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Baltazar Oliveira
1. Alteração da Constituição
A) Teoria da Constituição1
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Bibliografia: Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II
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B) Vicissitudes constitucionais2
As alterações da Constituição ou vicissitudes constitucionais podem ser, tendo em conta o
modo como se processam:
Alteração expressa – tem na sua génese uma intenção de modificação da norma
constitucional e traduz-se, em geral, na alteração do próprio texto.
Alteração tácita – não teve, na sua génese, uma intenção abertamente proclamada de
alteração; resulta numa modificação relevante do conteúdo normativo de algumas
disposições constitucionais, sem alteração do texto. As alterações tácitas permitem que
Constituições duradouras se adaptem aos novos tempos e conceções. Resultam de mutações
como o costume constitucional e a interpretação evolutiva das normas constitucionais.
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Bibliografia: Jorge Reis Novais, Vicissitudes constitucionais (texto de apoio)
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Consoante observem ou não as regras que o poder constituinte originário instituiu para a
alteração da Constituição, as alterações expressas podem ser:
Reforma constitucional – processa-se de acordo com as regras previstas pela própria
Constituição para a sua modificação.
Rutura constitucional – não observa as disposições constitucionais respeitantes à alteração
da Constituição.
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C) Revisão constitucional
Limites de revisão constitucional: conjunto de requisitos aplicáveis às revisões constitucionais
e que são mais exigentes que os requisitos relativos à aprovação de legislação ordinária. Uma
exigência que se aplique à lei ordinária (ex: maioria simples) não é, por isso, um limite de revisão.
Temporais – ex: a Constituição só pode ser alterada decorridos 5 anos da última revisão.
Formais – ex: maioria qualificada para a aprovação da revisão; iniciativa de certo órgão.
Circunstanciais – ex: a Constituição não pode ser alterada durante o estado de emergência.
Materiais – ex: separação entre Estado e Igreja; voto secreto; forma republicana de governo.
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Limites formais:
285º/1 – “A iniciativa da revisão compete aos Deputados.” – é um limite já que a iniciativa de
lei compete aos Deputados, aos Grupos Parlamentares, ao Governo, aos grupos de cidadãos
ou às Assembleias Legislativas das R.A. (167º/1,2). Este limite destina-se a reforçar a reserva
absoluta da Assembleia no domínio da revisão constitucional.
286º/1 – “As alterações da Constituição são aprovadas por maioria de dois terços dos
Deputados em efetividade de funções.” – normalmente, para aprovar uma lei, basta uma
maioria simples (116º/3).
286º/3 – “O Presidente da República não pode recusar a promulgação da lei de revisão.” –
atribuiu-se à AR uma competência exclusiva, total, de revisão.
Limite circunstancial:
289º – estados de exceção constitucional – “Não pode ser praticado nenhum ato de revisão
constitucional na vigência de estado de sítio ou de estado de emergência.”
Limites materiais:
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288º – “As leis de revisão constitucional terão de respeitar” limites como “a separação das
Igrejas do Estado”, “os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, “os direitos dos
trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais”, “a fiscalização da
constitucionalidade por ação ou por omissão de normas jurídicas” ou “a autonomia político-
administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”.
A história demonstrou que esta discussão não tem, em termos práticos, o interesse que
inicialmente se lhe atribuía. Por várias razões:
Não é previsível que a médio prazo haja um consenso alargado entre várias forças políticas
para se alterar a maioria dos limites materiais, como a independência nacional e a unidade
do Estado, a forma republicana de governo, a separação das Igrejas do Estado ou a
independência dos Tribunais. Questões como a discussão monarquia/república, outrora
muito relevantes, hoje estão relativamente estabilizadas.
O 288º é vago, introduzindo-se alguma maleabilidade. O preceito não diz que os limites
materiais não podem ser “alterados” ou “revistos”, mas apenas que têm de ser “respeitados”
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D) Procedimento de revisão
As regras do procedimento de revisão compreendem, naturalmente, as regras do Título
“Revisão constitucional” (284º a 289º), mas também as regras gerais sobre procedimento legislativo
parlamentar (dispostas na Constituição e no Regimento da AR), não incompatíveis com as primeiras,
e que têm de ser submetidas a um cuidadoso trabalho de harmonização. Algumas regras do
procedimento de revisão na Constituição de 1976 são:
i) A abertura do processo requer, em revisão ordinária, um ato de iniciativa, a apresentação de um processo
de revisão.
a. A verificação dos pressupostos de exercício de competência de revisão (pelo decurso de 5 anos após a
publicação da última revisão ordinária) não determina, por si só, o desencadear do processo.
b. Também a deliberação da AR, por maioria de 4/5 dos Deputados em efetividade de funções, de
assunção dos poderes de revisão (que assume a forma de resolução, publicada independentemente da
promulgação do PR – 166º/5 e 6) não é, por si só, um ato de iniciativa. Uma coisa é a iniciativa de
assunção de poderes de revisão, outra coisa a iniciativa de uma ou várias alterações à Constituição.
ii) Não são admitidos projetos de revisão que não definam concretamente o sentido das modificações
introduzir na Constituição (120º/1/b RAR).
iii) 285º/2 – “Apresentado um projeto de revisão constitucional, quaisquer outros terão de ser apresentados
no prazo de trinta dias.” Por analogia com o 169º/1, descontam-se os períodos de suspensão do
funcionamento da Assembleia.
iv) Passados esses trinta dias, se houver necessidade de contemplar matérias não objeto de nenhum dos
projetos de revisão apresentados, ter-se-á, pela maioria constitucional de quatro quintos, de assumir
poderes de revisão extraordinária, ficando tudo a correr, no entanto, num único procedimento.
v) Os projetos de revisão não aprovados não podem ser renovados na mesma sessão legislativa, salvo nova
eleição da AR (167º/4).
vi) Os projetos não votados na sessão legislativa em que forem apresentados não carecem de ser renovados
nas sessões legislativas seguintes, salvo termo da legislatura (167º/5).
vii) Até ao termo da discussão podem ser apresentadas propostas de alteração aos projetos de revisão ou aos
textos de substituição, mas apenas relativamente a preceitos constitucionais contemplados nos projetos de
revisão e, no limite, relativamente a outros com eles em conexão necessária.
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viii) A AR não está sujeita a um dever de audição dos órgãos regionais acerca do regime político-administrativo
das regiões autónomas, ao contrário do que se verifica com as demais questões da sua competência
(229º/2). Tal é um corolário quer da reserva absoluta da AR, quer do caráter unitário do Estado.
ix) A discussão dos projetos e a sua votação fazem-se sempre na especialidade e só na especialidade – por
referência aos preceitos constitucionais em relação aos quais se proponham alterações, e só a eles, e por
referência a um texto já adotado e vigente na generalidade, a Constituição. O art. 286º fala em “alterações
à Constituição” nessa aceção.
x) A votação na especialidade dá-se no plenário, nunca em comissão. É assim pela natureza das coisas e porque
só em plenário é possível ser formada a maioria de dois terços dos Deputados em efetividade de funções.
xi) Aprovadas ou rejeitadas propostas de alteração relativamente a certo preceito, fica precludido, quando a
esse preceito, o poder de revisão.
xii) A votação da totalidade das propostas de alteração preclude a competência de revisão da AR, quando haja
aprovação de alguma.
a. A não aprovação de nenhuma proposta não determina a preclusão, visto que a AR pode rever a
Constituição decorridos 5 anos da última revisão ordinária (284º/1).
b. No caso de revisões extraordinárias, a votação da totalidade das propostas de alteração preclude a
competência de revisão da AR mesmo que nenhuma seja aprovada ou todas sejam retiradas, porque a
assunção de poderes de revisão aparece funcionalizada a um resultado positivo, e se este não se obtém,
tal assunção fica desprovida de sentido.
xiii) 286º/2 – “As alterações da Constituição que forem aprovadas serão reunidas numa única lei de revisão.”
Favorece-se uma ponderação simultânea e globalizante das alterações propostas.
xiv) 287º/1 – “As alterações da Constituição serão inseridas no lugar próprio, mediante as substituições, as
supressões e os aditamentos necessários.”
xv) A Constituição não impõe a votação final global do decreto de revisão, mas até agora tem isso sempre
acontecido, podendo falar-se em costume constitucional.
xvi) A lei de revisão (ainda sob a forma de decreto da AR) é obrigatoriamente promulgada pelo PR (286º/3)
como lei constitucional (119º/1/a e 166º/1).
xvii) Havendo uma reserva absoluta da AR no domínio da revisão constitucional (285º/1), o PR não pode (174º/4)
convocar a AR para efeitos de revisão constitucional.
xviii) A revisão constitucional não está sujeita a fiscalização preventiva da constitucionalidade (278º/1), salvo,
porventura, em caso de preterição de requisitos de qualificação, mas está sujeita a fiscalização sucessiva.
xix) O PR deve promulgar o decreto de revisão num prazo de 8 dias, por analogia com o 136º/2, 2ª parte, que
se reporta à outra hipótese constitucional de promulgação obrigatória (confirmação de leis ordinárias após
veto político).
xx) A promulgação não carece de referenda ministerial, visto que não há um princípio geral de referenda (140º)
e visto que a AR tem competência exclusiva de revisão.
xxi) 287º/2 – “A Constituição, no seu novo texto, será publicada conjuntamente com a lei de revisão.”
xxii) Não pode ser praticado nenhum ato de revisão durante a vigência de um estado de exceção (289º), o que
acarreta a suspensão do processo, mas não a sua cessação.
xxiii) Votada a revisão, nada impede que o PR a promulgue durante um estado de exceção, até para que,
competindo ao PR declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, ele não aproveite para exercer
uma espécie de veto de bolso sobre a lei de revisão.
xxiv) A regra da caducidade de projetos de lei com o termo da legislatura (167º/5) não vale para projetos de
revisão constitucional, continuando o processo de revisão na nova legislatura. Caso contrário, se o PR
dissolvesse a AR durante o processo de revisão, essa sairia diminuída face ao Presidente.
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A) Introdução
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Bibliografia: Jorge Reis Novais; As revisões da Constituição de 1976 (texto de apoio)
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Quanto aos temas que mobilizam as revisões constitucionais, podem distinguir-se dois períodos:
Até 1989 – necessidade absoluta de rever o texto constitucional.
o Revisão de 1982 – sem esta revisão, a existência e estabilização de um Estado de Direito
democrático corria riscos. Era indispensável pôr termo ao período de transição.
o Revisão de 1989 – adaptação da organização económica ao modelo de economia de
mercado, ajustado à integração europeia.
Após 1989 – as posteriores revisões, independentemente das melhorias introduzidas,
apresentam uma lógica e um sentido mais dificilmente apuráveis.
o Revisões ordinárias (1997 e 2004) – foram feitas sem objetivos definidos, quase como
uma obrigação ritualizada. Em síntese, dão uma resposta de resultados duvidosos a um
vago apelo à reforma do sistema político e, num plano de maior pragmatismo político,
resultaram num aprofundamento sensível e contínuo da autonomia regional.
o Revisões extraordinárias (1992, 2001 e 2005) – incidiram sobre aspetos muito pontuais,
estando relacionadas quase exclusivamente com a integração europeia e as relações
internacionais.
B) Revisão de 1982
Esta é a principal revisão e a mais marcante de todas, pois determinou o fim do período de
transição, previsto nas duas Plataformas de Acordo Constitucional (Acordos MFA/Partidos), de abril
de 1975 e fevereiro de 1976. Este período, que duraria até à primeira revisão constitucional,
correspondeu à presença transitória dos militares no exercício do poder, através do Conselho da
Revolução. Assim, extinguiu-se o Conselho da Revolução, deu-se o regresso dos militares aos quarteis
e estabeleceu-se uma arquitetura constitucional típica de uma Constituição de Estado de Direito
democrático, com a configuração ainda hoje vigente nos planos do sistema de governo, do sistema
de fiscalização da constitucionalidade e do sistema de direitos fundamentais.
Para Reis Novais, a não ter existido esta revisão, ter-se-ia verificado uma verdadeira transição
constitucional, ou seja, a Constituição aprovada em 1976, não revista, ter-se-ia transmutado numa
nova Constituição e num projeto constitucional substancialmente distinto do que foi originariamente
programado quando a Constituição foi aprovada. A versão original da CRP, com a presença transitória
dos militares no poder (acordada com os partidos), tinha sentido e justificação enquanto fase
transitória até à primeira revisão constitucional e à plena instituição e estabilização de um Estado de
Direito democrático. Tinha-o porque os militares se encontravam verdadeiramente de forma
transitória no poder, ao contrário do entendimento de alguns, como Marcello Caetano, que
considera a versão original da CRP uma Constituição de ditadura militar. Mas a Constituição era uma
Constituição de Estado de Direito de democracia representativa, porque os militares estavam no
poder com a certeza de que sairiam no fim do período de transição, que funcionava com democracia,
com liberdades e com eleições. Sê-lo ia, porventura, se tivesse resultado em ordem constitucional
permanente, isto é, se não se tivesse feito a revisão de 1982 e os militares passassem a exercer o
poder definitivamente. Nesse caso, as formas políticas da Constituição de 1976 mudariam. O tipo
histórico de Estado passaria de Estado de Direito social e democrático para, eventualmente, Estado
autocrático dos séculos XX e XXI. O regime político de Estado de Direito de democracia representativa
para, eventualmente, ditadura. Teria havido uma transição constitucional e uma nova Constituição
material.
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Matéria de 1º semestre – revisão constitucional de 1982 na matriz portuguesa de semipresidencialismo
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democrático (embora a expressão “Estado de Direito” só tivesse agora sido introduzida no texto
constitucional – artigos 2º e 9º), de Estado unitário com regiões autónomas e de sistema de governo
semipresidencial.
Desapareceram referências ao socialismo (embora se mantivesse, no artigo 2º, o objetivo de
“assegurar a transição para o socialismo”), ao “exercício democrático do poder pelas classes
trabalhadoras” (embora se mantivesse, no artigo 1º, o empenho da República portuguesa na
“sua transformação numa sociedade sem classes”), ao “processo revolucionário”, à tarefa de
“socializar os meios de produção e a riqueza”, ao “desenvolvimento das relações de produção
socialistas”.
Foi também suprimida, mas aí já com significado prático no domínio da organização
económica, a anterior previsão de a lei poder autorizar a expropriação, sem indemnização,
de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou acionistas.
C) Revisão de 1989
A revisão de 1989 foi historicamente justificada pela necessidade de ajustamento da parte
económica da Constituição ao novo contexto marcado pela recente integração europeia. O sistema
constitucional português ficou finalmente estabilizado, com as alterações nos domínios da
organização do poder político (1982) e da organização económica (1989).
Depois das profundíssimas revisões de 1982 e 1989, ao nível da organização do poder político
e da organização económica, mas também da eliminação das referências ideológicas, a CRP
aparentava ser uma Constituição diferente, ou pelo menos, a mesma Constituição desfigurada.
Todavia, analisando a questão em termos históricos, numa perspetiva mais alargada, a conclusão é
outra. No campo das formas políticas, o tipo histórico de Estado é hoje, como em 1976, Estado de
Direito social e democrático; a forma de governo é republicana; o regime político é de democracia
representativa de Estado de Direito; o sistema de governo é o semipresidencialismo; o sistema
eleitoral é proporcional e existe pluripartidarismo. Também a parte dos direitos fundamentais não
sofreu alterações radicais. A supressão das referências ideológicas (que não têm valor normativo)
pode dar a ideia de que a Constituição mudou radicalmente, mas se as duas matérias fundamentais
de uma Constituição material (sistema político e direitos fundamentais) estão na mesma, a
Constituição é a mesma.
Esta revisão integra-se genericamente no ambiente da querela constitucional, pelo que o
processo de revisão foi aproveitado para encerrar o ciclo de filtragem ideológica que se havia iniciado
na primeira revisão constitucional e para inaugurar um novo ciclo de preocupações recorrentes com
a reforma do sistema político que seria continuado e aprofundado na revisão ordinária seguinte.
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i) Organização económica
Mais importante – eliminação da garantia da irreversibilidade das nacionalizações efetuadas
após o 25 de Abril de 1974, permitindo-se agora a reprivatização nos termos de lei-quadro
aprovada por maioria absoluta, observados alguns critérios enunciados em disposição
constitucional transitória (293º). Até então, esse era considerado um princípio vital que
asseguraria as conquistas irreversíveis conseguidas com as nacionalizações.
Fim do monopólio estatal do setor da televisão e sua abertura à propriedade privada (38º).
O princípio da “apropriação coletiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos
recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios” deixou de ser limite
material de revisão constitucional.
Onde anteriormente se falava, enquanto princípio fundamental da organização económica,
na “apropriação coletiva dos principais meios de produção e solos”, fala-se depois da revisão
em “apropriação coletiva de meios de produção e solos, de acordo com o interesse público”.
Nas tarefas fundamentais do Estado foi suprimida a “socialização dos principais meios de
produção”.
