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DIREITO CONSTITUCIONAL II

REGÊNCIA: REIS NOVAIS 2020/2021


BALTAZAR OLIVEIRA

PARTE I: ALTERAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO .......................................................................................................... 3


1. Alteração da Constituição ................................................................................................................................... 3
A) Teoria da Constituição ..............................................................................................................................................3
B) Vicissitudes constitucionais ......................................................................................................................................5
C) Revisão constitucional ..............................................................................................................................................7
2. A revisão constitucional na Constituição de 1976 ............................................................................................... 8
A) Limites portugueses de revisão constitucional .......................................................................................................8
B) Relevância dos limites materiais na Constituição de 1976 .....................................................................................9
C) Requisitos de qualificação da lei de revisão ..........................................................................................................10
D) Procedimento de revisão ........................................................................................................................................11
3. As revisões da Constituição de 1976 ..................................................................................................................13
A) Introdução ...............................................................................................................................................................13
B) Revisão de 1982 ......................................................................................................................................................14
C) Revisão de 1989 ......................................................................................................................................................17
D) Revisão de 1997 ......................................................................................................................................................19
E) Revisão de 2004 ......................................................................................................................................................21
F) Revisões ordinárias: autonomia regional ...............................................................................................................22
G) Revisões extraordinárias .........................................................................................................................................24

PARTE II: FUNÇÃO LEGISLATIVA ...................................................................................................................... 26


1. Função legislativa ..............................................................................................................................................26
A) Lei e órgãos legislativos ..........................................................................................................................................26
B) Evolução histórica das competências legislativas dos executivos ........................................................................27
C) Supremacia legislativa da Assembleia da República .............................................................................................28
D) Competência legislativa das Regiões Autónomas .................................................................................................29
E) Tipos de leis .............................................................................................................................................................31
2. Processo legislativo parlamentar .......................................................................................................................34
A) Iniciativa legislativa .................................................................................................................................................34
B) Discussão e votação ................................................................................................................................................36
C) Promulgação e veto ................................................................................................................................................36
D) Referenda ministerial ..............................................................................................................................................38
E) Publicação ................................................................................................................................................................39
3. Competência legislativa do Governo .................................................................................................................40
A) Competência legislativa do Governo .....................................................................................................................40
B) Autorizações legislativas .........................................................................................................................................40
C) Apreciação parlamentar de decretos-leis ..............................................................................................................42
Baltazar Oliveira

PARTE III: FISCALIZAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE .................................................................................... 44


1. Sistema português de fiscalização da constitucionalidade .................................................................................44
A) Generalidades .........................................................................................................................................................44
B) Fiscalização preventiva ...........................................................................................................................................45
C) Fiscalização sucessiva abstrata por ação ...............................................................................................................47
D) Fiscalização sucessiva abstrata por omissão .........................................................................................................49
E) Fiscalização concreta ..............................................................................................................................................50
2. Características do regime português de fiscalização concreta............................................................................54
A) O TC só aprecia a inconstitucionalidade de normas .............................................................................................54
B) Os Tribunais comuns decidem, mas com recurso para o TC ................................................................................55
C) Qualquer inconstitucionalidade de norma pode ser sujeita a fiscalização ..........................................................56
D) A decisão do TC só vale para o caso concreto e não erradica a norma inconstitucional....................................57
3. Modelos de justiça constitucional .....................................................................................................................59
A) Confronto entre os modelos de justiça constitucional .........................................................................................59
B) Supremacia da Constituição na Europa e na América ..........................................................................................61
C) Kelsen e a proposta de uma jurisdição constitucional especializada ...................................................................63
D) Novo constitucionalismo ........................................................................................................................................65
E) A importância da garantia dos direitos fundamentais e a convergência dos modelos.......................................67
F) A comum politização das jurisdições constitucionais supremas ..........................................................................69
G) Tutela judicial plena dos direitos fundamentais e recurso de amparo ................................................................71
H) Apontamentos das aulas a integrar neste capítulo ...............................................................................................71
Modelos de justiça constitucional – resumos antigos ............................................................................................79
A) Supremacia da constituição....................................................................................................................................79
B) Modelo americano ..................................................................................................................................................80
C) Modelo europeu .....................................................................................................................................................81
D) Novo constitucionalismo ........................................................................................................................................82
E) Importância dos direitos fundamentais e convergência dos modelos ................................................................84
F) Modelo europeu, reenvio prejudicial e recurso de amparo .................................................................................85
4. Singularidade e origem do sistema português de fiscalização concreta .............................................................88
A) Origem do sistema português ................................................................................................................................88
B) A questão da última palavra ...................................................................................................................................90
5. Crítica: proteção inadequada dos direitos fundamentais ...................................................................................91
A) Ausência de proteção no domínio das intervenções restritivas nos direitos fundamentais ..............................91
B) Ausência de proteção no domínio da eventual violação dos DF por omissão de atuação estatal .....................92
C) Ausência de proteção no domínio das relações entre privados ..........................................................................94
D) Incoerência do sistema de relações entre Tribunais comuns, TC e TEDH ...........................................................95
6. Crítica: irracionalidade, insegurança, desigualdade, utilização inapropriada .....................................................98
A) Ampliação do conceito de norma pelo Tribunal Constitucional ..........................................................................98
B) Os riscos de insegurança, decisionismo e desigualdade .................................................................................... 102
C) Arguição irrestrita de inconstitucionalidades orgânicas e formais em fiscalização concreta .......................... 103
D) Utilização dilatória e inapropriada do sistema de recursos para o TC .............................................................. 106

AZUL: INCOMPLETO E DESORGANIZADO (1 JULHO 2021)

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PARTE I: ALTERAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO

1. Alteração da Constituição

A) Teoria da Constituição1

Constituição em sentido material


 Refere-se ao conteúdo das regras constitucionais. Duas matérias constam necessariamente
de uma Constituição de Estado de Direito, como estabelece o artigo 16º da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão: direitos do homem e separação de poderes.
 Ou seja, a uma Constituição material corresponde à matéria dos direitos fundamentais e das
formas políticas (tipo histórico de Estado, forma de governo, regime político, forma de Estado,
sistema de governo).
 Jorge Miranda: é um acervo de princípios fundamentais estruturantes referentes às várias
formas políticas; é aquilo que confere unidade, substância e identidade à Constituição; é a
manifestação de uma ideia de Direito que prevalece em certo tempo e lugar; é o que
permanece enquanto mudam os preceitos através de sucessivas alterações à Constituição. A
necessidade da sua permanência torna-se requisito de segurança jurídica.
 É frequente as Constituições sintetizarem os princípios que dão o seu cerne material. Na
Constituição portuguesa de 1976 esses princípios estão nos artigos 1º, 2º e 288º.
 Todos os Estados têm uma Constituição em sentido material.

Constituição em sentido formal


 Requisitos da Constituição em sentido formal:
o Intencionalidade de formação – intenção originária de elaborar uma Constituição; dos
trabalhos de uma Assembleia Constituinte resultou uma Constituição.
o Força jurídica especial – força jurídica superior das normas constitucionais relativamente
a quaisquer outras normas vigentes na ordem jurídica.
o Sistematização própria
o Jorge Miranda acrescenta: procedimento específico de formação e (em geral) de
modificação.
 Nem todos os Estados têm Constituição formal, embora quase todos os Estados modernos a
tenham.
 Caso especial do Reino Unido – Constituição material sem Constituição formal – nunca houve,
no Reino Unido, uma Assembleia Constituinte que elaborasse uma Constituição formal, pelo
que não se distingue norma constitucional de norma ordinária.

1
Bibliografia: Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II

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A ideia de Constituição em sentido formal implica três consequências jurídicas:


i) Conceito de inconstitucionalidade;
ii) Distinção entre norma constitucional e norma ordinária;
iii) Distinção entre poder constituinte e poderes constituídos, e distinção entre poder
constituinte originário e poder constituinte derivado.

i) Conceito de inconstitucionalidade: violação da Constituição pelos poderes públicos


 Tendo a Constituição força jurídica especial, todos os atos dos poderes públicos, no plano
infraconstitucional, têm de respeitar a Constituição. Se não o fizerem, há um vício de
inconstitucionalidade.
 Reis Novais: apenas os poderes públicos podem cometer inconstitucionalidades. Os
particulares não estão vinculados à Constituição, pelo que o conceito de inconstitucionalidade
não se lhes aplica. A Constituição limita os poderes públicos, não os cidadãos. Este é um
problema controverso, que divide os constitucionalistas.
 Assim, os direitos fundamentais têm de ser respeitados pelos poderes públicos, que têm
deveres relativamente aos direitos fundamentais, mas não pelos particulares. Ex: um
particular pode não convidar pessoas para um jantar porque não concorda com a sua
ideologia, religião ou orientação sexual.

ii) Distinção entre norma constitucional e norma ordinária


 Norma constitucional – têm um valor superior, estão no topo da ordem jurídica.
 Norma ordinária – têm um valor inferior; são normas infraconstitucionais.

iii) Poder constituinte e poderes constituídos


 Poder constituinte:
o Poder constituinte originário – poder de fazer e aprovar a Constituição na sua versão
original – Assembleia Constituinte.
o Poder constituinte derivado – poder de alterar a Constituição (se uma Constituição quer
perdurar no tempo, tem de se adaptar aos novos tempos e conceções, permitindo a sua
própria alteração); é criado pelo poder constituinte originário, pela Constituição; é
derivado porque se submete às indicações, às normas, do poder constituinte originário,
do qual deriva – Assembleia da República.
 Poderes constituídos – criados pela Constituição – ex: órgãos de soberania; estão sujeitos ao
poder constituinte originário; estão num plano constituído, infraconstitucional.

Constituição em sentido instrumental (Jorge Miranda)


 É o documento donde constam as disposições constitucionais, expressões verbais das normas
constitucionais.
 Ainda que possa ser extensível a normas de origem consuetudinária quando recolhidas por
escrito, o conceito é próprio das Constituições formais escritas. A reivindicação de que haja

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uma Constituição escrita equivale à reivindicação de que as normas constitucionais se


revelem através de um documento visível, com as inerentes vantagens de certeza e
prevenção de violações.
 Advertência: por um lado, Constituição instrumental é todo e qualquer texto constitucional
(seja definido material ou formalmente, seja único ou plúrimo), por outro, num sentido mais
estrito, por Constituição instrumental entende-se o texto denominado Constituição, com
força jurídica própria da Constituição formal.

Classificação de Constituições segundo o critério ontológico de Loewenstein:


 Constituições normativas – intenção originária de limitação do poder e realização efetiva
desse objetivo na realidade constitucional – própria dos Estados de Direito.
 Constituições nominais – intenção originária de limitação do poder, mas não efetividade
prática na realidade constitucional – própria de regimes instáveis e de democracias e Estados
de Direito de realização frustrada.
 Constituições semânticas – eventual aplicação efetiva na realidade constitucional, mas
ausência de intenção limitativa do poder logo no momento constituinte originário – próprias
de Estados autocráticos e regimes ditatoriais que instrumentalizam a Constituição como
fator, não de limitação, mas de mera legitimação do poder.

B) Vicissitudes constitucionais2
As alterações da Constituição ou vicissitudes constitucionais podem ser, tendo em conta o
modo como se processam:
 Alteração expressa – tem na sua génese uma intenção de modificação da norma
constitucional e traduz-se, em geral, na alteração do próprio texto.
 Alteração tácita – não teve, na sua génese, uma intenção abertamente proclamada de
alteração; resulta numa modificação relevante do conteúdo normativo de algumas
disposições constitucionais, sem alteração do texto. As alterações tácitas permitem que
Constituições duradouras se adaptem aos novos tempos e conceções. Resultam de mutações
como o costume constitucional e a interpretação evolutiva das normas constitucionais.

Exemplo de interpretação evolutiva da Constituição:


 Interpretação evolutiva da Constituição – mudança na interpretação das normas
constitucionais vigentes: um preceito que era interpretado com um certo sentido passa, a
partir de certo momento, a ser interpretado com um sentido substancialmente diverso, e
esse novo sentido obtém reconhecimento e passa a ser acolhido e praticado, nomeadamente
pelos Tribunais. Do mesmo enunciado normativo extraíram-se, em momento distintos, duas
normas diferentes.
 Por força da regra do precedente, quando o Supremo Tribunal dos EUA altera a sua anterior
interpretação de um princípio ou norma constitucional, a nova interpretação vale para todos

2
Bibliografia: Jorge Reis Novais, Vicissitudes constitucionais (texto de apoio)

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os Tribunais, o que confere o reconhecimento e acolhimento de que a alteração tácita


precisa. Tal levou um Presidente do ST a afirmar que “the Constitution means what the
Supreme Court says It means”. Assim, têm especial relevância as interpretações dos
Supremos Tribunais e Tribunais Constitucionais.
 Ex: o princípio da igualdade foi reinterpretado ao longo do tempo, tendo diferentes
conteúdos normativos. Nos Estados Unidos, no século XIX esse princípio permitia a
escravatura; no século XX permitia a segregação; no século XXI não permite nenhuma. Houve
uma mutação constitucional, uma alteração silenciosa da Constituição.
 Ex: em 2015, o Supremo Tribunal entendeu que a proibição do casamento entre pessoas do
mesmo sexo violava o princípio da dignidade da pessoa humana. A Constituição não
mencionava nada sobre casamento ou sobre dignidade da pessoa humana, pelo que não
houve uma alteração do texto constitucional, mas mesmo assim deu-se uma profundíssima
alteração na Constituição americana.

Consoante observem ou não as regras que o poder constituinte originário instituiu para a
alteração da Constituição, as alterações expressas podem ser:
 Reforma constitucional – processa-se de acordo com as regras previstas pela própria
Constituição para a sua modificação.
 Rutura constitucional – não observa as disposições constitucionais respeitantes à alteração
da Constituição.

Consoante o alcance das alterações que produz na ordem constitucional, a reforma


constitucional pode ser:
 Revisão constitucional – conserva a Constituição vigente – alteração parcial da Constituição
que tem em vista manter em vigor, conservar, a mesma Constituição, sendo que, para isso,
se faz a sua adaptação a novas condições, objetivos ou entendimentos, alterando alguns
aspetos, mas mantendo em vigor o cerne da Constituição material.
 Transição constitucional – surgimento de uma nova Constituição material – alteração da
Constituição que produz alterações profundas e globais na ordem jurídico-constitucional –
ex: Constituição espanhola (Espanha chegou à democracia através de uma transição
constitucional, de forma pacífica).

