\DAS ... 315

com certos benefícios, prometidos pelo Poder Público ao particular que moderna, seu passado, por pior que seja, será purgado. 786 Seu risco virtual
resolver executá-los. Estamos tratando de serviço público, do exercício de é compensado por sua utilidade atual.
polícia administrativa ou de ato de fomento público? E, se não for possível Dito isso, já podemos avançar o assunto_ Da conceituação, saber
a caracterização precisa da operação dentro de urna dessas categorias, isso 0 que a polícia é, passamos agora às distinções apontadas pela doutrina:
será motivo para rejeitá-las in totwn? Respondemos: não, não será. Fmmulnr identificar o que o poder de polícia não é.
uma categoria doutrinária é exercício de simplificação para a compreensão;
é a transcrição de uma realidade necessarimnente Inultiforme cmn base
em elementos da linguagem que jamais captarão sua essência inteira. A 2.2.2 Distinções com outras funções administrativas: o que o
doutrina mmca vai capturar inteiramente a realidade, e, se ela for julgada poder de polícia não é
com base nisso, estará sempre aquém das expectativas. O que se lhe pode
A primeira distinção é imediata. Embora ambas sejam exercício de
exigir é a proposta de categorias compreensíveis e realistas, coisa que,
função administrativa, polícia admi11istrativa não é polícia judiciária. Os crité-
em nossa opinião, a fórmula-tipo do "poder de polícia" continua sendo:
rios de distinção variam entre os autores, e alguns doutrinadores criticam a
uma noção de séculos que sobreviveu (e ousamos dizer que sobreviverá)
utilidade distintiva dos elementos de diferenciação apontados por outros,
a tantos quantos julgam superá-la.
mas, de modo geral, a lista apresentada é a seguinte.
Ou seja: a noção de "poder de polícia" ultrapassa as críticas.'" Se
Em primeiro lugar, a polícia administrativa se exaure etn si mesma:
se buscar meios de tmná-la aberta aos controles den1ocráticos da teoria
previne o ilícito administrativo, consente no exercício da atividade privada,
fiscaliza e, se for o caso, reprime o ato antijurídico, mas sua atuação não
escapa à instância administrativa. Não extrapola até o Judiciário. Já a polí-
m É curiosa a opinião de Fnrlei Martins e Alexandra Campos, para quem a tese de Gordillo cia judiciária, ao contrário, prepara o exercício da jurisdição penal. Não
não é aceita, na doutrina e na jurisprudência brasileira, ou por "receio de alguns autores em
empreender uma análise crítica da noção jurídica", ou porque o termo "poder de policiu"
se esgota em si mesma, mas pode redundar na atuação de outro poder.
consta da Constituição e das leis. Não acreditamos nisso. Em primeiro lugar, não há motivos Outra diferença, clássica, embora cada dia com menos força: a polícia
para se temer qualquer análise crítica. Se assim fosse, não se estnria questionando a ideia de administrativa é essencialmente preventiva/87 ao passo que a judiciária é
supremacia do interesse público, muitíssimo mais fundacional do que a de poder de políciJ. repressiva, atua quando o ilícito já se perpetuou buscando identificar suas
Além disso, em certas circunstâncias, é até mais difícil defender um conceito tradicional do
que aderir a posição que, com ou sem razão, coloca~se como inovadora. Se alguém tiwssc circunstâncias e seu autor. Dissemos que o critério perde força porque,
de temer algo, seria quem defende o "ultrapassado" poder de polícia, e não os que o atacum. cada vez mais, os órgãos responsáveis pela polícia judiciária - a Polícia
Em terceiro lugar, e objetivamente, o temn é lmtado pela doutrinn brasileira, aindn que nil{l Civil e a Polícia Federal - atuam preventivamente-'88 Também a polícia
necessariamente fazendo-se referêncin à posição de Agustín Gordillo (o que não é grnve, já
que a idein de supernção do poder de polícin tem sun fonte original na Alemanha, e reflexos
na Itálin e na Espanha). Numa rememoração rápida, tratam do assunto, entre outros, muitos
dos quais até citados por Fadei e Alexandra, os seguintes autores: Odete Medauar {rejeita a ;,;" Nesse sentido, Cosculluela Montaner e Mariano Benítez: "Não se vê a vantagem que possa
posição), Celso Antônio Bandeira de Mello (concordn com Gordillo), José dos Santos Carvalho ter denominar polícia como poder de ordenação e controle, uma vez que a polícia em um
Filho (rejeita o abandono da noção), Lúcia Vnlle (concorda e até mudou o título do capitulo Estado constitucional e democrático perdeu sua força expansiva, como título habilitante autô-
sobre poder de polícin em seu mnnunl), Raquel Urbano de Carvalho (mencionn a posição, m<Js nomo, e conecta-se totalmente à defesa do status /ibertafis que o mesmo consagra" (BENÍTEZ;
a rejeita), Cnrlos Ari Sundfeld (aceita, ninda que em seus termos), Luis Manuel Fonseca Pires MONTANER. Derecho público ecoi!Ómico, p. 212).
(concordn e baseou um livro nu concordãncia), Alexandre Santos de Aragão {menciona). Ê 7 7
'' "E cá estamos em pleno domínio da polícia administrativa. Num domínio onde as duas ideias
incorreto afirmar que" a unanimidade da doutrina brasileira dispensa qualquer esforço metodo· predominantes são a prevenção e o perigo. Evitar que os perigos se convertam em danos -
lógico de superação da noção". O que é verdadeiro é que a doutrina brasileira, em sua m<Jioria, eis o campo onde se desenvolve o modo de agir administrativamente que se chama Polícia"
rejeita a tese da superação, cada autor com seus nrgumentos. O esforço metodológico existe; (CAETANO. Priucípios fundmneutais do direito administrativo, p. 268).
o que não há é, em muitos casos, a concordância em relnção à tese de Gordillo. Além disso, é 71 ·:; Talvez seja o caso de se abandonar o critério. É o que faz René Chapus, que diz que elas podem

importante não supervaloriznr n referência constitucional e legal a poder de polícia, já que o ter caráter tanto preventivo quanto repressivo, e que isso é ponto de idmtidade entre as duas polí-
que não fnltam são posicionnmentos doutrinários que interpretam referências legislativus de cias. Ou seja, justamente o contrário do que diz a maioria da doutrina brasileira (para quem
modo "superador do texto legal". Ou seja: a doutrina brasileira está ciente do debate e, em boa isso é critério de distinção). Leia~se o trecho: "Enfim, tanto uma quanto outra polícia podem
pnrte, rejeita a ideia de superação da noção. É injusto chamá-la de medrosa ou de literalisla. assumir tnnto um caráter preventivo quanto repressivo. Sem dúvida, a polícia administrativa
Quanto à jurisprudência, vale o mesmo: se a tese não "pegou" na doutrina - pelo menos tende a prevenir os problemas de ordem pública. Mas [... ] ela também pode ser suscitada
com a força com que se esperava -, provavelmente também não vai ser incorporada tJo para pôr fim a problemas: ao dispersar uma manifestação, no fazer desaparecer uma situação
intensamente pelos tribunais (CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícin: anotações à margem de perigosa ou insalubre ou ao suprimir uma causa de problema à tranquilidade pública. Sem
Agustín Gordillo. !11: OLIVEIRA. Direito administrativo Bmsil-Argmti11a: estudos em homena- dúvida, também, a polícia judiciária é geralmente repressiva. Ela costuma ser posta em ação
gem a Agustín Gordillo, p. 176~177). depois do golpe, em consequência da ocorrência efetiva de certos fatos. Mas, como se verá, ela
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JOSE VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
D!REITOCONSTITUCIONALECONÓ~JICO SEGUNDAPARTE-A!'LICAÇOES
CAPÍTULO 2- t\ DISCIPLINA DAS ATIVIO,\OES PRIVADAS ...
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administrativa, em muitos casos, atua reprimindo ilícitos administrativos, de limites também o será. Só que não é nesse sentido que serviço público
quando sua prevenção é falha ou a recalcitrância é muita. está na Constituição, no mínimo porque seria indistinguível de poder de
Outro critério: enquanto a polícia judiciária atua tendo em vista polícia, e, desse modo, a distinção feita no art. 145, 11, da Constituição (entre
a verificação de infrações penais determinadas, a polícia administrativa "poder de polícia" e "serviços públicos"), não faria sentido.
previne e reprime ilícitos administrativos. A diferenciação doutrinária clássica, então, diz o seguinte: serviços
Por fim, o último critério distintivo: enquanto a polícia judiciária tem públicos possuem caráter positivo, enquanto o poder de polícia tem caráter
seu exercício concentrado em poucos órgãos, basicamente a Polícia Civil e a llegativo. O caráter positivo derivaria do fato de que o serviço público é o
Polícia Federal, a polícia administrativa é exercida por um sem-número ele oferecimento de uma utilidade ou de uma comodidade aos usuários; ele
órgãos e de entidades administrativas: autarquias de trânsito, secretarias "dá" alguma coisa. Já dizer que a polícia administrativa possui conteúdo
de ordem pública, fundações de meio ambiente, agências reguladoras etc. negativo significa duas coisas: ou dizer que ela atua restringindo ou limi-
É claro que dizer que a polícia administrativa não é polícia judiciáriJ tando o exercício de direitos (ela "retira" algo, em sentido aproximado)/94
não quer dizer que as atribuições sejam incompatíveis, ou que uma não ou dizer que ela impõe deveres de não fazer ou de tolerar. No segundo
possa redundar na outra ou se conjugar na prática: 789 uma ação de orde- sentido, a afirmação é incompleta, já que existem, e são frequentes, imposi-
nação do trânsito, atividade típica de polícia administrativa, pode detectar ções de fazer denh·o do contexto do exercício de poder de polícia,'" embora
um veículo furtado, cuja apreensão pode vir a servir a uma atuação da também isso possa ser polemizado pela doutrina. 796 Só que a complicação
polícia judiciária (desvendar e reprimir um crime). não é exatamente essa.
Segunda distinção: polícia administrativa não se confunde com corpo- Na prática, muitas vezes acontece uma integração material das ativi-
ração policial-militar. Muito embora a polícia administrativa da segurança dades de polícia e de prestação de serviços públicos, na medida em que as
pública seja exercida pela Polícia Militar - e a Constituição_ é expressa estruturas estatais de polícia também costumam prestar serviços públicos.
na afirmação790 -,polícia administrativa é mais do que isso.' 91 A frase é O inverso também é verdade: na prestação de serviços públicos pode haver
anedótica, mas verdadeira: poder de polícia não é poder da Polícia. a adoção de medidas de polícia. A explicação para isso ou decorre da
Terceira distinção: poder de polícia não é prestação de serviço público.
Ou é? Vejamos o que diz René Chapus: "Exercer a polícia administrativa é
assegurar um serviço público: aquele de manutenção da ordem pública"-'''' 7
~1 "Mas repare-se no contraste que formam: os serviços de utilidade pública actuam fazendo
É claro que, dentro dessa acepção amplíssima, que associa serviço público prestações que beneficiam os indivíduos, melhorando a qualidade de vida; enquanto a polícia
é um sistema de restrições que limita a liberdade individual" (CAETANO. Priucípios fundamen-
a atividade estatal prestada em regime de Direito Público/93 a imposição tais do direito administrativo, p. 267, grifas no original).
5
;9 Assim, Eliezer Pereira Martins: "Caracterizar o poder de polícia, portanto, como positivo Dllllega-
tivo depende apenas do ângulo através do qual se encara a questão. De um lado, o poder de
também pode ser exercida para prevenir uma ocorrência" (CHAPUS. Droit admiuistratif gt:ué- polícia tem, na quase totalidade dos casos, um sentido negativo, porém sentido de abstenção
ml, t. I, p. 736-737). Na doutrina brasileira, crítico desse critério, v. FURTADO. Curso de dirc1fo (11011 Jacere). [... ] De outro lado, no condicionamento do uso da propriedade imobiliária nos
admiuistmtivo, p. 660. termos do art. 5º, XXIII, c/c art. 182, §4º, da CF, temos exemplo típico de atuação de polícia
'"' JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 466. administrativa consistente num facere" (Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO;
QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico, v. 2, p. 349). No mesmo sentido,
79o Art. 114, §5Q: "Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;
citando, como exemplo de imposição de deveres de fazer dentro do poder de polícia a cons-
aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execuç,'io
tmção de saídas de emergência (na polícia das construções) e a adoção de providências que
de atividades de defesa civil".
impeçam a deterioração de alimentos perecíveis (na polícia sanitária) (JUSTEN FILHO. Curso
m Apesar disso, há livros cuja promessa do título não se cumpre em seu interior; ~or e~e.mplo, de direito administrativo, p. 464).
0 livro "Constituição e poder de polícia" é inteiramente devotado a uma anahse cntica da
política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro nos anos oitenta. Ora, seria mel.hor
'% "Os exemplos apresentados pelo Professor Justen Filho devem ser entendidos como condições
ao exercício de atividades ou de direitos, e não como a imposição de obrigação de fazer, pura
outro título (PINHEIRO. Constituição e poder de polícia). Há outros que cumprem o prometido:
A polícia no Estado de direito, do Professor português António Francisco de Sousa, trata tanto
e simplesmente. Se alguém decide construir prédio, somente poderá fazê-lo se forem observa-
do poder de polícia quanto dos aspectos mais tipicamente associados à corporação policial das as normas técnicas de segurança. Se alguém decide comercializar alimentos, deve obser-
propriamente dita (uso de arma de fogo, interrogatório policial ~te.). A respeito do p.o~cr de var as normas sanitárias relativas à conservação e à higiene dos produtos" (FURTADO. Curso
polícia do policial militar, ver, especificamente, Alexandre Hennques da Costa (Os lmu_tes.do de direito administrativo, p. 669. Na verdade, Lucas Rocha até defende a possibilidade de que o
poder de polícia do policial111ilifar). Ainda, Cláudio Pereira de Souza Neto (A segurança publ:c,l exercício do poder de polícia implique a imposição de obrigações de fazer, mas apenas quando
na Constituição Federal de 1988: conceituação constitucionalmente adequada, competênCiiiS se utilize de técnicas de informação, sendo o administrado obrigado a prestar informações
federativas e órgãos de execução das políticas. Revista de Direito do Estado, p. 19-73). sobre si ou sobre sua atividade para a Administração Pública; aqui Lucas Rocha Furtado está
se utilizando da tripartição das técnicas de polícia administrativa, proposta por Santamaría
'n CHAPUS. Droif admiuistrntif généra/, t. I, p. 700.
Pastor, que fala em técnicas de condicionamento, técnicas ablatórias e técnicas de informação
9
' ' ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 144 et seq. (SANTAMARÍA PASTOR. Principias de dereclw administrativo general li, p. 253-281).
318 I jOSE VICENTE SANTOS DE l>1END0!"ÇA SEGUNDt\ [',\RTE~APLICAÇÓES
CAP!TUL02~A D!SC!PLINA DASATIV!DADES PRIVADAS ...
I 319
DIREITO CO;>JSTITUCJO:-JAL ECONO~!ICO