A anterior caracterização do SNS como “universal, geral e gratuito” foi agora substituída pela
de “universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos,
tendencialmente gratuito” (64º).
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Referendo nacional com caráter vinculativo (115º) – a revisão de 1982 já tinha instituído
referendos locais (240º). A revisão constitucional de 1989 consagrou a possibilidade de
realização de referendos nacionais, a convocar pelo PR. Fê-lo, todavia, rodeando o instituto
de um conjunto de garantias que visam reduzir o risco de degradação plebiscitária da
democracia representativa, como sejam a necessária iniciativa do Governo ou da AR, a
exclusão dos referendos constitucionais e das matérias, em princípio, mais importantes e a
necessidade de o referendo ter por objeto questões de relevante interesse nacional que
devam ser decididas por ato legislativo ou por convenção internacional.
Círculo eleitoral nacional (149º/2) – na delimitação dos círculos eleitorais da Assembleia da
República, instituiu-se a possibilidade de criação legal de um círculo de âmbito nacional,
denotando, aparentemente, uma preocupação de garantia de um resultado proporcional na
distribuição final dos mandatos, mas a prejuízo da estabilidade governativa. Esta alteração
poderia indiciar a perspetiva de migração futura para um sistema misto de base proporcional,
como se confirmou na revisão ordinária seguinte.
Ainda que feitas com a melhor das intenções, estas duas alterações, supostamente
transformadoras do sistema político, acabaram por não ter concretização prática. Quanto ao
referendo nacional, criado na lógica de aproximação entre eleitos e eleitores, verificou-se
uma participação eleitoral muito reduzida, tendo sido realizados apenas três referendos até
aos dias de hoje. Já o círculo nacional de compensação até hoje não foi instituído.
D) Revisão de 1997
Enquanto as duas revisões ordinárias anteriores (1982 e 1989) tiveram um propósito definido
e previamente assumido pelas principais forças políticas, a revisão de 1997 fez-se como se a sua
realização fosse uma obrigação ritualizada ou um hábito, mas sem que houvesse um objetivo pré-
estabelecido, apelando-se simplesmente à vaga intenção de reforma do sistema político como ideia
dominante. Os dois grandes partidos fizeram a revisão com o espírito de revolucionar, de fazer
reformas profundíssimas, mas que não se concretizaram. O processo de revisão acabou por se
traduzir na alteração de grande parte dos artigos da Constituição, bem como na respetiva
renumeração, sem sentido útil, sem que seja possível sintetizar adequadamente quais os grandes
resultados produzidos ou, simplesmente, sem que seja fácil responder à pergunta: para que serviu a
revisão de 1997?
A alteração na numeração da Constituição, que deve ser um documento estável, de
referência, duradouro, acabou por resultar na instabilidade da Constituição, prejudicial para a
comunidade jurídica, dando-se a impressão que é uma lei como qualquer outra.
i) Direitos fundamentais
De entre um amplo conjunto de inovações em grande medida supérfluas, meramente
retóricas ou acolhendo simplesmente as expressões e as tendências mais em voga do discurso
humanitário e político da época, há algumas poucas alterações juridicamente relevantes:
Direito ao desenvolvimento da personalidade (26º) – consagrado por inspiração da
Constituição alemã, é a nota dogmaticamente mais importante nos direitos fundamentais. É
um direito vital para o princípio da liberdade. Entendido enquanto proteção constitucional da
liberdade geral de ação, atua a título subsidiário sempre que não é invocável um direito
fundamental específico, instituindo uma proteção jusfundamental sem lacunas que obriga
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E) Revisão de 2004
É na ampliação da autonomia regional onde se concentram a maior parte das alterações mais
relevantes introduzidas por esta revisão constitucional.
i) Integração europeia
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Revisão de 1982
Restringiu-se o entendimento do conceito de “leis gerais da República”, passando a sê-lo as
leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolvesse a sua aplicação, sem reservas, a todo o território
nacional. Esta tentativa de definir “lei geral da República” não foi bem-sucedida (como se pode
concluir que uma lei se destina ou não a ser aplicada a todo o território nacional?), pelo que o TC
continuou a declarar ilegais decretos legislativos regionais que violavam leis gerais da república.
Revisão de 1989
No mesmo sentido ampliativo, prevê-se a possibilidade de a AR autorizar que decretos
legislativos regionais pudessem contrariar leis gerais da República.
Revisão de 1997
Ampliação das competências legislativas das R.A:
Os decretos legislativos regionais passam a poder dispor contra as leis gerais da República
desde que não contrariassem os seus princípios fundamentais.
Para que uma lei da República seja considerada uma “lei geral da República” passa a ser
necessário que a sua razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e que a
própria lei assim o decrete.
Revisão de 2004
Eliminaram-se os dois limites da competência legislativa regional que geravam mais
controvérsia jurídica:
Existência de um “interesse específico” enquanto pressuposto da competência legislativa
regional.
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Leis gerais da República (os seus princípios fundamentais) enquanto parâmetro material que
a legislação regional devia observar.
As regiões passam a poder legislar, dentro de certos limites, no âmbito regional, sobre todas
as matérias, podendo dispor contra as leis da República. Limites:
Matérias reservadas aos órgãos de soberania (164º, 165º e 198º/2) – sendo que a AR pode
autorizar as Assembleias regionais a legislarem sobre algumas das matérias que integram a
sua reserva relativa de competência legislativa.
Matérias que não venham enunciadas nos respetivos estatutos político-administrativos –
sendo que os estatutos político-administrativos discriminam um extenso conjunto de
matérias, pelo que, na prática, as R.A. podem legislar sobre tudo menos sobre as matérias
que estejam reservadas aos órgãos de soberania.
G) Revisões extraordinárias
As revisões extraordinárias são, por definição, justificadas por necessidades pontuais de
resolução de dificuldades jurídico-constitucionais que não permitam ou não aconselhem aguardar o
decurso normal do tempo em que a Assembleia da República adquire poderes ordinários de revisão.
i) Revisão de 1992
A necessidade da revisão extraordinária nasceu da aprovação do Tratado da União Europeia
(Tratado de Maastricht), assinado em 1992, que levantava algumas questões de compatibilidade com
a Constituição portuguesa (tal como aconteceu com outros países).
Possibilidade de Portugal convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à
construção da União Europeia (7º/6).
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1. Função legislativa5
São órgãos com competência legislativa (competência para aprovar atos legislativos):
i) Assembleia da República – leis
ii) Governo – decretos-leis
iii) Assembleias Legislativas regionais – decretos legislativos
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Bibliografia para toda a matéria da função legislativa: aulas do Prof. Reis Novais
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Estado de Direito social – não se perdeu a noção de lei como expressão da vontade geral, mas
a separação de poderes sofre alterações significativas. Agora, o Estado social tem grande
intervenção na vida económica e social, sendo impossível a um órgão como uma assembleia
parlamentar responder às necessidades legislativas do dia-a-dia. Há uma tendência
generalizada do Estado social de atribuir competências legislativas ao Governo, que deixa de
ser um órgão meramente executivo.
1º semestre: Na passagem do Estado de Direito liberal para o Estado social e democrático de Direito, a separação
rígida entre funções legislativa, executiva e judicial passa a ser entendida como um processo de distribuição e integração
racionalizadas das várias funções e órgãos do Estado, de forma a limitar as possibilidades de exercício arbitrário do poder.
Constata-se uma progressiva diluição das fronteiras entre legislativo e executivo:
Há um aumento considerável da atividade legislativa por parte dos Governos, institucionalizando-se uma
competência legislativa própria ou delegada pelo Parlamento.
Os Parlamentos invadem a área tradicionalmente reservada ao Governo, na medida em que o conteúdo das leis
aprovadas perde o seu caráter geral e abstrato para atender a necessidades quotidianas e pontuais e de
categorias particulares de cidadãos. Surge a figura das leis-medida, destinadas a responder a necessidades
governativas concretas. Excecionalmente são até aprovadas leis individuais que configuram a prática, pelo órgão
legislativo, de atos administrativos, ainda que sob a forma de lei.
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Ver apreciação parlamentar de decretos-leis – Parte II/Cap. 3/Ponto C
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Ver evolução das competências legislativas regionais – Parte I/Cap. 3/Ponto F.
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E) Tipos de leis
Leis ordinárias
112º/3 – leis com valor reforçado. Ou seja, dentro das leis ordinárias há distinções a fazer:
o Leis ordinárias comuns
o Leis ordinárias com valor reforçado
Relevância da distinção – 280º/2 e 281º/1/b – a desconformidade de uma lei comum com
uma lei com valor reforçado supõe um vício de ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado, a determinar pelo Tribunal Constitucional. Há um paralelo com a
inconstitucionalidade:
o Inconstitucionalidade direta – norma ordinária contraria norma constitucional.
o Inconstitucionalidade indireta ou ilegalidade de ato legislativo – determinada lei ordinária
comum contraria determinada lei ordinária com valor reforçado. Como a própria
Constituição estabelece que as certas leis comuns têm de respeitar outras, com valor
reforçado, se as primeiras não respeitam as segundas, também não estão a respeitar
(indiretamente) a Constituição, que estabeleceu a regra de supremacia.
o Ilegalidade – ato administrativo contraria ato legislativo (princípio da legalidade).
112º/3 – “Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria
de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo
necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.”
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Leis que carecem de aprovação por maioria de 2/3, desde que superior à maioria absoluta dos
Deputados em efetividade de funções – 168º/6.
Leis que, por força da Constituição, são pressuposto normativo necessário de outras leis – 112º/2:
Leis de autorização legislativa (165º/2,3,4,5) – as leis de autorização legislativa são
pressuposto normativo dos decretos-leis e decretos legislativos regionais feitos no uso da
respetiva autorização legislativa. Por isso, são leis com valor reforçado relativamente aos
decretos-leis feitos no uso de autorização legislativa. Se o decreto-lei contrariar a lei de
autorização legislativa, há uma ilegalidade por violação de lei com valor reforçado.
Leis de bases – as leis de bases limitam-se a consagrar os grandes princípios (as bases) de
certo regime jurídico (saúde, educação), que vão ser desenvolvidos e concretizados noutros
diplomas do mesmo domínio. São, por isso, pressuposto normativo dos decretos-leis de
desenvolvimento, sendo leis com valor reforçado relativamente a esses diplomas. Se o
decreto-lei contrariar a lei de bases há ilegalidade por violação de lei com valor reforçado.
Leis-quadro ou leis de enquadramento (alcance específico): leis que dispõem sobre o conteúdo ou o
processo de feitura de outras leis. Exemplos:
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A) Iniciativa legislativa
Um processo legislativo só se abre com a fase da iniciativa:
167º/1 – têm iniciativa legislativa os Deputados, os grupos parlamentares, o Governo, os
grupos de cidadãos eleitores e, no respeitante às R.A, as Assembleias Legislativas.
Distinção terminológica, mas importante:
o Projeto de lei – iniciativa é interna ao próprio órgão – Deputados, grupos
parlamentares e grupos de cidadãos.
o Proposta de lei – iniciativa é externa ao próprio órgão – Governo e Assembleias
Legislativas.
Iniciativa de grupos de cidadãos eleitores
o Lei 17/2003 – Lei da iniciativa legislativa de cidadãos, alterada pela Lei orgânica 1/2016.
o São necessários 20.000 cidadãos eleitores para apresentar a proposta de lei.
o Esta é uma das reformas do sistema político que se fez nas revisões constitucionais,
mas que não tem efetividade prática.
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Cláusula-travão:
167º/2 – “Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões
autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei,
propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso,
aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.”
Só o Governo pode apresentar iniciativas legislativas que envolvam, no ano económico em
curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas previstas no OE. É assim porque o
Governo tem de programar a sua governação em função do Orçamento do Estado, para não
desenvolver políticas que o obriguem a gastar mais que o previsto.
As restantes entidades com iniciativa legislativa podem apresentar projetos ou propostas para
vigorarem Orçamento do ano seguinte.
Uma lei que viole a norma travão é inconstitucional. Recebendo-a, o Presidente da República
deve vetar ou solicitar a apreciação preventiva da constitucionalidade ao TC, ainda que não
esteja obrigado a nenhuma das duas atuações (isto é, o PR pode promulgar).
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República. Em segundo, a clausula-travão não comporta dúvidas de interpretação, não se lhe aplicando o conceito de
interpretação conforme à Constituição.
– Coloca-se ainda o seguinte problema: os beneficiários, após perderem o apoio que lhes é atribuído pela Lei X, podem
recorrer a Tribunal. Os Tribunais comuns iriam apreciar a questão, que nunca foi ao Tribunal Constitucional, verificando
que há uma inconstitucionalidade orgânica. Assim, o Presidente da República devia, de início, ter vetado a Lei X ou pedido
ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da sua constitucionalidade, sob suspeita de violação da lei-travão.
(continua na referenda)
B) Discussão e votação
Discussão e votação – 168º
1. Debate na generalidade – sobre quais os objetivos em vista na proposta/projeto de lei, o seu
espírito, as alterações que se pretende inserir na ordem jurídica. Os Deputados não se
preocupam excessivamente com o que diz cada um dos artigos.
2. Votação na generalidade – versa sobre o sentido global do projeto/proposta. Normalmente,
sendo o projeto/proposta aprovado, passa à fase seguinte e “baixa à comissão”.
3. Debate na especialidade – artigo a artigo, alteração a alteração. Normalmente é feito, não no
Plenário, mas na Comissão da área específica (nº3). Mas o 168º estabelece matérias
importantes em que a votação na especialidade têm de ser feita em Plenário (nº4,5).
4. Votação na especialidade – disposição a disposição.
5. Votação final global – em Plenário.
Maiorias:
Regra geral: 116º/3 – maioria simples ou relativa, isto é, mais votos a favor que votos contra.
Exceções – maiorias qualificadas:
o 168º/5 – as leis orgânicas carecem de aprovação, na votação final global, por maioria
absoluta dos Deputados em efetividade de funções.
o 168º/5 – as disposições relativas à delimitação territorial das regiões, previstas no artigo
255º, devem ser aprovadas, na especialidade, em Plenário, por maioria absoluta dos
Deputados em efetividade de funções.
o 168º/6 – aprovação, em votação final global, por maioria de 2/3 dos Deputados presentes,
desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções.
Advertência: nos preceitos acima, de umas vezes a Constituição refere “lei” na sua totalidade,
e de outras fala apenas em “normas”/“disposições”.
C) Promulgação e veto
Promulgação e assinatura – 134º/b
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Após a receção de um diploma para promulgação, o PR pode: (i) promulgar, (ii) vetar ou (iii)
requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade.
134º/b – Compete ao Presidente da República “promulgar e mandar publicar as leis, os
decretos-leis e os decretos regulamentares, assinar as resoluções da Assembleia da República
que aprovem acordos internacionais e os restantes decretos do Governo.”
A promulgação é uma assinatura com maior solenidade, que se aplica a atos com maior
solenidade, como sejam os atos legislativos e os decretos regulamentares.
O 134º/b é o artigo-chave da promulgação e veto. Esse preceito dá fundamento ao PR para
promulgar/assinar e, logicamente, recusar a promulgação/assinatura dos atos. É assim
porque, em semipresidencialismo, os poderes que a Constituição confere ao PR são poderes
reais, que o Presidente exerce livremente; em semipresidencialismo, o poder de promulgar
envolve o poder de não promulgar, de acordo com a regulação dos artigos 136º e 279º.
O Representante da República assina e manda publicar os decretos legislativos regionais e os
decretos regulamentares regionais – 233º/1.
137º – A falta de promulgação ou de assinatura determina a inexistência jurídica do ato.
Em rigor, os diplomas da AR e do Governo não são leis e decretos-leis, mas decretos, enviados
ao PR para serem promulgados como lei ou decreto-lei. Só após a promulgação os decretos
passam a ter existência jurídica como lei ou decreto lei.
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D) Referenda ministerial
Referenda – 140º
140º/1 – Carecem de referenda do Governo um extenso conjunto de atos do Presidente da
República, entre os quais, os do 134º/b (promulgação e veto): “promulgar e mandar publicar
as leis, os decretos-leis e os decretos regulamentares, assinar as resoluções da Assembleia da
República que aprovem acordos internacionais e os restantes decretos do Governo”.
A referenda é dada após a promulgação do PR e antes da publicação do ato. É uma fase do
processo legislativo meramente formal, através da qual o PM e outros Ministros atestam a
regularidade da assinatura do PR.
140º/2 – A falta de referenda determina a inexistência jurídica do ato. Assim, só há ato, ainda
que promulgado, se o Governo o referendar. Há como que uma cadeia de inexistências
jurídicas: primeiro, o ato tem de ser promulgado, sob pena de inexistência jurídica (137º),
depois, tem de ser referendado, também sob pena de inexistência (140º/2).
referendava. Uma posição predominante do Governo como essa iria contra toda a
organização e separação de poderes vertida na CRP, onde o órgão legislativo por excelência
é a AR e o Governo tem uma competência legislativa limitada e condicionada.