Consoante o alcance das alterações que produz na ordem constitucional, a rutura


constitucional pode ser:
 Revolução (enquanto fenómeno jurídico) – rutura global da ordem constitucional –
substituição integral, e tendencialmente violenta, da Constituição formal e material por uma
nova Constituição (ex: CRP 1976).
 Rutura revolucionária – rutura parcial da ordem constitucional, afetando, pelo menos, alguns
aspetos relevantes da Constituição material até então em vigor – pode dar ou não origem a
uma nova Constituição.
 Rutura não revolucionária – rutura parcial que altera aspetos parcelares e pouco significativos
da Constituição material vigente – não dá origem a uma nova Constituição, pelo menos uma

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nova Constituição material.

C) Revisão constitucional
Limites de revisão constitucional: conjunto de requisitos aplicáveis às revisões constitucionais
e que são mais exigentes que os requisitos relativos à aprovação de legislação ordinária. Uma
exigência que se aplique à lei ordinária (ex: maioria simples) não é, por isso, um limite de revisão.
 Temporais – ex: a Constituição só pode ser alterada decorridos 5 anos da última revisão.
 Formais – ex: maioria qualificada para a aprovação da revisão; iniciativa de certo órgão.
 Circunstanciais – ex: a Constituição não pode ser alterada durante o estado de emergência.
 Materiais – ex: separação entre Estado e Igreja; voto secreto; forma republicana de governo.

Constituições rígidas e flexíveis


 Constituição rígida – existem limites à revisão constitucional (as regras, requisitos e
procedimentos previstos para a alteração da Constituição são mais qualificados que as regras
exigidas para aprovar uma lei ordinária). Uma Constituição pode ser mais ou menos rígida,
consoante tenha mais ou menos limites de revisão constitucional.
 Constituição flexível – não existem limites à revisão constitucional, que pode ser feita da
mesma forma que uma lei ordinária, a qualquer altura.

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2. A revisão constitucional na Constituição de 1976

A) Limites portugueses de revisão constitucional


Limites temporais:
 284º/1 – a AR pode rever a Constituição decorridos cinco anos sobre a data da publicação da
última lei de revisão ordinária.
 284º/2 – a AR pode assumir em qualquer momento poderes de revisão extraordinária por
maioria de quatro quintos dos Deputados em efetividade de funções.

Revisões constitucionais ordinárias e extraordinárias:


 Revisão ordinária – 284º/1 – só pode ser desencadeada após terem decorrido cinco anos
desde a última revisão ordinária.
 Revisão extraordinária – 284º/2 – pode ocorrer a qualquer momento, desde que a Assembleia
da República, através de uma maioria de 4/5 dos seus Deputados, assuma poderes
constituintes de revisão extraordinária. Esta é uma maioria muito qualificada, próxima da
unanimidade, conferindo um caráter excecional à revisão extraordinária. A necessidade de
proceder a revisões extraordinárias surge quando é imprescindível resolver problemas
jurídico-constitucionais pontuais, num contexto de urgência que não permita aguardar o
decurso normal do tempo em que a AR adquire, de novo, poderes de revisão, merecendo o
reconhecimento de 4/5 dos Deputados. A maioria de 4/5 apenas é necessária para que a AR
assuma poderes de revisão constitucional, continuando a ser de 2/3 a maioria para aprovar a
lei de revisão.

Limites formais:
 285º/1 – “A iniciativa da revisão compete aos Deputados.” – é um limite já que a iniciativa de
lei compete aos Deputados, aos Grupos Parlamentares, ao Governo, aos grupos de cidadãos
ou às Assembleias Legislativas das R.A. (167º/1,2). Este limite destina-se a reforçar a reserva
absoluta da Assembleia no domínio da revisão constitucional.
 286º/1 – “As alterações da Constituição são aprovadas por maioria de dois terços dos
Deputados em efetividade de funções.” – normalmente, para aprovar uma lei, basta uma
maioria simples (116º/3).
 286º/3 – “O Presidente da República não pode recusar a promulgação da lei de revisão.” –
atribuiu-se à AR uma competência exclusiva, total, de revisão.

Limite circunstancial:
 289º – estados de exceção constitucional – “Não pode ser praticado nenhum ato de revisão
constitucional na vigência de estado de sítio ou de estado de emergência.”

Limites materiais:

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 288º – “As leis de revisão constitucional terão de respeitar” limites como “a separação das
Igrejas do Estado”, “os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, “os direitos dos
trabalhadores, das comissões de trabalhadores e das associações sindicais”, “a fiscalização da
constitucionalidade por ação ou por omissão de normas jurídicas” ou “a autonomia político-
administrativa dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”.

B) Relevância dos limites materiais na Constituição de 1976


Limites materiais são limites que o poder constituinte originário considerou tão importantes
que devem ser intocáveis, não podendo ser alterados. São o que dá identidade a uma Constituição.
O seu sentido é garantir, em revisão, a intangibilidade de certos princípios (não de preceitos avulsos,
mas de princípios). Por isso, mudá-los seria mudar a Constituição, seria fazer uma Constituição nova.
Normalmente, as Constituições têm limites formais, temporais e circunstanciais mais ou
menos semelhantes aos da CRP76. Mas a Constituição portuguesa tem um extenso elenco de limites
materiais que não é comum na maioria das Constituições, e que lhe confere grande rigidez.
Os limites materiais da Constituição portuguesa correspondem a uma parte muito
significativa da mesma. Só a alínea d) “direitos, liberdades e garantias”, refere-se a várias dezenas de
artigos. Por isso, a questão dos limites materiais foi considerada decisiva pelos constituintes. No
período posterior à aprovação da CRP76, o artigo 288º (originalmente 290º), tornou-se um dos
artigos mais discutidos e controversos entre constitucionalistas.

Existiam três teorias acerca da relevância dos limites materiais:


 Tese da relevância absoluta – se o poder constituinte originário definiu limites materiais,
então tem de haver um respeito absoluto por eles, sob pena de se desvirtuar a Constituição.
 Tese da irrelevância – o poder constituinte não tinha poderes para impor limites materiais a
sucessivas gerações; os limites materiais são irrelevantes e pode alterar-se a Constituição
nesses domínios. Contra-argumento: nesse caso, porquê respeitar limites formais, temporais
e circunstanciais? A Constituição seria flexível.
 Tese da relevância relativa ou da dupla revisão – Jorge Miranda e Reis Novais – o 288º é norma
jurídica, e a Constituição é normativa, pelo que os limites têm de ser respeitados. Mas nada
obriga a que estejam em vigor para sempre, a que não sejam eliminados em revisão
constitucional. Pode rever-se a Constituição, suprimir algumas das alíneas do 288º e, na
revisão seguinte, alterar-se a Constituição em matéria que antes não se podia.

A história demonstrou que esta discussão não tem, em termos práticos, o interesse que
inicialmente se lhe atribuía. Por várias razões:
 Não é previsível que a médio prazo haja um consenso alargado entre várias forças políticas
para se alterar a maioria dos limites materiais, como a independência nacional e a unidade
do Estado, a forma republicana de governo, a separação das Igrejas do Estado ou a
independência dos Tribunais. Questões como a discussão monarquia/república, outrora
muito relevantes, hoje estão relativamente estabilizadas.
 O 288º é vago, introduzindo-se alguma maleabilidade. O preceito não diz que os limites
materiais não podem ser “alterados” ou “revistos”, mas apenas que têm de ser “respeitados”

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(“As leis de revisão constitucional terão de respeitar”). Assim, os direitos, liberdades e


garantias podem ser alterados, desde que sejam respeitados. Logo, pode-se, pelo menos,
melhorar ou adicionar direitos, liberdades e garantias (ex: direitos ambientais ou direito ao
esquecimento, inconcebíveis em 1976).
Tal leva alguns autores a afirmar que apenas não se pode restringir ou regredir nestas
matérias, mas que se pode avançar ou adicionar. Reis Novais discorda: se qualquer direito
fundamental, na sua generalidade, pode ser restringido pelo legislador ordinário, em estados
de exceção, também o legislador de revisão constitucional o pode. Não só pode, como já o
fez em várias revisões constitucionais (ex: relativamente ao terrorismo).
 Conclusão: querendo, o legislador pode alterar a Constituição em matérias previstas no 288º.

C) Requisitos de qualificação da lei de revisão


Para que um ato jurídico-público em concreto produza os efeitos inerentes ao nome ou à
forma com que se apresenta, tem de preencher os requisitos definidores do tipo ou da categoria de
atos em abstrato que a norma prevê, tem de se integrar em certo modelo normativo de ato. Assim,
um ato só pode ser considerado revisão constitucional se preencher os requisitos de qualificação que
a Constituição prevê. Sem eles, o ato será juridicamente inexistente como lei de revisão e apenas
poderia subsistir como lei ordinária, a qual, sendo oposta à Constituição, se tornaria materialmente
inconstitucional e, portanto, inválida.

São requisitos de qualificação da lei de revisão constitucional (Jorge Miranda):


 Requisito comum a Constituições flexíveis e a Constituições rígidas:
o Intensão de revisão – a revisão constitucional é um ato intencional, ou seja, um ato cuja
perfeição depende de que o agente tenha querido não apenas a conduta, mas também o
resultado jurídico dela consequente. Para que haja revisão, tem de se manifestar a
intenção de substituir, suprimir ou aditar normas formalmente constitucionais (287º/1).
 As Constituições rígidas postulam o exercício do poder de revisão como poder distinto do
poder legislativo ordinário. Assim, são requisitos próprios das Constituições rígidas:
o Órgão competente – só Assembleia da República (161º/a, 284º).
o Tempo da revisão – cinco anos sobre a publicação da anterior lei de revisão ordinária ou,
antes disso, quanto tenha assumido poderes extraordinários de revisão (286º/2).
o Normalidade constitucional – não pode ser praticado nenhum ato de revisão
constitucional na vigência de um estado de exceção (289º).
o Maioria de revisão – dois terços dos Deputados em efetividade de funções (286º/1)
 Não se incluem nestes requisitos o respeito pelos limites materiais de revisão.

A verificação dos requisitos qualificação compete ao Presidente da República, que tem de


fazer um controlo para saber se o ato que lhe foi enviado se trata de uma lei de revisão constitucional.
 Se os requisitos de revisão estiverem reunidos, o PR é obrigado a promulgar (286º/3).
 Reis Novais:

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o O Presidente da República tem de verificar se estão preenchidos os requisitos objetivos


de qualificação de uma lei de revisão constitucional (limites temporais, formais e
circunstanciais). Não se encontrando reunidos os requisitos objetivos, a lei em causa não
é uma lei de revisão constitucional, pelo que o PR pode recusar a promulgação.
Eventualmente, o PR poderá tratar o ato como uma lei ordinária.
o Já os limites materiais dão origem a dúvidas de caráter subjetivo (ex: os direitos e
liberdades foram respeitados?), pelo que o PR não pode recusar a promulgação. Há uma
clara intensão de concentrar todos os poderes de revisão exclusivamente na AR.
 Jorge Miranda: se os requisitos não estiverem reunidos, o Presidente deve não promulgar, o
que determina a inexistência jurídica do ato, não apenas como ato de revisão, mas como ato
jurídico-público. Caso o ato tenha vindo da AR, o PR deve devolver o decreto à mesma.
 Outras orientações: quando o PR entender não estarem preenchidos os requisitos de lei de
revisão, qualifica o ato como lei ordinária. Daí retiram-se todos os corolários quanto à
fiscalização preventiva e ao veto. Jorge Miranda: tal é ir longe demais. O poder de qualificação
inerente à promulgação envolve a recusa da qualificação pretendida pela AR ou Governo, mas não
permite que o PR, positivamente, atribua uma qualificação não querida pela AR ou Governo.

D) Procedimento de revisão
As regras do procedimento de revisão compreendem, naturalmente, as regras do Título
“Revisão constitucional” (284º a 289º), mas também as regras gerais sobre procedimento legislativo
parlamentar (dispostas na Constituição e no Regimento da AR), não incompatíveis com as primeiras,
e que têm de ser submetidas a um cuidadoso trabalho de harmonização. Algumas regras do
procedimento de revisão na Constituição de 1976 são:
i) A abertura do processo requer, em revisão ordinária, um ato de iniciativa, a apresentação de um processo
de revisão.
a. A verificação dos pressupostos de exercício de competência de revisão (pelo decurso de 5 anos após a
publicação da última revisão ordinária) não determina, por si só, o desencadear do processo.
b. Também a deliberação da AR, por maioria de 4/5 dos Deputados em efetividade de funções, de
assunção dos poderes de revisão (que assume a forma de resolução, publicada independentemente da
promulgação do PR – 166º/5 e 6) não é, por si só, um ato de iniciativa. Uma coisa é a iniciativa de
assunção de poderes de revisão, outra coisa a iniciativa de uma ou várias alterações à Constituição.
ii) Não são admitidos projetos de revisão que não definam concretamente o sentido das modificações
introduzir na Constituição (120º/1/b RAR).
iii) 285º/2 – “Apresentado um projeto de revisão constitucional, quaisquer outros terão de ser apresentados
no prazo de trinta dias.” Por analogia com o 169º/1, descontam-se os períodos de suspensão do
funcionamento da Assembleia.
iv) Passados esses trinta dias, se houver necessidade de contemplar matérias não objeto de nenhum dos
projetos de revisão apresentados, ter-se-á, pela maioria constitucional de quatro quintos, de assumir
poderes de revisão extraordinária, ficando tudo a correr, no entanto, num único procedimento.
v) Os projetos de revisão não aprovados não podem ser renovados na mesma sessão legislativa, salvo nova
eleição da AR (167º/4).
vi) Os projetos não votados na sessão legislativa em que forem apresentados não carecem de ser renovados
nas sessões legislativas seguintes, salvo termo da legislatura (167º/5).
vii) Até ao termo da discussão podem ser apresentadas propostas de alteração aos projetos de revisão ou aos
textos de substituição, mas apenas relativamente a preceitos constitucionais contemplados nos projetos de
revisão e, no limite, relativamente a outros com eles em conexão necessária.