insuficiência da simples imposição de restrições à atuação privada para a licença) e de ablação (restrição, total ou parcial, de direitos). 803 A regulação
produção de condutas constitucionalmente desejáveis -não basta impor illcllliria as técnicas de polícia, mas também outras, como técnicas de com-
a polícia de trânsitor é necessário investir em ca1npanhas educativas, que posição de conflitos. Além disso, dentro do conceito de regulação estariam
é atividade de serviço público 797 -,de urna maior aproxin1ação entre us abrangidas capacidades normativas e capacidades quase judicantes. A po-
esferas pública e privada/98 ou, no caso da prestação de serviços públicos lícia administrativa significaria bem menos: no sentido estrito, significaria,
em que se incrustam medidas de polícia, da própria complexidade das apenas e tão somente, limitar direitos privados. 804 805
necessidades a serem atendidas pela prestação desses serviços: ao forne- Em nossa opinião, parece que, também aqui, o subtexto disso é
cer água potável, é imperativo o recurso à polícia administrativa a fim de uma rejeição ao poder de polícia por seus vícios de origem e de idade.
prevenir e reprimir o desperdício?99 800 No entanto, poucas coisas estão definitivamente perdidas na vida, e isso
Ainda na tônica da diferenciação da polícia em relação a OUlTas também vale para a vida do Direito; é possível superar vícios de nascença
atividades estatais: ela não se confunde com a regulação jurídica da economia, e remoçar conceitos.
Há, aqui, várias teorias. Basta dizer: entenda-se por polícia administrativa uma função pú-
Num ponto todos concordam: o poder de polícia seria o ancestral blica também incidente sobre serviços públicos delegados e cujo exercício
da regulação. 601 Só que a regulação pública seria mais abrangente do que prático também incorpore téa1icas consensuais de composição de conflitos.
o poder de polícia - estamos falando, é claro, da polícia incidente sobre
atividades econômicas, já que ninguém nunca confundiu licença de obra 1'0J SANTAMARÍA PASTOR. Principias de dereclw administrativo geuernl li, p. 253-281.
com ato de regulação econômica. '' 01 A discussão adquiriu relevância quando se tratou de saber qual era a nntureza jurídica das
Seria mais abrangente por dois motivos: em primeiro lugar porque "taxas regulatórias", instituídas pelas leis criadoras das agências reguladoras. Se a atividade
o poder de polícia não incidiria sobre os serviços públicos, delegados ou das agências fosse exercício de poder de polícia, as taxas seriam taxas de polícia, e, portanto,
espécie tributária, submetidas a todo o estrito regime constitucional e principiológico aplicável
não, cuja titularidade é sempre pública (como se sabe, apenas seu exercício aos tributos. Se a atividade das agências reguladoras fosse outra coisa que não poder de polícia,
é objeto de delegação contratual). Ora, a doutrina sempre afirmou que o as ditas taxas seriam enquadradas noutra categoria conceitual, de índole não tributária: seriam
poder de polícia incide, apenas, sobre atividades privadas, ainda que tais preços públicos, ou seja, retribuições contratuais, devidas em razão do exercício de dever de
fiscalização (que não seria "de polícia"). É com base nisso llUe o Professor Alexandre Aragão
atividades possam ser desenvolvidas por estatais. Já a regulação pública não entende que a natureza das "taxas regulatórias" poderia ser ou de taxa propriamente dita, ou
teria tal restrição: incidiria, também, sobre os serviços públicos delegadosf112 de uma retribuição contratual, ou, ainda, de uma contribuição de intervenção no domínio eco-
nômico (nesse caso, a natureza jurídica só valeria para as agências federais, porque só a União
Segundo motivo: o poder de polícia acabaria se resumindo a técnicas pode instituir CIDE). As retribuições contratuais seriam os valores cobrados por agências regu-
de informação, de condicionamento do exercício de direitos (autorização, ladoras ruja atividade incidisse sobre serviços públicos delegados (já que o poder de polícia
não poderin incidir sobre atividades privadas). As taxas propriamente ditas seriam uquelas
cobradas por agências reguladoras cuja atividnde incidisse nu atividude privada em sentido
estrito (por exemplo, a taxu da ANVISA). Finalmente, as CIDES seriam as "taxas regulatórias"
'"' JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 467-468. que, cobradas sobre a regulação d~ atividades privadas, revertessem para o fomento e a pro-
moção do setor regulado (ARAGAO. Agências reguladoras e n evolução do direito administrativo
'% FURTADO. Curso de direito ndmi11istrntivo, p. 646.
econúmico, p. 332-333). Ainda, SOUTO. Desestatização: privatização, concessões, terceirizações e
79
~ JUSTEN FILHO. Curso de direito ndministrntivo, p. 468.
regulação, p. 461. Por outro lado, há autores que defendem a nahtreza tributária para todas as
r;:o Há uma quarta razão pela qual as atividades podem se misturar: são as hipóteses, comuns, nas "taxas regulatórias", porque as agências reguladoras seriam autarquias, entes de direito público,
quais a prestação de um serviço público é, por assim dizer, o exaurimento do exercício da ativi- e, assim, jamais poderiam cobrar preços públicos pelo exercício de suas atribuições legais.
dade de polícia. Isso ocorre quando o consentimento público se materializa na emissão de um Com tal posicionamento, Marçul Justcn Filho (O direito das agêucias reguladoras independentes,
documento. Por exemplo: n ntividade de polícia que é o consentimento quanto à prática dn direçlw p. 478). Ainda, CAL. As agências reguladoras no direito brasileiro, p. 128. A jurisprudência, de
veicular por uma pessoa - n licença para dirigir, espécie de ato vinculado de polícia - exaure-se modo geral, vem entendendo que as "taxas regulatórias" são tributos, e não preços.
numa prestação de serviço público, que é o ato da expedição da carteira de habilitação. Sejn como 11
'' ' Marcos Juruena relaciona os institutos da seguinte forma: a regulação atuaria dentro da polícia
for, a hipótese não é das mais desafiadoras, porque há, claramente, uma atividade (polícia) que administrativa, e não o contrário, como sustenta a maioria da doutrina. A "regulação de polí-
predomina sobre outra (serviço público). cia" - o termo é do autor - teria como propósito assegurar que "bens e serviços de interesse
rot VENANCIO FILHO. A interl.'eltÇão do Estado 110 domínio econúmico: o Direito Público Econômico geral" oferecessem duas coisas: "segurança" e "preços não abusivos". Para fazer isso, o agente
no Brasil, p. 83. regulador colaboraria na formulação da política setorial, e controlaria produto, fornecedor,
co~ "'Regulação', por sua vez, parece que assume sentido mais amplo do que se deu à administração bens de produção e preços. Exemplo típico de regulação de polícia: a atividade da ANVISA
ordenadora e ao poder de polícia. A doutrina de Direito Econômico faz uso desse termo pur,1 junto aos medicamentos. Não concordamos com tal opinião. Ou as atividades mencionadas
tratar da mecânica estatal de ordenação das atividades econômicas em geral, incluindo, por· por Marcos Juruena se enquadram perfeitamente na noção de polícia (por exemplo, sanitária),
tanto, os serviços públicos e as atividades econômicas em sentido estrito" (MENDES. Reforma ou fazem parte dos deveres jurídicos gerais de defesa da concorrência (evitar preços abusivos),
do Estado e agências reguladoras: estnbelecendo os parâmetros de discussão. In: SUNDFELD ou escapam para a noção tradicional de regulação (auxiliar na formulação de políticas públi-
(Coord.). Dirdto ndmi11istrntivo econômico, p. 116). cas) (SOUTO. Direito administrativo regulntório, p. 76-77).
JOSÉ VICEt>.'TE SANTOS DE MENDONÇA SEGUNDAI'ARTE-Al'LICAÇÓES I 321
320 I DIREITO CONSTITUCIQN,\l ECONÓMJCO CAPÍTULO 2 -A DISCII'L!NA DAS ,\TJVJDADES I'R!VADAS ...