Assim, se o Governo recusasse dar referenda a algum ato do PR por razões políticas (e não,
por exemplo, porque não atestou a veracidade da assinatura do Presidente), haveria uma
crise política e uma crise constitucional. A situação, que nunca aconteceu, seria resolvida por
meios políticos. A recusa de referenda do Governo constituiria fundamento para a Assembleia
da República aprovar uma moção de censura ao Governo ou para o Presidente da República
o demitir, nos termos do art. 195º/2 (isto é, porque a demissão do Governo se tornava
necessária para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas).
Não há justificação racional para uma norma, aparentemente, determinar que a última
palavra é o Governo. A existência da referenda justifica-se pela tradição. Tradicionalmente,
no sistema constitucional português, o Rei dava a sanção real (promulgação) aos atos
legislativos. Mas em monarquia constitucional e parlamentar, esse ato não podia ser livre.
Assim, o Rei era obrigado a sancionar os atos, mas para não se responsabilizar por eles (já que
não tem poder de decisão sobre os mesmos), o órgão responsável (Governo, Primeiro-
Ministro, Ministros) referendava-os. Ou seja, os atos do Rei estavam sujeitos a referenda
ministerial ou governamental de forma a demonstrar que quem realmente praticou o ato não
foi o Rei, mas quem referendou. Era este o sentido do instituto no século XIX, que ficou nas
Constituições embora, em sistema semipresidencial, perdendo o seu significado.
E) Publicação
119º/2 – “A falta de publicidade dos atos previstos nas alíneas a) a h) do número anterior e
de qualquer ato de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder
local, implica a sua ineficácia jurídica.”
Enquanto não for publicada, uma Lei da AR é ineficaz, ainda que, uma vez promulgada e
referendada, já tenha existência jurídica.
O facto de uma lei poder ter eficácia retroativa (uma ficção legal), acaba por retirar relevância
à publicação, cujo objetivo é dar a conhecer as leis aos cidadãos.
Não obstante, esse objetivo da publicação tem importância, particularmente no que aos atos
do Governo diz respeito, uma vez que são frequentemente secretos até serem publicados.
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B) Autorizações legislativas
Regime:
161º – “Compete à Assembleia da República:
d) Conferir ao Governo autorizações legislativas;
e) Conferir às Assembleias Legislativas das regiões autónomas as autorizações previstas
na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição.”
198º/1/b – “Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em
matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta.”
227º/1/b – As Assembleias Legislativas regionais podem legislar em matérias de reserva
relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, com exceções.
A iniciativa da lei de leis de autorização legislativa é do Governo e das ALR.
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165º/3 – “As autorizações legislativas não podem ser utilizadas mais de uma vez, sem prejuízo da sua
execução parcelada.” Assim, há que distinguir entre:
Utilização parcelada – permitida – o Governo não está obrigado a concentrar tudo no mesmo
diploma. Por isso, pode aprovar vários decretos-lei, no uso da mesma lei de autorização
legislativa, sobre matérias diferentes.
Utilização mais de uma vez – proibida – o Governo não pode legislar mais que uma vez, no
uso da mesma autorização legislativa, sobre a mesma matéria. Assim, também não pode
utilizar a mesma lei de autorização legislativa para fazer um decreto-lei e, depois, o alterar.
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Qual o sentido de a CRP tratar autonomamente deste instituto se a AR pode alterar ou revogar
decretos-leis do Governo, no uso da sua competência legislativa ordinária, através da forma de lei, já
que leis e decretos leis têm igual valor (112º/2)? Mais, se os requisitos da apreciação parlamentar de
atos legislativos são mais exigentes que os impostos pelo processo legislativo ordinário?
Apreciação parlamentar de atos legislativos:
o Requisitos formais – iniciativa de dez Deputados
o Requisitos temporais – trinta dias após publicação do ato legislativo
Processo legislativo ordinário:
o Requisitos formais – iniciativa de um Deputado e de outras entidades
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A) Generalidades
Tribunal Constitucional: é o Tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça
em matérias de natureza jurídico-constitucional (art. 221º CRP).
Foi criado na revisão constitucional de 1982, tendo assumido as funções do Conselho da
Revolução, que era auxiliado pela Comissão Constitucional. Desde 1982 que o sistema
português de fiscalização se tem mantido praticamente inalterado, o que é surpreendente
tendo em conta a pressão dos frequentes processos de revisão constitucional.
O Tribunal Constitucional aprecia a inconstitucionalidade e a ilegalidade de normas:
o Inconstitucionalidade9: vício da norma ou ato dos poderes públicos (legislativo, judicial,
administrativo) desconforme com a Constituição (norma ou princípio constitucional).
o Ilegalidade10: ilegalidade de atos legislativos e de outras normas por violação de leis com
valor reforçado, já que as leis com valor reforçado prevalecem sobre outras leis.
O TC só aprecia a inconstitucionalidade de normas, e não de atos ou decisões.
O TC desempenha outras funções, por exemplo, a legalização e ilegalização de partidos.
Tipos de inconstitucionalidade:
Inconstitucionalidade material – desconformidade material (quanto ao conteúdo) entre uma
norma legal e uma norma constitucional – ex: lei que aprova pena de morte.
Inconstitucionalidade orgânica – não foram observadas regras de competência – ex: Governo
legisla sobre matéria de reserva absoluta da AR.
Inconstitucionalidade formal – não foram observadas regras de forma ou procedimento – ex:
AR não aprova lei com a maioria necessária.
No sistema português de fiscalização da constitucionalidade não há, na prática, diferenças de
regime e consequências entre os vários tipos de inconstitucionalidade.
8
Bibliografia para toda a matéria da fiscalização da constitucionalidade: Jorge Reis Novais, Sistema Português de
Fiscalização da Constitucionalidade, 3ª Ed.
9
Ver conceito de inconstitucionalidade – Parte I/Cap. 1/Ponto A
10
A esta ilegalidade chama-se também inconstitucionalidade indireta – Parte II/Cap. 1/Ponto E
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Terminologia:
O Tribunal Constitucional:
o pronuncia ou não se pronuncia pela inconstitucionalidade – em fiscalização preventiva
o declara ou não declara a inconstitucionalidade – em fiscalização sucessiva abstrata
o julga ou não julga a inconstitucionalidade – em fiscalização sucessiva concreta
o verifica ou não verifica a inconstitucionalidade – em fiscalização por omissão
O Tribunal Constitucional nunca se pronuncia, declara, julga ou verifica a constitucionalidade
de uma norma, mas apenas a inconstitucionalidade. O Tribunal Constitucional dizer que uma
norma não é inconstitucional não quer dizer que a norma seja constitucional já que, no futuro,
pode voltar a apreciar a inconstitucionalidade da mesma norma e declará-la inconstitucional.
B) Fiscalização preventiva
Características gerais:
Incide sobre normas que ainda não foram promulgadas e, consequentemente, que ainda não
foram publicadas ou entraram em vigor.
Apenas fiscalização preventiva da constitucionalidade, e não da legalidade. Apenas atos
legislativos e atos internacionais.
Iniciativa:
o Presidente da República – normas constantes de: (i) decretos enviados para promulgação
como lei ou decreto-lei; (ii) tratados internacionais enviados para ratificação; (iii) acordos
internacionais enviados para assinatura.
o Representantes da República – só decretos legislativos enviados para assinatura
o 1/5 dos Deputados em efetividade de funções e Primeiro-Ministro – só leis orgânicas.
Prazos para requerer a fiscalização preventiva: 8 dias a contar da receção do diploma.
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Prazo para o TC se pronunciar: 25 dias, que pode ser encurtado a pedido do PR, o que
raramente acontece, dada complexidade do processo de fiscalização da constitucionalidade.
Efeitos da decisão:
Se o TC não se pronunciar pela inconstitucionalidade, após a publicação da decisão, o PR tem
o prazo normal para promulgar ou vetar (veto político) – 136º/1.
Se o TC considerar que há inconstitucionalidade, o diploma é necessariamente vetado pelo
Presidente da República (veto jurídico), como forma de realizar a decisão do TC – 279º/1.
Após a declaração de inconstitucionalidade pelo TC e consequente veto jurídico por parte do
PR, o diploma é devolvido ao órgão que o aprovou, que tem várias opções:
o Desistir;
o Expurgar as normas inconstitucionais – órgão retira a norma inconstitucional do diploma.
o Reformular o diploma – em princípio, o diploma é tratado como um novo decreto,
podendo ser promulgado, vetado ou enviado para o Tribunal Constitucional pelo PR.
o Confirmar o diploma – a Assembleia da República (e, para alguma doutrina, as
Assembleias Legislativas regionais) pode confirmar a aprovação do diploma por uma
maioria de 2/3 dos Deputados. Esta é uma solução de conflito, entre a opinião política da
AR e a decisão jurídica do Tribunal Constitucional, que é arbitrada pelo Presidente da
República, a quem cabe a decisão final sobre se promulga ou não o diploma em causa.
O desempenho da fiscalização preventiva depende muito da atuação do PR, uma vez que a
iniciativa de desencadear o processo é quase exclusivamente sua:
Se o PR se desvia dos fins do instituto, e o transforma em mero meio de luta política (ex:
Presidente Cavaco Silva), a racionalidade da fiscalização preventiva é posta em causa.
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Acórdão nº 353/2012 do TC
Com a crise financeira de 2009, foram introduzidas várias medidas de austeridade nas leis do OE. Suprimiu-se o
pagamento do 13º e do 14º meses aos funcionários públicos e aos pensionistas para o ano de 2012 e seguintes,
supressão que o TC viria a declarar a inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
Em vez de submeter o diploma a fiscalização preventiva da constitucionalidade, o Presidente Cavaco Silva, ciente
da inconstitucionalidade, promulgou o diploma, que entrou em vigor. A ordem jurídico-constitucional foi
gravemente ofendida, com dúvidas de constitucionalidade, com insegurança jurídica e com decisões sobre a
inconstitucionalidade da lei em litígios concretos, por Tribunais Administrativos, ficando o TC arredado da
decisão. Uma inconstitucionalidade de peso significativo e de consequências gravíssimas para a vida quotidiana
de milhares de pessoas não só entrou em vigor, como produziu efeitos como facto consumado.
Mais tarde, o TC foi chamado por alguns Deputados a decidir sobre a inconstitucionalidade daquelas normas em
sede de fiscalização sucessiva abstrata. Dado o atraso na intervenção do TC, existiam, aparentemente, duas
alternativas: (i) não declarar a inconstitucionalidade, com prejuízos sérios para os direitos fundamentais dos
agredidos, ou (ii) declarar a inconstitucionalidade com os efeitos obrigatórios e gerais típicos numa altura de
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crise extrema. Com as dificuldades financeiras que o país atravessava, o Governo devolver às pessoas o valor
que lhes cortou geraria um caos na execução orçamental desse ano, com aumentos do défice e da dívida, para
além do desrespeito de acordos celebrados com financiadores externos.
Para não colocar em causa a execução orçamental do ano económico em curso, o TC foi obrigado a restringir os
efeitos da declaração de inconstitucionalidade, salvaguardando os efeitos produzidos e a produzir pelas normas
inconstitucionais durante o ano de 2012. Pela primeira vez, o TC decidiu que, por razões de interesse público de
excecional relevo, com fundamento no 282º/4, as normas inconstitucionais continuassem a ser aplicadas
durante o resto do ano económico em curso. As normas foram declaradas inconstitucionais, mas continuam a
aplicar-se para o futuro. De facto, esta possibilidade não é clara, mas ela pode inferir-se de “com alcance mais
restrito do que o previsto nos n.os 1 e 2” (282º/4).
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As consequências são apenas uma chamada de atenção ao órgão que está em falta.
E) Fiscalização concreta
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Advertências:
Pode suscitar-se a questão de constitucionalidade no curso do processo, até a decisão final
ser tomada (ou após, se for uma decisão surpresa). Se a parte não se tiver lembrado de
levantar a questão em primeira instância, pode fazê-lo nos Tribunais superiores.
A decisão que vale é sempre a decisão final, a última que tenha sido tomada sobre a questão
no processo em curso. Havendo recurso para os Tribunais superiores, o que conta para se
apurar o regime de recurso para o TC é o sentido da decisão que tenha sido tomada pelo
Tribunal superior, depois dos recursos admissíveis.
Grupo I – 280º/1/a – o Tribunal de cuja decisão se recorre recusou a aplicação da norma a um caso
concreto com fundamento em inconstitucionalidade – situação grave e anómala: um juiz entende
que uma norma em vigor na ordem jurídica é inconstitucional.
Subtipo 1 – a norma consta de convenção internacional, de ato legislativo ou de decreto
regulamentar
o A norma em apreciação consta de um diploma com grande importância (atos sujeitos à
promulgação, assinatura ou ratificação do PR), pelo que a situação é ainda mais grave.
o Assim, o MP junto do TC é obrigado a recorrer da decisão do juiz comum para o TC
(280º/3), para que não haja insegurança jurídica em relação à inconstitucionalidade da
norma. Também as partes podem recorrer, se se sentirem prejudicadas pela decisão.
o Como o MP é obrigado a recorrer, mesmo que nenhuma das partes recorra, o TC vai
decidir finalmente a questão. Por isso, na prática, o juiz comum recusou aplicar a norma
em vigor, mas quem decide se a norma em causa é ou não inconstitucional para efeitos
da sua aplicação no caso em julgamento é o TC.
Subtipo 2 – a norma consta de qualquer outro diploma
o A norma em apreciação é, em princípio, menos importante, pelo que, apesar da
insegurança gerada, as consequências não são tão problemáticas como no primeiro caso.
o Assim, o MP não é obrigado a recorrer da decisão do juiz comum para o TC, ou seja, o MP
ou a parte afetada recorrem se quiserem.
o Se nem o MP nem uma das partes recorrerem, a questão não chega ao TC.
Grupo II – 280º/1/b – o Tribunal de cuja decisão se recorre aplicou a norma porque, expressa ou
implicitamente, o juiz considerou não haver inconstitucionalidade – situação (em princípio) corrente:
os juízes aplicam aos casos sob a sua jurisdição as normas em vigor na ordem jurídica portuguesa.
Subtipo 3 – a norma foi anteriormente julgada inconstitucional pelo TC (situação raríssima)
o Ainda assim, um juiz comum voltou a aplicar essa norma. Há uma situação de insegurança,
já que o juiz comum não segue a anterior orientação do TC. Se já é raro o TC julgar normas
inconstitucionais, mais raro é os juízes continuarem a aplicá-las. O raciocínio da
Constituição é o mesmo do raciocínio relativo à recusa de aplicação (grupo I): a situação
é anómala e excecional, pelo que o TC deve ser chamado a decidi-la.
o Há recurso para o TC (as partes podem recorrer, se sentirem que foram prejudicadas),
obrigatório para o MP (280º/5). Exceção: 72º/4 LTC – mesmo sendo o recurso obrigatório para o MP,
“O Ministério Público pode abster-se de interpor recurso de decisões conformes com a orientação que se
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Sendo, nas outras modalidades de fiscalização, o sistema português réplica do que acontece
noutras experiências em Estado constitucional, releva atentar nas notas que conferem uma
identidade própria ao sistema de fiscalização concreta, especialmente no que o distingue dos grandes
modelos de justiça constitucional.
Importa refletir sobre o sistema de fiscalização concreta especialmente por ser através desta
modalidade de fiscalização que os particulares podem aceder à justiça constitucional para a proteção
dos seus interesses e direitos fundamentais. Isto é, enquanto para todas as outras modalidades de
fiscalização a iniciativa é sempre de entidades públicas e, portanto, só indiretamente, peticionando
ou dirigindo-se a essas entidades, os particulares podem suscitar questões de constitucionalidade,
na fiscalização concreta os particulares assumem-se como atores principais, podendo dirigir-se
diretamente ao TC, ainda que com condicionamentos, através do recurso interposto de decisões dos
Tribunais comuns.
A importância da fiscalização concreta é verificável quando se compara o número de
processos que são decididos pelo TC em fiscalização concreta (1557 processos em 2017) e nas outras
modalidades de fiscalização da constitucionalidade (14 processos de fiscalização abstrata em 2017).
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Também não pode ser invocada a inconstitucionalidade por omissão de normas. A omissão
legislativa pode ser invocada no plano da fiscalização abstrata, mas não no da fiscalização
concreta, que apenas incide sobre normas e nunca sobre a falta delas.
Não podendo o TC decidir sobre a inconstitucionalidade de atos ou decisões ou sobre a
omissão de normas ou atos, por mais relevante que seja a inconstitucionalidade cometida ou
por mais gravosos que sejam os danos causados, quaisquer decisões dos Tribunais comuns,
que têm competência exclusiva nessas matérias de constitucionalidade, são definitivas. Aqui,
o anómalo não é haver Tribunais comuns a decidir questões de constitucionalidade (o que
acontece no modelo americano), mas o facto de o Tribunal Constitucional, um Tribunal criado
para administrar a justiça constitucional, ser privado da decisão das eventualmente mais
relevantes e numerosas questões de constitucionalidade.