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viii) A AR não está sujeita a um dever de audição dos órgãos regionais acerca do regime político-administrativo
das regiões autónomas, ao contrário do que se verifica com as demais questões da sua competência
(229º/2). Tal é um corolário quer da reserva absoluta da AR, quer do caráter unitário do Estado.
ix) A discussão dos projetos e a sua votação fazem-se sempre na especialidade e só na especialidade – por
referência aos preceitos constitucionais em relação aos quais se proponham alterações, e só a eles, e por
referência a um texto já adotado e vigente na generalidade, a Constituição. O art. 286º fala em “alterações
à Constituição” nessa aceção.
x) A votação na especialidade dá-se no plenário, nunca em comissão. É assim pela natureza das coisas e porque
só em plenário é possível ser formada a maioria de dois terços dos Deputados em efetividade de funções.
xi) Aprovadas ou rejeitadas propostas de alteração relativamente a certo preceito, fica precludido, quando a
esse preceito, o poder de revisão.
xii) A votação da totalidade das propostas de alteração preclude a competência de revisão da AR, quando haja
aprovação de alguma.
a. A não aprovação de nenhuma proposta não determina a preclusão, visto que a AR pode rever a
Constituição decorridos 5 anos da última revisão ordinária (284º/1).
b. No caso de revisões extraordinárias, a votação da totalidade das propostas de alteração preclude a
competência de revisão da AR mesmo que nenhuma seja aprovada ou todas sejam retiradas, porque a
assunção de poderes de revisão aparece funcionalizada a um resultado positivo, e se este não se obtém,
tal assunção fica desprovida de sentido.
xiii) 286º/2 – “As alterações da Constituição que forem aprovadas serão reunidas numa única lei de revisão.”
Favorece-se uma ponderação simultânea e globalizante das alterações propostas.
xiv) 287º/1 – “As alterações da Constituição serão inseridas no lugar próprio, mediante as substituições, as
supressões e os aditamentos necessários.”
xv) A Constituição não impõe a votação final global do decreto de revisão, mas até agora tem isso sempre
acontecido, podendo falar-se em costume constitucional.
xvi) A lei de revisão (ainda sob a forma de decreto da AR) é obrigatoriamente promulgada pelo PR (286º/3)
como lei constitucional (119º/1/a e 166º/1).
xvii) Havendo uma reserva absoluta da AR no domínio da revisão constitucional (285º/1), o PR não pode (174º/4)
convocar a AR para efeitos de revisão constitucional.
xviii) A revisão constitucional não está sujeita a fiscalização preventiva da constitucionalidade (278º/1), salvo,
porventura, em caso de preterição de requisitos de qualificação, mas está sujeita a fiscalização sucessiva.
xix) O PR deve promulgar o decreto de revisão num prazo de 8 dias, por analogia com o 136º/2, 2ª parte, que
se reporta à outra hipótese constitucional de promulgação obrigatória (confirmação de leis ordinárias após
veto político).
xx) A promulgação não carece de referenda ministerial, visto que não há um princípio geral de referenda (140º)
e visto que a AR tem competência exclusiva de revisão.
xxi) 287º/2 – “A Constituição, no seu novo texto, será publicada conjuntamente com a lei de revisão.”
xxii) Não pode ser praticado nenhum ato de revisão durante a vigência de um estado de exceção (289º), o que
acarreta a suspensão do processo, mas não a sua cessação.
xxiii) Votada a revisão, nada impede que o PR a promulgue durante um estado de exceção, até para que,
competindo ao PR declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, ele não aproveite para exercer
uma espécie de veto de bolso sobre a lei de revisão.
xxiv) A regra da caducidade de projetos de lei com o termo da legislatura (167º/5) não vale para projetos de
revisão constitucional, continuando o processo de revisão na nova legislatura. Caso contrário, se o PR
dissolvesse a AR durante o processo de revisão, essa sairia diminuída face ao Presidente.

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3. As revisões da Constituição de 19763

A) Introdução

Revisões da Constituição de 1976:


 Ordinárias: 1982, 1989, 1997, 2004
 Extraordinárias: 1992, 2001, 2005

Dois ciclos desde a vigência da CRP76:


 1º ciclo: 1976 a 2005 – 7 revisões – período de instabilidade do texto constitucional e de
persistência da querela constitucional. Nesse período relativamente curto, enquanto Portugal
fez sete revisões constitucionais, Espanha fez duas. A CRP sofreu alterações sistemáticas, e
em quase todos os artigos. Retrospetivamente, é uma surpresa que a durabilidade da CRP76,
visto que se acreditava que a vigência da Constituição seria muito breve.
 2º ciclo: 2005 ao presente – 0 revisões – acalmia.

Querela constitucional é a controvérsia política acerca da Constituição de 1976 entre os que


defendem, em maior ou menor medida, o legado normativo de 1976 e os que se alinham com as
propostas mais radicais de alteração da Constituição. Para Reis Novais:
 Na medida em que a Constituição na sua versão original possuía feições atípicas num contexto
europeu ocidental, tal querela tinha um sentido objetivo nos anos que se seguiram à
aprovação da CRP.
 Contudo, após 1989, ela perdeu objetivamente razão de ser, já que as revisões constitucionais
de 1982 e de 1989 conformaram definitivamente a Constituição em vigor como Constituição
de Estado de Direito, em nada estruturalmente distinta das demais Constituições de países
que nos são próximos. Dessas duas revisões saiu um texto constitucional que consagrou
formas políticas típicas de um Estado de Direito social e democrático: forma de governo
republicana, forma de Estado unitário com Regiões Autónomas, regime político de
democracia representativa, sistema de governo semipresidencial, sistema eleitoral
proporcional, pluripartidarismo, jurisdição constitucional onde pontifica um Tribunal
Constitucional.
 Ainda assim, a controvérsia ainda suscita irrupções pontuais. No entanto, é destituído de
qualquer fundamento considerar a Constituição uma dificuldade ou algo que perturbe o
normal desenvolvimento da vida política e social, como problema que careça de ser resolvido.
Essa é uma mistificação construída e artificialmente mantida sem qualquer apoio na
realidade. O segundo ciclo, que hoje atravessamos, sem qualquer alteração do texto
constitucional ao longo de quinze anos, demonstra a inexistência dessa querela.

3
Bibliografia: Jorge Reis Novais; As revisões da Constituição de 1976 (texto de apoio)

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Quanto aos temas que mobilizam as revisões constitucionais, podem distinguir-se dois períodos:
 Até 1989 – necessidade absoluta de rever o texto constitucional.
o Revisão de 1982 – sem esta revisão, a existência e estabilização de um Estado de Direito
democrático corria riscos. Era indispensável pôr termo ao período de transição.
o Revisão de 1989 – adaptação da organização económica ao modelo de economia de
mercado, ajustado à integração europeia.
 Após 1989 – as posteriores revisões, independentemente das melhorias introduzidas,
apresentam uma lógica e um sentido mais dificilmente apuráveis.
o Revisões ordinárias (1997 e 2004) – foram feitas sem objetivos definidos, quase como
uma obrigação ritualizada. Em síntese, dão uma resposta de resultados duvidosos a um
vago apelo à reforma do sistema político e, num plano de maior pragmatismo político,
resultaram num aprofundamento sensível e contínuo da autonomia regional.
o Revisões extraordinárias (1992, 2001 e 2005) – incidiram sobre aspetos muito pontuais,
estando relacionadas quase exclusivamente com a integração europeia e as relações
internacionais.

B) Revisão de 1982
Esta é a principal revisão e a mais marcante de todas, pois determinou o fim do período de
transição, previsto nas duas Plataformas de Acordo Constitucional (Acordos MFA/Partidos), de abril
de 1975 e fevereiro de 1976. Este período, que duraria até à primeira revisão constitucional,
correspondeu à presença transitória dos militares no exercício do poder, através do Conselho da
Revolução. Assim, extinguiu-se o Conselho da Revolução, deu-se o regresso dos militares aos quarteis
e estabeleceu-se uma arquitetura constitucional típica de uma Constituição de Estado de Direito
democrático, com a configuração ainda hoje vigente nos planos do sistema de governo, do sistema
de fiscalização da constitucionalidade e do sistema de direitos fundamentais.
Para Reis Novais, a não ter existido esta revisão, ter-se-ia verificado uma verdadeira transição
constitucional, ou seja, a Constituição aprovada em 1976, não revista, ter-se-ia transmutado numa
nova Constituição e num projeto constitucional substancialmente distinto do que foi originariamente
programado quando a Constituição foi aprovada. A versão original da CRP, com a presença transitória
dos militares no poder (acordada com os partidos), tinha sentido e justificação enquanto fase
transitória até à primeira revisão constitucional e à plena instituição e estabilização de um Estado de
Direito democrático. Tinha-o porque os militares se encontravam verdadeiramente de forma
transitória no poder, ao contrário do entendimento de alguns, como Marcello Caetano, que
considera a versão original da CRP uma Constituição de ditadura militar. Mas a Constituição era uma
Constituição de Estado de Direito de democracia representativa, porque os militares estavam no
poder com a certeza de que sairiam no fim do período de transição, que funcionava com democracia,
com liberdades e com eleições. Sê-lo ia, porventura, se tivesse resultado em ordem constitucional
permanente, isto é, se não se tivesse feito a revisão de 1982 e os militares passassem a exercer o
poder definitivamente. Nesse caso, as formas políticas da Constituição de 1976 mudariam. O tipo
histórico de Estado passaria de Estado de Direito social e democrático para, eventualmente, Estado
autocrático dos séculos XX e XXI. O regime político de Estado de Direito de democracia representativa
para, eventualmente, ditadura. Teria havido uma transição constitucional e uma nova Constituição
material.

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i) Extinção do Conselho da Revolução e redistribuição dos seus poderes


O Conselho da Revolução era um órgão de soberania político-militar com funções de
aconselhamento do Presidente da República e de garantia do regular funcionamento das instituições
e do cumprimento da Constituição, e era órgão político e legislativo em matéria militar. A sua extinção
obrigou à redistribuição dos seus poderes pelos diferentes órgãos constitucionais.
 Competências na função de aconselhamento do Presidente da República – Conselho de
Estado (novo órgão).
 Competências de garante do regular funcionamento das instituições – concentradas no PR.
 Competências de garantia da Constituição – Tribunal Constitucional (novo órgão).
 Competências políticas e legislativas em matéria militar – Governo e AR.

ii) Poderes do Presidente da República e sistema de governo4


O maior contributo da revisão de 1982 foi no campo do sistema de governo, que ficou
perfeitamente moldado nessa revisão. A redistribuição dos importantes poderes do Conselho da
Revolução afetou o equilíbrio entre os restantes órgãos que exercem poder político (PR, Governo e
AR), obrigando a uma recomposição global que influencia a natureza do sistema de governo.
Poder presidencial de demissão do Governo e responsabilidade do Governo perante PR:
 Antes da revisão, o poder de demissão era considerado o principal dos poderes presidenciais, já que
os poderes de nomeação e exoneração do Primeiro-Ministro permitiram, na prática, ao primeiro
Presidente, Ramalho Eanes, uma intervenção decisiva no domínio do poder executivo, na
reivindicação de uma prerrogativa presidencial de decisão sobre a subsistência dos governos e,
sobretudo, na formação dos governos de iniciativa presidencial.
 Os dois grandes partidos entraram na revisão constitucional de 1982 com o objetivo de reduzir os
poderes do PR, orientando-se especialmente para o poder de demissão do Governo. Se até aí ele era
visto como um poder livre do Presidente da República, com a revisão foi introduzida uma limitação
séria: o PR só podia, agora, demitir o Governo quando tal se tornasse necessário para assegurar o
regular funcionamento das instituições democráticas (195º/2).
 Agora, o Governo apenas responde politicamente perante a Assembleia da República (só a AR pode
demitir o Governo por discordância política), passando a responsabilidade do Governo perante o PR
a ser normalmente designada como responsabilidade institucional (190º e 191º/1).
Poder presidencial de dissolução da Assembleia da República:
 O poder de dissolução (133º/e), que antes da revisão não era tão valorizado como hoje, foi
substancialmente ampliado em 1982, vindo-se a revelar ter uma importância decisiva no equilíbrio do
sistema político, já que é o poder mais importante do PR no nosso sistema de governo.
 Até à revisão constitucional, o PR só podia dissolver a AR se para tanto tivesse parecer favorável do
Conselho da Revolução. Com a revisão, esse passou a ser um poder da única e exclusiva
responsabilidade do PR, dado que o parecer do Conselho de Estado é meramente consultivo.
 Desapareceram outros constrangimentos ao poder de dissolução: até então, o PR não podia dissolver
como efeito da rejeição parlamentar do programa do Governo (a não ser no caso de ter havido três
rejeições consecutivas) e era obrigado a dissolver a AR quando esta, por ter recusado a confiança ou
por ter votado a censura, tivesse determinado a terceira substituição do Governo.