Afinal, todas essas afirmações são construções doutrinárias. Se não são As características normativas tradicionalmente associadas à regulação,
mais adaptativas, se incorporam "anmnalias" e se exigem repostas ad hoc e que, no início de sua introdução no Brasil, geraram debate sobre sua
para que continuem existindo, talvez seja hora de trocá-las. 806 legitimidade constitucional, também podem ser identificadas ao poder
Desse modo, um novo entendimento do poder de polícia poderia de polícia - afinal, sempre se falou de um poder de polícia em sentido
fazê-lo aplicável aos serviços públicos e aberto a técnicas mais consen- amplo. Assim, caso se construa noção de poder de polícia capaz de incidir
suais (quanto a esse último ponto, já há até quem o admita desde agora)."'" sobre serviços públicos delegados, aberto a novas técnicas803 e includente
de funções normativas, é a regulação econômica quem acabará sendo absorvida
pelo poder de polícia, e não o colltrário. 809 Mas, claro, sempre vai restar o pre-
1306 KHUN. A estrutura dns revoluções científicas. conceito. Ainda está para nascer quem recupere a dignidade da noção de
1307
A discussão sobre a admissibilidade de técnicas consensuais no exercício do poder de po\i.
cia é ampla. Para alguns, haveria um dever constitucional da adoção de técnicas consensuais
poder de polícia, defendendo-a não apenas de seus críticos, mas também,
- como se houvesse um "princípio da consensualidade" inscrito em nossa Constituição. A e principalmente, dos prosélitos de conceitos que lhe sejam próximos.
maioria dos autores, no entanto, ao tratar da consensualidade, fazem-no ligando-a à propor- Até que esse dia chegue, ficaremos presos ao conhecimento convencional:
cionalidade-necessidade, em especial quando da aplicação de sanções: o Estado teria dever de
optar por soluções menos gravosas ao particular, o que frequentemente recairia na obrigaç.lo
polícia administrativa econômica não é regulação jurídica da economia. 810
da adoção de soluções negociadas entre Poder Público e administrado. Já outros autores acre- Por fim, poder de polícia não é relação de sujeição geral. Aqui, falamos
ditam que o exercício do poder de polícia é incompatível com acordos de vontade: a fonte da distinção entre sujeição geral e sujeição especial. A relação de sujei-
da imposição de obrigações deve ser, sempre, e de modo direto, a lei. Em nossa opinião, há
de se descartar, por absurda, a ideia de um "princípio constitucional da consensualidade",
ção geral dos administrados em relação à Administração, cuja forma de
banalização tanto da noção de princípio constitucional quanto da de consensualidade. Além
disso, tal princípio seria inútil: ele seria, apenas, uma manifestação do dever de proporcionu-
lidade. O ponto é, precisamente, a incidência do dever de proporcionalidade. E o problema
Administrativo, p. 199-230; MARQUES NETO. Limites à abrangência e à intensidade da regu-
no argumento da grande maioria dos autores de Direito Econômico, no Brasil, é que ele, inle-
lação estatal. Revista Eletrô11ica de Direito Administrativo Ecollômico- REDAE. Para o princípio
ressadamente, só analisa a situação à luz das "medidas menos gravosas ao particular", mas se
da proporcionalidade em geréll, v. SILVA. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais,
esquece da segunda parte da formulação da "regra" da necessidade (ou subprincípio, ou pos-
p. 23-50. Contra a ideia de que se possa falar da consensualidnde junto ao poder de polícia ("A
tulado normativo aplicativo, ou máxima, ou seja lá como se queira chamá-lo): devem-se adotar
fonte que legitima a intervenção estatal na ordenação das atividades privadas, impondo limi-
as medidas menos compressivas de direitos fundamentais do particular, na medida em que
tações administrativas, vedações, condicionamentos ou sanções etc., decorre sempre e neces-
garantam, com iutensidade semelhante, a realização do objetivo. Não foram poucas as vezes em
sariamente de lei, e nunca de contrato ou de outro acordo de vontade"), v. FURTADO. Curso
que se vindicou a adoção de medida administrativa "menos restritiva a direito fundamental
de direito administrativo, p. 650.
do indivíduo" sem que se levasse a sério a eficiência da obtenção do propósito ao qual aquela
medida se propunha, o que não deixa de ser curioso, no mínimo porque a eficiência adminb- ''n Quando falamos em novas técnicas, não queremos nos referir, apenas, à adoção de critérios
trativa também é princípio constitucional (art. 37, caput, CRFB/88). Não existe nada próximo a mais consensuais e flexíveis no momento da aplicação das sanções de polícia. Técnicas de
um "dever constitucional genérico de suavidade no trato com o particular". O dever de propor- controle e de conformação dos setores econômicos incidentes sobre a entrada e a saída do
cionalidade-necessidade é uma exigência de minoração de efeitos lesivos dimlfe de altematíras exercício da atividade ou sobre zonas de distribuição do mercado, eventuais limites de preço,
que resultem em efeitos próximos. E, a par disso, muitas das propostas de "consensualização" t' imposição de deveres de compartilhamento de infraestrutura etc., tudo aquilo que Gaspar
de "flexibilização" caem por terra porque, (i) ou não servirão para a obtenção de resultado~ Arifio Ortiz chamou, para diferenciar da polícia administrativa (para ele, sinônimo de "regu-
próximos às soluções de força, ou (i i) porque não há metodologia capaz de demonstrar que os lação externa"), de "regulação interna" poderia ser incluído nesse ampliado conceito de poder
resultados preferidos realizarão o objetivo de modo parecido (tudo o que há são afirmações de polícia. Regulações interna e externa virariam, então, uma única coisa: o novo poder de
que expressam muita confiança). Por outro lado, e como contraponto a grande parte do que se polícia (ORTIZ. Principias de dereclw público económico, p. 302-303).
falou, em nossa opinião há, sim, espaço para a adoção de técnicas consensuais de polícia. Não 00 '' "As agências reguladoras foram concebidas para o exercício precípuo do poder de polícia.
vemos nenhuma contradição entre tais técnicas e a polícia administrativa. E a explicação é sim- O condicionamento de liberdades e da propriedade ao interesse da coletividade está na raiz
ples: o exercício do poder de polícia, como qualquer ocasião de limitação de direitos, far-se-á da ideia de agência reguladora". "Não seria despropositada a afirmação de que uma agência
conforme à máxima da proporcionalidade, a qual inclui a ideia de necessidade, ideia que, por reguladora nada mais é que um plexo personalizado de poderes de polícia, organicamente
sua vez, pode sugerir a adoção de soluções consensuais como meios menos lesivos dos direitos instrumentalizado para um setor específico do exercício das liberdades ou gozo da proprie-
fundamentais dos particulares afetados pela medida em consideração. Defendendo a ideia de dade" (MARTINS. Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO, José Eduardo Martins;
que há um princípio constitucional da consensualidade, v. PESSÓA. Os paradigmas jurídicos QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito ndministrafivo econômico, p. 363, 364).
e as relações entre política e direito. Revista de Direito Administrativo, p. 115-131. Sobre o tema 1;10 Mas, se for inevitável o abandono da denominação "poder de polícia", nossa sugestão vai para
em geral, v. MOREIRA NETO. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Rn,ista discipli11n das atividades eco11ômicas, em vez de "polícia" (por causa do suposto ar autoritário) ou
de Direito Administmtivo, p. 129-156-132; ARAGÃO. A consensualidade no direito administm- "limitação" (às vezes, a atividade administrativa não limita, no sentido técnico de "restrição",
tivo: acordos regulatórios e contratos administrativos. Revista de Direito do Estado, p. 155-174; mas impõe um fazer ao administrado). Há, também, a vantagem de que a expressão "ativi-
OLIVEIRA; SCHWANKA. A administração consensual como a nova face da Administrução dades econômicas" engloba as noções de serviços públicos e de atividade privada em sentido
Pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ução. estrito, tal como entende a maioria da doutrina de Direito Econômico (por exemplo, GRAU. A
In' ANAIS DO CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E ENSINO DE DIREITO Ordem Econômica 1111 Constituição de 1988, passim). '1\dministração Ordenadora" é boa proposta,
- CONPEDI. Para o uso do argumento da proporcionalidade no Direito Econômico, entre mas foca no aspecto institucional - "Administração" - quando a ideia é entender para con-
tantos, v. ARAGÃO. O princípio da proporcionalidade no Direito Econômico. Revista de Direi/o trolar, e melhor executar, a atividade.
322 I
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDO~ÇA
DIREITO CO:-JSTITVCimML ECO:-JÓ:O.!ICO
SEGUNDA J'A!\TE- A!'UCAÇÚES
C:\!'fTULO 2 -A DISCII'UNA DAS ATIVIDADES l'ltlVADAS ...
I 323
incidência se dá pelo poder de polícia, é a possibilidade, a que todos os e 0 conjunto de leis válidas e em vigor naquele Estado, e ela incidirá em
administrados se sujeitam pelo fato de fazerem parte de uma comunidade todas as atividades privadas ali exercidas, sejam autorizadas ou comuns,
politicamente organizada, de terem o exercício de seus direitos restringido, ainda que em distintas intensidades. A forma pela qual a sujeição geral se
e, no limite, suprimido. A nomenclatura "relação de sujeição" é das poucas realiza é pela incidência do poder de polícia.
que, até agora, sobreviveu relativamente incólume aos novos tempos do A sujeição especial, por sua vez, nasce a partir da circunstância fática
Direito Administrativo, o que não deixa de ser curioso, porque não seria de o administrado estar vinculado à Administração por força de um con-
muito difícil alguém sugerir que "sujeição" é palavra autoritária e pouco trato ou por ostentar natureza ocupacional específica (servidor público,
adequada ao Estado Democrático de Direito.
aluno de colégio público etc.), e sua fonte é ou o contrato administrativo
Tirante a digressão, a sujeição geral é a razão pela qual a loja de
ou a lei que rege a ocupação. A sujeição especial se realiza pela incidência
laticínios pode ser interditada ou a feira-livre precisa de autorização. A
sujeição geral está presente tanto nas atividades privadas comuns quanto dos deveres contratuais ou legais específicos.
nas que se convencionou chamar de atividades privadas autorizadas ou Há muitas outras coisas que o poder de polícia "não é". Ele não é,
regulamentadas (ou, de modo impróprio, "serviço público virtual"): ati- por exemplo, poder disciplinar, 813 tampouco nenhum dos outros "poderes
vidades privadas, exercidas pelo particular por direito próprio e em seu ad 1ninistrativos" aos quais a doutrina se refere. Mas é hora de se avançar
nome, terreno da iniciativa privada, mas cujo exercício depende, excepcio- na apresentação do ten1a, rumo às suas principais características.
nalmente, de prévia autorização pública, nos termos do art. 170, parágrafo
único, da Constituição da República. 811 A razão para a autorização é seu
objeto, tido como de interesse público: são os bancos, as seguradoras, as 2.2.3 Características e classificação do poder de polícia
empresas de capitalização, as lojas de armas ou de fogos, as farmácias etc. Diz-se que o poder de polícia é (i) discricionário, (ii) presumivelmente
Nos casos de atividade privada autorizada, espera-se que o particular tolere válido e verdadeim, (iii) eventualmente autoexecutório, (iv) exigível, (v) instru-
uma maior interferência estatal no controle de sua atividade. Mas, tanto mental à realização dos direitos fundamentais, (vi) ilzstmmental à realização da
na atividade privada comu1n como na autorizada, a razão da intervenção democracia.
do Estado é a sujeição geral, e seu modo, o poder de polícia. A doutrina tradicional afirma que o poder de polícia (i) "é, em prin-
Já a sujeição especial é a que decorre de um estado particularíssimo cípio, discricionário". 8 H Em sentido contrário, alguns ~utores passaram a
do administrado, que o excepciona dos outros administrados e o liga de afirmar que a polícia administrativa seria atividade VInculada.
l'! modo individual à Adminish·ação Pública: em geral, um contrato adminis- Tal modo de perceber a ação administrativa peca por exagero e por
trativo ou um vínculo estahltário. 812 É evidente que, tambén1 na sujeição simplificação. Exagero, na medida em que a afirmação da vinculação só se
especial, o administrado deverá ter respeitados seus direitos fundan1entais.
faz como reação à percepção de que, quando se fala em discricionariedade,
Assim como, na sujeição geral, o particular autorizado sofre a incidência
está-se falando em arbítrio - e não é nada disso. Não é preciso ingressar
de um poder de polícia mais intenso, mas, ainda assim, respeitoso de
no terreno da vinculação para que determinado ato administrativo possa
seus direitos, também na sujeição especial a Administração Pública, já
aqui não mais tecnicamente por força de um poder de polícia, mas por ser não arbitrário: basta o exercício correto da discricionariedade.
poderes específicos da relação contratual ou decorrentes da lei-estatuto, O principal problema não é esse. É que afirmar que um ato "é"
poderá submeter o administrado a um regime mais adstringente, ainda discricionário "ou" vinculado pressupõe simplificação irreal da atividade
que sempre respeitoso de direitos e liberdades. administrativa. Os atos são mais ou menos vinculados, a depender dos
Para resumir: a sujeição geral nasce com a circunstância fática de o in- termos da lei com base na qual serão praticados. Há atos que, de fato, são
divíduo pertencer ou estar em determinado país, sua fonte é a Constituição bastante vinculados, ou intensamente abertos à discricionariedade, mas,
no cotidiano do Direito Público, são exceções. A maioria dos atos está
entre os extremos.
311
Art. 170, parágrafo único: "É assegurado n todos o livre exercício de qualquer atividade eco· Há, então, predominância estatística de atos de polícia mais vin-
nômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo 110s casos previstos ew lei" culados ou mais discricionários - para que se possa salvar a afirmação?
(grifas nossos). As atividades privadas autorizadas são, precisamente, os "casos previstos em
lei" nos quais se exige a prévia autorização.
1112
Mas também, por exemplo, o usuário de uma biblioteca pública ou um aluno de um colégio
público, ambos sujeitos às regras específicas de funcionamento dos locais, e, que, muitas vezes, nn CAETANO. Pri11cípios fimdmnelltnis do direito ndmi11istrativo, p. 271.
s5o verdadeiros mini-estatutos. 111 1
• MEIRELLES. Direito ndmi11istrntivo brasileiro, p. 134.
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/OSÊ VICENTE St\NTOS DE MENDONÇA SEGUNDAPARTE-APLICAÇÓES
C,\I'ÍTULO 2-A DISCIPLJN,\ DAS ATIVIDADES PRIVADAS ...
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DIREITO CONSTITUCIONAL ECO/>.:Ó~IICO

Embora autores importantes afirmem urna coisa815 e outra, 8I6 não popular. Presumir que algo é válido significa pressupor que esta coisa é
acreditamos nisso, sequer vemos utilidade em buscar tal classificaçãoJm compatível, tanto formal quanto materialmente, com o Ordenamento. A
Ela não adianta nenhum conhecimento nem produz nenhuma função de presunção de veracidade implica assumir que determinada pressuposição
descarga argumentativa. 818 ou afirmação pública corresponde a uma circunstância, característica ou
E há um terceiro ponto, de rigor técnico: não é o ato que é discri~ evento realmente existente no mundo fenomênico.
cionário ou não; não se trata de atributo dele, mas de característica das Vamos analisar a presunção de validade e de veracidade.
normas com base nas quais ele vai ser exercido.819 Só se poderia falar de Há três possibilidades de se entendê-las. Na primeira delas, signi-
poder de polícia "discricionário" se se estivesse pensando no poder de ficaria que os atos administrativos são tidos corno válidos até prova em
polícia em sentido arnplo820 - isto é, na faculdade de editar leis restritivas contrário: o particular deve não apenas os impugnar, mas fazer prova de
ou conformadoras de direitos -, e, mesmo assim, tal discricionariedade sua invalidade. Nesse sentido, tal presunção é banal, já que quem alega
legislativa estará condicionada, no mínimo, pela Constituição. tem de provar a alegação em qualquer hipótese, seja questionando ato
Fala-se que o poder de polícia (ii) é, também em principio, válido, e basea- administrativo ou não.
do em alegações verdadeiras. É a tradicional característica apontada nos atos No segundo sentido, a presunção de validade (aqui, muito mais
administrativos: a presunção relativa de validade e de veracidade, por vezes presunção de veracidade) significaria que o particular teria de ser obrigado
chamada ou apresentada conjuntamente à presunção de legitimidade. a fazer prova negativa em relação a fatos alegados pelo Poder Público: o
Ocasionalmente, fala-se que a legitimidade é a sorna da presunção particular teria de provar a ocorrência dos fatos que alega e a não ocorrência
r.·> de validade e de veracidade. Os conceitos são distintos, embora às vezes dos fatos alegados, em defesa, pelo Poder Público. O Poder Público pode-
apareçam comprimidos na presunção. Presumir que algo é legítimo sig- ria se beneficiar da inércia, já que, sem provar o que alega, ou alegando
nifica pressupor que seu conteúdo corresponde a emanação de soberania genericamente a presunção, a causa, em princípio, seria sua.
Nesse sentido, a presunção de veracidade é absurda e incompatível
com a ideia de publicidade, transparência, verdade material, contraditório,
1115
"A multiplicidade proteiforme das actividades individuais perigosas não permite que as leis ampla defesa, presunção de inocência, e, no limite do argumento, com o
prevejam todas as oportunidades em que as autoridades policiais hajam de actuar e os modos
próprio Estado de Direito. 821 Todos devem provar o que alegam, e alegações
pelos quais devam fazê-lo. Nasce daí o caráter normnlmeufe discricionário dos poderes de poli-
cia'' (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administmtivo, p. 272, grifas no_ original). genéricas são, apenas, papel e tinta em vão.
Afirmando que a atividade de polícia é "predominantemente discricionária" (ARAUJO. Cur.~o No seu terceiro sentido, a presunção de validade e de veracidade sig-
de direito admbzistmtivo, p. 992).
·,' .. ,' nificaria incren1ento no peso dos argumentos alegados pela Administração
;,.
816
"A rigor, se nos dermos no trabalho de examinar as situações em que o Estado exerce a ativi-
dade de polícia, verificaremos que n quase totnlidnde delns se i11sere 110 âmbito vinwlado dn ntunçáo Pública, de tal modo que, na dúvida, a causa deveria ser julgada de modo
ndmillistmtivn" (FURTADO. Curso de direito ndministmtivo, p. 653, grifas nossos). favorável ao Estado. E, talvez, o sentido mais profundo, argumentativo e
617
Seria hipoteticamente possível elaborar um levantamento empírico que, para certos atos, em "material" da presunção: na dúvida, atos públicos são válidos e verdadei-
certo período, em certa localidade, identificasse a predominância de atos de polícia mais vin-
culados ou mais discricionários. A pesquisa, no entanto, seria metodologicamente bastante
ros. Aqui, a presunção conecta-se com a ideia de presunção de legitimidade
complexa (qual a métrica correta para a escala de vinculação?), e dificilmente produziria co- do Estado e de presunção de boa-fé na atuação da Administração.
nhecimento socialmente útil. Embora, em princípio, sejamos contrários a distribuições não equita-
8111
Cf. ALEXY. Teoria da argumentação jurídica: n teoria do discurso racional como teoria da justifi- tivas de cargas argumentativas - sem falar no quão difícil é operacionalizar
cação jurídica, p. 254, grifas no original: "É possível à justificação dogmática adotar, ao menos
provisoriamente, itens que foram previamente examinados e aceitos. Isso reduz o encargo isso, sem o transformar numa blindagem dos atos públicos -, parece-nos
do processo justificativo, a ponto de, na ausência de alguns motivos especiais, novo exame que tal presunção como peso no argumento deva ser mantida, à conta do
ser desnecessário. Podemos ser isentos de discutir de novo toda a questão de valor em mda caráter transindividual dos interesses buscados pela Administração.
caso. Essn função redu tom de encnrgo não só é indispensável para o trabalho do tribunal que
ocorra sob limites de tempo, mas também de importância para a discussão jurídica científica. Tal presunção como peso no argumento deve, no entanto, ser qua-
Também nessa esfera - como em todas as esferas - é impossível discutir tudo de novo em lificada pela experiência. A presunção de validade e de veracidade do ato
todos os casos". A função de descarga da dogmática jurídica é, muito simplesmente, aquela gra- administrativo não pode ser tomada como afirmação fundacionalista,
ças à qual, segundo Atienza, "não se precisa discutir tudo a cada vez" (ATIENZA. As Ra:üt':õ do
Direito: teorias dn nrgumentnçiio jurídica). Ainda, ver ÁVILA. Teoria dos princípios: da definição il
aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., p. 56-57.
819
Embora se possa aceitar o uso com base numa espécie de metonímia jurídica. l·lt GUEDES. A presunção de veracidade e o Estado Democrático de Direito: uma reavaliação
uw CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à margem de Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA. que se impõe. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito ndmiuistmtivo e seus uovos pnmdigmns,
Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a Agustín Gordillo, p. 165. p. 241-266, pnssim.
326 I
JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDOZ...:ÇA
DlRE!TO CONSTITUCIONAL ECONÓ)>llCO
SEGUNDAPARTE-APLlCAÇÓES
CAPÍTULO 2 -A DlSCl!'L!NA OAS ATIVIDADES PRIVADAS ...
I 327