Por exemplo:
Se um Tribunal, um poder público, condenasse alguém à morte, haveria indiscutivelmente
uma inconstitucionalidade grave e inequívoca (já que “em caso algum haverá pena de morte”
– 24º/2). De acordo com o sistema português, o TC não dispõe de competência para intervir,
uma vez que não está em causa a inconstitucionalidade de uma norma.
O Estado está obrigado não apenas a não agredir os direitos dos cidadãos, como a protegê-
los de agressões de outros particulares. Se não proteger, comete uma omissão
inconstitucional. Todavia, a questão não pode ir para o TC, porque não incide sobre normas,
mas sobre o ato de um particular e uma omissão do Estado. Ex: se uma pessoa estiver a ser
agredida e um agente da polícia assistir, ele está obrigado a proteger a integridade física do
agredido; se não o fizer, está a cometer uma omissão inconstitucional; o cidadão lesado pode
recorrer aos Tribunais, mas não ao TC.
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TC se a considerar pertinente, não reenviar se considerar que não tem razão de ser. Portanto,
o juiz europeu tem, pelo menos, o poder de decidir se a questão tem dignidade para ir para
o TC (e tal não é um défice do modelo europeu porque se o cidadão europeu pode socorrer-
se, em última instância, do recurso de amparo).
Por outro lado, o juiz português pode e deve decidir questões de constitucionalidade, mas
apenas aparentemente: o poder de fiscalização da constitucionalidade foi como que um
presente envenenado para o juiz português, que corre um risco sério de ver a sua decisão
revogada pelo TC, vendo-se obrigado a reformar a sua decisão no caso concreto. Então, ainda
que o sistema português dê aos juízes comuns a possibilidade e a obrigatoriedade de decidir
questões de constitucionalidade, das suas decisões cabe quase sempre recurso para o TC,
muitas vezes obrigatório para o MP. E se o TC decidir em sentido diverso do anteriormente
decidido, o juiz comum tem que reformar a sua anterior decisão.
Portanto, formalmente o sistema português de fiscalização concreta atribui a todos os
Tribunais a faculdade de decisão das questões de constitucionalidade mas, no fundo, as suas
decisões são meramente provisórias, porque se assegura que seja o TC a decidir em definitivo.
Ou seja, o sistema português confia nos Tribunais comuns ao atribuir-lhes a possibilidade de
decidir, mas retira-lhes imediatamente a confiança quando dá às partes possibilidade de
recurso para o TC.
Em sentido contrário, no sistema português, no que à inconstitucionalidade de atos, decisões
e omissões diz respeito, a decisão do juiz comum é definitiva, não cabendo recurso para o TC.
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de trinta anos, período durante o qual foi alterada vezes sem conta; as associações sindicais
foram posteriormente e repetidamente ouvidas, pelo que a omissão não causou qualquer
prejuízo; decorridos mais de trinta anos alguém invoca, num litígio concreto, a
inconstitucionalidade desta norma; o TC, não se provando a audição, se quiser cumprir a
Constituição, terá de julgar a referida norma inconstitucional e, em princípio, como se trata
de fiscalização concreta, vai ter de anular todos os efeitos que a norma entretanto produziu
na vida do litigante desde os anos oitenta até hoje.
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Em 2016, o Tribunal Constitucional considerou, em fiscalização concreta, o art. 38º/1 inconstitucional. Mas essa
norma, que pode produzir efeitos gravíssimos na vida profissional e pessoal dos afetados, continua em vigor e a
ser aplicada a outros casos.
A norma chegou mais quatro vezes ao TC e em todas elas foi julgada inconstitucional, sempre com base no
fundamento de constituir uma violação do princípio da presunção de inocência do arguido conjugado com o
princípio da proporcionalidade.
Apesar de cinco decisões do TC no sentido da inconstitucionalidade, a norma continua em vigor, a ser aplicada
e a produzir efeitos, até que, em fiscalização abstrata, o TC a declare inconstitucional com força obrigatória
geral. Após a quinta decisão, o MP teve iniciativa de desencadear o processo de fiscalização sucessiva abstrata.
Tal poderia abonar a favor da racionalidade do sistema português de fiscalização da constitucionalidade: a
norma por cinco vezes julgada inconstitucional pelo TC seria finalmente declarada inconstitucional com força
obrigatória geral, desaparecendo da ordem jurídica, repondo a coerência, integridade e unidade do sistema.
Mas nada garante que o Tribunal Constitucional decida no sentido das anteriores cinco decisões. Não é uma
hipótese meramente académica que o TC, após julgar a norma inconstitucional, por cinco vezes, se arrependa.
Foi o que aconteceu em 2017, quando o TC, à sexta decisão, decidiu que o art. 38º/1 não era inconstitucional.
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> Para o juiz desaplicar a norma ordinária > Só entre as duas guerras se desenvolveram na
tem de previamente verificar se há uma Europa, sobretudo por influência de Kelsen,
desconformidade entre essa norma e a tímidas experiências de fiscalização da
Constituição, ou seja, deve proceder a uma constitucionalidade, em torno de um Tribunal
fiscalização (judicial review) e decidir uma Constitucional, à margem da ordem jurisdicional
questão de constitucionalidade. comum, a quem cabia a administração da justiça
> A questão de constitucionalidade surge constitucional, mas sobretudo em matérias
como uma questão incidental, no curso de relativas à estruturação e repartição vertical dos
um processo tendente à resolução de uma poderes e às questões de inconstitucionalidade
questão principal. orgânica e formal a elas associadas.
> É uma fiscalização concreta, na nascida e > O modelo de justiça constitucional europeu
orientada para a resolução de um caso desenvolvido no pós-2ªGG é algo de radicalmente
concreto. novo, assente na atribuição exclusiva a um
Tribunal Constitucional das competências no
> É uma fiscalização difusa, na medida em domínio da garantia dos direitos fundamentais e
que integra as funções e competências de dos princípios materiais estruturantes das ordens
todos os juízes, ainda que esteja sujeita a de Estado de Direito.
recurso para o Tribunais superiores, como
qualquer outra decisão judicial. > Os juízes comuns, embora conheçam das
questões de constitucionalidade, não as decidem.
> E apesar de os Tribunais superiores Assim, se no decurso de um caso concreto surgir
estarem apenas a decidir o recurso de uma uma questão de constitucionalidade, o juiz da
decisão de caso concreto, a posição que causa confirma a existência de dúvidas razoáveis
assumirem quanto à eventual sobre a conformidade constitucional, suspende a
inconstitucionalidade (da norma, ato ou instância e remete a decisão da questão de
decisão em causa) adquire força de constitucionalidade para o TC, através do instituto
precedente na respetiva jurisdição, pelo do reenvio prejudicial, que assegura a
que, em última análise, a decisão de exclusividade ou monopólio da administração da
inconstitucionalidade tomada pelo Supremo justiça constitucional pelo Tribunal Constitucional.
Tribunal, apesar de decidida num caso
concreto, tem força obrigatória geral e > Ao TC não cabe a apreciação do caso concreto,
passa a ser seguida por todos os Tribunais. mas apenas a decisão da questão de
inconstitucionalidade da norma em causa que,
> Na ausência de uma cultura jurídica de sendo inconstitucional, não só é desaplicada no
reconhecimento de força vinculante ao caso concreto como é erradicada da ordem
precedente judicial, outros países acolhem jurídica.
que o modelo americano adotam outros
mecanismos constitucionais eu procuram > A proteção dos direitos fundamentais contra
alcançar efeitos análogos, como seja a quaisquer normas ou atos inconstitucionais faz-se
súmula vinculante no Brasil. sobretudo através do recurso de amparo ou
queixa constitucional. Através deste instituto, os
cidadãos, após esgotarem a via judicial comum,
acedem diretamente ao TC para garantir os
direitos fundamentais que consideram violados,
por ação ou omissão, pelo legislador, a
administração, os Tribunais ou outros particulares.
> A generalidade dos sistemas que adotam o > Para assegurar a eficácia do sistema e prevenir
modelo americano institui mecanismos de eventuais bloqueios de funcionamento,
seleção e filtragem das questões de estabelecem-se alguns filtros de acesso direito
constitucionalidade que chegam ao dos cidadãos ao TC: reserva de acesso só para
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onde não vigorava a regra do precedente, que permite a uniformização e generalização das
eventuais decisões de inconstitucionalidade dos Tribunais comuns.
Assim, Kelsen alinhava-se com a visão europeia tradicional da separação de poderes: o TC faz
fiscalização da constitucionalidade não para impor os valores constitucionais na perspetiva de
uma qualquer supremacia material da Constituição (direitos fundamentais) contra o poder
democrático, mas para depurar as incoerências técnicas no sistema, para erradicar
contradições, permitindo que os Tribunais pudessem, de forma quase mecânica, aplicar as
leis ordinárias.
Sendo a função legislativa uma função de livre criação do legislador, não materialmente pré-
determinado pela Constituição, a eventual anulação de uma lei por outra entidade que não o
legislador, o Tribunal Constitucional, um legislador negativo, devia estar inteiramente
determinada pela Constituição, não havendo nela lugar para decisão criativa; a jurisdição
constitucional devia ser simplesmente técnica.
A lei só podia ser invalidade pelo TC quando, do ponto de vista procedimental ou,
excecionalmente, também material, estivesse inequivocamente em contradição com a norma
constitucional de conteúdo normativo suficientemente determinado. Só nas raras situações
em que a norma constitucional de direitos fundamentais é suficientemente determinada é
que podia servir de padrão inequívoco de controlo da constitucionalidade da lei pelo TC, sem
atropelo à natureza deste como legislador negativo.
Se os princípios genéricos ou direitos fundamentais, na sua formulação típica, materialmente
indeterminada, invadissem o sistema de fiscalização, então o caráter necessariamente vago
e aberto deste tipo de normas remeteria para o juiz constitucional a possibilidade de
imposição dos seus valores próprios contra a decisão democrática do órgão legislativo, o que
transformaria ilegitimamente o juiz constitucional em legislador positivo. Se o conteúdo
desses princípios não pudesse ser determinados de forma unívoca, eles não podiam ser
objeto de aplicação jurídica técnica, uma vez que há tantos sentidos possíveis daquelas ideias
quanto a ideologia de cada um dos aplicadores. Se fosse possível fazer fiscalização da
constitucionalidade sobre princípios gerais, estar-se-ia a atribuir ao TC um poder perigoso: a
jurisdição constitucional poderia passar a decidir sobre qualquer lei aprovada pelo
Parlamento. Se a maioria dos juízes considerasse a lei injusta, face às suas próprias conceções,
ela seria invalidade, mesmo que a maioria da população, através do Parlamento, fosse de
opinião contrária.
Kelsen estava, no plano dos direitos fundamentais, alinhado com a restante doutrina europeia
na rejeição do “governo dos juízes”. Permitir que o Tribunal Constitucional apreciasse, por
exemplo, a violação de princípios constitucionais seria acolher o governo dos juízes, o reino
do arbítrio, porque cada juiz tem a sua ideia sobre o que é a igualdade, a dignidade da pessoa
humana, a proporcionalidade. Se esta hipótese já era de rejeitar quanto ao TC, ainda mais
absurda seria quanto aos juízes comuns que, sem a devida legitimidade, seriam criadores da
norma que a seguir iriam aplicar ao caso concreto.
Por isso, para Kelsen era fundamental a forma de designação dos juízes constitucionais,
designadamente sendo nomeados por órgãos democráticos, por Parlamentos, que lhes
garantia a legitimidade democrática indireta para funcionarem como legisladores negativos,
que tinham o poder de anular leis desconformes à Constituição (orgânico-formal),
Proposta de Kelsen: Tribunal Constitucional que recolhe legitimidade democrática indireta e
que aprecia apenas inconstitucionalidades orgânico-formais e, excecionalmente, materiais
(quando a norma constitucional for suficientemente determinada), procurando garantir a
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vivencia da Constituição como norma jurídica superior, ao mesmo tempo que se assegurava
a integridade unitária e sem brechas do sistema jurídico, mas sem sucumbir aos perigos do
governo dos juízes.
Alguns países europeus, como a Áustria e a Alemanha de Weimar, acolheram esta proposta
e criaram um Tribunal deste tipo, sobretudo porque, sendo Estados federais, era necessário
decidir os conflitos entre o que cabe ao Estado Federal e o que cabe a Estados federais,
assegurando a prevalência da Constituição federal.
A proposta kelseniana procurava afastar o risco de, num novo ambiente académico favorável
à importação do modelo americano, a doação da fiscalização da constitucionalidade das leis legitimar
uma possível insubordinação dos juízes contra as novas forças políticas e sociais progressistas que
entretanto chegavam, na Europa, aos parlamentos democráticos do Estado social. A revitalização do
Estado de Direito democrático, com o sufrágio universal e a consequente chegada à vida política das
novas camadas, forças sociais e partidos políticos, produziria um pluralismo parlamentar que pôs em
causa a ideia oitocentista da intrínseca racionalidade e justiça imanentes à lei geral e abstrata,
aprovada pelos órgãos da “vontade geral”. A lei já não era o produto consensual e racional de um
Parlamento homogéneo, mas o resultado da decisão política maioritária de um Parlamento plural.
Assim, era inelutável o reconhecimento da possibilidade de contradição entre Constituição e lei e,
logo, em Estado de Direito, da necessidade de instituição de uma justiça constitucional que
resolvesse essas desconformidades. Por outro lado, a adoção da justiça constitucional na Europa não
devia servir para replicar a situação americana de ativismo judicial do Supremo Tribunal contra
legislação social. Uma mera importação do sistema americano podia pôr em causa as novas
conceções de democracia e justiça social. Daí que a proposta de Kelsen de um Tribunal Constitucional
especialmente encarregue da fiscalização da constitucionalidade, à margem dos Tribunais comuns,
democraticamente legitimado, e exclusivamente empenhado numa verificação técnica que
garantisse a supremacia das normas constitucionais de conteúdo suficientemente determinado,
pretendia ser a resposta para aquela dificuldade.
D) Novo constitucionalismo
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Já nas décadas de 1950 e 1960, o eventual ativismo judicial na jurisdição constitucional dos
Estados Unidos reorientou-se em favor dos direitos fundamentais, nomeadamente através
de decisões contra a segregação racial, de defesa das liberdades políticas das minorias, a favor
da separação Estado-religião ou de defesa dos direitos dos arguidos.
Evolução do objeto sobre que incide a justiça constitucional do modelo europeu (de Tribunal
Constitucional), em três momentos históricos ou áreas materiais:
O Tribunal Constitucional é jurisdição do político – delimitação das divisão horizontal e vertical
e territorial de competências.
O Tribunal Constitucional é legislador negativo – controla a constitucionalidade das leis de
acordo com a proposta de Kelsen.
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Reenvio prejudicial:
O juiz comum, confrontado com dúvidas de constitucionalidade na aplicação de uma norma
a casos submetidos a julgamento, tem a possibilidade de levar previamente a referida questão
de constitucionalidade à decisão do TC.
Mesmo se a atenção do TC incide, não sobre o mérito da questão principal, mas sobre
eventual inconstitucionalidade da norma objeto do reenvio, a sua decisão não se pode
abstrair dos factos e circunstancias do caso concreto, o que arrasta o TC para a partilha
objetiva da decisão de casos concretos com o juiz comum.
Os juízes comuns acedem necessariamente à Constituição para apreciarem e decidirem a
razoabilidade das dúvidas de constitucionalidade cujo esclarecimento seja necessário para a
resolução dos respetivos casos concretos.
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A hibridização dos modelos de justiça constitucional também se deu no domínio dos efeitos da
decisão ou declaração de inconstitucionalidade:
No modelo americano, a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo juiz constitucional
respeita unicamente ao caso sub judice, sendo a consequência dessa decisão a desaplicação
das normas inconstitucionais ao caso concreto, com efeitos inter partes. Todavia, por força
da regra do precedente, as decisões de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal têm efeito
erga omnes, ficando os restantes Tribunais vinculados ao precedente na decisão de casos
futuros.
Além disso, várias Constituições que adotam o modelo americano, como a brasileira, adotam
mecanismos que pretendem atingir o mesmo efeito de uniformização de jurisprudência, para
além de acrescentarem competências de decisão, a titulo principal, da constitucionalidade de
atos, normas ou omissões dos poderes estatais, em sede de fiscalização abstrata, segundo
procedimentos análogos aos do modelo de Tribunal Constitucional.
No modelo europeu, o Tribunal Constitucional é chamado a apreciar a constitucionalidade da
norma a titulo principal e em sede abstrata, pelo que a declaração de inconstitucionalidade
tem como consequência a erradicação da norma inconstitucional da ordem jurídica. Na
decisão de questões de inconstitucionalidade suscitadas a propósito de casos em julgamento
nos Tribunais comuns, o alcance da prenuncia de inconstitucionalidade repercute, em
especial, direta e muitas vezes exclusivamente sobre o conflito concreto que subjaz à decisão
que corre ou tinha corrido no Tribunal comum, mesmo quando a declaração de
inconstitucionalidade tem efeitos gerais e obrigatórios.