4
Matéria de 1º semestre – revisão constitucional de 1982 na matriz portuguesa de semipresidencialismo

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Nomeação das chefias militares:


 Em 1982 foi também demasiado valorizada uma pretensa diminuição dos poderes presidenciais no
domínio da nomeação das altas chefias militares. Com a revisão, o poder de nomeação e de
exoneração do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, do Vice-Chefe e dos Chefes de
Estado-Maior dos três ramos passou a ser exercido sob proposta do Governo (133º/p). Tal foi
entendido como diminuição dos poderes presidenciais porque, até então, o ato de nomeação e de
exoneração era exclusivamente do Presidente da República.
 É certo que o poder presidencial de nomeação das altas chefias militares passou a ser um poder
partilhado. Porém, até 1982 ele era atribuído por lei ordinária, podendo ser alterado ou até suprimido
a qualquer altura. Já após a revisão, ele foi consagrado constitucionalmente, pelo que adquiriu uma
rigidez e dignidade de que até aí não usufruía.
Poder de veto:
 Foi suprimida a possibilidade de exercício do chamado “veto de bolso”, a que recorria o Presidente
Eanes, e foi ampliado o leque de matérias que requerem uma reaprovação parlamentar qualificada
(2/3 dos Deputados) para superar o veto presidencial.
Responsabilidade do Governo perante a Assembleia da República:
 Desapareceu a necessidade de aprovação de uma segunda moção de censura para provocar a queda
do Governo. Com a revisão de 1982, para esse efeito basta a aprovação parlamentar de uma moção
de censura ou a não aprovação de uma moção de confiança (195º/1/e,f).
Balanço global no plano do sistema de governo:
 Ao contrário do que é uma perceção muito difundida, sobretudo nos meios político e jornalístico, o
estatuto político do PR saiu globalmente reforçado da revisão constitucional de 1982, atendendo à
significativa ampliação do poder de dissolução da AR e à relevância máxima que este poder assume
na intervenção do Presidente da República no nosso sistema de governo.
 Saiu também clarificada e racionalizada a matriz portuguesa de semipresidencialismo. Estabeleceu-se
definitivamente a natureza da intervenção do PR como poder moderador, arbitral, suprapartidário, e
afastou-se qualquer ideia de partilha do poder executivo e governativo entre Governo e Presidente.
Na matriz portuguesa de semipresidencialismo, o Governo governa e o PR modera, arbitra e assegura,
no plano político, o regular funcionamento das instituições. Essa identidade ficou estabelecida com a
restrição do poder de demissão (vocacionado para a interferência presidencial na função executiva) e
a ampliação do poder de dissolução (vocacionado para a moderação, a garantia do regular
funcionamento e o equilíbrio dos poderes).

iii) Eliminação de referências ideológicas provindas do período revolucionário


Houve uma supressão das referências ideológicas (principal alvo da querela constitucional)
mais carregadas e controversas que provinham do período revolucionário que se seguiu a abril de
1974. De alguma forma, a leitura dos primeiros artigos do texto originário de 1976 comparado com
o texto atual provocará uma primeira impressão de não se estar perante a mesma Constituição.
Estas alterações textuais, completadas na revisão constitucional de 1989, tiveram grande
importância no plano da capacidade de integração social e política que uma Constituição de Estado
de Direito pluralista e democrático deve proporcionar. No entanto, mesmo enquanto estiveram em
vigor, essas referências sempre se mantiveram num plano meramente simbólico e retórico, não
assumindo verdadeiro significado jurídico, pelo que a respetiva supressão também só nesse plano
produziu efeitos. Ou seja, a eliminação das referências de cariz ideológico não alterou as formas
políticas que verdadeiramente conferem identidade a uma Constituição, e por isso, após 1982, a
Constituição continuou a ser a mesma, enquanto Constituição de Estado de Direito social e

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democrático (embora a expressão “Estado de Direito” só tivesse agora sido introduzida no texto
constitucional – artigos 2º e 9º), de Estado unitário com regiões autónomas e de sistema de governo
semipresidencial.
 Desapareceram referências ao socialismo (embora se mantivesse, no artigo 2º, o objetivo de
“assegurar a transição para o socialismo”), ao “exercício democrático do poder pelas classes
trabalhadoras” (embora se mantivesse, no artigo 1º, o empenho da República portuguesa na
“sua transformação numa sociedade sem classes”), ao “processo revolucionário”, à tarefa de
“socializar os meios de produção e a riqueza”, ao “desenvolvimento das relações de produção
socialistas”.
 Foi também suprimida, mas aí já com significado prático no domínio da organização
económica, a anterior previsão de a lei poder autorizar a expropriação, sem indemnização,
de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou acionistas.

iv) Fiscalização da constitucionalidade


Com o desaparecimento do Conselho da Revolução, que até então se encarregava da
fiscalização da constitucionalidade (auxiliado pela Comissão Constitucional, composta
exclusivamente por constitucionalistas), optou-se, pela primeira vez na nossa história constitucional,
pela da criação de um Tribunal responsável pela administração da justiça constitucional, o Tribunal
Constitucional. O sistema de fiscalização que vinha já, no essencial, do texto originário de 1976, a que
aqui foi dada continuidade, ficou praticamente estabilizado nos termos que lhe foram conferidos por
esta revisão constitucional. É um sistema muito diverso quer do modelo europeu de justiça
constitucional, quer do americano.

C) Revisão de 1989
A revisão de 1989 foi historicamente justificada pela necessidade de ajustamento da parte
económica da Constituição ao novo contexto marcado pela recente integração europeia. O sistema
constitucional português ficou finalmente estabilizado, com as alterações nos domínios da
organização do poder político (1982) e da organização económica (1989).
Depois das profundíssimas revisões de 1982 e 1989, ao nível da organização do poder político
e da organização económica, mas também da eliminação das referências ideológicas, a CRP
aparentava ser uma Constituição diferente, ou pelo menos, a mesma Constituição desfigurada.
Todavia, analisando a questão em termos históricos, numa perspetiva mais alargada, a conclusão é
outra. No campo das formas políticas, o tipo histórico de Estado é hoje, como em 1976, Estado de
Direito social e democrático; a forma de governo é republicana; o regime político é de democracia
representativa de Estado de Direito; o sistema de governo é o semipresidencialismo; o sistema
eleitoral é proporcional e existe pluripartidarismo. Também a parte dos direitos fundamentais não
sofreu alterações radicais. A supressão das referências ideológicas (que não têm valor normativo)
pode dar a ideia de que a Constituição mudou radicalmente, mas se as duas matérias fundamentais
de uma Constituição material (sistema político e direitos fundamentais) estão na mesma, a
Constituição é a mesma.
Esta revisão integra-se genericamente no ambiente da querela constitucional, pelo que o
processo de revisão foi aproveitado para encerrar o ciclo de filtragem ideológica que se havia iniciado
na primeira revisão constitucional e para inaugurar um novo ciclo de preocupações recorrentes com
a reforma do sistema político que seria continuado e aprofundado na revisão ordinária seguinte.
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i) Organização económica
 Mais importante – eliminação da garantia da irreversibilidade das nacionalizações efetuadas
após o 25 de Abril de 1974, permitindo-se agora a reprivatização nos termos de lei-quadro
aprovada por maioria absoluta, observados alguns critérios enunciados em disposição
constitucional transitória (293º). Até então, esse era considerado um princípio vital que
asseguraria as conquistas irreversíveis conseguidas com as nacionalizações.
 Fim do monopólio estatal do setor da televisão e sua abertura à propriedade privada (38º).
 O princípio da “apropriação coletiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos
recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios” deixou de ser limite
material de revisão constitucional.
 Onde anteriormente se falava, enquanto princípio fundamental da organização económica,
na “apropriação coletiva dos principais meios de produção e solos”, fala-se depois da revisão
em “apropriação coletiva de meios de produção e solos, de acordo com o interesse público”.
 Nas tarefas fundamentais do Estado foi suprimida a “socialização dos principais meios de
produção”.
 A anterior caracterização do SNS como “universal, geral e gratuito” foi agora substituída pela
de “universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos,
tendencialmente gratuito” (64º).

ii) Eliminação do que restava das referências ideológicas do período revolucionário


Após a revisão constitucional de 1989, o texto constitucional ficou definitivamente depurado
das referências ideológicas oriundas do período revolucionário, estranhas à tradição europeia
ocidental das Constituições de Estado de Direito.
 Foram excluídas expressões como “transformação numa sociedade sem classes”, “transição
para o socialismo”, “abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem”, “expropriação
dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas” e “reforma agrária”.
 Neutralização ideológica e supressão de alguns limites materiais de revisão constitucional
anteriormente previstos: apropriação coletiva dos principais meios de produção; planificação
da economia; organizações populares de base.
 Só o preâmbulo da Constituição, que não tem relevância jurídica normativa, permaneceu
intocado, conservando a memória simbólica do contexto revolucionário em que foi
originariamente aprovada a Constituição de 1976.

iii) Reforma do sistema político


A revisão de 1989 iniciou o processo da chamada reforma do sistema político, sempre
orientada pelo objetivo proclamado de aproximação entre eleitores e eleitos e de incremento da
participação de cidadania, que acabou por se converter num dos principais lemas inspiradores das
revisões constitucionais seguintes (incluindo as que vieram a falhar) e da querela constitucional que
as precede. No caso da revisão constitucional de 1989, este leitmotiv traduziu-se, sobretudo, em
duas alterações significativas: referendo nacional e círculo eleitoral de compensação.

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 Referendo nacional com caráter vinculativo (115º) – a revisão de 1982 já tinha instituído
referendos locais (240º). A revisão constitucional de 1989 consagrou a possibilidade de
realização de referendos nacionais, a convocar pelo PR. Fê-lo, todavia, rodeando o instituto
de um conjunto de garantias que visam reduzir o risco de degradação plebiscitária da
democracia representativa, como sejam a necessária iniciativa do Governo ou da AR, a
exclusão dos referendos constitucionais e das matérias, em princípio, mais importantes e a
necessidade de o referendo ter por objeto questões de relevante interesse nacional que
devam ser decididas por ato legislativo ou por convenção internacional.
 Círculo eleitoral nacional (149º/2) – na delimitação dos círculos eleitorais da Assembleia da
República, instituiu-se a possibilidade de criação legal de um círculo de âmbito nacional,
denotando, aparentemente, uma preocupação de garantia de um resultado proporcional na
distribuição final dos mandatos, mas a prejuízo da estabilidade governativa. Esta alteração
poderia indiciar a perspetiva de migração futura para um sistema misto de base proporcional,
como se confirmou na revisão ordinária seguinte.
 Ainda que feitas com a melhor das intenções, estas duas alterações, supostamente
transformadoras do sistema político, acabaram por não ter concretização prática. Quanto ao
referendo nacional, criado na lógica de aproximação entre eleitos e eleitores, verificou-se
uma participação eleitoral muito reduzida, tendo sido realizados apenas três referendos até
aos dias de hoje. Já o círculo nacional de compensação até hoje não foi instituído.

D) Revisão de 1997
Enquanto as duas revisões ordinárias anteriores (1982 e 1989) tiveram um propósito definido
e previamente assumido pelas principais forças políticas, a revisão de 1997 fez-se como se a sua
realização fosse uma obrigação ritualizada ou um hábito, mas sem que houvesse um objetivo pré-
estabelecido, apelando-se simplesmente à vaga intenção de reforma do sistema político como ideia
dominante. Os dois grandes partidos fizeram a revisão com o espírito de revolucionar, de fazer
reformas profundíssimas, mas que não se concretizaram. O processo de revisão acabou por se
traduzir na alteração de grande parte dos artigos da Constituição, bem como na respetiva
renumeração, sem sentido útil, sem que seja possível sintetizar adequadamente quais os grandes
resultados produzidos ou, simplesmente, sem que seja fácil responder à pergunta: para que serviu a
revisão de 1997?
A alteração na numeração da Constituição, que deve ser um documento estável, de
referência, duradouro, acabou por resultar na instabilidade da Constituição, prejudicial para a
comunidade jurídica, dando-se a impressão que é uma lei como qualquer outra.

i) Direitos fundamentais
De entre um amplo conjunto de inovações em grande medida supérfluas, meramente
retóricas ou acolhendo simplesmente as expressões e as tendências mais em voga do discurso
humanitário e político da época, há algumas poucas alterações juridicamente relevantes:
 Direito ao desenvolvimento da personalidade (26º) – consagrado por inspiração da
Constituição alemã, é a nota dogmaticamente mais importante nos direitos fundamentais. É
um direito vital para o princípio da liberdade. Entendido enquanto proteção constitucional da
liberdade geral de ação, atua a título subsidiário sempre que não é invocável um direito
fundamental específico, instituindo uma proteção jusfundamental sem lacunas que obriga
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constitucionalmente o Estado à justificação e à observância dos princípios constitucionais


sempre que intervenha restritivamente na liberdade e na autonomia individual. Os poderes
públicos não podem limitar a liberdade sem uma justificação constitucionalmente admissível
e fiscalizável, como já acontecia com os vários direitos fundamentais. Com este direito, passa-
se a ter um direito geral à liberdade; tudo o que não está proibido é permitido; e qualquer
limitação tem de ser justificada. Este direito tem grande significado numa sociedade aberta e
democrática, em que a intervenção na liberdade tem de ser justificada. E só quando é
justificada, é que é constitucionalmente admissível.
 Em sentido oposto, em matéria de detenção para efeitos de identificação civil e de
internamento compulsivo, há uma abertura nas situações em que se considera
constitucionalmente admissível a privação total ou parcial da liberdade.
 Respondendo à crescente perceção dos riscos do terrorismo, passa a admitir-se,
condicionadamente, a extradição de cidadãos portugueses nos casos de terrorismo e de
criminalidade internacional organizada, mas só em condições de reciprocidade estabelecida
em convenção internacional.
 Referência à inadmissibilidade de organizações racistas (46º/4). Até então a Constituição
proibia as associações armadas, de tipo militar ou que perfilhassem a ideologia fascista, mas
não fazia referência a associações racistas. O nº4 torna claro que, para a Constituição,
defender o fascismo ou o racismo não é o mesmo que defender qualquer outra ideia, não é
equivalente a defender outras formas de discriminação ou outra ideologia totalitária.

ii) Reforma do sistema político


Na referida lógica de reforma do sistema político, sob o lema da aproximação entre eleitores
e eleitos e do reforço da participação cidadã, foram aprovadas várias alterações a que se atribuía
uma importância tão vital que, por si só, justificariam a revisão constitucional de 1997, mas que se
vieram a revelar inócuas, irrelevantes ou até nefastas:
 Atribuição de direito de voto nas eleições presidenciais aos cidadãos residentes no
estrangeiro que tivessem uma efetiva ligação à comunidade nacional.
 Círculos eleitorais uninominais – admissibilidade constitucional de instituição de círculos
eleitorais uninominais nas eleições para a Assembleia da República. Esta reforma,
considerada capital em 1997, ia no sentido de adoção de um sistema eleitoral de tipo alemão.
Todavia, para que se alcançasse o objetivo de proximidade entre eleitor e eleito, os círculos
uninominais teriam de ter uma dimensão muito reduzida, o que só poderia acontecer ou com
uma diminuição enorme da proporcionalidade, ou com um grande aumento do número de
Deputados. Ademais, a implementação de círculos uninominais traz preocupações associadas
ao aumento dos riscos no âmbito da transparência das finanças eleitorais dos candidatos
singulares. De facto, olhando à experiência alemã, a esmagadora maioria dos eleitores vota
no candidato proposto pelo seu partido, pelo que os prejuízos não compensam os ganhos.
 Redução do número de Deputados para um intervalo entre 180 e 230.
 Exigência de que, para o resultado de um referendo ter eficácia vinculativa, nele tivesse
participado a maioria dos eleitores.
 Atribuição à AR da competência para aprovar todos os tratados internacionais.
 Desconstitucionalização de aspetos importantes do sistema de governo das autarquias locais
quanto à forma de eleição do executivo e do seu Presidente.