alheia ao contexto, e, assim, antipragmática. A presunção de validade e de teoria "extensiva" (a executoriedade seria a regra dos atos administrati-
veracidade dos atos administrativos é, também e especialmente, dado fático vos) ou "restritiva" (executoriedade só em casos urgentes ou em hipóteses
construído experimentalmente a partir da confiabilidade da instituição previstas em lei), acreditamos que se deva inclinar pela última, que não é,
que promove o ato, da confiança e da qualidade témica das pessoas que em rigor, "restritiva" (ou só o é em comparação com a outra teoria), mas, é,
normalmente o executam, e da forma como ele vem sendo praticado. É simplesmente, a única que leva a sério o conceito dos direitos fundamentais
dizer: a presunção de validade e de veracidade é muito mais algo que se dos particulares.
conquista do que algo que se deduza da qualidade pública do ato. As hipóteses legais de autoexecutoriedade de polícia costumam
Mas a verdade é que o atributo não é característico, apenas, dos envolver autorizações normativas para apreensão de produtos, destruição
atos de polícia, mas dos atos administrativos em geral. Logo, a caracterís~ de ruínas, construções irregulares, medidas sanitárias e de controle de
tica perde força: ela não diferencia o poder de polícia; ela só comprova a doenças. Nos casos em que não há lei autorizativa expressa, a autoexe-
circunstância, que ninguém duvida, de que o poder de polícia se trata de cutoriedade deve ser o resultado de ponderação em concreto entre os
uma atuação pública. interesses envolvidos, sempre sob o fundamento da urgência na adoção
Também se fala que o poder de polícia (iii) é, eventualmellte, autoexe- do ato (e jamais com o propósito da sanção, cuja aplicação deve ser pre-
cutário. Isso significa que há atos de polícia que podem ser praticados cedida do devido processo legal), e, ainda, respeitosa do núcleo essencial
independentemente da anuência prévia de outros poderes 822 (significativa- do direito restringido. 826 827
mente, do Judiciário). 823 Mas há outros cuja prática deve passar pelo crivo O poder de polícia é (iv) exigível. Aqui, não vamos gastar muita
do Judiciário (uma multa fiscal só pode ser cobrada em juízo). energia. Significa, apenas, que a polícia se realiza pela tomada de decisões
Na vida privada, são raros os atos autoexecutórios: poucos são os que independem da concordância do particular. A classificação, originária
que já viram a hipótese de retenção de bagagem de hóspede (art. 1.467 c/c da doutrina francesa, foi adotada tanto por brasileiros quanto por autores
1.470 do Código Civil), embora a legítima defesa da posse exista para além de outras nacionalidades, mas é de reduzido poder explicativo.
do texto legal (art. 1.210, §1 º, Código Civil). Claro que os atos de polícia, As próximas duas características do poder de polícia incorporam
mesmo os autoexecutórios, não estarão insubmissos à apreciação, nesse a principal negação e a principal afirmação do presente capítulo. A elas.
caso posterior, do Judiciário. A questão não é aceitar que atos de polícia Hoje se fala que o poder de polícia (v) teve seu conceito instrumen-
possam ser autoexecutórios (eles podem ser, e isso é óbvio), tampouco talizado à realização dos direitos fundamentais. Marçal Justen Filho define
encontrar motivo para tanto (a segurança e a organização da sociedade polícia administrativa como "competência para disciplinar o exercício
são explicações bem cotadas;824 quem duvidar que vá sugerir que o Corpo da autonomia privada parn a realização de direitos fundamentais e da demo-
de Bombeiros tenha de solicitar uma injunção judicial antes de apagar um cracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade" 828 A
incêndio). expressão em itálico pode ser entendida em dois sentidos - um sentido
O problema está em delimitar parâmetros operacionais e compa-
forte e um fraco -, e só quando ela é entendida em sentido fraco a frase
tíveis com o Estado de Direito com base nos quais a autoexecutoriedadc
neutraliza seu potencial de autocontradição. Explica-se.
possa ser exercida. 825 Embora exista controvérsia a respeito da adoção de
A conceituação-padrão de direitos fundamentais é o da fundamen-
talidade material: direito fundamental é o direito que se presta a realizar,
1'11 É claro que estamos falando de "outros poderes" em prol da simplicidade do texto, já que todas direta e imediatamente, a dignidade da pessoa humana. 829 Trata-se de crité-
as funções estatais - e não, tecnicamente, "poderes", já que o poder estatal é uno - praticam rio não formal, que utiliza como indício a presença do direito no Catálogo
atos administrativos.
1113
"A auto-executoriedade, ou seja, a faculdade de Administração decidir e executar diretamente
sua decisão por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário, é outro atributo do poder
de polícia" (MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 134-135, grifos no original). ~:ú BOMFIM; FIDALGO. Releitura da auto-executoriedade como prerrogativa da Administração
~
0 1
BORGES. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução?. Revista de Dirâto Pública. In: ARAGÃO; iv1ARQUES NETO. Dirdtoadministmfivo e seus 11ovos paradigmas, p. 267-309,
do Estado, p. 137-153. passim.
825 Boa criterização continua sendo, na doutrina brasileira, a de Celso Antônio Bandeira de Mdlo: m Ver, à frente, análise sobre a essencial incompatibilidade entre ponderação e núcleo essencial.
"a) Quando a lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da medida for urgente pi.U.l <1 Como veremos, afirmar que algo "deve ser ponderado" e que tal ponderação "deve respeitnr
defesa do interesse público e não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem o núcleo essencial dos direitos" é, no fundo, supérfluo.
1'":1 JUSTEN FILHO. Curso de direito administmtivo, p. •159, grifos nossos.
sacrifício ou risco pam a coletividade; c) quando inexistir outra via de direito capaz de assegur.1r?
satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento tl ":'' Por todos, v. SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos funda-
medida de polícia" (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 829). mentais na perspectiva constitucional, passim.
328 I jOSE VICENTE SANTOS DE :0.1ENDO:"<ÇA
DIREITO CONSTITUCIOi>JAL ECO;>..;O)>l!CO
SEGUNOt\ [',\RTE-APLICAÇÓES
CAPÍTUL02 -A DISCIPLINA DASAT!V!DAOES !'R!V,\OAS...
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de Direitos Fundamentais da nossa Constituição. Há direitos fundamentais conceito de direitos fwzdamentais é subinclusivo em relação à multitude de ati-
que estão Já, mas há outros dispersos pelo Texto Constitucional. vidades estatais. Muitas realizam diretamente a dignidade humana; outras
Ao contrário de muitos autores, que, ao apostar numa "euforia importantíssimas atividades, não. Não serão inconstitucionais por isso.
jusfundamental", acabam contribuindo para a perda de relevância do O que vale para o serviço público vale para o poder de polícia, ainda
conceito, a posição restringe para valorizar: o que é direito fundan1entul mais diante da integração material das atividades (ver acima). No mesmo
deve ser imediatamente sindicável, inclui-se no conteúdo protegido pelas exemplo, o ensino público superior não significa a realização de qualquer
cláusulas pétreas e é objeto de técnicas específicas de interpretação. Mas direito fundamental. Portanto, a atividade de polícia administrativa inci-
só o que é direito fundamental de verdade, quer dizer, aquele núcleo de dente na Faculdade de Direito da UERJ não realiza direito fundamental,
direitos vinculado à dignidade humana de modo direto, e que é capaz de na medida em que o próprio serviço público também não o faz. Será
ser aceito de modo amplo por todas as correntes políticas e ideológicas inconstitucional por isso?
da sociedade, à maneira de um consenso sobreposto entre posições parti- Em sentido forte, a ideia de que a polícia contemporânea foi instru-
culares - ou seja: só pode ser jusfundamentalizado o que ultrapassou 0 mentalizada à realização dos direitos fundamentais é inaceitável porque
filtro da razão pública. restringe a atuação administrativa à "realização direta da dignidade humana"
Assim, por exemplo, pessoas razoáveis e de boa-fé de uma sociedade que é a essência do conceito de direito fundamental. Tal restrição é anti-
contemporânea estão de acordo a respeito de que o conteúdo "ensino democrática. Ela limita indevidamente o espectro de escolhas legislativas.
fundamental" realiza a dignidade da pessoa humana. Existe, então, um Não há nada de inválido, por inconstitucional, se a população do Estado
direito fundamental ao ensino fundamental. O mesmo já não se pode do Rio de Janeiro constituiu a UERJ como uma instituição autárquica de
dizer sobre a ideia de ensino superior: há um bem articulado conjunto de ensino público superior. Amanhã pode acl1ar que a escolha não foi a melhor,
argumentos contra a ideia de que seja conteúdo vinculado diretan1ente à revogando a lei, porém isso pertence antes ao jogo democrático do que às
dignidade humana. Não existe, por isso, um direito fundamental ao ensino categorias da doutrina.
superior830 O que não significa proibir o Estado de prestá-lo; sem dúvida, É dizer: se se entende que a frase "o poder de polícia foi instru-
é importantíssima utilidade que o Poder Público pode colocar à disposição mentalizado à realização dos direitos fundamentais" quer dizer "o poder
de seus cidadãos na qualidade de serviço público. O Estado brasileiro,
de polícia só pode atuar para a promoção dos direitos fundamentais", ela
inclusive, historicamente presta o serviço. Mas o ponto pacífico entre as
ingressará em contradição com a ideia de que "o poder de polícia existe
l _), muitas ideologias é: ninguém terá seu valor intrínseco de homem violado
para a realização da democracia", na medida em que existem diversas
se não possuir urna graduação universitária, um mestrado, um doutorado.
atividades públicas democraticamente referendadas que não promovem
Ao contrário, tal violação é consensualmente clara ao se deparar com um
homem adulto incapaz de ler, escrever, realizar operações matemáticas. direitos fundamentais.
Em sentido fraco, a ideia de "instrumentalizado à realização de
Trata-se de ser humano incapaz de se inserir significativamente na sociedade
e de partilhar das muitas experiências compartidas pela comunicação. direitos fundamentais" pode ser lida como "necessidade de conformação
Ou seja: o conceito de direitos fundamentais é menos abrangente do aos direitos fundamentais". Esse é o sentido democraticamente possível.
que uma longa série de propósitos legítimos que podem ser (e foram) vali- "Conformação" significa "ser conforme", "não violar", circunstância, aliás,
damente perseguidos pelo Estado, na qualidade, por exemplo, de serviços óbvia, já que nenhum exercício de atividade administrativa pode violar o
públicos. Se o Estado brasileiro resolver assumir a prestação da atividade direito fundamental do particular à liberdade ou à propriedade.
de fornecimento de conexão com a internet, transformando-o em serviço Em resumo: caso se entenda que o poder de polícia só pode atuar
público, muitos não o considerarão, pelo menos no presente momento, em relação a atividades que sejam direitos fundamentais, está-se sendo
conteúdo com vinculação direta com a dignidade humana. 831 Repita-se: o antidemocrático e irrealista (já que a realidade da atuação estatal é mais
abrangente); caso se entenda que a polícia só pode atuar de modo respei-
toso aos direitos fundamentais eventualmente tocados por seu exercício,
BJo SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito
a frase é verdadeira, embora óbvia.
na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Finalmente, característica do poder de polícia, numa acepção mo-
BJt Defendendo que, já hoje, o acesso à internet é direito humano, v. a excelente obra digital de derna, é (vi) que seu conceito também seja instrumentalizado ii realização da
Bárbara Nascimento O direito humano de acesso ii internet- Fundamentos, conteúdo e exigibilidade
(Amazon Digital Services, 2014). O autor deste livro elaborou o prefácio da referida obra.
democracia.
33o 1
JOSE VICENTE St\:\'TOS DE MEI\:DONÇi\
DIREITO COI'>:STri1JC!ONAL ECONÔ:>!ICO
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CAPiTULO 2 -A DlSClPLINt\ DAS ATIVIDADES PR1Vt\0AS...
I 331

Mais uma vez, Marçal Justen Filho merece ser citado: maiores pretensões de profundidade, o ato administrativo é composto de
cinco "elementos" (ver nota de rodapé no início do capítulo): competência,
Trata-se de limitar o exercício de liberdades, o que propicia uma ativid :{
estatal dotada de grande potencial antidemocrático. [... ]Não se admite Jc:
forma, finalidade, motivo e objeto.
t, ·
as compe_enctas d,e_po d~: d ~ po I"1c~a · · · sejam utilizadasque
· a d mtmstrahva de Quanto à competência, que talvez seja a própria natureza da polícia, 835
modo ?~h~emocrat:co. E mdtspensav:ei condicionar a atividade de poder afirma-se que possui competência administrativa - na qual se inclui a
de pohCia a produçao concreta e efetiva da realização de direitos fun ~l ~ competência para a prática de atos de polícia - quem possui competên-
mentais e da democracia.m cu cia legislativa. Exerce a polícia quem pode regular a matéria. Há, ainda,
casos nos quais a competência administrativa foi diretamente prescrita
Embora aqui também a crítica que fizemos à ideia de ser "meio pela Constituição, de modo privativo para a União (art. 21 da CRFB/88)
para a realização" seja aplicável - o exercício do poder de polícia n<io
ou concorrentemente aos demais entes (art. 23). Nas hipóteses em que a
deve ser entendido apenas corno instrumento de realização da democracia
competência legislativa é concorrente entre a União, os Estados e o Distrito
mas como competência que se realiza em conformidade com a democracia _'
Federal (art. 24), também concorrente será a competência para a polícia
no essencial, concordamos com o jurista. E avançamos na proposta: bo~
adn1inistrativa. Quando não houver atribuição constitucional específica
forma de operacionalizar essa conformidade democrática é submetê-la ao
limite da razão pública. A conferir. de competência legislativa ou administrativa à União ou a algum Estado,
Município, ou ao Distrito Federal, aplica-se, de modo supletivo, a ideia
O assunto final desta incursão doutrinária é a classificação do poder
de que a competência estará vinculada ao interesse: será competente o
de polícia. O assunto é de origem francesa. Fala-se numa polícia geral e
Município ou o Distrito Federal se o interesse for local; se o interesse for
numa polícia especial. A polícia geral seria aquela cujo objeto se voltasse ao
conteúdo tradicional da Ordem Pública, na acepção francesa: segurança regional, a competência para a prática de atos de polícia é do Estado; se
tranquilidade, saúde. Já na abrangência da polícia especial estariam a~ nacional, competente será a União.
demais: polícia industrial, econômica, das profissões etc. Tudo isso é fácil de falar e difícil de fazer. Na prática, reina grande
Há um importante "porém" nessa classificação: no Brasil, ela não confusão a respeito da distribuição de certas competências legislativas e
serve para nada. A ser verdadeira a lição de Ricardo Guastini segundo administrativas entre os entes da Federação, inclusive com radicais vaci-
a qual as distinções só se justificam pela sua utilidade, 833 a classifica cão, lações jurisprudenciais.
no Brasil, perde sua razão de ser. Na França, o exercício da polícia g~ral A questão central, e que impede a pacificação do ponto, é que muitos
" dos conflitos de competência resolvem-se em conflitos acerca da qualificação
pode ser feito por regulamentos autônomos, já o da polícia especial, não.
No Brasil, não há essa diferenciação: ou se acredita nos regulamentos au- de conteúdos, com bons argumentos para ambos os lados. O horário de
tônomos, e aí eles são aceitos para o exercício da polícia corno um todo, funcionamento de agência bancária é assunto que envolve a comunidade
ou não se aceita, e aí não será urna diferenciação pelo conteúdo que os local, já que afeta as atividades do centro da cidade, a movimentação do
tornará adrnissíveis.83-1 comércio próximo etc. No entanto, também se pode argumentar que é
Passemos ao assunto dos limites clássicos ao exercício do poder ele assunto que transcende aos interesses local e regional, porque o banco
polícia. comunica-se com urna rede nacional e, por exemplo, efeh1a operações
nacionais de compensação de títulos. Qual tese deve prevalecer? Segundo
o STJ, a segunda: "Súmula n' 19 - A fixação do horário bancário, para
2.3 Limites clássicos ao exercício da polícia administra1.iva: atendimento ao público, é da competência da União". Mas, caso se trate de
elementos do ato administrativo, devido processo e lojas comerciais, e não de bancos, a competência passa a ser do Município
legalidade (enunciado n' 645 da Súmula da Jurisprudência Consolidada do STF).
O respeito à fomza é outro limite clássico ao exercício do poder de
O poder de polícia se exerce por atos administrativos, e, assim, polícia. Já se avançou muito desde a época em que se entendia respeito à
todos os critérios de controle aplicáveis a estes servirão para aquele. Sem forma corno forn1alisrno, mas o elemento ainda importa e carreia racio-
nalidade ao ato. Pensando, por exemplo, nos atos de polícia arquetípicos
12
" JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
roJ GUASTINI. Disti11guendo: estudios de teoría y metateoría dei derecho.
HJJ BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 824-826. K>:; Marçal diz que a polícia administrativa J um conjunto de competências (p. 459).
33
2 I JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
DIRE!TOCONSTITUClü:'J,\L ECONÓMICO
SEGUNDA PARTE- APLICAÇÕES I 333
CAPÍTULO 2 -A DISCIPLINA Q,\S ATIVJD,\DES PRIVADAS ...