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Existe a ideia de que a justiça constitucional europeia, dos Tribunais Constitucionais, é uma
justiça política, em contraposição à justiça constitucional americana, dos Supremos Tribunais, que
seria uma justiça mais jurídica. Todavia, estas crenças não são consentâneas com a realidade.
É verdade que a justiça constitucional é, em grande medida, uma justiça política, já que trata
de questões políticas, decididas por Presidentes, Parlamentos e Governos. Trata dessas
questões porque a Constituição serve para limitar os poderes públicos. E quando a justiça
constitucional decide contra um órgão de soberania, essa decisão tem um caráter político,
porque impede os poderes públicos de prosseguir certos objetivos. Inevitavelmente, os juízes
constitucionais são obrigados, mesmo que não queiram, a tratar de questões políticas. Mas
não é neste aspeto, comum aos dois modelos de justiça constitucional, que reside a crítica da
politização da justiça constitucional europeia.
O descrédito dos Tribunais Constitucionais nasce da crença de que, enquanto os Supremos
Tribunais são Tribunais como quaisquer outros Tribunais da jurisdição comum, os Tribunais
Constitucionais estão separados da organização judicial comum, sendo de nomeação política.
Assim, nos países europeus, ao lado dos Tribunais Supremos de Justiça, Administrativos ou
outros, compostos por juízes como qualquer outro juiz, mas que progrediram na carreira por
força do seu mérito, experiência e conhecimentos, haveria Tribunais Constitucionais,
compostos por juízes de nomeação política, que não lá chegaram pela progressão na carreira.
Fica, pois, a ideia de que o Tribunal Constitucional é um Tribunal designado pelos partidos
políticos. Pelo contrário, no modelo americano, em vez que Tribunal Constitucional, haveria
Supremos Tribunais, que funcionam dentro da organização judicial comum.
Mas este raciocínio está errado, já que os juízes do Supremo Tribunal dos EUA não chegam
ao Tribunal encarregue da justiça constitucional por progressão na carreira, mas porque são
nomeados pelo presidente. Tanto os juízes dos ST como os dos TC são de nomeação política
porque, para que um Tribunal se possa opor à aprovação de uma lei por um Parlamento eleito
pelo Povo, os seus juízes não podem ser uns quaisquer juízes, sem legitimidade democrática.
Os Tribunais que se vão opor a decisões de órgãos de soberania têm de ter uma legitimidade
democrática indireta indiscutível, devendo ser designados por órgãos democráticos.
Se na Europa os juízes são nomeados pelos Parlamentos, na América são-no pelos
Presidentes. A diferente fonte de legitimidade em cada um dos modelos explica-se pelos
diferentes sistemas de governo: presidencialismo na América, parlamentarismo e
semipresidencialismo na Europa. Se, por um lado, os Presidentes americanos têm uma
legitimidade democrática indiscutível, fruto da sua eleição popular, por outro, acabam por
apenas designar juízes próximos do seu próprio pensamento, ideologia e mundividência. Se
o mesmo Presidente fizer dois mandatos, e lhe seguir um Presidente do mesmo partido, pode
acontecer que o Supremo Tribunal seja quase exclusivamente composto por juízes da mesma
área política, ou conservadores ou progressistas. De uma forma ou de outra, há um grande
desfasamento entre a composição do ST e o conjunto da sociedade, onde existem várias
correntes políticas, e os Parlamentos, que representam essas correntes. Outro aspeto vem
agravar a situação: os juízes do Supremo Tribunal norte-americano são designados
vitaliciamente, só saindo do cargo se morrerem ou se renunciarem. Assim, uma determinada
composição do Supremo Tribunal, configurada por certo Presidente, vai condicionar
sucessivas gerações futuras.
A ideia de que o Tribunal Constitucional português é um Tribunal político, designado pelos
partidos, e que faz o que esses querem, não corresponde à realidade. Os juízes do TC são
designados por 2/3 da Assembleia da República, ou seja, no mínimo, pelas duas maiores
correntes representadas no Parlamento. Desta forma, garante-se que o pluralismo existente
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Modelos
Apesar de nos Estados de Direito, em geral, haver fiscalização de constitucionalidade, há alguns em
que não há a diferença formal entre norma constitucional e norma ordinária, pelo que não há FC.
Mas na generalidade dos ED há fiscalização da constitucionalidade.
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Constitucional. Só existe a ordem comum dos Tribunais, com o Supremo Tribunal no topo. Neste
modelo, e particularmente e no modelo dos EUA, havendo recurso para o Supremo Tribunal, as
decisões desse devem ser seguidas por todos os outros Tribunas – regra do precedente. O que os
tribunais superiores decidem, todos os tribunais inferiores tem de seguir, com força de lei. Se o ST
considera uma norma inconstitucional, nenhum outro tribunal a pode aplicar. É um modelo que
acaba por ser bastante simples e que permite ver bem a diferença com o nosso sistema.
---- Não há um tribunal com competência especial para administrar a justiça constitucional. Todos os
Tribunais fazem fiscalização da constitucionalidade.
---- As decisões do Supremo são vinculativas para todos os outros tribunais. Se o Supremo considera
uma norma inconstitucional, é como se ela desaparecesse da ordem jurídica. Os Tribunais não a
podem aplicar.
---- O ST aprecia constitucionalidade não só normas, mas quaisquer atos, praticados por qualquer
entidade.
Modelo europeu – durante todo o séc. XIX e até à segunda metade do séc. XX não havia fiscalização
de constitucionalidade. Diferença enorme com o que se verifica nos EUA e nos outros países
americanos, os Tribunais aplicavam a Constituição aos casos que tinham de decidir, e por força disso
recusavam muitas vezes aplicar leis, na Europa isso era impensável, o que hoje é uma normalidade
também nos países europeus.
Europeus não queriam governo dos juízes – desconfiança entranhada que durante anos e anos os
europeus tinham relativamente aos juízes. Quando se fizeram as revoluções liberais, todo o corpo de
juízes era nomeado pelo monarca absoluto. As revoluções foram feitas para dar poder as assembleias
representativas do povo, aos parlamentos, que aprovam as leis, que vão dar corpo às ideias
revolucionárias liberais, que instituem igualdade perante a lei, generalidade e abstração da lei…
Aprovação dos novos códigos, aprovação das leis, que concretizavam o ideário revolucionário das
revoluções liberais. Permitir que juízes nomeados pelo monarca absoluto, que estavam contra as leis
aprovadas pelos parlamentos, pudessem recusar a aplicação das leis era ter feito a revolução e depois
entregá-la ao anterior titular do poder.
Então, na relação entre poder legislativo e judicial era, durante o Estado liberal, a desconfiança
relativamente ao poder judicial, que devia ser apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, mas a
lei é o principal ato do Estado. A lei é justa por definição, a partir do momento em que é geral, abstrata
e aprovada pelos parlamentos eleitos pelos cidadãos.
A experiência dos americanos era dar-se mal com o Parlamento, inglês, que lhes impunha impostos.
Não tinham problema nenhum com juízes. Quando fazem a Constituição, preocupam-se muito em
estabelecer freios e contrapesos ao poder do Parlamento e têm uma grande confiança no poder
judicial. O fantasma do governo dos juízes não era sentido na América.
Europa: império da lei: os juízes e a administração aplicam a lei.
Durou durante século e meio e só foi posto em causa, na Europa, no período entre guerras, quando
se revelou que a lei podia ser violadora dos direitos fundamentais. Hoje, os cidadãos europeus sabem
que os seus direitos fundamentais também devem ser defendidos do legislador e da lei. Após a 2ªGG
houve uma revolução constitucional, um novo constitucionalismo, na Europa, que se traduz na
criação de um órgão, o TC, encarregado de fazer justiça constitucional. Porque criar um órgão
especial? Para não cair no perigo do governo dos juízes. O Tribunal especial, encarregado de fazer
justiça constitucional e defender os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes públicos
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(legislador, administração, juízes). Generalizou-se na Europa depois da 2ªGG e foi acolhido na CRP76,
na primeira revisão, de 1982, criou-se um TC, tal como em Espanha em 1978.
Quando Portugal criou este TC, podíamos pensar que o nosso sistema seria um modelo de tipo
europeu. O facto de ter criado um TC não levou a CRP a aderir ao modelo europeu, mas a um modelo
singular muito discutível.
Em termos históricos, apesar de só de uma forma generalizada isto se ter feito depois da 2ªGG, já a
partir dos anos 20 se discutia na academia se a Europa devia importar uma FC como na América. A
ideia era muita resistência relativamente ao governo dos juízes, mas acolhia-se alguma FC como
solução intermédia.
Hans Kelsen – sugere a criação de um TC. O governo dos juízes não, alinhando-se com os restantes
académicos europeus. Mas deve haver alguma fiscalização do legislador. Na sua compreensão
positivista do Direito, há necessidade de garantir a validade indiscutível dos vários escalões
normativos: constituição, lei, regulamentos, atos. Na pirâmide normativa, cada ato deve ter sido
elaborado respeitando as imposições do ato que lhe está acima. Só assim é valido. Para garantir isso
é necessária uma verificação acerca da regularidade do ato através de um órgão independente,
sobretudo o que hoje designamos por inconstitucionalidade orgânica e formal, mas só relativamente
a essas. E direitos fundamentais, ver se princípios como a igualdade ou a proporcionalidade são
violados? Kelsen: seria acolher o governo dos juízes, porque cada juiz tem a sua ideia sobre o que é
a igualdade, a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade. Seria o reino do arbítrio. Este
tribunal só se destinava a verificar se a lei tinha sido elaborada de acordo com as normas
constitucionais em vigor, ou quando a constituição fosse inequívoca a propósito de alguma questão.
Sugere criação de um órgão novo, que fosse capaz de anular leis não conformes à constituição do
ponte de vista orgânico-formal.
Tendo este poder de anular leis inconstitucionais, o TC devia ter uma legitimidade que lhe permitisse
fazer isso. Devia ser nomeado por órgãos democráticos, que garantissem indiretamente uma
legitimidade democrática, poe exemplo, ser nomeado por Parlamentos. Alguns países europeus,
como a Áustria e a Alemanha de Weimar, criaram um Tribunal deste tipo. Sobretudo porque, sendo
Estados federais, havia conflitos entre o que cabe à federação e o que cabe a Estados federais. Para
resolver este tipo de conflitos, era bom um tribunal que assegurasse a prevalência da Constituição
federal, que seria o TC.
Esta conceção mudou radicalmente depois da 2ªGG. O fundamental do TC não é fazer isso. A sua
função essencial é garantir os direitos constitucionais das pessoas, que devem ser aplicados como
norma jurídica. a constituição deve ser aplicada como norma jurídica, logo, o TC tem a função de
garantir que as leis são feitas de forma regular, mas também garantir que os DF não são afetados.
E o papel dos juízes comuns no modelo europeu no domínio da fiscalização da constitucionalidade,
quando se levantar uma questão na decisão de um caso concreto em julgamento? Se for uma
questão séria, se houver uma dúvida séria de constitucionalidade, se o juiz do caso considerar que
há dúvidas de constitucionalidade, será necessário esclarecer a questão de constitucionalidade, para
que não perturbe o andamento do processo. O juiz deve suspender o julgamento e dizer ao TC:
surgiram estas dúvidas sobre se esta norma aplicável a este caso é inconstitucional. o TC aprecia e
decide; o juiz segue o julgamento de acordo com o que o TC disse. A este instituto chama-se reenvio
prejudicial.
Diferença para América: os juízes decidem questões de constitucionalidade. No modelo europeu, não
decidem, apenas decidem se suspendem o processo para levar a questão ao TC. Deem fazê-lo se
houver dúvidas sérias de constitucionalidade.
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Recurso de amparo ou queixa constitucional – se o cidadão considerar viu o seu direito fundamental
agredido, e essa agressão não foi reconhecida pelo Tribunal comum? O cidadão não tem de acatar a
decisão do Tribunal, do juiz que não lhe deu razão. O cidadão tem um período para suscitar a questão
junto do TC. Através do recurso de amparo, os cidadãos europeus levam ao TC eventuais lesões dos
seus DF que não foram reconhecidas pelos Tribunais comuns.
AULA 2
Depois da 2ªGG há uma convergência substancial dos dois modelos. Não no plano orgânico (tribunais
VS TC), mas no plano da natureza da justiça constitucional, não havendo hoje diferenças substanciais
entre o que se passa na generalidade dos estados de direito onde existe fiscalização da
constitucionalidade. Esta convergência entre os dois modelos faz-se no reconhecimento de que a
função principal da justiça constitucional é a garantia dos direitos fundamentais, ideia que é hoje
assumida de forma generalidade, onde há sistemas de fiscalização da constitucionalidade. Quando
um estado passa de estado autocrático para estado de direito, a primeira preocupação é instituir um
modelo de justiça constitucional, que assegure os direitos fundamentais.
Esta não foi sempre a preocupação dos tribunais norte-americanos? Há alguma novidade, neste
período do pós-guerra? Em termos formais, foi sempre assim: os juízes e o ST fazia fiscalização da
constitucionalidade, no entanto, os critérios materiais em função dos quais se fazia este controlo
eram parâmetros muito diferentes dos que existem hoje. Hoje, os TC e ST são tribunais de defesa dos
DF. Até quase aos anos 50 do séc. XX, a visão de aplicação da Constituição que tinha o ST era muito
diversa, o que eu se vê na atitude ods tribunais relativamente ao princípio da igualdade. Na
jurisprudência do ST dos EUA há decisões, no séc. XIX, em que o ST dizia que os cidadãos afro-
americanos não eram verdadeiros cidadãos norte americanos, e que não deviam ter acesso aos
tribunais para proteger os seus direitos. Escravatura: o ST considerava os escravos propriedade, e o
governo federal e dos estados não se podiam imiscuir na relação de propriedade, no entender do ST.
Não foi só um problema do séc. XIX. Este tipo de jurisprudência reacionária do ST dos EUA manteve-
se durante a primeira metade do séc. XX. No congresso dos EUA, tal como nos parlamentos europeus,
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na passagem do EDL ao EDSD (anos 20-40). Todas as tentativas do congresso dos EUA de legislação
social (salario mínimo), eram opostas pelo ST em nome da Constituição. O valor máximo, supremo
da constituição era a liberdade de iniciativa economia privada, a liberdade de contratar, o direito de
propriedade. Toda a legislação que tocasse nesses direitos, à luz desse entendimento, seria
inconstitucional. A constituição norte-americana não dizia isto. Tratava-se de uma interpretação do
ST.
Em termos reflexos, teve influência no q eu se passava na europa, onde não havia FC. Nos meios
académicos, universitários, discutia-se a possibilidade de os europeus importarem esta ideia
americana, de FC. Mas como a imagem que os europeus tinham era a de um ST conservador, que
proibia o legislador de aprovar legislação social, os europeus viam isto na pratica. Por isso, a
importação da FC via dificuldades. Instituir esse sistema, seria instituir na Europa o governo dos juízes.
Os parlamentos decidiam e, a seguir, os juízes, sem legitimidade democrática tão forte como a dos
parlamentos, não permitiam.
Só no pós-guerra as coisas mudaram, na Europa e nos EUA. Nos eua houve conflitos graves entre os
presidentes americanos dos anos 30 e 40 e o ST. Paralelo entre o que acontece agora na relação
entre Presidente dos EUA e ST e o que acontecia na altura. Há uma tensão entre o atual ST e o atual
PR dos EUA. Por vicissitudes relacionadas com a designação dos juízes do ST, o ST tem uma
composição, em temos político, muito marcada pelos mandatos dos presidentes dos últimos anos.
Há um desfasamento muito grande entre o sentido do congresso e o sentido do ST, o que pode gerar
problemas em questões de costumes, económicas… esta relação de tensão entre os dois poderes,
judicial e executivo/legislativo. Presidente Roosevelt como que ameaçou os juízes do ST, que são 9,
onde havia uma maioria de 5 juízes contra o congresso, 4 a favor. Roosevelt ameaçou os juízes do ST
que faria uma reforma da composição do ST dos EUA. Esta pressão levou a que houvesse uma
mudança na atitude do ST, passando a haver 5 juízes a favor do congresso, o que permitiu uma
evolução na jurisprudência dos EUA. Começaram a surgir as primeiras decisões contra a
discriminação racial, o que levou, de forma progressiva e sistemática a que a jurisprudência do ST dos
EUA passasse a ser uma jurisprudência “amiga” dos direitos e liberdades.
Na Europa passava-se algo do género, os TC também eram amigos dos DF. Esta convergência entre
os dois modelos levou a que a JC dai para a frente passasse a ser vista como justiça de garantia dos
DF. Evolução enorme.
É isto que leva a que, sistematicamente, em todos os países que chegam à democracia e ao ED haja
um preocupação imediata em instituir uma justiça constitucional.