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Alterações que produziram algum efeito positivo ou de importância prática:


 Referência à necessidade de instituição progressiva de igualdade entre homens e mulheres,
designadamente no domínio da participação política.
 Expressa enunciação da admissibilidade de candidaturas de grupos de cidadãos eleitores nas
eleições dos órgãos das autarquias locais.
 Desconstitucionalização da obrigatoriedade de prestação de serviço militar.

iii) Regionalização administrativa


Um dos aspetos mais enigmáticos foi o da regionalização administrativa. O seu regime está
previsto nos artigos 255º e 256º e a sua interpretação é um verdadeiro desafio. A Constituição prevê
regiões administrativas como uma das categorias de autarquia local (com autonomia meramente
administrativa, e não política). Mas o processo da sua eventual criação é de enorme complexidade e,
dir-se-ia, mantendo-se o procedimento instituído nesta revisão, de concretização quase impossível.
Passou a distinguir-se entre a criação das regiões e a sua instituição em concreto:
 Criação das regiões – feita por lei, que procede simultaneamente à sua delimitação territorial,
bem como à definição do regime aplicável (poderes, órgãos, funcionamento e competências).
 Instituição em concreto de cada região – feita por lei, mas condicionada à realização de um
referendo nacional em que os eleitores são diretamente chamados a responder a duas
questões: se concordam com a instituição em concreto das regiões administrativas tal como
foram criadas pela lei de criação atrás referida; se concordam com a instituição em concreto
da região correspondente à sua área. A resposta à segunda pergunta apenas será eficaz se a
resposta à primeira, a de alcance nacional, tiver obtido um resultado favorável.

iv) Jurisdição constitucional


A alteração mais importante neste domínio respeita ao mandato dos juízes do Tribunal
Constitucional e à sua duração. De um mandato renovável de seis anos passou-se para um mandato
único de nove anos. Esta alteração garante uma maior estabilidade no exercício da justiça
constitucional e sobretudo uma maior independência no exercício do mandato dos juízes. Sendo o
mandato renovável, existia o risco objetivo de os juízes condicionarem a sua atividade pelo objetivo
de serem reeleitos, afetando a independência dos juízes face aos grandes partidos, que dispõem da
capacidade fática de influenciar a respetiva eleição na AR. Num mandato único, esse
condicionamento desaparece ou, no mínimo, atenua-se significativamente.

E) Revisão de 2004
É na ampliação da autonomia regional onde se concentram a maior parte das alterações mais
relevantes introduzidas por esta revisão constitucional.

i) Integração europeia

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Baltazar Oliveira

 Proclamação da participação de Portugal no aprofundamento da União Europeia (7º/6), numa


altura em que se discutia a aprovação de uma Constituição europeia.
 Reconhecimento do primado dos tratados que regem a União Europeia e das normas
emanadas das suas instituições (8º/4). Esse reconhecimento constitucional, expresso da
supremacia do Direito europeu relativamente ao Direito interno, incluindo a própria
Constituição (é este, de há muito, o entendimento estabilizado da jurisprudência e doutrina
comunitárias) deve ser entendido de forma combinada com duas notas:
o O reconhecimento do primado do Direito europeu na ordem jurídica portuguesa deriva
de uma decisão da própria Constituição portuguesa, que pode ser revertida.
o A supremacia fica expressamente condicionada pelo respeito dos princípios do Estado de
Direito democrático por parte das normas europeias.

ii) Direitos fundamentais


Proibição da discriminação em função da orientação sexual (13º/2). Mesmo que no plano
estritamente jurídico já fosse possível deduzir essa proibição do princípio constitucional da igual
dignidade, a sua consagração expressa tem, não apenas um valor simbólico significativo, como, no
plano jurídico, introduzir uma presunção de inconstitucionalidade relativamente a discriminações
feitas com base nesse fator. Desde 2004, qualquer diferenciação de tratamento em função da
orientação sexual passa a ser um fator suspeito (como já eram fatores suspeitos a raça, o sexo, a
língua, o território de origem, entre outros), havendo uma maior exigência na averiguação e no
controlo dessa situação.

F) Revisões ordinárias: autonomia regional


Faz parte da natureza das R.A e da sua autonomia político-administrativa que elas disponham
de poder político, de órgãos de governo próprio (Governo e Assembleia Legislativa) e de atos
legislativos (decretos legislativos regionais) aprovados pelas suas Assembleias Legislativas.
A autonomia regional é um aspeto recorrente em todas as quatro revisões constitucionais
ordinárias, tenho havido um reforço progressivo da mesma. A revisão de 2004 é a que mais decisiva
de todas neste domínio, porque é a que mais longe foi no reforço da autonomia das R.A. e porque
deu estabilidade ao seu regime constitucional, que permaneceu inalterado até hoje.

Versão original da Constituição de 1976


 As ALR só podiam legislar sobre matérias de “interesse específico” da Região.
 Os decretos legislativos regionais não podiam dispor contra as leis gerais da república.
Havendo uma contradição entre ambos, prevalecia a lei geral da república.
 As Regiões não podiam legislar sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania.
As definições de “interesse específico” e de “lei geral da república” suscitavam grandes
problemas jurídicos e a constante intervenção do Tribunal Constitucional. Por isso, nas revisões
constitucionais ordinárias, houve uma permanente discussão sobre o tema da autonomia regional.

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Baltazar Oliveira

Revisão de 1982
Restringiu-se o entendimento do conceito de “leis gerais da República”, passando a sê-lo as
leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolvesse a sua aplicação, sem reservas, a todo o território
nacional. Esta tentativa de definir “lei geral da República” não foi bem-sucedida (como se pode
concluir que uma lei se destina ou não a ser aplicada a todo o território nacional?), pelo que o TC
continuou a declarar ilegais decretos legislativos regionais que violavam leis gerais da república.

Revisão de 1989
No mesmo sentido ampliativo, prevê-se a possibilidade de a AR autorizar que decretos
legislativos regionais pudessem contrariar leis gerais da República.

Revisão de 1997
Ampliação das competências legislativas das R.A:
 Os decretos legislativos regionais passam a poder dispor contra as leis gerais da República
desde que não contrariassem os seus princípios fundamentais.
 Para que uma lei da República seja considerada uma “lei geral da República” passa a ser
necessário que a sua razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e que a
própria lei assim o decrete.

Além das alterações ampliativas da competência legislativa regional:


 São suprimidos do texto constitucional alguns limites expressos à autonomia regional e, em
contrapartida, enumeram-se exemplificativamente algumas matérias como apresentando
um interesse específico para as regiões, o que dá incontestavelmente às Assembleias
regionais a possibilidade de sobre elas poderem legislar.
 O Ministro da República (atual Representante da República) vê o seu estatuto enfraquecido,
perdendo os poderes originários de coordenação dos serviços centrais do Estado na região,
bem como a competência ministerial e o assento no Conselho de Ministros. O seu mandato
ficou temporalmente associado ao mandato do Presidente da República.
 Reforça-se a participação institucional das regiões no processo de construção europeia.
 Prevê-se a admissibilidade de referendos regionais, convocados pelo Presidente da República.
 A dissolução dos órgãos de governo próprio das regiões por parte do Presidente da República
passa a só poder fazer-se no caso em que haja atos praticados contrários à Constituição —
único fundamento até aí admissível para a dissolução— e que sejam reputados de “graves”.

Revisão de 2004
Eliminaram-se os dois limites da competência legislativa regional que geravam mais
controvérsia jurídica:
 Existência de um “interesse específico” enquanto pressuposto da competência legislativa
regional.

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Baltazar Oliveira

 Leis gerais da República (os seus princípios fundamentais) enquanto parâmetro material que
a legislação regional devia observar.

As regiões passam a poder legislar, dentro de certos limites, no âmbito regional, sobre todas
as matérias, podendo dispor contra as leis da República. Limites:
 Matérias reservadas aos órgãos de soberania (164º, 165º e 198º/2) – sendo que a AR pode
autorizar as Assembleias regionais a legislarem sobre algumas das matérias que integram a
sua reserva relativa de competência legislativa.
 Matérias que não venham enunciadas nos respetivos estatutos político-administrativos –
sendo que os estatutos político-administrativos discriminam um extenso conjunto de
matérias, pelo que, na prática, as R.A. podem legislar sobre tudo menos sobre as matérias
que estejam reservadas aos órgãos de soberania.

Ainda no âmbito da competência legislativa regional:


 As leis nacionais só se aplicam nas regiões se e enquanto não houver legislação regional sobre
a matéria.
 As Regiões Autónomas podem desenvolver para o âmbito regional os princípios gerais
contidos nas leis de bases.

No plano do respetivo sistema de governo:


 A figura do “Ministro da República” é substituída pela do “Representante da República”, a sua
nomeação e exoneração passa a ser competência exclusiva do Presidente da República (até
então fazia-se sob proposta do Governo) e perde as competências ministeriais que ainda
restavam da revisão de 1997.
 Desaparece a figura da dissolução-sanção dos órgãos de governo próprio das regiões (pela
prática de atos graves contrários à Constituição) e é, pela primeira vez, atribuído ao
Presidente da República o poder de dissolução das Assembleias das regiões autónomas nos
mesmos termos, adaptados, do poder presidencial de dissolução da Assembleia da República.

G) Revisões extraordinárias
As revisões extraordinárias são, por definição, justificadas por necessidades pontuais de
resolução de dificuldades jurídico-constitucionais que não permitam ou não aconselhem aguardar o
decurso normal do tempo em que a Assembleia da República adquire poderes ordinários de revisão.

i) Revisão de 1992
A necessidade da revisão extraordinária nasceu da aprovação do Tratado da União Europeia
(Tratado de Maastricht), assinado em 1992, que levantava algumas questões de compatibilidade com
a Constituição portuguesa (tal como aconteceu com outros países).
 Possibilidade de Portugal convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à
construção da União Europeia (7º/6).

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Baltazar Oliveira

 O Banco de Portugal perdeu o exclusivo de emissão da moeda, permitindo a adesão à moeda


única europeia (105º).
 Possibilidade de atribuição de capacidade eleitoral a cidadãos de países membros da União
Europeia na eleição dos Deputados por Portugal ao Parlamento Europeu (15º).

ii) Revisão de 2001


A motivação da revisão foi a necessidade de admitir a jurisdição do Tribunal Penal
Internacional, cujo tratado constitutivo tinha sido assinado em 1998 e que suscitava problemas de
compatibilidade constitucional no que se referia à imunidade dos titulares de cargos políticos e à
admissibilidade de aplicação da pena de prisão perpétua.
 Permite-se que Portugal aceite a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nas condições
estabelecidas no Estatuto de Roma (7º/7).
 Desconstitucionalização das garantias referentes à expulsão e à extradição no âmbito da
cooperação judiciária penal no quadro da União Europeia (33º/5).
 Restrições à garantia de inviolabilidade de domicílio durante a noite (34º/3), desde que em
casos de terrorismo e de criminalidade especialmente violenta ou organizada.
 Admissão da associação sindical de forças de segurança, mas sem reconhecimento do direito
à greve (270º).

iii) Revisão de 2005


Perante a hipótese da conveniência política em realizar um referendo nacional sobre o
aprofundamento da integração europeia que se viesse a traduzir num novo tratado, mas havendo
dúvidas sobre a admissibilidade constitucional da sua realização, fez-se a revisão de 2005 destinada
a permiti-lo, através da introdução do art. 295º.

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PARTE II: FUNÇÃO LEGISLATIVA

1. Função legislativa5

No conjunto das funções de um Estado de Direito podem distinguir-se:


 Função política: definição de objetivos importantes para a sociedade.
o Função governativa – condução política do país (dia-a-dia do Governo).
o Função legislativa – prossecução de objetivos de natureza política global, através da
forma de lei.
 Função administrativa
 Função jurisdicional

A) Lei e órgãos legislativos


Sentidos de Lei:
 Lei em sentido material: ato legislativo com características normativas – generalidade,
abstração e sentido inovatório.
 Lei em sentido formal: ato que reveste determinada forma e que é aprovado por órgão com
competência legislativa, isto é, ato legislativo.
o 112º/1 – na Constituição portuguesa são atos legislativos (logo, lei em sentido formal): lei,
decreto-lei e decreto-legislativo regional.
o 112º/5 – princípio da tipicidade dos atos legislativos – “Nenhuma lei pode criar outras
categorias de atos legislativos”; só existem os atos legislativos previstos no 112º/1.
 Lei em sentido orgânico-formal: ato legislativo da Assembleia da República, isto é, Lei.

São órgãos com competência legislativa (competência para aprovar atos legislativos):
i) Assembleia da República – leis
ii) Governo – decretos-leis
iii) Assembleias Legislativas regionais – decretos legislativos

i) Competência legislativa da Assembleia da República


 161º/c – competência legislativa genérica – “Compete à Assembleia da República fazer leis
sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo”.
 161º – competência exclusiva (política ou legislativa) da AR

5
Bibliografia para toda a matéria da função legislativa: aulas do Prof. Reis Novais

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Baltazar Oliveira

 164º – reserva absoluta de competência legislativa – só a AR pode legislar sobre estas


matérias.
 165º – reserva relativa de competência legislativa – só a AR pode legislar sobre estas matérias,
salvo autorização ao Governo ou às Assembleias Legislativas regionais.
 Competência legislativa concorrencial – pode ser exercida tanto pela AR como pelo Governo,
ou seja, não reservada a nenhum órgão legislativo.

ii) Competência legislativa do Governo


 198º/1/a – competência legislativa genérica – “Compete ao Governo, no exercício de funções
legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República.”
 198º/1/b – competência legislativa delegada – através de leis de autorização legislativa (165º)
 198º/2 – competência exclusiva – matéria respeitante à organização e funcionamento do
Governo, isto é, composição dos ministérios e secretarias de estado, competências dos
Ministros, reuniões do Conselho de Ministros, etc.
 Competência legislativa concorrencial – pode ser exercida tanto pela AR como pelo Governo,
ou seja, não reservada a nenhum órgão legislativo.

iii) Assembleias Legislativas regionais


 227º/1/a – compete às R.A “legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respetivo
estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania.”
 227º/1/b – compete às R.A. “legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da
República, mediante autorização desta”, com exceções.
 232º/1 – matérias de exclusiva competência das ALR, entre as quais, legislar. Logo, o Governo
regional não tem competência legislativa (só tem competência executiva e regulamentar).
 112º/4 – As ALR não têm competência legislativa genérica, já que os decretos legislativos
regionais:
o Têm âmbito regional;
o Versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da R.A;
o Não podem versar sobre matérias da reserva dos órgãos de soberania.