- a licença e a autorização -, sua constituição válida pressupõe que seus Assim, no decreto ele expropriação, para falarmos na polícia da
alvarás hajam sido emitidos com o cumprimento de todas as regras formais. propriedade, 839 não basta alegar, genericamente, o interesse público na
O controle da finalidade do ato administrativo de polícia diz de um aquisição forçada do imóvel; faz-se mister declinar as razões, de fato e de
limite que, nas palavras de Marcelo Caetano, é "naturalmente imposto".fiJ(, Direito, que qualificam aquela vontade de fato como vontade constihlcio-
Seria uma condição da existência da polícia. É que seu exercício deve nalmente adequada.
pretender realizar interesses públicos razoavelmente identificáveis. A É claro que uma coisa é a necessidade de motivação, outra, comple-
disciplina pública não se presta a reforçar injustificadamente interesses tamente diferente, é a abrangência do controle judicial, que, em muitos dos
privados. Ela não se faz para incrementar a participação no 1nercado da atos motivados, será feita de modo deferente à separação de poderes, no
empresa A em desfavor da empresa B. A polícia sanitária deve revistar mínimo porque a prática de tais atos se faz pelo preenchimento fático de
todos os estabelecimentos, ou, no mínüno, os que possuam suspeita de conceitos jurídicos indeterminados pelo administrador.
venderem produtos contaminados. Outras hipóteses poderiam ser co-
O objeto ou collteúdo do ato de polícia é a modificação na realidade
gitadas, embora tal limite não seja exatamente exclusividade da polícia
causada pelo exercício da atividade de limitação administrativa. É a pos-
administrativa: nenhuma atividade estatal se justifica sem o propósito da
sibilidade de se dirigir pelas ruas do país, com a licença para conduzir
persecução do interesse público. A teoria do desvio de finalidade, clássica
veículo automotor; é a suspensão das atividades de preparo de refeições,
no Direito Administrativo, é inteiratnente aplicável ao controle do poder
de polícia. 837 com a interdição do estabelecimento. Afirma-se que deve ser lícito e pos-
O controle do motivo do ato de polícia - os pressupostos de fato e sível. Possuiria objeto ilícito uma polícia administrativa da qualidade da
de Direito com base no qual o ato é praticado - faz-se pela verificação de heroína; impossível, uma polícia da navegação entre galáxias. Os exemplos
se tais pressupostos existem e se são válidos. não precisam ser tão extremos, mas o exagero reforça o conceito.
Muitas vezes, um ato administrativo viciado em seu motivo é, essen- Além dos elementos do ato administrativo, há, ainda, como limite
cialmente, um ato administrativo praticado em desvio de finalidade, então clássico, a submissão do ato de polícia a um devido processo legal que respeite
é importante ter em mente que tais elementos existem mais como categorias o contraditório e a possibilidade de ampla defesa por parte do adminis-
racionais elaboradas com propósitos didáticos e de simplificação do que trado. É no exercício da polícia que culmina com a aplicação de sanções
como descrições realistas e minudentes. que tal limite aparece em sua plenih1de 8 ·10
Curiosamente, se o controle do motivo do ato é feito pela análise Dois exemplos envolvendo a cidade do Rio de Janeiro: na constitui-
dos fatos e dos fundamentos jurídicos invocados para sua prática, não há ção das Áreas de Preservação do Ambiente Cultural, as APACs, qualifica-
sentido na tese que diz que só alguns atos devem ser motivados, isto é, ções jurídicas, oriundas do exercício de polícia urbanística municipal, que
que só alguns devem ter seus elementos de motivação indicados de modo restringem alguns direitos dos proprietários de imóveis em áreas de valor
expresso. Não há ato administrativo que escape à motivação, tanto que urbanístico e cultural, várias decisões judiciais entenderam que o decreto
isso é fundamental para seu controle. 838 do Prefeito, simplesmente listando os imóveis, não permitiu o exercício da
ampla defesa dos titulares dos bens atingidos pelas restrições.
836 CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 276. "Não está no âmbito das
suas atribuições, por exemplo, ordenar a execução de um contrato ou fazer pagar uma dívida"
(p. 277). No mesmo sentido: "O exercício do poder de polícia deve ser submetido aos limites (procissões, comboios fúnebres etc.). Presume-se que tais condutas não ameaçam a tranqui-
que decorrem da Constituição Federal e das leis. A missão da polícia é a de proteger a ordem lidade pública. Se o Estado pretender limitá-las, deve não apenas motivar tal propósito, mas
pública, na medida em que se fala de polícia de segurança. Logo, a polícia não poderá colocar a fazê-lo de modo bastante justificado. V. a decisão do Conselho de Estado em Abbé Didier,
força de que dispõe à disposição da proteção de interesses exclusiva meu te privados" (LIMA. PriHCÍfiÍO~ julgado em 1l! de maio de 1914. Cf. GAUDEMET. Droit admiuistratif, p. 313. De qualquer modo,
de direito administrativo, p. 319, grifas nossos). nossa afirmação no curso do texto pode ser excepcionada uma única razão: a urgência. Nesse
ro 7 "É, sobretudo, em relação aos atos de polícia, por sua natureza discricionária, que o controle da sentido, MINET. Droit de In police administmtive, p. 233-234.
legalidade do fim objetivado na ação administrativa adquire relevo especial. Ele correspondC' 113
' A doutrina discute se a desapropriação e as demais limitações à propriedade poderiam ser
à eliminação dos processos maliciosos e sub-reptícios (e, por isso mesmo, socialmente mais enquadradas dentro do poder de polícia. A maioria dos autores, topograficamente, coloca o
nocivos) de arbítrio administrativo acobertado pelo aparente respeito à lei" (TÁCITO. 71.'11111~ assunto à parte, embora alguns deem a entender que a desapropriação é o exercício extremo
de direito ptíblico: estudos e pareceres, v. 1, p. 531). de uma polícia da propriedade. Não entraremos no assunto.
mg Os motivos são tão importantes para o controle dos atos de polícia que, na França, há certJs 1; 10 "As decisões individuais de polícia devem ser precedidas de um procedimento contraditório,
condutas privadas que carreiam uma tradicionalíssima presunção (relativa) de ausência de molit'O que permite a seus destinatários apresentnr suas observações e fazer valer seus direitos"
de polícia em favor do particular: são as manifestações exteriores tradicionais de religiosidade (MINET. Droit de la police admi11istrntive, p. 234).
SEGUNDA Pt\1\TE -t\l'L!Ct\ÇÓES
JOSÉ VICENTE SAl\.'TOS DE ~IENDO:-JÇA
334 1 CAPÍTULO 2- A DJSCJPLINA DAS IITJVJDADES PRIVADAS ... 1 33s
D!RElTOCONSTITUCIO:\!AL ECONÓ)>.l!CO

Segundo exemplo: nos primeiros dias de governo, certo prefeito do estão presentes há mais de cinquenta anos na doutrina e na jurispru-
Rio pretendeu demolir prédio construído em área irregular, o "minhocão dência estrangeira. Eles também são "novos" no seguinte sentido: são os
da Rocinha". As escavadeiras estavam prestes a fazê-lo, quando foi defe- que mais recentemente foram apresentados à prática jurídica brasileira.
rida medida liminar, posteriormente cassada, questionando a ausência elo Verdadeiramente novos ou não, fato é que é neles que se centra a propalada
devido processo legal precedentemente ao exercício da sanção de polícia. jusfundamentalização do poder de polícia."'
Quiçá o exemplo mais trivial de necessidade de devido processo legal A dignidade lllmzana ingressou no terreno do Direito Público justa-
antes da aplicação de sanção administrativa seja o das multas de trânsito; mente pelo poder de polícia, embora não como limite a seu exercício, mas
poucos escaparam da dupla notificação - a da autuação e a da aplicação da como possibilidade de abrangência. E ela ingressou graças a um caso fran-
multa propriamente dita-, e de seu rosário de instâncias administrativas cês famoso no Brasil: o do arremesso de anões. Estabelecimento comercial
(depois da notificação, a Comissão de Defesa Prévia; após a multa, aJunta de pequena cidade francesa, Morsang-sur-Orge, resolveu trazer a atração,
de Recurso de Infração de Trânsito, e, em caso de insucesso, o Conselho a municipalidade proibiu a atividade alegando violação à dignidade hu-
Estadual de Trânsito). mana, a decisão foi mantida pelo Conselho de Estado, sob o argumento de
O último e, possivelmente, o mais óbvio linlite clássico ao exercício que a Ordem Pública incluía o respeito à dignidade humana 843
da polícia é o respeito à legalidade. Aqui vale a observação acaciana: h·ata-se Três observações: 1. A partir daí, 8H segmentos da doutrina france-
de princípio geral do Direito Público, jamais de particularidade dos atos sa passaram a afirmar que houve o alargamento do conceito de Ordem
administrativos ou dos atos administrativos de polícia. Muitos até falam
que, de todas as atividades do Estado, a de polícia seria a que mais reque-
reria a observância à legalidade.s.. 1
Contudo, não há de se confundir respeito à legalidade com exi- A respeito da submissão geral do Direito Administrativo ao regime dos direitos fundamen-
1'1"

tais, v. SANTOS NETO. O impacto dos direitos humanos fundamentais 110 direito admi11istrativo.
gência de pré-determinação exauriente de comportamentos públicos ou Especificamente sobre a submissão do poder de polícia aos direitos fundamentais e aos limites
privados; à luz da diversidade da ação estatal, isso seria impossível. A lei mais "modernos", além dos manuais, que hoje em dia já se referem ao assunto -,ver, por
pode facultar à Administração Pública a adoção de uma disciplina mais exemplo, FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública e o reexame dos
institutos da autorização de serviço público, da convalidação e do "poder de polícia adminis-
discricionária, desde que dentro de certos parâmetros de controlabiliclacle trativa". In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, espe-
e de racionalidade. Não se admite autorização legislativa genérica, mas do cialmente p. 326-332; FREITAS. Direito fimdmnental à boa admi11istrnção, p. 114-125; MORGADO.
que se está tratando não é disso: respeitados certos parâmetros - inteli- Direito à boa administração: recíproca dependência entre direitos fundamentais, organização
gibilidade, previsibilidade, possibilidade de controle em bases objetivas, e procedimento. Revista de Direito da Prowradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 68 et seq.
m Conséil d'État statuant au contentieux, n!! 136.727, 27 de outubro de 1995. Da decisão, alguns
., início de descrição -, a atribuição de discricionariedade à Administração trechos merecem destaque: "Considerando que cabe à autoridade investida de poder de polícia
para identificar condutas e aquilatar punições é, em certos casos, Ineclida municipal tomar todas as medidas para prevenir um atentado à ordem pública; que o respeito
óbvia e salutar. à dignidade da pessoa humana é 11111 dos componentes da ordem pública; que a autoridade investida de
Falando de "parâmetros" e usando termos como racionalidade, poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais particulares, interditar
uma atração que alente contra o respeito à dignidade da pessoa humana[ ... ]; Considerando que, por seu
inteligibilidade e previsibilidade, preparamo-nos para o item a seguir: os próprio objeto, uma tal atração atenta contra a dignidade da pessoa humana;[ ... ] Considerando que o
novos limites. respeito ao princípio da liberdade de trabalho e ao da liberdade de comércio e de indústria não
é obstáculo a que a autoridade investida de poder de polícia municipal interdite uma atividade,
mesmo lícita, se uma tal medida é a única capaz de prevenir ou fazer cessar um atentado contra
a ordem pública" (tradução nossa, grifas nossos). Disponível em: <http://www.legifrance.
2.4 Novos limites: dignidade humana, proporcionalidade gouverfr/affichJuriAdmin.do?oldAction=rechJuriAdmin&idTexte=CETATEXT000007877723>.
e preservação do conteúdo essencial dos direitos Acesso em: 06 jan. 2010. A mesma decisão foi tomada para o caso Ville d'Aix-en-Prove11ce, que
trata de hipótese idêntica (o prefeito desta outra cidade interditou a atração local de arremesso
fundamentais. A superação da teoria das limitações e de anões alguns meses depois do prefeito de Morsang-sur-Orge). No Brasil, ver o comentário
sacrifícios de direitos ao caso de Joaquim Barbosa Gomes (O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa
humana na jurisprudência francesa. ADV Advocacia Dinâmica- Seleções Jurídicas, p. 17 et seq.).
A expressão "novos limites" é relacional: só faz sentido em com- 1
m Embora tenha havido referência à dignidade humana em leis e decisões judiciais francesas
anteriores. O legislador francês, em lei de 30 de setembro de 1986 sobre liberdade de
paração com os limites clássicos, já que alguns destes "novos lin1ites" comunicação, limitou-a "na medida requerida[ ... ] ao respeito à pessoa humana". No Código
Civil francês, lei de 1994 introduziu, no art. 16, dispositivo segundo o qual "a lei assegura a
primazia da pessoa, proibindo-se qualquer atentado a ela e garantido o respeito do ser humano
w "De todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, a de polícia é a que mais requer a obser· desde o começo de sua vida". O Conselho Constitucional, também em 1994, com base na
vfincia da legalidade administrativa" (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 657). primeira frase do preâmbulo da Constiluição francesa de 1946, considerou que "a salvaguarda
336 I JOSÉ VICENTE St\NTOS DE MENDONÇA
DIREITO CONSTITUCIONAL ECOI'>:Ó)I.11CO
SEGUNDAPARTE-APL!CAÇÓES
CAPÍTULO 2 -A DISCII'LINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS ...
I 337