Em Portugal, no meio jurídico e judicial, há muito a ideia de que a justiça constitucional europeia, dos
TC, é uma justiça quase política, ao contrário do que seria a justiça constitucional americana, que
seria mais jurídica. É uma visão errónea, que se concentra no facto de na américa não haver TC, mas
ST, tribunais como quaisquer outros. Por isso há a ideia de que essa JC não é política, mas meramente
jurídica. na europa, como os TC estão separados da organização judicial comum, e sendo um T de
nomeação politica, mais acentuaria a natureza politica do TC. Isto leva a um descredito da JC, com
base no argumento de que é uma justiça política.
Porque é que esta visão não é consentânea com a realidade? É verdade que a JC é, em grande
medida, uma justiça política porque, quer queira quer não, tem de se meter em questões políticas,
decididas pelos parlamentos e governos, uma vez que a Constituição limita os poderes públicos.
Quando a justiça constitucional decide contra os P e os G, isso tem um carater político, porque a JC
impede os poderes públicos de prosseguir certos objetivos. É uma inevitabilidade. Inevitavelmente,
isto obriga os juízes constitucionais, mesmo que não queiram, a meter-se em questões políticas. Mas
não é a esta natureza política que se refere quem faz a tal critica.
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A ideia que há é: temos um STJ ou um STA, que são os Tribunais superiores de cada uma das ordens
jurídicas, tribunais como os outros, com pessoas que foram para juízes e fazem a progressão na
carreira, à medida que têm mais experiência e mérito. Quando olhamos para o STJ e o STA estamos
a ver tribunais como os outros, compostos por juízes como os outros, só que com mais mérito e
conhecimento. A ideia que há é que no TC já não é assim, porque os membros do TC não cegaram
àquele lugar através da progressão na carreira, mas sim porque foram designados por uma maioria
de 2/3, constituída por deputados ligados a partidos políticos. Fica a ideia de que o TC é um tribunal
designado por partidos, pelo que é um tribunal político. Ao contrário, se a justiça fosse feita por um
ST, não seria assim. Dá-se o exemplo daquilo que acontece na américa, em que quem faz a justiça
constitucional são os ST.
Porque é que este raciocínio está errado? Na América, quem nomeia os juízes do ST é o Presidente.
Porque é que não se deixa seguir pela via da carreira profissional dos juízes? Porque para que um T
se possa opor a um Parlamento, eleito pelo Povo, não pode ser um juiz qualquer, sem legitimidade,
a dizer que o Parlamento não pode aprovar certa lei. Problemas sérios de legitimidade democrática.
Por isso, para que os TC e os ST tenham uma legitimidade democrática indireta indiscutível, devem
ser designados por órgãos democráticos. Na europa, designados pelos parlamentos, na américa pelos
presidentes. A fonte de legitimidade é diferente nos dois casos por causa do sistema de governo.
Qual o melhor método? É verdade que o Presidente foi eleito diretamente, tendo uma legitimidade
democrática indiscutível. Mas uma pessoa, um presidente, pensa de certa maneira, tem certa
ideologia, certa mundividência e, quando vai designar os juízes, acaba por designar pessoas que estão
próximas da sua visão do mundo. Imagine-se que faz dois mandatos e que, ao longo dos dois
mandatos, tem possibilidade de designar vários juízes do ST. A composição desse tribunal vai ficar
muito ligada àquela visão do mundo. Se antes desse PR, estivesse outro da mesma linha ideológica,
podia acontecer que o ST fosse apenas composto ou por juízes conservadores ou por juízes
progressistas, havendo um grande desfasamento entre a composição do ST e o conjunto da
sociedade, onde existem várias correntes políticas, as principais representadas nos parlamentos.
Em Portugal: a ideia de que o TC é um Tribunal político, designado pelos partidos, que faz o que os
partidos querem, não corresponde à realidade. Para ser designado um juiz para o TC, ele precisa de
ser aprovado por 2/3 da AR, ou seja, no mínimo, um consenso entre as duas grandes correntes
representadas na AR, esquerda e direita, para a nomeação de um juiz. Há uma garantia que tal como
na sociedade portuguesa existe este pluralismo, o mesmo existe no TC. Há uma representação das
várias sensibilidades. é verdade que eles estão lá como juízes, mas as decisões que vão tomar
dependem das conceções políticas e filosóficas que têm e da sua mundividência. É bom que um
tribunal que tenha um poder tão importante como o de invalidar as leis, que tenhamos a garantia
que corresponde ao sentido da sociedade, às diferenças que existem na sociedade. JRN: Isto é mais
bem garantido através de uma designação por 2/3 do parlamento do que através de uma só pessoa,
que pode acabar por nomear a maioria dos juízes do ST. Há ainda outra questão: os juízes do ST
americano são designados vitaliciamente. Só se quiserem sair antes de morrerem é que saem. Senão,
não saem. Uma composição do ST feita hoje por um certo presidente vai condicionar as gerações
futuras. Constrói-se um ST com uma composição oposta à da generalidade da sociedade: esse ST vai
tomar decisões durante gerações, até aqueles juízes morrerem.
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Baltazar Oliveira
em estados federais, para resolver conflitos de competência entre estado federal e estados
federados.
- desenvolveu-se uma outra área, onde os TC surgem como chamados legisladores negativos. Kelsen:
há Constituição; cabe ao legislador concretizá-la, de forma política, criativa, de acordo com as suas
conceções; ao TC não cabe meter-se na realização da Constituição; cabe apenas verificar se a lei
respeita as regras constitucionais, sobretudo as objetivas, de competência. O TC apenas rejeitava
algumas leis se elas não obedecessem as regras objetivas constitucionais. Fiscalização preventiva e
sucessiva abstrata, embora com outro caráter, porque após a 2ªGG não cabe apenas ao TC verificar
a regularidade da formação da lei, mas ver se ela respeita ou não os DF.
- terceira área: proteção dos DF.
A justiça constitucional europeia, que se reparte por estas três áreas, acaba por se concentrar na
garantia dos DF. Através de que institutos?
2 Institutos típicos:
-- reenvio prejudicial – na discussão de um caso em Tribunal, podem se levantar duvidas sobre
constitucionalidade de normas aplicáveis ao caso. Se surgirem duvidas razoáveis sobre se há ou não
inconstitucionalidade da norma, cabe ao juiz verificar a dúvida. É importante verificar se a dúvida é
razoável. Se não se verificasse isso, este instituto podia ser utilizado para fazer prolongar o processo
– uma das partes levantava questões artificiais para fazer prolongar o processo. Cabe ao juiz verificar
se há fundamento para ter dúvidas razoáveis de constitucionalidade. Se o juiz considera que há, e
que não é uma tentativa de fazer perder tempo, o juiz suspende a instância, o processo, e reenvia a
questão ao TC. Diz: esta norma ia ser aplicada neste caso: vejam se a norma é ou não inconstitucional,
para prosseguir o processo. Se o TC considera a norma inconstitucional, ela desaparece da ordem
jurídica e o caso continua.
-- recurso de amparo ou queixa constitucional – diretamente associado à defesa dos direitos
fundamentais – possibilidade de qualquer cidadão que considere que os seus DF foram violados, por
não importa quem, basta que haja violação do seu DF, esse cidadão tem a possibilidade de ir para os
Tribunais, mas se considera que, nos tribunais, o seu direito, que no seu entender estava a ser
violado, essa violação não foi impedida pelos Tribunais, ele tem a possibilidade de colocar a questão
da violação do DF ao TC. Recurso para o TC para defesa dos DF da pessoa, ou porque os juízes não
lhe deram razão, ou porque mantiveram a lesão do seu DF, ou porque foram s juízes que, na decisão,
violaram os seus DF. Durante algum período de tempo, a pessoa pode ir para o TC. Por vezes, mesmo
sem ter ido para os Tribunais, por exemplo, se não houver possibilidade em tempo útil, o acesso ao
TC é garantido nessas circunstâncias, sempre com o objetivo da garantia dos DF das pessoas. A partir
do momento em que este tipo de recurso é instituído numa ordem jurídica, os cidadãos recorrem a
ele em massa. Quem quer que já o agressor, seja um pode publico ou entidade privada, se o direito
está ameaçado ou lesado, o cidadão tem possibilidade de ir para o TC. Os TC e o legislador
constitucional estabelecem alguns filtros no acesso ao TC: confirmação de um caso sério de lesão de
um DF, que seja uma questão de constitucionalidade, com relevância constitucional; se isso
acontecer, o TC aceita a queixa apresentada.
Requisitos: tempo, esgotar a via judicial (a não ser que não tenha tempo), 3. Na prática, a esmagadora
maioria das decisões dos TC fazem-se no domínio dos recursos de amparo apresentados pelos
cidadãos.
Espanha tem este modelo
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Baltazar Oliveira
Quem tem mais poderes, os juízes portugueses ou os europeus? Enquanto o juiz europeu aprecia a
questão, mas não a decide,
Os juízes têm a garantia da independência, de decidir incondicionadamente. Num caso levanta-se
uma questão de constitucionalidade e o juiz decide. Mas esta decisão nunca é definitiva. Se as partes
quiserem, podem sempre recorrer para o TC. De todas as decisões que os juízes portugueses tomam,
para além de haver recurso para os tribunais superiores, há recurso para o TC. A decisão que o juiz
tomou corre o risco sério de ser revogada pela decisão do TC, que depois obriga o juiz a reformar a
decisão no caso concreto. O que à partida parece um grande poder do juiz português, parece um
grande poder, mas não é. A decisão do juiz foi meramente provisória. É verdade que o juiz europeu
nem teve essa possibilidade, mas tem um poder definitivo neste domínio: se considera que a dúvida
de constitucionalidade não tem razão de ser, não a leva para o TC, não é obrigado a enviar ao TC,
reenvia se considerar se há dúvida. Juiz português decide, europeu não. Apenas aparentemente o
juiz português tem mais poder. Foi um presente envenenado para o juiz português, que pode ver a
sua decisão contrariada pelo TC. O juiz europeu tem, pelo menos, o poder de decidir se a questão
tem dignidade para ir para o TC.
Será que isso não é um défice do modelo europeu? Teríamos uma dúvida de constitucionalidade que,
por causa. No fim, pode ser feito por recurso de amparo, desde que o cidadão invoque que, daquela
norma, resultou violação do seu DF. Não há um défice de fiscalização, porque o cidadão tem depois
a possibilidade do recurso de amparo.
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A) Supremacia da constituição
As revoluções liberas do séc. XVIII fizeram emergir, na Europa e na América, Estados de Direito
dotados de Constituições vistas como norma suprema na ordem jurídica nacional. No entanto, até
meados do séc. XX, tanto a relevância jurídica cada à Constituição como as modalidades da sua
garantia foram significativamente na Europa e na América.
Nos EUA, os Tribunais assumiram essa supremacia no próprio plano das fontes de Direito. A
Constituição era considerada e aplicada enquanto verdadeira norma jurídica, com caráter supremo.
Por isso, os Tribunais arrogaram-se, desde cedo, do poder de fazer fiscalização da
constitucionalidade, como uma atividade típica da função judicial (dar preferência à norma superior
em caso de conflito normativo) mesmo quando a Constituição nada dizia sobre isso. Várias razões
contribuíram para isso:
A particular forma de Estado federal dos EUA remeteu, naturalmente, as questões de
constitucionalidade para a decisão do poder judicial, que deveria delimitar as fronteiras entre
os poderes da União e os poderes dos Estados.
Ausência de qualquer suspeita política, social ou ideológica dos poderes políticos
relativamente aos juízes, devida à significativa homogeneidade sociológica da comunidade
que se distribuía indiferentemente por todos os ramos do poder, desconsiderando-se,
obviamente, a recusa da cidadania a afro-americanos fruto do segregacionismo racista.
Desconfiança, no domínio da preservação dos direitos individuais, quanto às assembleias
parlamentares, dado a atribulada relação entre Parlamento inglês e colónias americanas.
O poder judicial norte-americano assumiu-se, praticamente desde a revolução liberal, como
intérprete da distribuição constitucional dos poderes e da defesa das garantias
constitucionais, incluindo a delimitação das competências de atuação do próprio legislador
democrático.
Já no Estado de Direito liberal europeu, a relação entre Constituição e lei era muito diferente,
sendo expressamente recusada a fiscalização da constitucionalidade até meados do séc. XX.
Depositava-se inteiramente nos Parlamentos democráticos a competência de garantia da realização
política da Constituição, sendo recusadas aos juízes quaisquer competências de controlo do
legislador. Assim, os direitos fundamentais acabavam por ter um caráter meramente proclamatório.
A Constituição material por que se lutara nas revoluções liberais (“só há Constituição onde há
separação de poderes e direitos fundamentais”) foi, durante muito tempo, reduzida a codificação
meramente formal dos poderes do Estado.
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B) Modelo americano
Foi nos EUA que nasceu a fiscalização da constitucionalidade, praticamente com a aprovação
da respetiva Constituição, em 1787.
Em 1803, ao resolver o caso Marbury v. Madison, o Supremo Tribunal defrontou-se com um
duas normas que resolviam o caso em sentidos opostos; uma norma ordinária e uma norma
constitucional. Mas a Constituição norte-americana nada dizia e nada diz, até hoje, sobre
fiscalização da constitucionalidade, em qualquer dos seus preceitos.
O Supremo Tribunal (e depois, todos os Tribunais que se defrontaram com estes conflitos)
teve de encontrar um critério que lhe permitisse optar por uma das duas normas aplicáveis
ao caso, que dispunham em sentido oposto. Todos os sistemas jurídicos de Estado de Direito
contêm critérios jurídicos de resolução de conflitos normativos, como o critério da
temporalidade ou o da especialidade. Outro desses critérios é o da hierarquia: norma superior
prevalece sobre norma inferior.
Ora, face a um conflito entre uma norma constitucional e uma norma infraconstitucional
(ordinária), prevalece a norma constitucional, enquanto norma suprema de qualquer sistema
jurídico de Estado de Direito com Constituição em sentido formal, devendo recusar-se a
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C) Modelo europeu
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Na Europa, durante todo o séc. XIX e até à segunda metade do séc. XX não havia fiscalização
de constitucionalidade. O que se passava, nesse período, nos EUA e noutros países americanos, e o
que hoje é uma normalidade na Europa, seria impensável.
Os Europeus temiam o “governo dos juízes” – as revoluções liberais foram feitas para dar
poder às assembleias representativas do Povo, aos Parlamentos, que queriam aprovar leis
que dessem corpo ao ideário revolucionário liberal, como a igualdade perante a lei, a
generalidade e abstração da lei ou a aprovação dos novos códigos. Ora, quando se fizeram as
revoluções, todo o corpo de juízes existente tinha sido nomeado pelo monarca absoluto.
Permitir que esses juízes, que se opunham às leis aprovadas pelos Parlamentos, pudessem
recusar a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade seria fazer a
revolução e de seguida entrega-la ao anterior titular do poder.
Assim, durante o Estado de Direito liberal, a relação entre legislativo e judicial era de
desconfiança face ao segundo, que devia ser apenas a boca que pronuncia as palavras da lei,
nas palavras de Montesquieu. A lei, principal ato do Estado, é justa por definição, a partir do
momento em que é geral, abstrata e aprovada pelos Parlamentos eleitos pelos cidadãos.
Devia reinar o império da lei: os juízes e a administração limitam-se a aplicar a lei aprovada
pelos Parlamentos.
Na América não era sentido o fantasma do “governo dos juízes”, que eram nomeados pelo
poder revolucionário. Pelo contrário, um dos principais adversários dos revolucionários
americanos era o Parlamento inglês, que lhes impunha impostos excessivos. Assim, quando
fizeram a Constituição, os americanos preocupam-se em estabelecer freios e contrapesos ao
poder do Parlamento, tendo grande confiança no poder judicial.
Esta conceção, que durou século e meio, só foi posta em causa, na Europa, no período entre
guerras, quando se revelou que a lei podia ser violadora dos direitos fundamentais. Hoje, os cidadãos
europeus sabem que os seus direitos fundamentais também devem ser defendidos do legislador.
Novo constitucionalismo – após a 2ªGG houve uma revolução constitucional na Europa, que se traduz
na criação de um órgão, o Tribunal Constitucional, encarregado de administrar a justiça
constitucional e defender os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes públicos
(legislador, administração e judicial). Criou-se esse órgão especial exatamente para não se cair no
perigo do governo dos juízes. Assim, o modelo europeu de justiça constitucional generalizou-se na
Europa depois da 2ªGG.
D) Novo constitucionalismo
A segunda metade do séc. XX foi um momento de refundação, marcado pelos anos
antecedentes de atrocidades inimagináveis que evidenciaram uma chocante inoperância dos
mecanismos de defesa da Constituição face aos movimentos totalitários. Apesar da importância do
contributo de Kelsen, a sua proposta tem muito pouco a ver com o novo constitucionalismo que
surgiu no pós-guerra. Agora, o papel central dos Tribunais Constitucionais e dos sistemas de
fiscalização da constitucionalidade é, em radical oposição à proposta kelseniana, a garantia dos
direitos fundamentais. O novo Direito Constitucional deve adequar-se ao tipo histórico de Estado
que, contra as alternativas autocráticas, prossegue o legado das revoluções liberais: o Estado social
e democrático de Direito.