B) Evolução histórica das competências legislativas dos executivos


Evolução histórica das competências legislativas dos executivos na passagem do estado de
Direito liberal para o Estado de Direito social:
 Estado de Direito liberal – se no Estado absoluto a lei era a vontade do monarca, no EDL a lei
é a expressão da vontade geral, sendo feita pelos representantes do Povo, reunidos em
assembleia. O Estado é concebido como um Estado mínimo ou abstencionista, que se limita
a garantir a segurança, a paz social, interna e externamente, deixando tudo o resto às
autonomias individuais.

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Baltazar Oliveira

 Estado de Direito social – não se perdeu a noção de lei como expressão da vontade geral, mas
a separação de poderes sofre alterações significativas. Agora, o Estado social tem grande
intervenção na vida económica e social, sendo impossível a um órgão como uma assembleia
parlamentar responder às necessidades legislativas do dia-a-dia. Há uma tendência
generalizada do Estado social de atribuir competências legislativas ao Governo, que deixa de
ser um órgão meramente executivo.

1º semestre: Na passagem do Estado de Direito liberal para o Estado social e democrático de Direito, a separação
rígida entre funções legislativa, executiva e judicial passa a ser entendida como um processo de distribuição e integração
racionalizadas das várias funções e órgãos do Estado, de forma a limitar as possibilidades de exercício arbitrário do poder.
Constata-se uma progressiva diluição das fronteiras entre legislativo e executivo:
 Há um aumento considerável da atividade legislativa por parte dos Governos, institucionalizando-se uma
competência legislativa própria ou delegada pelo Parlamento.
 Os Parlamentos invadem a área tradicionalmente reservada ao Governo, na medida em que o conteúdo das leis
aprovadas perde o seu caráter geral e abstrato para atender a necessidades quotidianas e pontuais e de
categorias particulares de cidadãos. Surge a figura das leis-medida, destinadas a responder a necessidades
governativas concretas. Excecionalmente são até aprovadas leis individuais que configuram a prática, pelo órgão
legislativo, de atos administrativos, ainda que sob a forma de lei.

C) Supremacia legislativa da Assembleia da República


O Governo português tem uma competência legislativa muito significativa, verificando-se que
a maior parte dos atos legislativos são elaborados pelo executivo. Mas tal não quer dizer que a AR
tenha perdido a hegemonia da função legislativa. A AR é o órgão legislativo por excelência.

Manifestações da supremacia legislativa da Assembleia da República:


1) Importância e extensão da reserva de competência legislativa (161º, 164º, 165º) – as matérias
mais importantes são remetidas para a AR.
o Os órgãos legislativos não estão todos no mesmo plano:
 Assembleia da República – competência legislativa genérica, com o limite muito
específico do 198º/2; tem, ao contrário do Governo, uma reserva de competência
legislativa extensa e importante.
 Governo – competência legislativa genérica, com limites relativos às matérias mais
importantes; reserva de competência legislativa limitada à matéria muito específica
do 198º/2 (organização e funcionamento do Governo).
 Assembleias Legislativas regionais – competência legislativa de âmbito regional, que
incide sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da Região
(aprovado pela AR) e que não pode versar sobre as matérias de reserva de
competência dos órgãos de soberania.
o Nas várias revisões constitucionais, desde 1976, a tendência foi para aumentar o número
de matérias sobre as quais existe uma reserva da AR.
2) Regime de veto (136º):
o AR – veto suspensivo; AR pode confirmar a o voto, prevalecendo sobre o PR.
o Governo – veto absoluto; Governo não pode confirmar o diploma, prevalecendo o PR.
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3) Autorizações legislativas ao Governo (161º/d, 165º) e às ALR (161º/e, 227º/1/b).


o Mais do que autorizar a legislar, os nº2-5 do 165º limitam a forma como o Governo e as
ALR utilizam a autorização legislativa. A AR subordina esses órgãos aos termos que a
própria estabeleceu. A subordinação entre AR e Governo não é uma subordinação
hierárquica, mas uma subordinação em termos materiais.
o 112º/2 – subordinação dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa às
leis de autorização legislativa.
4) Apreciação parlamentar dos decretos-leis e dos decretos legislativos regionais autorizados
(162º/c, 169º).
o Poder no âmbito da competência de fiscalização da AR (162º).
o AR pode alterar ou fazer cessar a vigência dos atos legislativos em causa. Qual a utilidade
do instituto, se a AR já pode revogar decretos-leis? Nessa situação, o Governo podia, de
seguida, revogar a lei revogatória da AR. Com este instituto, o Governo, na mesma sessão
legislativa, não pode repor o diploma em causa. Ademais, torna todo o processo mais
célere6.
5) A aprovação das matérias sobre que as assembleias regionais podem legislar (161º/b, 226º).
o As ALR têm competência legislativa apenas sobre as matérias enunciadas no estatuto, que
é aprovado pela AR (é o facto de ser o Parlamento nacional a aprovar o estatuto da Região
que o distingue da Constituição de um estado federado). Assim, é a AR que define quais
as matérias sobre as quais as R.A. podem legislar. Na prática, os estatutos englobam todas
as matérias possíveis, pelo que este limite não tem efetividade; mas existe.

112º/2 – relação entre leis e decretos-leis


 112º/2 – Não obstante a supremacia legislativa da AR, “as leis e os decretos-leis têm igual
valor”, podendo revogar-se mutuamente, desde que não sejam de reserva de competência
de um dos órgãos. Assim prevalece o ato posterior, e não a Lei da AR.
 Exceções: sem prejuízo de certas relações de subordinação:
o Decretos-leis no uso de autorização legislativa estão subordinados às respetivas leis de
autorização legislativa.
o Decretos-leis de desenvolvimento estão subordinados às respetivas leis de bases.

D) Competência legislativa das Regiões Autónomas


A competência legislativa das Regiões sempre foi uma matéria muito controversa, na doutrina
e na jurisprudência portuguesas. Havia um conjunto amplo de limites negativos (“As R.A. não podem
contrariar as leis gerais da república”) e positivos (“as R.A. só podem legislar em matéria de interesse
específico da Região”) à competência legislativa das R.A. Ao longo de todas as revisões ordinárias,
houve um progressivo aprofundamento da autonomia regional7. Em princípio, a revisão de 2004 foi
definitiva, já que hoje o regime das R.A. está muito menos complicado e suscita menos problemas.

6
Ver apreciação parlamentar de decretos-leis – Parte II/Cap. 3/Ponto C
7
Ver evolução das competências legislativas regionais – Parte I/Cap. 3/Ponto F.

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Poderes legislativos das R.A (especificamente, das ALR):


 Repartição de competências normativas entre o Governo e a Assembleia legislativa regional:
o 227º/1 – enumera os poderes das Regiões Autónomas, em princípio, a serem exercidos
pelas Assembleias Legislativas ou pelos Governos regionais.
o 232º/1 – define a competência exclusiva da Assembleia Legislativa Regional no domínio
da função legislativa, incluindo as alíneas a), b) e c) do 227º/1.
 227º/1/a,b,c – “As regiões autónomas são pessoas coletivas territoriais e têm os seguintes
poderes, a definir nos respetivos estatutos”:
a) Legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respetivo estatuto político-
administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania;
b) Legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante
autorização desta, com exceções;
c) Desenvolver para o âmbito regional os princípios ou as bases gerais dos regimes
jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevam.

112º/4 e 227º/1/a – atuais limites da competência legislativa regional – os decretos


legislativos regionais:
 Têm âmbito regional – dúvidas de interpretação: é um âmbito material ou um âmbito
territorial/geográfico, havendo matérias de âmbito regional e outras de âmbito nacional?
Tribunal Constitucional entende que há matérias que têm âmbito nacional, devendo ser
tratadas pelos órgãos de soberania. Reis Novais discorda: há uma dimensão material.
 Versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da R.A. – os estatutos
das duas Regiões enunciam as matérias sobre as quais as R.A. podem legislar. Como quem
aprova o estatuto da RA é a AR (161º), é esse órgão quem, em última análise, enuncia as
matérias sobre as quais as R.A. podem legislar. Aparentemente este é um limite importante.
Mas na prática, a enunciação de matérias nos estatutos político-administrativos é
extensíssima e as ALR podem legislar sobre todas as matérias menos as que versam sobre
matérias reservadas aos órgãos de soberania.
 Não podem versar sobre matérias que estejam reservadas aos órgãos de soberania – a AR
pode autorizar as ALR a legislar sobre matérias da sua reserva relativa. Mas tal nunca
acontece, sendo este o único limite real, um limite às matérias mais importantes, da
competência legislativa regional.

Relações entre os atos legislativos emanados dos órgãos de soberania e os decretos


legislativos regionais: pode a lei regional prevalecer sobre a lei da república?
 228º/2 – “Na falta de legislação regional própria sobre matéria não reservada à competência
dos órgãos de soberania, aplicam-se nas regiões autónomas as normas legais em vigor”, isto
é, legislação nacional.
 A contrario: se há legislação regional, aplica-se a legislação regional e a AR não pode legislar
sobre essa matéria, para aquela Região.

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E) Tipos de leis

Lei constitucional vs. Lei ordinária


 166º/1 – “Revestem a forma de lei constitucional os atos previstos na alínea a) do artigo
161º.” – dois planos hierárquicos diferentes.
 Há uma superioridade das normas constitucionais relativamente às normas ordinárias. A lei
ordinária não pode contrariar a lei constitucional, sob pena de inconstitucionalidade.

Leis ordinárias
 112º/3 – leis com valor reforçado. Ou seja, dentro das leis ordinárias há distinções a fazer:
o Leis ordinárias comuns
o Leis ordinárias com valor reforçado
 Relevância da distinção – 280º/2 e 281º/1/b – a desconformidade de uma lei comum com
uma lei com valor reforçado supõe um vício de ilegalidade por violação de lei com valor
reforçado, a determinar pelo Tribunal Constitucional. Há um paralelo com a
inconstitucionalidade:
o Inconstitucionalidade direta – norma ordinária contraria norma constitucional.
o Inconstitucionalidade indireta ou ilegalidade de ato legislativo – determinada lei ordinária
comum contraria determinada lei ordinária com valor reforçado. Como a própria
Constituição estabelece que as certas leis comuns têm de respeitar outras, com valor
reforçado, se as primeiras não respeitam as segundas, também não estão a respeitar
(indiretamente) a Constituição, que estabeleceu a regra de supremacia.
o Ilegalidade – ato administrativo contraria ato legislativo (princípio da legalidade).

112º/3 – “Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria
de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo
necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.”

Leis com valor reforçado – 112º/3


 Leis reforçadas pela forma e/ou pelo procedimento (valor reforçado meramente formal, e
não material):
o Leis orgânicas
o Leis aprovadas por maioria qualificada
 Leis que, por força da Constituição, são pressuposto normativo necessário de outras leis:
o Leis de autorização legislativa
o Leis de bases
 Leis que, por força da Constituição, por outras devem ser respeitadas:

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Baltazar Oliveira

o Estatutos das Regiões Autónomas (alcance geral)


o Leis-quadro (alcance específico)

Leis orgânicas – 166º/2 – características especiais:


 168º/5 – aprovação por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções (leis
comuns carecem de maioria simples – 116º/3).
 136º/3 – regime de veto; maioria de 2/3 para a confirmação do voto (leis comuns carecem
de maioria absoluta – 136º/2).
 278º/4 – fiscalização preventiva de constitucionalidade pode ser requerida por PR, PM e 1/5
dos Deputados em efetividade de funções (leis comuns apenas PR e RRs – 278º/1,2).

Leis que carecem de aprovação por maioria de 2/3, desde que superior à maioria absoluta dos
Deputados em efetividade de funções – 168º/6.

Leis que, por força da Constituição, são pressuposto normativo necessário de outras leis – 112º/2:
 Leis de autorização legislativa (165º/2,3,4,5) – as leis de autorização legislativa são
pressuposto normativo dos decretos-leis e decretos legislativos regionais feitos no uso da
respetiva autorização legislativa. Por isso, são leis com valor reforçado relativamente aos
decretos-leis feitos no uso de autorização legislativa. Se o decreto-lei contrariar a lei de
autorização legislativa, há uma ilegalidade por violação de lei com valor reforçado.
 Leis de bases – as leis de bases limitam-se a consagrar os grandes princípios (as bases) de
certo regime jurídico (saúde, educação), que vão ser desenvolvidos e concretizados noutros
diplomas do mesmo domínio. São, por isso, pressuposto normativo dos decretos-leis de
desenvolvimento, sendo leis com valor reforçado relativamente a esses diplomas. Se o
decreto-lei contrariar a lei de bases há ilegalidade por violação de lei com valor reforçado.

Estatutos político-administrativos das Regiões Autónomas (alcance geral)


 161º/1/b, 226º/1 – aprovados por lei da AR sob proposta das ALR.
 É uma lei reforçada com alcance geral:
o 280º/2/b, 281º/2/c – diplomas regionais têm de respeitar os estatutos, sob pena de
ilegalidade.
o 280º/2/c, 181º/2/d – diplomas dos órgãos de soberania têm de respeitar os estatutos,
sob pena de ilegalidade.
 Os estatutos das R.A. têm alcance geral, já que têm de ser respeitados por todos os outros
atos legislativos. (Uma lei de autorização legislativa não tem de ser respeitada por todas as
outras leis, mas apenas pela lei que autoriza. Pode ser revogada e alterada por outras leis.)

Leis-quadro ou leis de enquadramento (alcance específico): leis que dispõem sobre o conteúdo ou o
processo de feitura de outras leis. Exemplos:

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Baltazar Oliveira

 Lei do regime de criação das autarquias locais (164º/n, 236º/4).