Pública, para eles de crucial importância no exercício da polícia, com a Ora, se a polícia pode reprimir condutas privadas que violem a
inclusão de considerações de moralidade pública (mencionamos o ponto dignidade humana, como o conceito poderia lhe servir de limite?
ao h·atar da razão pública como critério de controle);"" 2. A prática difunde- Simples e, ao mesmo tempo, complexo. O exercício do poder de polícia
se pelo mundo: há arremessos de anões em estados americanos (embora ufio pode implicar n prática de atos admillistmtivos que tratem o homem como
seja expressamente proibido na Flórida e em Nova Iorque); na Austrália, meio para um fim; que llze imprimam i11suportável sofrimelliO físico e/ou me11tal.
projeto de lei proibindo a atração não conseguiu ser aprovado; 3. Longe É claro que o critério vai se prestar a alguma utilização retórica, tanto
de ser unanimidade, a decisão é contestada até na doutrina francesa.s-th que, na maioria dos casos, impor restrições a direitos não é circunstância
A partir do precedente, a doutrina, brasileira e internacional, passou que o particular aceite com sorrisos. Mas a violação à dignidade humana,
a afirmar que a polícia pode se prestar a condicionar, resh·ingir ou sacrificar no ato de polícia, é muito mais do que o desconforto com a atuação da
o exercício de direitos em prol da dignidade humana. O problema é saber Administração Ordenadora. Seria o caso, por exemplo, de desapropria-
o que isso significa. ções sem prévio pagamento; do banimento de cães-guias para cegos; da
Na maioria das vezes, apela-se à máxima kantiana segundo a qual imposição da castração de animais não violentos; da imobilização integral
o homem jamais pode ser tratado como meio para um fim, mas como um com o uso de algemas nos pés e mãos; de medidas de polícia das moléstias
fim em si mesmo. Boas tentativas para a densificação de seu conteúdo que impedissem qualquer comunicação do doente com o mundo exterior.
foram formuladas, inclusive na doutrina brasileira,s.t7 mas o assunto con- O segundo limite mais recente ao exercício da polícia só perde em
tinua polêrnico. 848 celebridade para o primeiro. Claro que estamos nos referindo à proporcio-
Saída possível é tentar identificar pontos de consenso: tortura física l!alidade. Falar da proporcionalidade como limite ao exercício do poder de
e psicológica, violência, escravidão são condutas violadoras da dignidade; polícia é, simplesmente, falar do princípio da proporcionalidade, com todos
prestação de educação fundamental e de algum nível mínimo de assistência os chavões ("balas de canhão não podem matar pássaros"), discussões
social são condutas promotoras da dignidade humana. teóricas, exemplos, propostas de incremento em seu grau de racionalidade
etc. que o terna vem suscitando ao longo dos últimos quinze anos, no Brasil,
e cinquenta, no mundo.
da dignidade da pessoa humana contra toda forma de sevícia e de degradação é um princípio de A proporcionalidade surgiu como controle ao poder executivo do
valor constitucional". O próprio Conselho de Estado fez uso da expressão em dois casos anteriores:
ao falar sobre controle de salários (Ministre des affaires socia/es et de l'emploi c. Syudicat CGT dt• fl 1 Estado. Só depois é que se passou a falar em juízo de proporcionalidade
Societé Griffiue-Man.!cha/, julgado em 11 de julho de 1990), destacou a importância de "preservar a dos atos legislativos. O que faz todo o sentido: se a atividade de polícia
dignidade da pessoa" e disse que "os princípios deontológicos fundamentais relativos ao respeito
à pessoa humana que se impõem ao médico em suas relações com seus pacientes não cessam
administrativa é, na essência, a atividade de impor restrições a direitos, é o
com a morte destes" (Mil/lwud, julgado em 02 de julho de 1993). Long, Weil et a! concluem que ",1 juízo de proporcionalidade quem vai graduar tal atividade de compressão.
afirmação do 'respeito à dignidade da pessoa humana' pelos julgados Cmmmme de Morsaug-sur· Não é necessário apelar a conhecimentos extravagantes para justi-
01ge e Vil/e d'Aix-eu-Provence constitui prolongamento de soluções bem estabelecidas no Direito
Positivo" (BRAIBANT et a!. Les grnuds arrJts de la jurisprudeuce admiuistrative, p. 733). ficar a afirmativa. Sabe-se, pelas lições de Alexy, que a proporcionalidade
815
O assunto é polêmico, porque reflete, segundo Maurice Hauriou, relutância da doutrina fran- é decorrência natural de um sistema de direitos em que muitas de suas
cesa em estender a abrangência do poder de polícia para além da "ordem material e exterior" normas possuem natureza principiológica. A polícia é a mão que opera a
(suas palavras). Mesmo assim, autores como René Chapus afirmam que a moralidade pública
seria o quarto componente do conceito de Ordem Pública (ao lado da segurança, da saUde e balança cujos pratos são a proporcionalidade, mas dentro do propósito da
da tranquilidade). Há mesmo alguns julgados do Conselho de Estado que, na opinião de al- realização de interesses transindividuais. Autores clássicos já diziam que,
guns, indicam decisões tomadas com base nesse critério (por ex., em Société "Les Films Lutetia",
julgado em 1959, o Conselho entendeu que a projeção de um filme pode ser proibida "à razão
na ideia mesma de Direito, vai contida a possibilidade da limitação de seu
de seu caráter imoral e de circunstâncias locais") (CHAPUS, René. Droit admiuistratif géuàa/, exercício.s.19 Corno diz Marçal Justen, "a proporcionalidade que informa
t. I, p. 707-711, item II - L'orde public en tant que bon ordre moral). Retomaremos o assunto o poder de polícia é reflexo da proporcionalidade que está na base dos
quando falarmos do critério da razão pUblica.
816
Destaque-se que o anão foi litisconsorte da casa de espetáculos na impugnação da decisão di)
direitos sujeitos à limitação" .850 Em rigor, nem se trata de reflexo: ela é a
prefeito, alegando que a municipalidade o privou da possibilidade de receber remuneraç.lo proporcionalidade dos direitos.
digna. Alegou, ainda, que a atividade era segura (ele usava roupa especial e capacete). Na
doutrina, de modo crítico à conclusão do Conselho de Estado, v. JEROIN. La dignité de ],1
personne humaine: ou la difficile insertion d'une regle morale dans !e droit positif. Ra>uc tlu
Droit Public; MOUTOUH. La dignité de l'homme et droit. Revuc du Droit Public, p. 159 et sr.>q. u:•J "O que devemos, entretanto, assinalar é que, na ideia de garantia de um direito vai implícita a
7
m BARCELLOS. A eficácia jurídica dos pri11cípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa possibilidade de limitação desse direito ou do respectivo exercício" (LIMA. Princípios de dirdto
humana. administrativo, p. 304).
li~·; V. crítica em HOERSTER. Eu defensa de! positivismo jurídico. 11311
JUSTEN FILHO. Curso de direito admiuistmtivo, p. 461.
33s 1
JOSÉ VICENTE SANTOS DE!>.tENDONÇA
DIREITO CONSTITUCIONAL ECO:>:Ü!>.!lCO
SEGUNDA 1',\RTE- AI'L!CAÇOES
CM'ÍTULO 2 - A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES I'RIVADAS ..
I 339
A única diferença entre a proporcionalidade incidente na gradação Edmir Netto de Araújo. 857 No segundo sentido, a contribuição de Lucas
entre dois direitos titularizados por particulares e a que incide jtmto ao Rocha, 858 e, na doutrina portuguesa, a de Marcelo Caetano. 859 Poucos
poder de policia é o fundamento da limitação. No primeiro caso, os direitos autores falam nos três elementos da proporcionalidade - adequação,
limitam-se para que possam se realizar máxima e muh1amente (nos casos necessidade e proporcionalidade em sentido estrito - aplicados à polícia
em que isso seja possível); no segundo, a lin1itação faz-se não em favor da administrativa. 860 Há análise extensa, na doutrina brasileira, sobre o con-
coexistência dos dois direitos, 1nas na da pluriexistência dos vários direitos trole de razoabilidade incidente junto ao poder de polícia: é o capítulo de
individuais atendidos pelo objetivo de interesse público. José Roberto Pimenta Oliveira. 861
Na hipótese do conflito enh·e a liberdade de expressão de sujeito que A doutrina estrangeira é mais vertical: embora alguns autores tra-
usa megafone na praça e o direito ao sossego dos moradores do edifício em tem do assunto sob a ótica da vedação do excesso nos meios e sanções de
frente, há dois direitos individuais: o direito do protestante e os direitos polícia, 862 ou como proporcionalidade estrita,863 há obras que desenvolve.m
individuais dos moradores. Na circunstância de uma desapropriação para 0 assunto. M Santamaría Pastor, em visão um pouco diferente da maiona,
8

a construção de colégio público, há o direito do titular do imóvel, e, em


paralelo, o direito à educação de um sem-número de crianças.
Sem falar na compatibilidade essencial entre a proporcionalidade e condicionamento voltado aos interesses da sociedade" (CARVALHO. Curso de direito adminis-
outras teorias clássicas de controle do ato administrativo, corno a teoria do trativo: parte geral, intervenção do Estado e estruh1ra da administração, p. 331). Logo após, a
autora cita Celso Antônio (no trecho que citamos) e Rogério Silva, ambos analisando a propor-
abuso de pode1}51 verificamos que, em gerat as referências doutrinárias cionalidade sob a ótica da proporcionalidade-necessidade.
nacionais à proporcionalidade na polícia administrativa centran1-se em ·-·., "[ ... ] O que nos vale à configuração da regra da proporcionalidade dos meios aos fins no exer-
dois aspectos: (i) na proibição do excesso nos meios pelos quais a polícia cício da atividade de polícia administrativa. Com efeito, a autoridade não deve ir além do
necessário à satisfação do interesse público, não utilizar meios violentos, vexatórios, ilegais,
administrativa vai atuar (proporcionalidade-necessidade) e (ii) na relevância exagerados, pois o objetivo da policia administrativa não deve ser a eliminação dos direitos
da intervenção pública ele polícia (proporcionalidade estrita). individuais, mas assegurilf seu exercício, conformando-o com as exigências do bem-estar e
tranquilidade social" (ARAÚJO. Curso de direito admi11istmtivo, p. 999, grifas no original).
É no primeiro sentido que vêm as lições de Celso Antõnio Bandeira
!·') "Nesse sentido, a fim de que o exercício do poder de polícia do Estado seja legítimo, é neces-
de Mello, 852 Odete Medauar, 853 Ruy Cirne Lima (embora sem se referir ao sário, além de lei específica, que a restrição ao exercício das liberdades privadas possa ser justificada
termo),"' José dos Santos Carvalho Filho, 855 Raquel Urbano de Carvalho/''' em face dos ganhos para a sociedade" (FURTADO. Curso de direito admiuistmtivo, p. 656).
t'''1 "O emprego imediato de meios extremos contra ameaças hipotéticas ou mal desenhadas cons-
titui abuso de autoridade. Tem de existir proporcionalidade entre os males a evitar e os meios
a empregar para ü sua prevenção" (CAETANO. Priucípios fundameutais do direito admiuistmtivo,
!; LIMA. O princípio da proporcionalidade e o abuso de poder no exercício do poder de polícia
51 p. 278. Em sentido próximo, Ruy Cirne Lima (Principias de direito administrativo, p. 321).
administrativa. Revista dos Tribunais, p. 123-127, passim. r.·'.l Em certo sentido, Marçal Justen Filho é exceção, já que menciona dois dos três elementos, e
!;:;
2
"Mormente no caso da utilização de meios coativos, que, bem por isso, interferem cnergícu- substitui o terceiro por uma compatibilidade geral com o Ordenamento, verbis: "Isso signifi-
mente com a liberdade individual, é preciso que a Administração se comporte com extr~ma ca que qualquer limitação, prevista em lei ou em ato administrativo, somente será válida se
cautela, nunca se servindo de meios mais c11érgicos que os necessários à obtenção do resultado pre- a) adequada, b) necessária e c) compatível com os valores consagrados na Constituição e nas leis.
tendido por lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administraçilo'' Adequação significa um vínculo de causalidade lógica entre a providência limitativa adotada e
(BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administmtivo, p. 830, grifos no original). Celso o fim concreto que a justifica. A necessidade impõe a adoção da providência de menor potencial
Antônio ainda menciona dois modos de excesso: mais intenso ou mais abrangente do que de restritividade possível dentre as diversas que se revelarem corno adequadas. A compatibi-
deveria ser. Mais intenso: o uso de violência para dissolver reunião não autorizada, porCm lidade com a Constihlição impede ü consagração de providências restritivas que suprimam ou
ofendam valores ou direitos fundamentais, consagrados como intangíveis" (JUSTEN FILHO.
pacífica. Mais abrangente: a apreensão de toda a edição de um jornal, quando seria possíwl
Curso de direito administrativo, p. 461). Maria Sylvia também menciona a "proporcionalidade dos
obstar sua circulação numa região específica para proteger o bem jurídico defendido.
meios aos fins" como sendo uma espécie de proporcionalidade-necessidade e umn proporcio-
""J "[ ... ]Proporcional à gravidade da possível perturbação- por exemplo: em locais de grande nalidade em sentido estrito (DI PIETRO. Dirdto administmtivo, p. 113).
afluxo de pessoas são impostas restrições mais amplas que em locais sem nenhum nfluxo de 1'51 OLIVEIRA. Os priucípios da mzoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo /lmsileiro,
pessoas" (MEDAUAR. Direito admiuistmtivo modemo, p. 339).
p. 414-513.
r,;;~ "Nenhuma restrição à liberdade individual deverá exceder jamais a medida absolutamente 1
'(·~ CHAPUS. Droit administrntif géwfml, t. I, p. 699; GAUDEMET. O roi f admiuistratif, p. 314.
necessária à preservação da ordem e da segurança públicas" (LIMA. Princípios de dircift1 1'63 Pierre-Laurent Frier e Jacques Petit elnboram procedimento analítico sobre como a propor-
administrativo, p. 307).
cionalidade incide corno limite à polícia que soa pnrecido com a proposta de ponderação de
s:;;, "O princípio da proporcionalidade deriva, de certo modo, do poder de coerção de que dispõe a
Alexy, milws o dado cognitivo presente na mais recente fórmula da ponderação deste. Falam
Administração ao praticar atos de polícia. Realmente, não se pode conceber que a coerção seja que, de um lado, deve-se colocar a intensidade das ameaças D Ordem Pública, e, do outro, a
utilizada indevidamente pelos agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada importância das liberdades nfetadas pela polícia e o grau de ojerecime11fo de mneaça à Ordem que
onde não houvesse necessidade" (CARVALHO FILHO. Mmwal de direito admi11isfrnfivo, p. 83). elas importam em concreto (FRIER; PETIT. Précis de droit administratif, p. 263).
u:; 6 "O requisito da proporcionalidude no exercício da polícia administrativa impõe que a atua- 16 1
' · RAMÍREZ-ESCUDERO. E/ control de proporcionalidad de la actividnd administrativa, p. 484~575;
ção da Administração fique restrita <lOS ütos indispensáveis à eficácia da fiscalização e do MINET. Droit de la po/ice administmtive, p. 249-253.
340 I JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÓ~JICO
SEGUNDAI':\RTE-,\PLICAÇÓES
CAPÍTULO 2-A D!SC!I'LINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
I 341