Assiste-se a uma rematerialização do conceito de Estado de Direito, não mais identificado
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com o Estado de legalidade, que havia aberto o conceito de Estado de Direito à a possibilidade de
preenchimento por quaisquer valores desde que atuados por lei. O Estado de Direito colhe agora a
sua legitimidade também da observância de uma pauta universal de valores em que se incluem dos
direitos fundamentais, de que os poderes políticos não dispõem. O novo constitucionalismo reafirma
a sua inspiração fundadora no valor da igual dignidade da pessoa humana, independentemente da
raça, credo, sexo, religião ou convicção, e nos direitos fundamentais que devem assegurar o respeito,
proteção e promoção da dignidade humana.
Com esta revolução constitucional, os direitos fundamentais já não são uma mera
proclamação retórica, realizados pelo legislador, mas constituem parte nuclear da Constituição,
sendo norma jurídica diretamente aplicável, dotada da força constitucional que vincula todos os
poderes do Estado, incluindo o legislador democrático, e cuja supremacia deve, por isso, ser
assegurada por um poder judicial estrutural e funcionalmente independente da maioria política que
ocupa conjunturalmente o poder. Há, pois, uma preocupação com a garantia, efetividade e
aplicabilidade direta da Constituição e dos direitos fundamentais enquanto normas jurídicas. Todos
os poderes estão agora vinculados à observância e realização dos direitos fundamentais, incluindo o
poder judicial. Deve ser garantido o acesso dos particulares aos Tribunais para defesa contra
quaisquer lesões aos seus direitos fundamentais.
Porque estas novas conceções têm uma origem e motivação cultural e civilizacional de um
tempo não exclusivamente europeu, mas progressivamente global, também nos EUA a justiça
constitucional experimenta uma viragem, em sentido convergente com o europeu. Após um longo
período de oposição reacionária do Supremo Tribunal a medidas sociais, em nome da liberdade
contratual e do direito de propriedade, a justiça constitucional norte-americana, sujeita à pressão
avassaladora do New Deal de Roosevelt, abandonou (devido a pressões de Roosevelt, que mudaram
o sentido de um dos votos do Supremo Tribunal, garantindo uma maioria ao Presidente, e salvando
o conjunto dos juízes) o conservadorismo ideológico militante, orientando-se para uma
autocontenção judicial relativamente à legislação social. Em contrapartida, nos anos 1950 e 1960 o
ativismo judicial na jurisdição constitucional dos EUA reorientou-se em favor dos direitos
fundamentais, decidindo contra a segregação racial, a favor das liberdades políticas das minorias, da
separação Estado-religião, neste momento, contra o sentimento das maiorias sociais e religiosas.
Aulas
A conceção mudou radicalmente depois da 2ªGG. O fundamental do TC não é fazer isso. A
sua função essencial é garantir os direitos constitucionais das pessoas, que devem ser aplicados como
norma jurídica. A Constituição deve ser aplicada como norma jurídica, logo, o TC tem a função de
garantir que as leis são feitas de forma regular, mas também garantir que os DF não são afetados.
E o papel dos juízes comuns no modelo europeu no domínio da fiscalização da
constitucionalidade, quando se levantar uma questão na decisão de um caso concreto em
julgamento? Se for uma questão séria, se houver uma dúvida séria de constitucionalidade, se o juiz
do caso considerar que há dúvidas de constitucionalidade, será necessário esclarecer a questão de
constitucionalidade, para que não perturbe o andamento do processo. O juiz deve suspender o
julgamento e dizer ao TC: surgiram estas dúvidas sobre se esta norma aplicável a este caso é
inconstitucional. o TC aprecia e decide; o juiz segue o julgamento de acordo com o que o TC disse. A
este instituto chama-se reenvio prejudicial.
Diferença para América: os juízes decidem questões de constitucionalidade. No modelo
europeu, não decidem, apenas decidem se suspendem o processo para levar a questão ao TC. Deem
fazê-lo se houver dúvidas sérias de constitucionalidade.
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o Nos EUA houve, nos anos 1930 e 1940, graves conflitos entre Presidentes/Congressos e
Supremo Tribunal. Devido ao modo de designação dos apenas nove juízes, o Supremo
tinha uma composição, em termos políticos, muito marcada pelos Presidentes dos anos
anteriores. Havia, por isso, um grande desfasamento entre a orientação política do
Presidente, Congresso e generalidade da população, e a orientação política do Supremo
Tribunal. Esta tensão entre os dois poderes criava vários problemas em questões de
económicas e de costumes. (Paralelo com a situação atual: Presidente e Congresso são
progressistas e o Supremo tem uma larga maioria conservadora.)
o Durante o mandato do Presidente Roosevelt, do Partido Democrata, havia uma maioria
5/4 conservadora, isto é, 4 juízes decidiam no sentido das orientações do Congresso e do
Presidente, mas os outros 5 bloqueavam as suas decisões. Tentando resolver a questão,
Roosevelt pressionou os juízes, anunciando que faria uma reforma do Supremo Tribunal
se não houvesse uma mudança de atitude da sua parte. Após esta ameaça, o juiz mais
moderado alterou as suas posições, passando a haver uma maioria de 5/4 a favor do
Congresso, o que permitiu uma evolução na jurisprudência do Supremo dos EUA.
Começaram a surgir as primeiras decisões contra a discriminação racial, o que levou, de forma
progressiva e sistemática a que a jurisprudência do ST dos EUA passasse a ser uma
jurisprudência “amiga” dos direitos e liberdades. Só na segunda metade do séc. XX o ST se
afirmou plenamente como Tribunal de defesa das liberdades e da igualdade entre os
cidadãos. Hoje, o Supremo Tribunal dos EUA é um Tribunal de defesa dos direitos
fundamentais.
Este estado de coisas teve, reflexamente, influencia no que se passava na Europa. Ainda que
a possibilidade de importação de um sistema de fiscalização da constitucionalidade
americano fosse discutida nos meios académicos, a imagem que os europeus tinham do
Supremo Tribunal, de um Tribunal conservador que proibia o legislador de aprovar legislação
social, trazia dificuldades à adoção de uma justiça constitucional. Institui-la seria instituir o
governo dos juízes: os Parlamentos legislavam e, logo a seguir, os juízes, sem legitimidade
democrática tão forte como a dos Parlamentos, proibiam.
Só houve uma alteração destas circunstâncias no pós-guerra, tanto nos EUA como na Europa.
Na Europa, no pós-guerra, os Tribunais Constitucionais também eram “amigos” dos direitos
fundamentais. Assim, houve uma convergência entre modelo americano e modelo europeu,
o que levou a que a justiça constitucional passasse a ser vista como justiça de garantia dos
direitos fundamentais. Por isso é que todos os países que chegam à democracia e ao Estado
de Direito têm uma preocupação imediata em instituir um sistema de justiça constitucional.
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A justiça constitucional europeia, que se reparte por estas três áreas, acaba por se concentrar
mais na garantia dos direitos fundamentais, através de dois institutos: reenvio prejudicial e recurso
de amparo.
Reenvio prejudicial:
Na apreciação de um caso em Tribunal, podem levantar-se duvidas sobre constitucionalidade
de normas aplicáveis ao caso. Nesse caso, cabe ao juiz do caso considerar que essas dúvidas
sobre a potencial inconstitucionalidade da norma têm fundamento, se são dúvidas razoáveis.
Se o juiz não verificasse isso, o reenvio prejudicial podia ser utilizado para uma das partes, ao
levantar questões artificiais, fazer prolongar o processo.
Se o juiz comum considera que as dúvidas são razoáveis, e que não há uma tentativa de fazer
prolongar o processo, o juiz suspende o processo e reenvia a questão de constitucionalidade
para o Tribunal Constitucional, para que este se pronuncie sobre a sua inconstitucionalidade.
Após o TC se pronunciar, o caso prossegue. Se o TC considerar a norma inconstitucional, ela
desaparece da ordem jurídica.
Reenvio prejudicial:
Embora os juízes comuns conheçam das questões de constitucionalidade, eles não as
decidem. Assim, se no decurso de um caso concreto a ser julgado num Tribunal comum surgir
uma dúvida de constitucionalidade de uma norma aplicável ao caso, o juiz da causa confirma
a existência de dúvidas razoáveis sobre a conformidade constitucional (se o juiz não
verificasse isso, o reenvio prejudicial podia ser utilizado para uma das partes, ao levantar
questões artificiais, fazer prolongar o processo), suspende a instância e remete a decisão da
questão de constitucionalidade para o TC, através do instituto do reenvio prejudicial, que
assegura a exclusividade ou monopólio da administração da justiça constitucional pelo
Tribunal Constitucional. Após o TC se pronunciar, o juiz segue o julgamento de acordo com a
decisão tomada.
Ao TC não cabe a apreciação do caso concreto, mas apenas a decisão da questão de
inconstitucionalidade da norma em causa que, sendo inconstitucional, não só é desaplicada
no caso concreto como é erradicada da ordem jurídica.
A partir do momento em que este tipo de recurso é instituído numa ordem jurídica, os
cidadãos recorrem a ele em massa. De facto, na prática, a esmagadora maioria das decisões
dos Tribunais Constitucionais fazem-se no domínio dos recursos de amparo apresentados
pelos cidadãos. Por isso, os legisladores constitucionais e os Tribunais Constitucionais
estabelecem alguns filtros no acesso ao TC.
Requisitos/filtros:
o Prazos estritos – só se pode recorrer ao TC durante certo período de tempo.
o Esgotar a via judicial – só se pode recorrer ao TC após esgotados todos os recursos. Ainda
assim, por vezes, se um cidadão não puder recorrer aos Tribunais comuns em tempo
útil, o acesso ao TC é lhe garantido, com o objetivo da garantia dos direitos
fundamentais.
o Confirmação de que se trata de um caso sério de lesão de um direito fundamental
o Relevância da questão de constitucionalidade.
o Conceitos-filtros: como “especial transcendência constitucional” (Espanha), que dão
alguma discricionariedade ao TC para selecionar os casos constitucionalmente
relevantes, aproximando-o dos Supremos Tribunais.
Justificações:
o Razão pragmática: duas situações de necessidade de acesso dos particulares ao TC/ST
O Tribunal ordinário não reconhece a lesão do direito fundamental que o particular
convoca
Lesão do DF que o particular alega advém da ação ou omissão dos órgãos
jurisdicionais quando arbitram litígios concretos.
o Razão lógica: se os DF são garantias constitucionais, se corporizam a parte nuclear da
Constituição material, e se os TC/ST são guardiões da Constituição, seria inconsequente
não disporem de uma última palavra.
o Vantagens: uniformização de jurisprudência, constitucionalização do Direito,
desenvolvimento da doutrina
Caráter subsidiário do instituto
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portugueses não exerciam essa competência. Desde 1911, até 1976, o número de vezes que
o poder de fiscalização da constitucionalidade foi utilizado por juízes comuns conta-se pelos
dedos das mãos.
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inconstitucionalidades:
Intervenções restritivas de direitos fundamentais: atos pontuais, individuais e concretos
praticados pela Administração e pelos Tribunais e que agridem um direito fundamental.
Só em casos excecionais é que o TC pode intervir quando seja alegada a inconstitucionalidade
de uma intervenção restritiva: quando se alega que a norma habilitadora da intervenção (a
norma que habilita a Administração ou o poder judicial a intervir restritivamente nos direitos
fundamentais) é inconstitucional – ex: se a polícia detém alguém inconstitucionalmente, tal
inconstitucionalidade não pode ser atalhada pelo TC; o TC só pode apreciar as normas que
regulam a intervenção policial, nunca a própria inconstitucionalidade da intervenção policial;
ex: se a legislação laboral permite a requisição civil dos trabalhadores em greve, o TC pode
verificar se a lei é inconstitucional, mas se, invocando habilitação legal, o Governo determina
uma requisição civil, violando o direito à greve, o TC não pode intervir.
Porém, é nas intervenções restritivas de direitos fundamentais cuja norma ordinária
habilitadora não é inconstitucional que se verificam a maioria das situações de lesão dos
direitos fundamentais. Porém, o sistema português de fiscalização da constitucionalidade
está, no domínio dos direitos fundamentais, unilateralmente orientado para a proteção
contra as normas restritivas. Há, pois, um défice significativo de proteção dos direitos
fundamentais dos cidadãos sob jurisdição do Estado português, que não podem recorrer para
o TC das agressões individuais e concretas praticadas pela Administração e pelos Tribunais.
Assim, no sistema português, o Tribunal Constitucional não é o Tribunal dos direitos
fundamentais. Já no modelo europeu, se o cidadão considera que o seu direito fundamental
foi agredido, qualquer que seja a entidade pública, pode fazer uma queixa constitucional.
Também no modelo americano qualquer ato pode chegar ao Supremo Tribunal, preenchidos
os requisitos do processo.
Mas porque exige uma proteção efetiva dos direitos fundamentais a intervenção do TC?
A criação de um Tribunal Constitucional, com funções de controlo de constitucionalidade,
funda-se, naturalmente, numa lógica de desconfiança relativamente ao mérito das decisões
dos Tribunais comuns. Se assim não fosse, os recursos das decisões judiciais em fiscalização
concreta não deviam ser dirigidos ao TC, mas antes ao STJ e ao STA.
Além disso, porque seria legitimo desconfiar das decisões dos Tribunais comuns
relativamente a normas restritivas de direitos fundamentais, mesmo quando a
inconstitucionalidade invocada é meramente técnica (orgânica ou formal), mas já é ilegítimo
análoga desconfiança relativamente a intervenções restritivas, mesmo quando se traduzam
em lesões mais graves dos direitos fundamentais?
Mais, porque essa intervenção unificadora e orientadora de um Tribunal especializado em
questões de constitucionalidade tem um efeito de uniformização da jurisprudência e de
fornecimento de critérios e padrões de apreciação e progresso do Direito.
B) Ausência de proteção no domínio da eventual violação dos DF por omissão de atuação estatal
Após uma fase inicial, em que a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão gerou
alguma controvérsia e interesse, ela praticamente desapareceu como tema de Direito constitucional,
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seja pelo seu alcance tão restrito11, seja porque o instituto permaneceu durante muitos anos
adormecido. Ainda assim, nos últimos anos houve um renovamento do interesse pelo instituto.
De facto, o recurso à fiscalização abstrata é objetivamente sustentável em Estado de Direito
social. Numa Constituição de Estado de Direito social decorrem das normas constitucionais e
dos direitos fundamentais, para os poderes públicos, não apenas obrigações de respeito, mas
também deveres de proteção, perante ameaças à liberdade, à autonomia e ao bem-estar
provindas de outros particulares, bem como deveres de promoção e de ajuda estatal a quem
não dispõe de condições para o exercício dos direitos e liberdades fundamentais ou para
aceder aos bens por eles garantidos.
Qualquer destes deveres, relativamente a qualquer direito fundamental, tem uma dimensão
positiva (dever de fazer) e uma dimensão negativa (dever de não fazer), podendo o
incumprimento do dever resultar de qualquer das duas dimensões, isto é, traduzir-se numa
inconstitucionalidade por ação ou numa inconstitucionalidade por omissão. E o
incumprimento total ou parcial de deveres de proteção, promoção e ajuda, que são
imposições constitucionais, traduz-se numa omissão inconstitucional. Assim, a omissão
injustificada de atos normativos, materiais, administrativos, judiciais, pode ser configurada
como violação dos direitos fundamentais por omissão, todavia, na maioria das vezes
insuscetível de ser verificada pelo TC.
De facto, o sistema português de fiscalização da constitucionalidade por omissão não é
adequado à verificação de omissões inconstitucionais na área mais importante, a da garantia
dos direitos fundamentais. Não o é porque o TC só pode fiscalizar a inconstitucionalidade por
omissão de normas necessárias para conferir exequibilidade às normas constitucionais, e não
de outras normas, de atos ou de decisões, designadamente atos e decisões necessários para
que as entidades públicas, incluindo os Tribunais, cumpram os deveres estatais que lhes
caibam na realização dos direitos fundamentais.
Ao contrário do que normalmente se possa pensar, este défice do sistema de fiscalização por
omissão envolve todos os direitos fundamentais, sejam direitos de liberdade ou direitos
sociais, e não exclusivamente os últimos. O direito à vida, a liberdade de religião ou a
liberdade de ensino podem ser violados por ação ou por omissão.
Exemplos de omissões inconstitucionais: falta de norma sancionatória para garantir uma
proteção efetiva de um bem jusfundamental perante ameaças de terceiros; o cidadão é
abandonado pelo Estado a uma situação intolerável de penúria impeditiva do acesso a bens
jusfundamentalmente protegidos, como a saúde ou a habitação; omissão de atos materiais
ou administrativos necessários ao exercício de um direito fundamental.
E o facto de existir, no sistema português, a modalidade de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão, modalidade que não existe em grande parte dos Estados
de Direito, torna este défice de proteção dos direitos fundamentais ainda mais contraditório.