 Lei de criação das regiões administrativas (255º, 256º).
 Lei das grandes opções de planeamento face ao orçamento (105º/2, 91º).
 Lei de enquadramento do Orçamento de Estado face à lei que aprova o Orçamento (106º,
161º/g, 164º/r).
o 106º/1 – A lei do Orçamento é elaborada, organizada, votada e executada, anualmente,
de acordo com a respetiva lei de enquadramento. Consta desta lei como, quando e por
quem é aprovado o OE, que rubricas deve ter e o que acontecer se não for aprovado no
tempo devido.
o 161º/g – AR aprova o orçamento sob proposta de lei do Governo.
o 164º/r – é da exclusiva competência da AR fazer a lei de enquadramento do OE.
o Quando se vai aprovar a lei do OE, tem que se respeitar as orientações e definições
contidas na lei de enquadramento. Se houver uma desconformidade da lei do OE com a
lei de enquadramento do OE, uma lei com valor reforçado, há um vício de ilegalidade.

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Baltazar Oliveira

2. Processo legislativo parlamentar

São fases do processo legislativo parlamentar:


 Iniciativa – 167º
 Discussão e votação – 168º
 Promulgação (e veto) – 134º/1/b (136º, 279º)
 Referenda ministerial – 140º
 Publicação – 119º

A) Iniciativa legislativa
Um processo legislativo só se abre com a fase da iniciativa:
 167º/1 – têm iniciativa legislativa os Deputados, os grupos parlamentares, o Governo, os
grupos de cidadãos eleitores e, no respeitante às R.A, as Assembleias Legislativas.
 Distinção terminológica, mas importante:
o Projeto de lei – iniciativa é interna ao próprio órgão – Deputados, grupos
parlamentares e grupos de cidadãos.
o Proposta de lei – iniciativa é externa ao próprio órgão – Governo e Assembleias
Legislativas.
 Iniciativa de grupos de cidadãos eleitores
o Lei 17/2003 – Lei da iniciativa legislativa de cidadãos, alterada pela Lei orgânica 1/2016.
o São necessários 20.000 cidadãos eleitores para apresentar a proposta de lei.
o Esta é uma das reformas do sistema político que se fez nas revisões constitucionais,
mas que não tem efetividade prática.

Limites à iniciativa legislativa parlamentar:


 Deputados – iniciativa genérica. Limites negativos:
o Lei do orçamento do Estado e leis das grandes opções dos planos – proposta de lei do
Governo (161º/g)
o Estatutos das R.A. – proposta de lei das Assembleias Legislativas regionais (226º)
o Leis de autorização legislativa – proposta de lei do Governo ou das ALR (161º/d, 165º,
227º/1/b)
 Governo – iniciativa genérica. Limites negativos:
o Leis de revisão constitucional – Deputados (156º/a, 285º/1)
o Estatutos das R.A. – Assembleias Legislativas regionais (226º)
 Grupos Parlamentares – iniciativa genérica. Limites negativos: todos os anteriores.

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 Assembleias Legislativas, no que respeita às R.A. – delimitação positiva: só podem apresentar


propostas de lei no que diz respeito à R.A.

Sentido da proposta de lei do Governo à AR:


 O Governo pode fazer propostas de lei à AR sobre quaisquer matérias. Mas também pode
fazer decretos-leis sobre um amplo conjunto de matérias.
 O sentido da iniciativa legislativa do Governo é o de que esse órgão possa apresentar
propostas de lei à AR sobre matérias da sua reserva de competência. Caso a matéria sobre a
qual o Governo queria legislar incidisse no âmbito da competência concorrencial dos dois
órgãos, o Governo podia simplesmente fazer um decreto-lei.
 Não obstante, o Governo pode ter interesse em apresentar uma proposta de lei à AR que
incida numa matéria na qual tem competência, se o PR já tivesse vetado o DL do Governo.

Cláusula-travão:
 167º/2 – “Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões
autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei,
propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso,
aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.”
 Só o Governo pode apresentar iniciativas legislativas que envolvam, no ano económico em
curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas previstas no OE. É assim porque o
Governo tem de programar a sua governação em função do Orçamento do Estado, para não
desenvolver políticas que o obriguem a gastar mais que o previsto.
 As restantes entidades com iniciativa legislativa podem apresentar projetos ou propostas para
vigorarem Orçamento do ano seguinte.
 Uma lei que viole a norma travão é inconstitucional. Recebendo-a, o Presidente da República
deve vetar ou solicitar a apreciação preventiva da constitucionalidade ao TC, ainda que não
esteja obrigado a nenhuma das duas atuações (isto é, o PR pode promulgar).

Conflito Costa/Marcelo (2020):


– A Assembleia da República aprovou a Lei X, que atribui apoios sociais em virtude da crise provocada pela pandemia. A
lei viola a cláusula-travão, sendo inconstitucional. O Presidente da República promulgou a lei, alegando que se podia fazer
uma interpretação conforme à Constituição.
– Interpretação conforme à Constituição de uma norma legal: ocorre face a um enunciado normativo que comporta
diferentes interpretações, isto é, face a um texto com uma pluralidade de sentidos possíveis. Sendo algumas das
interpretações inconstitucionais, e outras conformes à Constituição, o Tribunal deve optar por uma das últimas, fazendo
interpretação conforme à Constituição.
– PR fez a seguinte construção (sem base constitucional): a Lei X pode ser inconstitucional, mas nada obriga o Governo
a, ao aplicar a Lei X, se vir que estão a ser ultrapassadas as despesas previstas no OE, deixar de a aplicar. Na prática, a Lei
X entra em vigor, e o Governo faz como entender. Esta seria uma interpretação conforme à Constituição. Ou seja, a Lei X
pode ser inconstitucional, mas também pode ser interpretada em conformidade com a Constituição, se o Governo não
ultrapassar as despesas previstas no OE para o ano económico em curso. Quando o Governo chegasse ao limite das
despesas, deixava de atribui o apoio aos seus beneficiários.
– A construção do Presidente está errada por duas razões. Em primeiro lugar, só o órgão aplicador da norma pode fazer
uma interpretação conforme à Constituição. No caso, o Governo, a Administração ou os Tribunais; não o Presidente da

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República. Em segundo, a clausula-travão não comporta dúvidas de interpretação, não se lhe aplicando o conceito de
interpretação conforme à Constituição.
– Coloca-se ainda o seguinte problema: os beneficiários, após perderem o apoio que lhes é atribuído pela Lei X, podem
recorrer a Tribunal. Os Tribunais comuns iriam apreciar a questão, que nunca foi ao Tribunal Constitucional, verificando
que há uma inconstitucionalidade orgânica. Assim, o Presidente da República devia, de início, ter vetado a Lei X ou pedido
ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da sua constitucionalidade, sob suspeita de violação da lei-travão.
(continua na referenda)

B) Discussão e votação
Discussão e votação – 168º
1. Debate na generalidade – sobre quais os objetivos em vista na proposta/projeto de lei, o seu
espírito, as alterações que se pretende inserir na ordem jurídica. Os Deputados não se
preocupam excessivamente com o que diz cada um dos artigos.
2. Votação na generalidade – versa sobre o sentido global do projeto/proposta. Normalmente,
sendo o projeto/proposta aprovado, passa à fase seguinte e “baixa à comissão”.
3. Debate na especialidade – artigo a artigo, alteração a alteração. Normalmente é feito, não no
Plenário, mas na Comissão da área específica (nº3). Mas o 168º estabelece matérias
importantes em que a votação na especialidade têm de ser feita em Plenário (nº4,5).
4. Votação na especialidade – disposição a disposição.
5. Votação final global – em Plenário.

116º/2 – A Assembleia da República só pode deliberar com um quórum de 116 Deputados.

Maiorias:
 Regra geral: 116º/3 – maioria simples ou relativa, isto é, mais votos a favor que votos contra.
 Exceções – maiorias qualificadas:
o 168º/5 – as leis orgânicas carecem de aprovação, na votação final global, por maioria
absoluta dos Deputados em efetividade de funções.
o 168º/5 – as disposições relativas à delimitação territorial das regiões, previstas no artigo
255º, devem ser aprovadas, na especialidade, em Plenário, por maioria absoluta dos
Deputados em efetividade de funções.
o 168º/6 – aprovação, em votação final global, por maioria de 2/3 dos Deputados presentes,
desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções.
 Advertência: nos preceitos acima, de umas vezes a Constituição refere “lei” na sua totalidade,
e de outras fala apenas em “normas”/“disposições”.

C) Promulgação e veto
Promulgação e assinatura – 134º/b

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 Após a receção de um diploma para promulgação, o PR pode: (i) promulgar, (ii) vetar ou (iii)
requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade.
 134º/b – Compete ao Presidente da República “promulgar e mandar publicar as leis, os
decretos-leis e os decretos regulamentares, assinar as resoluções da Assembleia da República
que aprovem acordos internacionais e os restantes decretos do Governo.”
 A promulgação é uma assinatura com maior solenidade, que se aplica a atos com maior
solenidade, como sejam os atos legislativos e os decretos regulamentares.
 O 134º/b é o artigo-chave da promulgação e veto. Esse preceito dá fundamento ao PR para
promulgar/assinar e, logicamente, recusar a promulgação/assinatura dos atos. É assim
porque, em semipresidencialismo, os poderes que a Constituição confere ao PR são poderes
reais, que o Presidente exerce livremente; em semipresidencialismo, o poder de promulgar
envolve o poder de não promulgar, de acordo com a regulação dos artigos 136º e 279º.
 O Representante da República assina e manda publicar os decretos legislativos regionais e os
decretos regulamentares regionais – 233º/1.
 137º – A falta de promulgação ou de assinatura determina a inexistência jurídica do ato.
 Em rigor, os diplomas da AR e do Governo não são leis e decretos-leis, mas decretos, enviados
ao PR para serem promulgados como lei ou decreto-lei. Só após a promulgação os decretos
passam a ter existência jurídica como lei ou decreto lei.

Recusa da promulgação ou veto – 136º


 Prazo após a receção do diploma ou a decisão do TC que não se pronuncie pela sua
inconstitucionalidade:
o AR (nº2) – PR tem prazo de 20 dias para vetar
o Gov (nº4) – PR tem prazo de 40 dias para vetar
 Após veto de diploma da AR, o PR deve solicitar “nova apreciação do diploma em mensagem
fundamentada”. Também deve ser “comunicado por escrito ao Governo o sentido do veto”.

Veto político vs. Veto jurídico


 Porque a classificação não é dada pela Constituição, os dois tipos de veto são muitas vezes
confundidos. Há quem interprete que veto político é um veto por razões políticas e veto
jurídico um veto por razões jurídicas, embora sem fundamento constitucional.
 Na verdade, não são os motivos que o PR tem para vetar que distinguem os dois tipos de veto.
O que os distingue é a prévia pronuncia do TC sobre a inconstitucionalidade do ato, porque
em função disso, o procedimento a seguir é diferente:
o Veto político – 136º – TC não se pronunciou pela inconstitucionalidade do ato (ainda que
a possa ter apreciado) – PR vetou por sua iniciativa, sem ter sido obrigado a tal e não
sendo relevantes as razões do veto (para a qualificação como veto político).
o Veto jurídico/por inconstitucionalidade – 279º – o Tribunal Constitucional pronunciou-se
pela inconstitucionalidade do ato, sendo o PR obrigado a vetar.
 Assim, o veto de um diploma que foi ao Tribunal Constitucional e não foi declarado
inconstitucional é um veto político, com o regime previsto no 136º.

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Veto suspensivo vs. Veto absoluto


 Veto suspensivo – leis da Assembleia da República – tem efeitos suspensivos, podendo ser
confirmado – AR prevalece sobre PR
o Após veto, a AR tem três opões: (i) conformar-se; (ii) alterar o diploma em função do que
foi dito pelo PR na mensagem fundamentada; (iii) confirmar o voto.
o 136º/2 – Se a Assembleia da República confirmar o voto por maioria absoluta dos
Deputados em efetividade de funções, o Presidente da República deverá promulgar o
diploma no prazo de oito dias a contar da sua receção – no conflito AR /PR, prevalece a
AR, manifestação da sua supremacia legislativa.
o 136º/3 – é exigida maioria de dois terços dos Deputados presentes, superior à maioria
absoluta dos Deputados em efetividade de funções, para a confirmação de decretos que
revistam a forma de lei orgânica ou respeitem a determinadas matérias.
 Veto absoluto – decretos-leis do Governo – tem efeitos definitivos, não podendo ser
confirmado – PR prevalece sobre Governo.
o Se o Gov vir o seu diploma vetado pelo PR e tiver maioria absoluta na AR, pode superar o
veto, fazendo uma proposta à AR com o mesmo conteúdo – Governo prevalece sobre PR.

D) Referenda ministerial
Referenda – 140º
 140º/1 – Carecem de referenda do Governo um extenso conjunto de atos do Presidente da
República, entre os quais, os do 134º/b (promulgação e veto): “promulgar e mandar publicar
as leis, os decretos-leis e os decretos regulamentares, assinar as resoluções da Assembleia da
República que aprovem acordos internacionais e os restantes decretos do Governo”.
 A referenda é dada após a promulgação do PR e antes da publicação do ato. É uma fase do
processo legislativo meramente formal, através da qual o PM e outros Ministros atestam a
regularidade da assinatura do PR.
 140º/2 – A falta de referenda determina a inexistência jurídica do ato. Assim, só há ato, ainda
que promulgado, se o Governo o referendar. Há como que uma cadeia de inexistências
jurídicas: primeiro, o ato tem de ser promulgado, sob pena de inexistência jurídica (137º),
depois, tem de ser referendado, também sob pena de inexistência (140º/2).