embora mencione o favor liberta tis na polícia, que não é outra coisa senã 0 De fato: se os limites dos direitos independem de sua incidência
a proporcionalidade-necessidade, fala na proporcionalidade ao moment comparativa com a incidência dos demais nos casos concretos, isso pres-
da atribuição de faculdades para o exercício da polícia. Isto é, não apenas 11 ° supõe a existência de um núcleo essencial também preexistente a eles, um
núcleo essencial tirado "da essência das coisas", da "natureza do direito"
dosagem da sanção, ou genericamente nas medidas de polícia, mas :
proporcionalidade incidiria também ao vetar "a atribuição de poderes ou de qualquer outra construção do tipo.
materialmente desnecessários para lograr os fins concretos a que inter~ Diga-se, ainda, que a discussão a respeito desses conceitos - teoria
venção se propõe" .865 externa ou interna acerca da restrição dos direitos fundamentais, núcleo
Desse recenseamento, vê-se que a proporcionalidade, decorrência essencial relativo ou absoluto - produz consequências práticas, em especial
de sistema de direitos que assumem a estrutura, em muitos casos, de no plano do exercício do ônus argumentativo. Quem aceita uma teoria interna
normas-I?rincípio, incide como graduadora da intervenção ordenadora do sobre os direitos fundamentais, e a ideia de núcleo essencial predefinido,
Estado. E o guia da ponderação entre a necessidade de preservação dos aceitará com mais facilidade conclusões que descartam a necessidade da
direitos individuais afetados e a necessidade de otimização da realização justificação de uma série de premissas.866 Afinal, se o direito "cessa onde o
dos interesses públicos. abuso começa", ele também só poderá ser restringido até seu núcleo ima-
Concretamente, significa que a Administração Pública, no exercício nente, cuja justificação é, em muitos casos, dada corno irnplícita. 867
da polícia, deverá adotar meios logicamente capazes de obter a finalidade Estamos usando a terminologia tradicional da teoria dos direitos
pretendida, e, dentre esses meios, deve escolher aquele que, capaz ele pro- fundamentais. No Direito Administrativo, não é comum falar-se desse
duzir os resultados com eficiência semelhante, seja o menos lesivo ao direito modo. A contraposição clássica é entre limitações e sacrifícios de direitos. As
atingido. Duas outras exigências: o benefício atingido pelo uso da polícia limitações - também chamada condicionamentos ou conformação de
deve suplantar os gravames causados; e, ao planejar a ação de polícia, a direitos - não incapacitam "de verdade" o exercício dos direitos e, por
Administração Pública não deve se "empoderar" de mais capacidades e isso, não são indenizáveis. O sacrifício, ao contrário, é indenizável: ele
atribuições do que as que realmente precisará. retira do titular a possibilidade de exercício útil elo direito. 868 O exemplo
O terceiro "novo" limite ao exercício da polícia costuma ser apresen- comum de sacrifício ele direito é a desapropriação. Exemplo de limitação
tado em conjunção à proporcionalidade: é a necessidade de preservação do é a imposição, por lei, de gabarito para a altura de imóveis.
núcleo essencial do direito que esteja sendo objeto da ação de polícia. Pois bem: embora muitos administrativistas professem a defesa de
A razão para isso é singular: segundo uma das teorias a respeito ideias extraídas da teoria dos princípios e da teoria padrão elos direitos
de tal conceito - a teoria externa, aplicável ao tema geral da restrição elos fundamentais, continuam defendendo a existência de categorias conceituais
direitos fundamentais -,o resultado de uma ponderação entre princípios como esta - limitações e sacrifícios - as quais, em rigor, pressupõem uma
é, necessariamente, aquele que não afeta o núcleo essencial do direito que teoria interna das resh·ições elos direitos fundamentais e uma teoria absoluta
está sendo restringido. O resultado da incidência da proporcionalidade do núcleo essencial, coisa incompatível com a teoria-padrão dos direitos
é o próprio núcleo dos direitos fundamentais. Fala-se, então, num núcleo fundamentais.
essencial relativo. Se se aceita que direitos fundamentais são direitos prima Jacie, isto é,
A teoria concorrente, a teoria interna, supõe que a definição dos não absolutos, ponderáveis à luz do caso concreto, deve-se aceitar que não
limites do Direito seja algo interno a ele, quer dizer, que não se faça de existem núcleos essenciais predeterminados e, assim, que não existem dife-
modo relativo à incidência dos demais direitos e circunstâncias. Quando renciações predeterminadas entre limitações e condicionamentos de direitos.
se argumenta que certa situação upor óbvio" não está incluída na área de
proteção de determinado direito - na linha "andar pelado pelas ruas não
~<(<, Por todos, ver Jane Reis Gonçalves Pereira (IIlterpretação COIIStitucioual e direitos fundamentais,
se inclui no direito à liberdade de expressão artística" -, está-se pressu- p. 174-182).
pondo, mesmo setn saber, uma definição pré-circunstancial dos limites do 1 67
; "Em verdade, a doutrina não apresenta um método específico para determinar esses limites;
direito fundamental. Daí que o núcleo essencial elos direitos fundamentais sua percepção é considerada quase inhtitiva e está relacionada com a evidência desses limites
para o senso comum" (BARCELLOS. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 61).
não vai passar a depender das circunstâncias concretas e dos direitos em
H"'1 "O que importa assinalar, no entanto, é que as limitações admi11istmtivas à liberdade e à proprie-
jogo: tratar-se-á de núcleo essencial absoluto. dade, por serem simples co11jormação do Direito, não geram qualquer direito il indenização, ao
contrário do sacrifício do direito que consiste na ação autorizada do Estado para diretamente
combalir o próprio direito do administrado (como ocorre com a desapropriação, a servidão e o
so.:; SANTAMARÍA PASTOR. Principias de derec/10 administrativo general li, p. 252. tombamento){ ... ]" (PIRES. Limitações admi11istrativas à liberdade e à propriedade, p. 319).
342 1
JOSÉ VICENTE SANTOS DE ~IENDONÇA
DlllEITOCONSTITUCIONALECONÓl>.llCO
SEGUNDAPARTE-AI'LICAÇOE.S
CAI'ÍTUL02-A DISCII'LINA DAS ATIVIDADES l'RlV,\DAS ...
I 343

Repita-se: a distinção clássica de Direito Administrativo entre limitaçõ 0 núcleo essencial é antes o resultado da aplicação da proporcionalidade
e sacrifícios de direitos é incompatível com a teoria dos direitos fimdamc 11 taises em seu tríplice aspecto - adequação, necessidade, proporcionalidade
com a teoria dos princípios, na medida em que pressupõe a existência de um ~ra e estrita - do que um grau de restrição "além do qual não se pode ir" e de
pré-fixado de aceitabilidade para as restrições, a partir do qual há o ingresso ; 1111~ que não se fala muita coisa senão que existe.
núcleo essencial dos direitos fimdamentais e, portanto, o sacrifício do direito. t Ou seja: o respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais
Se os direitos impõe1n deveres prima facie, a busca por crit~rios limita o exercício da polícia por ser garantia conexa à da proporcionali-
prévios de distinção entre limitações e sacrifícios é, no limite, a busca por dade, e não porque existem dados supralegais que o identifiquem prévia
um núcleo essencial absoluto dos direitos fundamentais. Quando se fala e abstratamente a qualquer situação prática. Ele não é limite à proporcio-
em "conformação" e em "sacrifício" de direitos, a própria terminologia nalidade: ele é o resultado dela.
remete à noção de um núcleo essencial absoluto de direitos f-undamentais As chamadas restrições e lin1itações administrativas - os sacrifícios
preexistente a qualquer ponderação ou à incidência da proporcionaliclac!:. e conformações de direitos - não são diferenciáveis na teoria senão com
Exemplos da adoção da teoria interna e do núcleo absoluto são 0 apelo a generalidades que remetem à teoria interna e ao núcleo essen-
muitos na doutrina, embora raramente isso decorra de reflexão. Apenas cial absoluto. Só se poderá identificar uma atuação pública desproporcional,
se afirma, etn certo momento, a centralidade dos direitos fundamentais e logo, i11constitucional e indenizável, à luz das circunstâncias fáticas e jurídicas
a importância da proporcionalidade, e, e1n outro, diz-se que há "limites" incidentes no caso concreto.
(prévios à ponderação) que não podem ser violados 869 Exemplo: em tese, o gabarito predial é limitação: é aplicável indis-
Quais limites podem ser esses, senão os que aparecerão argumen~ tintamente a todos, foi instituído por lei, não transfere patrimônio do par-
tadamente após a incidência da proporcionalidade na restrição a direitos? ticular para o Poder Público. Esses são os três critérios comumentemente
apontados pela doutrina para a identificação de uma limitação. A situação
não seria indenizável. Porém, o que dizer de gabarito municipal editado
posteriormente ao início da consttução de prédio cujos andares comerciais
116 ~ Podemos utilizar, de modo figurado, as lições de Alexandre de Aragão em seu livro sobre 5er- começam a partir do terceiro (o andar que passou a ser novo limite)? O
viços públicos, que adota conceitos e percepções teóricas tributárias da teoria dos direitos fun·
damentais e da teoria dos princípios, mas que, aparentemente, acredita num núcleo es!:iendnl prédio já não possui sua principal utilidade.
absoluto, tanto que ndota e menciona a distinção entre limitações e violações de direitos. Ao Na mesma situação, digamos que o prédio em construção seria
tratar das atividades privadas autorizadas, informa que, em tais casos, o Estado poderá impor destinado à construção de hospital público longamente esperado pela
obrigações de fazer aos particulares autorizat<'irios de modo mais intenso ao que poderia nns
atividades privadas propriamente ditas- mas o limite a tal imposição é "o núcleo eSSL'm_i.1! população: os três primeiros andares seriam destinados ao estacionamento
da livre~iniciativa". Contudo, não delimita o que isso significaria; afirma, apenas, que "hâ um de ambulâncias, o quarto e seguintes, às instalações hospitalares. Limitação
mínimo daquele direito subjetivo de iniciativa privada que deverá sempre ser resguardado". E ou sacrifício?
dá, como exemplos de imposição de obrigações de fazer que violassem o "núcleo essencial da
livre~iniciativa", uma empresa privada de plano de saúde que fosse obrigada n trntar pessoas
Pensemos no exemplo de Carlos Ari Sundfeld sobre o tombamento
que não fossem seus clientes, uma universidade privada que fosse obrignda n custear percen- de uma única rua. Trata-se de limitação (é geral, afinal, é toda a rua) ou de
tagem mínima de bolsistas, cinemas obrigados a realizar sessões públicas ou à divulgação de sacrifício (é específico, afinal é só uma rua)? 870
filmes de interesse público; empresa de telecomunicação obrigada a fornecer gratuitamente
serviço à pnrcela mais pobre da população; banco obrigado a oferecer linhas de microcrédito.
As respostas não são simples e, aqui, ao contrário do que sugere
Não concordamos que esses sejam, em todos os casos e circunstâncias, bons exemplos de inter- Sundfeld, pensamos que o problema não se localiza nos critérios da dis-
venções públicas desproporcionais, e, por conseguinte, violadoras do núcleo essencinl - sem- tinção, mas nela própria. A partir do momento em que se aceita a ideia de
pre relativo - da livre~iniciativa. As circunstâncias podem variar, os direitos em jogo podem
assumir importâncins distintas, a capacidade econômica da empresa pode comportar uma
que normas principiológicas de direitos fundamentais instih1em direitos
intervenção pública muito bem justificada etc. Pensando em cinema, se se entende que a obri- prima facie, como faz a teoria padrão dos direitos fundamentais, todos os
gação da exibição de filmes é inconstitucional, como justificar a exibição de curtas~metragens direitos fundamentais serão restringíveis. O problema passará a ser, de
nacionais? Pensando nas instituições financeiras, o que dizer quanto às propostas de institui-
ção de seguro popular, elaboradas, padronizadns e evenhtalmente impostas peln SUSEP? Ser.i
modo mais produtivo, a justificação prática de todas as restrições incidentes sobre
que violaria o núcleo essencial da livre~iniciativa se o maior grupo de universidades privadas os direitos fundamentais, não mais a distinção teórica entre atos que simples-
do país, o grupo Estácio de Sá, com mnis de setenta e oito unidades ao longo do país, e m.1ís mente estabelecem limites e os que vão além disso, sacrificando direitos.
de cento e vinte mil alunos, fosse obrigado pelo Poder Público, caso já não contasse com um
programa de bolsas (o que é o caso), a oferecer um por cento de suas vagas a pessoas carentes?
Não existem respostas fáceis a essas perguntas, ou seja, não existem respostas prontas, tudo
é relativo, e o guia de tudo é a máxima da proporcionalidade (ARAGÃO. Direito dos servi(<\' l·:o SUNDFELO. Condicionamentos e sacrifícios de direitos: distinções. Revista Trimestral de Direito
públicos, p. 202 ef seq., os exemplos estão nas p. 209~210). Público- RTDP, p. 81.
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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
DIREITO CONsnTUClQN,\ L ECONÚMICO
SEGUNDA!'ARTE-Al'UC,\ÇOES
CAPÍTULO 2-A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PR!Vt\OAS ...
I 345