As entidades mencionadas no art. 283º podem requerer ao TC que verifique a omissão de
normas necessárias para realizar normas constitucionais. Todavia, os cidadãos não podem,
em fiscalização concreta (a única que lhes permite recorrer ao TC), recorrer por falta de
norma quando haja uma omissão de proteção dos seus direitos fundamentais pela
11
Razões do alcance restrito da fiscalização da constitucionalidade por omissão: (i) só fiscaliza omissão de normas que
conferem exequibilidade a normas constitucionais, e não de normas exequíveis por si mesmas (a grande maioria), de atos
ou decisões (especialmente, decisões judiciais); (ii) só fiscaliza em sede de fiscalização abstrata, e não concreta; (iii)
número limitado de entidades pode requerer; (iv) a consequência é uma mera chamada de atenção – ver Parte III / Cap.
1 / Ponto D.
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Administração ou pelos Tribunais, mesmo que os seus direitos fundamentais estejam a ser
violados.
De facto, salvo raras exceções, as omissões inconstitucionais dificilmente se configuram como omissão de norma
legislativa necessária para dar exequibilidade às normas constitucionais, sendo inacessível o acesso ao TC em sede de
fiscalização abstrata. Este défice só poderia ser suprido através da instituição do recurso de amparo (por violação de
direitos fundamentais tanto por ação quanto por omissão), passando a ser possível suscitar a eventual omissão
inconstitucional relativa à proteção de direitos fundamentais junto dos Tribunais comuns e, aí, sempre que a
inconstitucionalidade não fosse devidamente reconhecida, poder apelar à intervenção do TC.
Outra via de suprir o défice de proteção é através da configuração artificial da omissão normativa como
equivalendo à existência de uma norma implícita ou virtual denegadora da prestação normativa em falta e,
consequentemente, transformando a inconstitucionalidade por omissão (real) em inconstitucionalidade por ação
(virtual).
Assim, onde a Constituição, intencionalmente, só permite a fiscalização de normas, e não de atos, a solução teria
sido simples: o ato é teoreticamente reconstruído como se fosse norma e tudo passa a ser sindicável pelo TC,
bastando que, num caso concreto, o Tribunal se comprometa ativamente naquela reconstrução e trate o ato
como se fosse norma.
Onde a Constituição distingue entre fiscalização da inconstitucionalidade por ação (admitida) e fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão (só excecionalmente admitida), a solução seria simples: a omissão é
teoricamente reconstruída como ação (implícita, virtual), passando o TC a poder fiscalizá-la, desde que essa
omissão seja concebida (reconstruída) como norma implícita ou virtual, passando a ser sindicável como norma.
O TC acaba a poder fiscalizar, contra o plano da Constituição de 1976, a omissão de “x”, bastando que diga que
está a fiscalizar a ação “não x”.
Porém, é uma estratégia de compensação artificiosa, já que as duas situações não são equiparáveis: o oposto
de uma norma segundo a qual o legislador está obrigado a dar exequibilidade a uma norma constitucional é,
quando muito, uma norma implícita segundo a qual o legislador não está obrigado a dar exequibilidade à norma
constitucional; mas nunca que a ordem jurídica passou a conter uma noma implícita que dispõe em sentido
contrário da norma, inexistente, que o legislador estava obrigado a aprovar. Ex: há um direito fundamental não
suficientemente protegido contra agressões de outros particulares, como no caso de ausência de criminalização
de atos agressivos; pode dizer-se que, a partir de um certo grau de insuficiência de proteção, há
inconstitucionalidade por omissão da medida legislativa de proteção, uma vez que se pressupõe existir um
comando normativo constitucional que obriga o legislador a atuar nessas circunstâncias. No entanto, em caso
algum essa ausência de norma de proteção pode significar que existe na ordem jurídica norma (implícita) que
autoriza a ocorrência das agressões.
Esta estratégia não é adequada, porque leva até às suas últimas consequências o processo que o TC encetou ao
forçar até ao limite o conceito de norma para efeitos de fiscalização, a ponto de identificar omissão normativa
com norma (implícita, virtual), e subvertendo o próprio programa do sistema de fiscalização instituído pela
Constituição de 1976. Estas estratégias que se baseiam na tentativa de, através da expansão do conceito de
norma, fazer dissipar a distinção entre norma e ato, entre inconstitucionalidade por omissão e
inconstitucionalidade por ação, só parcialmente conseguem endireitar o que nasceu torto, mas criam sempre
novos e não menos indesejáveis tortos12.
E mesmo que a estratégia fosse bem sucedida, continuariam sempre insindicáveis as violações aos direitos
fundamentais por omissão de atos materiais ou administrativos ou por omissão das correspondentes decisões
judiciais.
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Ver ampliação do conceito de norma pelo TC – Parte III / Cap. 6 / Ponto A
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direito fundamentais assumiu significativo relevo. Nesse sentido, a CRP76 proclamou, ao contrário
da maioria das Constituições, no seu art. 18º/1: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos
direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas.”
Situações de eventual incumprimento do dever estatal de proteção dos direitos fundamentais
ocorrem, com grande frequência, no domínio das relações entre privados. Perante ameaças
de outros particulares, o cidadão invoca a titularidade dos direitos fundamentais para exigir
a proteção correspondente do Estado e, em última análise, do juiz.
Com o 18º/1 CRP, seria expectável que a Constituição garantisse a proteção dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares (que estariam a violar o 18º/1), nomeadamente
no acesso ao TC. Pensou-se estar a prevenir previsíveis resistências dos civilistas e dos juízes
comuns à primazia da Constituição e dos direitos fundamentais, porque se deixava claro que
os direitos fundamentais não eram um tema exclusivo das relações entre o Estado e indivíduo.
Nesse sentido foram outras ordens jurídicas (alemã, espanhola, latino-americanas), que se
orientaram para a garantia efetiva do acesso dos cidadãos ao TC, através da consagração do
recurso de amparo. Por outro, o constituinte português aventurou-se nos terrenos da
controvérsia doutrinária (o que não é tarefa da Constituição), através da proclamação da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais (18º/1), mas deixando-os totalmente
abandonados à boa vontade do juiz comum nas relações entre privados.
Portanto, a CRP proclama a vinculação direta das entidades privadas aos diretos
fundamentais, mas paradoxalmente confia em absoluto na jurisdição comum para fazer valer
os direitos fundamentais, não permitindo o acesso ao TC por particulares que não viram
reconhecida pelo juiz comum a agressão por outros particulares aos seus direitos
fundamentais. É assim porque o TC português só aprecia a inconstitucionalidade de normas.
E os particulares não fazem, em princípio, normas sindicáveis pelo TC (poderá haver “normas
privadas” sindicáveis, como convenções coletivas de trabalho).
Ex: um Tribunal comum pode decidir um confronto entre a liberdade de imprensa de um
jornal e o direito à privacidade de um cidadão, dando razão a uma das partes; se um particular
considerar (e há sempre um que considera) que o seu direito fundamental não foi protegido
pela decisão judicial, de forma inconstitucional, não pode recorrer ao TC.
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Discrepância nas decisões dos Tribunais comuns e do TEDH e o papel de harmonização que o
Tribunal Constitucional poderia ter
Nos últimos anos têm-se repetido casos de violação dos direitos fundamentais em que o
Estado português é sucessivamente condenado pelo TEDH por violação da liberdade de
expressão. Normalmente, são conflitos entre particulares, que dão origens a queixas criminais
devido a colisão entre liberdade de expressão ou de imprensa com o direito ao bom nome e
à reputação. Surgem também casos nas relações entre o Estado ou a Administração e os
particulares, em que a liberdade de expressão surge justificadamente com a prossecução de
outros interesses público, como a ordem pública ou o segredo de justiça. Os casos de conflito
entre direitos fundamentais, surgidos nas relações entre particulares, naturalmente, são da
competência dos Tribunais comuns. Mas quem tem a última palavra sobre a questão de
constitucionalidade?
Tendo Portugal uma jurisdição constitucional especializada, a resposta deveria ser o Tribunal
Constitucional. Todavia, o TC só fiscaliza a constitucionalidade de normas, e estes casos são
de atos ou decisões judiciais que fazem prevalecer um dos dois direitos fundamentais em
confronto. Só em raras ocasiões, quando um dos particulares alega que certa interpretação
judicial das normas em causa é inconstitucional, é que o TC é chamado a decidir. E mesmo aí
não decide a questão de fundo de direitos fundamentais, isto é, qual o direito que deve
permanecer em Estado de Direito democrático nas circunstancias do caso, mas só é chamado
a decidir se uma daquelas normas, na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal comum,
é ou não inconstitucional. E, em geral, a interpretação daquelas normas não é inconstitucional
(essas normas estão em vigor bá muitos anos sem suscitar interpretações divergentes). O que
é inconstitucional é a decisão do juiz comum de ponderação entre os direitos em jogo, decisão
que o TC não pode controlar.
Há, pois uma irracionalidade na distribuição de competências de decisão dos litígios entre
particulares que, não encontrando satisfação nos Tribunais comuns, e não podendo recorrer
para o TC, recorrem, em última análise, ao TEDH (se o direito afetado constar da CEDH). Uma
vez que esse direito fundamental é também um direito protegido pela Constituição
portuguesa, se o TEDH considera ter havido violação, então houve uma inconstitucionalidade.
Portanto, o TEDH foi chamado a fazer a tarefa que, em primeira linha, devia caber ao TC,
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iii) Apreciação de normas inexistentes na ordem jurídica, criadas por interpretação errónea
Extremando a anterior lógica, o TC deu mais um passo, admitindo sindicar situações em que
o sentido objetivo do enunciado não comportava sequer a interpretação com que o juiz efetivamente
o aplicou. Não se trata de um problema de inconstitucionalidade de norma vigente na ordem jurídica,
mas de norma criada pelo juiz a partir de uma interpretação errónea, que não tem apoio no
enunciado. Trata-se de um erro judicial, que devia ser resolvido pelo recurso para os Tribunais
ordinários, dado que o TC estava originalmente configurado como Tribunal do legislador, e não como
Tribunal dos juízes. Com esta ampliação do conceito de norma, o TC acaba por discutir qual a
interpretação correta da norma com o STA, STJ e Tribunais da Relação.
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ou comportadas por essa decisão. Ou seja, se o juiz decidiu de certa forma, é porque
implicitamente interpretou certa norma com determinado sentido.
Todavia, o TC já está a elaborar sobre uma ficção. Quando o juiz interpreta a norma com
determinado sentido, fundamenta-o na decisão judicial. Se o juiz nada diz, a que titulo pode
o TC saber o que estava na cabeça do juiz quando aplicou a norma? Assim, para qualquer
decisão judicial, pode invocar-se que o juiz decidiu em certo sentido porque, para esse juiz,
implicitamente, existe uma norma na ordem jurídica portuguesa com esse sentido, e o
cidadão considera esse sentido inconstitucional.
Ex: no julgamento de um crime hediondo, um Tribunal comum, em última instância, condenou uma pessoa à
morte, contra o disposto no art. 24º/2 da Constituição (“em caso algum haverá pena de morte”), e sem qualquer
fundamento em legislação penal. Esta é uma inconstitucionalidade da maior gravidade. Todavia, na lógica do
sistema português de fiscalização da constitucionalidade, o cidadão não pode recorrer ao TC. Ainda assim, e não
havendo qualquer norma na ordem jurídica portuguesa que tenha habilitado os juízes a condenar uma pessoa
à morte, o TC pode entender que, se os juízes condenaram à morte, é porque implicitamente consideraram que
existia na ordem jurídica portuguesa uma norma que, naquelas circunstâncias, permitia condenar à morte.
Nesse caso, o TC pode apreciar a eventual inconstitucionalidade da norma implicitamente aplicada pelos juízes.
No entanto, não só não existe essa norma na ordem jurídica, como ela nunca foi invocada pelos juízes. O TC fez
uma construção.
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AULA
Se um advogado puser em causa a decisão judicial que condenou à pena de morte, o TC vai recusar
o recurso. Se o advogado fundamentar que o juiz aplicou certa norma do CP com determinada
interpretação em que, verificados certos pressupostos, é possível a pena de morte, aí o TC, só se
quiser, pode aceitar o recurso, dizendo que é uma norma implícita na decisão judicial. Ficção
construída sobre normas que não existem na ordem jurídica portuguesa.
Inconveniente com que os advogados se debatem quando querem ir para o TC: não estando em
causa normas, têm de construir o recurso de uma maneira que permita a admissão. Mas o TC pode,
mesmo com uma argumentação bem feita, recusar intervir, dizendo que se trata de uma decisão
judicial. Gera insegurança total. Os advogados nunca sabem quando o recurso vai ser aceite ou não,
não havendo norma, porque estamos no domínio da ficção e do implícito. O TC pode aceitar de umas
vezes e de outras não. Algo que devia ser inequívoco em termos de segurança jurídica: saber quando
se pode ir para o TC, acaba por não ter fronteiras bem estabelecidas. Nunca se sabe se o TC vai ou
não aceitar o recurso.
Gera uma enorme desigualdade entre os cidadãos, porque só quem tem acesso a bons advogados,
que conheçam estas distinções, é que tem possibilidades de ir para o TC. Quem tem não tem acesso
a bons advogados, os recursos são sistematicamente recusados. Se a pessoa não construir aquilo nos
termos acima explicados, o TC não aceita. Desigualdade que também existe quando o TC não aceita
e o cidadão pode ir para o TEDH em Estrasburgo, o que custa muito, também porque só bons
advogados dominam recursos para o TEDH.
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Este aspeto é ainda mais significativo porque o sistema de repartição das competências
legislativas da CRP76, com o seu regime de reserva de lei parlamentar, estimula exponencialmente a
possibilidade de, relativamente a qualquer diploma aprovado pelo Governo, se poderem multiplicar
as dúvidas de inconstitucionalidade orgânica.
O elenco de matérias sujeitas a reserva de competência legislativa parlamentar tem vindo a
aumentar ao longo das sucessivas revisões constitucionais. Se na versão originária da CRP as
matérias objeto de reserva parlamentar eram, grosso modo, 23, hoje são pelo menos 48.
Entre as matérias reservadas, algumas comportam conteúdos vastíssimos e dificilmente
delimitáveis – ex: o 165º/1/b (é da reserva relativa da AR legislar sobre “direitos, liberdades e
garantias”); e alguns direitos têm uma abrangência ilimitada, como a liberdade de iniciativa
económica privada, o direito ao desenvolvimento da personalidade e a liberdade de profissão.
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Ao contrário do que muitas vezes se pensa ser o ponto de discórdia entre defensores e críticos
do sistema português, a questão central não está nas maiores ou menores possibilidades de
acesso dos particulares ao TC, mas na maior ou menor racionalidade do sistema.
O sistema português estimula possibilidades de acesso direito dos particulares ao TC
praticamente ilimitadas, mesmo quando não há justificação aceitável para tal, sem que, em
contrapartida, assegure possibilidades adequadas de defesa contra agressões sérias aos
direitos fundamentais que não provenham do legislador, portanto, praticadas por
intervenções restritivas da Administração e, pelo menos em teoria, do poder judicial.
Já as possibilidades de um particular recorrer ao TC no âmbito dos processos decididos pelos
outros Tribunais são quase ilimitadas: basta que, durante o processo, o particular invoque a
inconstitucionalidade de uma norma aplicável ao caso ou de uma sua interpretação particular.
A não ser que a alegação seja manifestamente infundada, o sistema garante-lhe, em caso de
posterior decisão desfavorável, a possibilidade de fazer prolongar o processo através do
recurso de inconstitucionalidade para o TC.
Pelo contrário, o modelo europeu praticamente exclui esta utilização dilatória e inapropriada
do sistema de recursos:
Reenvio prejudicial – a alegação de inconstitucionalidade de norma teria que ser feita antes
da decisão final e só subiria ao TC, a título incidental e com suspensão de instancia, se o juiz
da causa considerasse existir, de facto, uma dúvida de inconstitucionalidade séria e fundada
de norma de que dependesse a resolução do caso, o que praticamente exclui a utilização do
instituto para fins dilatórios no que respeita à pretensa existência de inconstitucionalidade de
normas vigentes no ordenamento.
Recurso de amparo – o particular só pode alegar inconstitucionalidades por lesão atual de
direito fundamental expressamente discriminado, num tempo delimitado, e tendo o TC a
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O sistema português não apenas permite, como até estimula a utilização do sistema de
fiscalização concreta como puro instrumento dilatório, o que contribui para o desprestigio da função
jurisdicional e para corrosão das ideias de Constituição, de Tribunal Constitucional e de justiça
constitucional. Enquanto nos sistemas com Tribunal Constitucional e recurso de amparo os cidadãos
tendem a ver na Constituição e no TC a garantia última dos seus direitos fundamentais, em Portugal
a Constituição e a justiça constitucional, no domínio da fiscalização concreta, tendem a ser
percebidas como artifícios ao serviço dos poderosos e meios de estes escaparem às imposições que
obrigam os restantes concidadãos.
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