Como é o estado atual do entendimento doutrinário, há desoneraçã realização de propósitos de interesse público justificáveis à luz de todos
argumentativa a partir da qualificação da situação como "limitação". N~ 05 seus standards de incidência (ver capítulo 1, primeira parte), isto é, à luz
proposta aqui formulada, já que nenhuma restrição a direito fundamental (1) de sua inclusão nos sentidos textuais possíveis da Constituição, (2) de
poderá ser qualificada aprioristicamente corno "limitação" ou "sacrificio" sua compatibilidade material com a Constituição, (3) de tais propósitos
nada poderá ser aceito sem bons argumentos. 871 ' serem os mais eficientes (entre opções semelhantes) para a obtenção de
Em síntese: os novos limites ao exercício da polícia, nem tão novos ~1 aior bem-estar social geral, (4) de a produção de tais consequências mais
assim, são o respeito à dignidade humana - a polícia administrativa deverá eficientes ser certa ou, no mínimo, bastante provável (do contrário não se
tratar o homem como fim em si mesmo, jamais como meio para qualquer justificaria a restrição aos direitos fundamentais), (5) de tais consequên-
propósito -, a máxima da proporcionalidade e, em decorrência, a garantia cias positivas justificadoras da polícia ocorrerem simultaneamente a seu
do conteúdo essencial dos direitos fundamentais que estejam em questão. exercício ou, no máximo, num futuro próximo, (6) do fato de as alegadas
Os direitos fundamentais do particular, em conh·aposição aos direitos razões de interesse público para o exercício da polícia estarem baseadas
fundamentais da coletividade, implicam a instituição de direitos e deveres em razoável base empírica, (7) de tais razões de interesse público não se
prima facie, cuja resolução prática demandará a realização de ponderação basearem em alegações fundacionais (dogmas, pressuposições acrílicas,
de interesses guiada pela proporcionalidade. Mas é importante lembrar "verdades"), (8) de as justificativas para o exercício da polícia serem con-
que, se direitos, mesmo fundamentais, não são absolutos, seus núcleos textuais às circunstâncias de seu exercício.
essenciais também só serão delimitados para e a partir dos casos concretos. Exemplos ilustrarão o ponto. Os números correspondem aos
É contraditóriof assimf afirmar a adesão à teoria dos direitos fun- standards.
damentais ef ao mesmo tempof acreditar numa categorização entre ucon~ (1) Não é possível pretender produzir resultados que não estejam
formaçõesn e "sacrifíciosn de direitos, ou entre f/restrições" e "limitações contidos nos sentidos textual e material da Constituição. No exercício da
administrativasu. Tudo isso é restrição de direito e, como tal, pode ou não polícia, não é possível, por exemplo, pretender exterminar raça de animais
ser aceito, a depender das razões jurídicas e fáticas apresentadas. por razões de conveniência estética (viola materialmente o art. 225, §1 º,
A "teoria do poder de polícia", se é que existe, foi, nesse ponto, VII, da CRFB/88).
ultrapassada pela teoria dos direitos fundamentais. (2) Não é possível a restrição de propriedades privadas com o
propósito da construção de espaçoportos (a facilitação do pouso de óvnis
não é propósito que consiga ser encaixado em qualquer dispositivo da
2.5 Novíssimos limites: pragmatismo e razão pública Constituição).'"
Os dois novíssimos limites são o pragmatismo e a razão pública. (3) Não é possível proibir a circulação de veículos durante três
Como se pode dar uma incidência do "princípio" do pragmatismo dias corridos por semana, sob o propósito da melhoria do trânsito ou da
jurídico em relação ao poder de polícia? Como ele poderia limitá-lo? qualidade do ar, se dois dias específicos produzirem comprovadamente
Na verdade, a ideia é que sua incidência faça-se pelo controle das resultado semelhante.
razões apresentadas para a ação de polícia, como argumento de reforço ou de (4) Seria inválido o exercício de polícia administrativa econômica
descarte de determinado plano de ação. Trata-se de controle argumentativo que, sem maiores estudos, a pretexto de apostar no controle da inflação,
- é assim que funciona nosso "princípio". resolvesse tabelar os preços de bens e serviços, durante certo tempo, por
O "princípio" do pragmatismo jurídico opera ao impor à autmiclade valores aleatórios. Entre tantas inconstitucionalidades de tal medida, uma
administrativa a obrigação da adoção de medidas de polícia fundadas na é a de que se trata de polícia antipragmática por raciocinar a partir da
produção de consequências incertas ou improváveis.
(5) Não é válida a ação de polícia de trânsito que, no início de janeiro,
sob o pretexto dos futuros desfiles de blocos de Carnaval (que só ocorrerão
871
As ideias dos últimos parágrafos são tributadas a Virgílio Afonso Silva (O conteúdo essencial em meados de fevereiro), restringe a circulação em diversas vias públicas.
dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constihtcionais. Revista de Direito do Estado,
p. 23~51, passim e Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia, passim). Sobre
núcleo essencial dos direitos fundamentais, v. CAVARA DE CARA. Dereclws fundamenta/cs y
desarrollo legislativo: la garantía dei contenido esencial de los derechos fundamentales en la L~·y m Embora, sob certas circunstâncias, a questão possa se reconduzir à promoção do turismo.
Fundamental de Bonn; LOPES. A garantia do conteúdo essencinl dos direitos fundamentais. Exemplo: na cidade de Varginha, em Minas, seria pelo menos defensável a construção de tal
Revista de Informação Legislativa. instalação.
346 I JOSE VICENTE S:\NTOS DE MENDONÇA SEGUNDAPARTE-AI'LICAÇÓES
CAPÍTULO 2-1\ DISCIPLINA Ot\SAT!VIDADES I'RIVAD,\S ...
I 347
DIREITO CONsnTUCION:\L ECONÓ:O.IlCO

(6) É antijurídica a ação de polícia que, apoiada em discutível teor·1 polícia "não persegue a ordem moral nas ideias e nos sentimentos". Caso
científica vinculando a propagação da dengue à manutenção de samat ~ isso ocorresse, aproximar-se-ia da Inquisição e da opressão de consciên-
baias, pretenda ingressar nas residências e exterminá-las. O probler: cia.'" Embora a própria jurisprudência do Conselho de Estado francês
não é a possibilidade de ingressar em residências para combater a det1~ haja, em alguns casos, ultrapassado os limites defendidos pela lição - há
gue - exemplo clássico de polícia -, é a falta de razoável base empíric hipóteses em que filmes foram proibidos por considerações morais -, ao
assecuratória da produção das consequências esperadas. a menos a principal fundamentação dos acórdãos não foi a análise de con-
(7) Interditar a realização de atividades religiosas por fundamentos teúdo das obras, mas o grave comprometimento à ordem pública causado
materiais como a contradição aos "bons costumes/I é exercício inválido do por sua exibição. 874
poder de polícia, pois se baseia numa alegação fundacional (o fato ele que Ora bem: o critério da razão pública é, de certo modo, complementar
possa existir um padrão de "boa sociedade" com seus costumes próprios). à lição de Hauriou. Em princípio, a polícia administrativa não deve se ocupar
(8) Bailes ele Carnaval não podem ser proibidos com o propósito ele de considerações subjetivas, íntimas, ideológicas ou morais. Não há razão de
interesse público que, num primeiro momento, justifique urna ah1ação
evitar a proliferação de doenças elo coração, na medida em que as justifi-
cativas não se referem às circunstâncias do exercício da polícia. de polícia "moral".
Contudo, podem existir manifestações que, à luz das circunstâncias
É claro que muitas incidências desses stmzdards de nosso princípio
concretas, exijam algum grau de cercean1ento do exercício de direitos
do pragmatismo jurídico indicam conclusões a que se chegaria por outros
individuais em prol de um interesse público qualificado por considera-
argumentos. Assim, no caso (1), a simples incidência da legalidade já
ções de conteúdo. Nesses casos/ a polícia administrativa só poderá funcionar se
resolveria o problema; em (3), a proporcionalidade-necessidade também as suas razões para a ação forem razões públicas. Na excepcionalidade de ser
daria conta da solução. Mas o fato é que os argumentos se somam, não necessário atuar junto a um controle material, a Adminish·ação Ordenadora
i 'i~:
se excluem. Em rigor, muitas das conclusões atualmente indicadas pela só poderá se legitimar pelo apelo a argumentos neutros, universalizáveis;
incidência da máxima da proporcionalidade poderiam ser obtidas por capazes de serem aceitos por toda a sociedade.
argumentos clássicos como a "interpretação sistemática", a "interpretação Exemplo: parece-nos possível o confisco de livros e propaganda
teleológica" e, no Direito Administrativo, a teoria dos desvios de poder. nazista ou fascista, porque, para alétn da previsão legal, as razões do
A proposição de novos "princípios" e limites ao exercício da polícia ad- antinazismo e do antifascismo são conforme à razão pública. O mesmo
ministrativa não se dá com a finalidade de substituir ou retificar limites raciocínio serve para legitimar a repressão administrativa a manifestações
antigos, e sim com a de somar-se no ideal de uma ahtação pública eficiente hiperchauvinistas, apologistas do totalitarismo e da violência. Poder de
e controlada. polícia não é apenas licença para construção e repressão a barulho. A ati-
Falemos agora do limite consistente na razão pública. Como aplicar vidade é mais do que isso: é ordenar a vida em sociedade, nos limites em
a razão pública como limite ao exercício da polícia? que isso seja possível, sem pretender direcioná-la, mas mantendo, sempre,
Também aqui, como no caso de nosso "princípio" do pragmatismo o espaço para a afluência de comportamentos e mundivisões.
jurídico, a razão pública funcionará como controle aos argumentos que Por tal motivo, a razão pública é o critério de controle que melhor
possam fundar o exercício da polícia. Só poderão ser aceitas razões uni- sintetiza a relação entre polícia e democracia. Se o Estado só atua com base
versalizáveis, tendencialmente neuh·as, não polêmicas. Razões que não em razões públicas, é um Estado Democrático de Direito do século XXI; se
pertençam, de modo exclusivo, a uma das doutrinas abrangentes. Se a o Estado, ao excepcionalmente ingressar no mérito das atividades sociais,
polícia é a atividade de impor condicionan1entos a direitos individuais em apenas restringe as que forem radicalmente antidemocráticas, e isso com
prol do interesse geral, é natural que se faça com argumentos capazes de base em razões públicas e postas a público, é um Estado Democrático de
serem aceitos por todo o estrato social. Além disso, os requisitos de apelo Direito do século XXI que se preocupa em continuar sendo um.
a crenças gerais, formas de argumentação aceitas e métodos científicos não
controvertidos continuam válidos.
Observação interessante: a teoria francesa clássica do poder ele
polícia sempre defendeu que a polícia só se ocupasse da "ordem material (, 73 HAURIOU. Précis de droif admi11istmtij et de droit public, p. 549.
e exterior, considerada como um estado de fato oposto ao da desordem, r,;~ BRAIBANT ct a/. Les gnmds arrêts de la jurisprudence administrative, p. 735. Por esse argumento,
o estado de paz oposto ao estado de confusão". Hauri ou escreveu que a tais decisões seriam pragmatistas.
JOSÉ VICENTE SANfOS DE MENDONÇA
348 I DlltElTO COi>JSTITUCIONAl ECONÓMICO

2.6 Conclusão parcial: limites dos limites CAPÍTUL03


É preciso ser realista na propositura de limites à ação pública. A
Administração Pública brasileira é, em muitos grotões, amadora. Nilo
se espere que, ao lado de cada administrador público, esteja um Richard
Posner de cariinbão, apto a chancelar a intervenção mais pragmaticamente
correta em cada caso. Entre todas as surpresas que a biografia de Joluo
Rawls possa nos revelar, certamente não estará a de que ele elaborou O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM
seu argumento pensando em cidades como Santo Antônio dos Milagres, ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO
interior do Piauí. PATERNALISTA
Uma interpretação jurídico-pragmatista das capacidades institucio-
nais de grande parte da Administração Pública brasileira será contexhwlista
e, em o sendo, saberá dar o desconto à grossa incapacidade que assola
muito do mato e do asfalto do nosso Brasil profundo.
Então o capítulo é, sob muitos aspectos, inútil?
De forma alguma. Ele é útil como todo princípio reguladm~ ele serve
como todo ideal: como guia (incompleto e sujeito a críticas) do caminho
a seguir, como ponte entre o que já temos e o que desejamos construir. 3.1 Introdução
Como poucas atividades incluídas na expressão intervenção875 do
Estado sobre a economia, o fomento público arrisca-se a caminhar sobre o
fio de uma navalha cujos extremos são o excesso e a falta. Ou, continuando
nas expressões literárias, é atividade que arrisca tornar-se o que já se falou
da psicanálise: o mal cuja cura pretende ser.
Existem dois grandes problemas circundando o fomento público:
(i) os critérios de sua concessão e (ii) sua intensidade e duração. 876 O fomento

" 75 Eros Roberto Grau discute, em certo ponto de A Ordem Econômica, se o designativo para referir-
se às atividades estatais de influência sobre a economia deveria ser intervenção ou atuação.
De um lado, toda atuação do Estado na economia é, de certa forma, interventiva, c, como se
trata de atuação do Estado numa área que não é sua - o mercado -,acabaria por assumir
contornos propriamente intcrventivos. Por outro lado, no caso da prestação ou da regulação
dos serviços públicos, área em que a titularidade é sempre estatal (art. 175, CRFB}, o termo
intervenção não seria justificável - melhor seria atuação. Registrada a polêmica, optamos pela
utilização intercambiável das expressões, a uma porque a distinção é de reduzido potencial
explicativo, a duas, porque o uso fungível já é comum em nossa doutrina, e, pensando em ter-
mos pragmáticos- sendo quase um campo de prova de nossa tese-, não se deve pretender
modificar usos consagrados quando os benefícios explicativos são pequenos. Seja como for, no
caso do fomento público, ter-se-ia precisamente uma intervenção, c não uma atuação, já que o
Poder Público está tentando influir, pelo convite, no mercado. Cf. GRAU. A Ordem Econômica
na Constituição de 1988, p. 93 et seq. Em sentido contrário àquele que foi aqui defendido, mas por
razões distintas, v. MOREIRA NETO. Direito regula tório, p. 129, grifos no original: "As interven-
ções estatais[ ... ] podem ser classificadas em quatro tipos quanto a seu contelldo: a regulatória, a
concorrencial, a monopolista e a Sll11Cio11atória, não considerada como modalidade de intervenção
o fomento público, que não tem natureza impositiva".
~>'6 Outra questão importante circunda o fomento: a (ausêncin de) transparência. Por seu aspecto
difuso, deixaremos de tratá-la, neste capítulo, até porque, em certos casos, a simples adoção

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