A referenda é um ato formal e obrigatório:


 De acordo com a estrutura constitucional da função legislativa, que determina a supremacia
da AR como órgão legislativo (tanto que a AR pode confirmar o veto do PR), a referenda é um
ato formal, obrigatório, não livre, isto é, que não pode ser recusado pelo Governo, desde que
se verifique a veracidade da assinatura do PR.
 Para Reis Novais, uma interpretação contrária, como estando na disponibilidade do Governo
referendar ou não, como sendo a referenda um ato livre, retiraria qualquer racionalidade ao
sistema de governo semipresidencial. Estar-se-ia a dar ao Primeiro-Ministro a última palavra
sobre processo legislativo: a AR aprovava uma lei, o PR promulgava e depois o Governo não
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referendava. Uma posição predominante do Governo como essa iria contra toda a
organização e separação de poderes vertida na CRP, onde o órgão legislativo por excelência
é a AR e o Governo tem uma competência legislativa limitada e condicionada.
 Assim, se o Governo recusasse dar referenda a algum ato do PR por razões políticas (e não,
por exemplo, porque não atestou a veracidade da assinatura do Presidente), haveria uma
crise política e uma crise constitucional. A situação, que nunca aconteceu, seria resolvida por
meios políticos. A recusa de referenda do Governo constituiria fundamento para a Assembleia
da República aprovar uma moção de censura ao Governo ou para o Presidente da República
o demitir, nos termos do art. 195º/2 (isto é, porque a demissão do Governo se tornava
necessária para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas).
 Não há justificação racional para uma norma, aparentemente, determinar que a última
palavra é o Governo. A existência da referenda justifica-se pela tradição. Tradicionalmente,
no sistema constitucional português, o Rei dava a sanção real (promulgação) aos atos
legislativos. Mas em monarquia constitucional e parlamentar, esse ato não podia ser livre.
Assim, o Rei era obrigado a sancionar os atos, mas para não se responsabilizar por eles (já que
não tem poder de decisão sobre os mesmos), o órgão responsável (Governo, Primeiro-
Ministro, Ministros) referendava-os. Ou seja, os atos do Rei estavam sujeitos a referenda
ministerial ou governamental de forma a demonstrar que quem realmente praticou o ato não
foi o Rei, mas quem referendou. Era este o sentido do instituto no século XIX, que ficou nas
Constituições embora, em sistema semipresidencial, perdendo o seu significado.

Conflito Costa/Marcelo (continuação)


A certa altura o PM disse “O PR promulgou a lei, o Governo vai aplicá-la. O Governo não vai recusar a referenda.” Ora,
quando o PR disse que não ia recusar a referenda, deu a entender que esta na sua disponibilidade referendar ou não
referendar o ato, que a referenda é um ato livre. Mas a referenda é um ato formal, obrigatório para o Governo.

E) Publicação
119º/2 – “A falta de publicidade dos atos previstos nas alíneas a) a h) do número anterior e
de qualquer ato de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder
local, implica a sua ineficácia jurídica.”
 Enquanto não for publicada, uma Lei da AR é ineficaz, ainda que, uma vez promulgada e
referendada, já tenha existência jurídica.
 O facto de uma lei poder ter eficácia retroativa (uma ficção legal), acaba por retirar relevância
à publicação, cujo objetivo é dar a conhecer as leis aos cidadãos.
 Não obstante, esse objetivo da publicação tem importância, particularmente no que aos atos
do Governo diz respeito, uma vez que são frequentemente secretos até serem publicados.

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3. Competência legislativa do Governo

A) Competência legislativa do Governo

Decretos-leis do Governo (art. 198º):


 198º/1/a) – DL governamentais em matéria de competência concorrencial – matérias que
não estão reservadas nem ao Gov nem à AR
 198º/1/b) – DL feitos no uso de autorização legislativa
 198º/1/c) – DL de desenvolvimento de leis de bases
 198º/2 – DL de competência exclusiva – organização e funcionamento do Governo

O Governo tem extensa competência legislativa.


 À partida tem competência legislativa própria em todas as matérias não reservadas à AR.
 Mas o Governo não é completamente livre, pois tem uma competência legislativa
condicionada às orientações que a AR lhe der:
o DL feitos no uso de autorização legislativa – a lei de autorização legislativa define a
matéria, extensão, alcance e duração da autorização.
o DL de desenvolvimento de leis de bases – o decreto-lei desenvolve os grandes princípios
contidos nas leis de bases, não podendo contrariar a lei de bases
 198º/3 – os decretos-leis acima devem invocar expressamente a lei de autorização legislativa
ou a lei de bases ao abrigo da qual são aprovados.
 112º/2 – “As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às
correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que
desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos.”

B) Autorizações legislativas
Regime:
 161º – “Compete à Assembleia da República:
d) Conferir ao Governo autorizações legislativas;
e) Conferir às Assembleias Legislativas das regiões autónomas as autorizações previstas
na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição.”
 198º/1/b – “Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em
matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta.”
 227º/1/b – As Assembleias Legislativas regionais podem legislar em matérias de reserva
relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, com exceções.
 A iniciativa da lei de leis de autorização legislativa é do Governo e das ALR.

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 A autorização legislativa é feita através da forma de lei (161º/d, 166º/3).

As leis de autorização legislativa não são um cheque em branco:


 Mais do que autorizar a legislar, os nº2-5 do 165º limitam a forma como o Governo e as ALR
utilizam a autorização legislativa. A lei de autorização legislativa tem um conteúdo necessário,
que estabelece parâmetros a serem observados pelo decreto-lei no uso da autorização.
 A AR subordina Governo e Assembleias Legislativas aos termos que a própria estabeleceu.
Essa subordinação entre AR e Governo não é uma subordinação hierárquica, mas uma
subordinação em termos materiais.
 165º/2 – “As leis de autorização legislativa devem definir o objeto, o sentido, a extensão e a
duração da autorização.”
 165º/4 – “As autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido
concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República.”
 227º/2 – no que diz respeito às ALR, “as propostas de lei de autorização devem ser
acompanhadas do anteprojeto do decreto legislativo regional a autorizar”.
 Os atos legislativos feitos no uso de autorização legislativa devem-na invocar expressamente
(198º/3, 227º/4).

Duração da autorização legislativa


 165º/2 – As leis de autorização legislativa devem definir a duração da autorização, a qual pode
ser prorrogada.
 Se o decreto-lei não for promulgado e referendado antes de o prazo estabelecido pela AR
acabar, a autorização expira e o decreto-lei nunca entra em vigor. Por isso, o Conselho de
Ministros deve aprovar o decreto-lei no uso de autorização legislativa tendo em atenção o
tempo que o Presidente da República pode demorar a decidir sobre a promulgação (ou veto
ou requerimento ao TC para apreciação preventiva da constitucionalidade), para a qual tem
um amplo prazo de 40 dias.

165º/3 – “As autorizações legislativas não podem ser utilizadas mais de uma vez, sem prejuízo da sua
execução parcelada.” Assim, há que distinguir entre:
 Utilização parcelada – permitida – o Governo não está obrigado a concentrar tudo no mesmo
diploma. Por isso, pode aprovar vários decretos-lei, no uso da mesma lei de autorização
legislativa, sobre matérias diferentes.
 Utilização mais de uma vez – proibida – o Governo não pode legislar mais que uma vez, no
uso da mesma autorização legislativa, sobre a mesma matéria. Assim, também não pode
utilizar a mesma lei de autorização legislativa para fazer um decreto-lei e, depois, o alterar.

Veto do decreto-lei no uso de autorização legislativa:


 Se o PR vetar um decreto-lei feito no uso de autorização legislativa, o Governo pode reenviar
o diploma ao PR com as alterações por esse pretendidas, visto que o decreto ainda não tinha

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adquirido existência jurídica como decreto-lei (só a adquire com a promulgação e a


referenda). O Governo não estaria a utilizar a autorização legislativa mais que uma vez.
 Podia considerar-se que o marco para o Governo ter utilizado a autorização é a aprovação do
decreto em Conselho de Ministros. Novais: o único marco com apoio na CRP é a promulgação.

C) Apreciação parlamentar de decretos-leis

Apreciação parlamentar de decretos-leis – 169º


 Uma das manifestações da supremacia legislativa da AR é a sua competência para apreciar
decretos-leis. Nos termos do art. 162º/c, compete à Assembleia da República, no exercício de
funções de fiscalização, “apreciar, para efeito de cessação de vigência ou de alteração, os
decretos-leis, salvo os feitos no exercício da competência legislativa exclusiva do Governo.”
 O 162º/c e o 227º/4 preveem que os decretos legislativos regionais feitos no exercício de uma
autorização legislativa (227º/1/b) também possam ser apreciados pela AR. Todavia, dada a
raridade com que as ALR solicitam autorizações legislativas à AR, a questão da apreciação
parlamentar desses atos legislativos não se coloca.
 Os diplomas são chamados a apreciação trinta dias após a sua publicação.
 Dois objetivos principais:
o 169º/4 – fazer cessar a vigência do decreto-lei – forma de resolução – o diploma não
poderá voltar a ser publicado no decurso da mesma sessão legislativa.
o 169º/5 – alterar o decreto-lei – forma de lei
 Requerida a apreciação de um decreto-lei elaborado no uso de autorização legislativa, e
sendo apresentadas propostas de alteração, a AR pode suspender (no todo ou em parte) a
vigência do decreto-lei até à publicação da lei que o vier a alterar ou até à rejeição de todas
as propostas (169º/2). A suspensão caduca passadas dez reuniões plenárias sem que a
Assembleia se tenha pronunciado a final (162º/3).
 A apreciação parlamentar de decretos-leis foi precedida por outro instituto, o da ratificação
de decretos-leis. Essa é uma designação incorreta, já que esta competência da AR é um ato
de fiscalização.

Qual o sentido de a CRP tratar autonomamente deste instituto se a AR pode alterar ou revogar
decretos-leis do Governo, no uso da sua competência legislativa ordinária, através da forma de lei, já
que leis e decretos leis têm igual valor (112º/2)? Mais, se os requisitos da apreciação parlamentar de
atos legislativos são mais exigentes que os impostos pelo processo legislativo ordinário?
 Apreciação parlamentar de atos legislativos:
o Requisitos formais – iniciativa de dez Deputados
o Requisitos temporais – trinta dias após publicação do ato legislativo
 Processo legislativo ordinário:
o Requisitos formais – iniciativa de um Deputado e de outras entidades

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o Requisitos temporais – incondicionado

Vantagens e sentido útil de recorrer ao processo especial de apreciação dos decretos-leis:


 Vantagem simbólica e política – 162º/c – o instituto insere-se na competência de fiscalização
do Governo por parte da Assembleia da República.
o Assim, a apreciação parlamentar de atos legislativos é uma exibição da supremacia
legislativa da AR. Ambos os órgãos têm competência legislativa, mas um tem de se
subordinar ao outro. É uma vantagem sem alcance prático.
 Vantagem de prioridade – 169º/6 – “Os processos de apreciação parlamentar de decretos-
leis gozam de prioridade, nos termos do Regimento.”
o Se um Deputado apresentar um projeto de lei, ele segue o processo legislativo normal.
Por outro lado, se um grupo de dez Deputados recorrer a este instituto, nos termos do
Regimento da AR (RAR), o processo de apreciação goza de prioridade.
o Todavia, o alcance prático desta vantagem é diminuto já que a Conferencia de Líderes
(órgão que fixa a agenda, ordem de trabalhos, ritmos e prioridades do Plenário,
constituído pelo Presidente da AR e pelos líderes dos grupos parlamentares) reúne
regularmente, podendo dar prioridade aos projetos e propostas de lei que considerar
urgentes. Assim, a prioridade de que beneficiam os processo de apreciação é uma
prioridade relativa. É uma vantagem muito limitada.
 Vantagem de eficácia – 169º/4 e 166º/6 – o ato através do qual a AR faz cessar a vigência do
decreto-lei tem a forma de resolução, publicada independentemente de promulgação.
o O procedimento da apreciação parlamentar de decretos leis é muito mais eficaz que o
processo legislativo normal, visto que a resolução entra imediatamente em vigor. Se a AR
recorresse ao processo legislativo normal para fazer cessar o decreto-lei do Governo
(publicando uma lei que dissesse “o decreto-lei fica revogado”), várias circunstâncias
podiam retardar ou inviabilizar a sua decisão: o PR podia demorar a promulgar, vetar ou
enviar para o Tribunal Constitucional.
 Vantagem de condicionamento do Governo – 169º/4 – aprovada a cessação da sua vigência,
o diploma não poderá voltar a ser publicado no decurso da mesma sessão legislativa.
o Se a AR tivesse recorrido ao processo legislativo normal para revogar o decreto-lei do
Governo, esse órgão podia aprovar outro decreto-lei que revogasse a lei revogatória da
AR, já que leis e decretos leis têm igual valor (112º/2). Aliás, tal acontece frequentemente,
especialmente quando os Governos são minoritários.

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PARTE III: FISCALIZAÇÃO DA


CONSTITUCIONALIDADE

1. Sistema português de fiscalização da constitucionalidade8

A) Generalidades
Tribunal Constitucional: é o Tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça
em matérias de natureza jurídico-constitucional (art. 221º CRP).
 Foi criado na revisão constitucional de 1982, tendo assumido as funções do Conselho da
Revolução, que era auxiliado pela Comissão Constitucional. Desde 1982 que o sistema
português de fiscalização se tem mantido praticamente inalterado, o que é surpreendente
tendo em conta a pressão dos frequentes processos de revisão constitucional.
 O Tribunal Constitucional aprecia a inconstitucionalidade e a ilegalidade de normas:
o Inconstitucionalidade9: vício da norma ou ato dos poderes públicos (legislativo, judicial,
administrativo) desconforme com a Constituição (norma ou princípio constitucional).
o Ilegalidade10: ilegalidade de atos legislativos e de outras normas por violação de leis com
valor reforçado, já que as leis com valor reforçado prevalecem sobre outras leis.
 O TC só aprecia a inconstitucionalidade de normas, e não de atos ou decisões.
 O TC desempenha outras funções, por exemplo, a legalização e ilegalização de partidos.

Tipos de inconstitucionalidade:
 Inconstitucionalidade material – desconformidade material (quanto ao conteúdo) entre uma
norma legal e uma norma constitucional – ex: lei que aprova pena de morte.
 Inconstitucionalidade orgânica – não foram observadas regras de competência – ex: Governo
legisla sobre matéria de reserva absoluta da AR.
 Inconstitucionalidade formal – não foram observadas regras de forma ou procedimento – ex:
AR não aprova lei com a maioria necessária.
 No sistema português de fiscalização da constitucionalidade não há, na prática, diferenças de
regime e consequências entre os vários tipos de inconstitucionalidade.

Modalidades de fiscalização da constitucionalidade:


 Preventiva (278º e 279º) – é requerida ao TC antes de a norma ser promulgada; por regra, só
é requerida pelo PR; só há apreciação da inconstitucionalidade, e não da legalidade.

8
Bibliografia para toda a matéria da fiscalização da constitucionalidade: Jorge Reis Novais, Sistema Português de
Fiscalização da Constitucionalidade, 3ª Ed.
9
Ver conceito de inconstitucionalidade – Parte I/Cap. 1/Ponto A
10
A esta ilegalidade chama-se também inconstitucionalidade indireta – Parte II/Cap. 1/Ponto E

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 Sucessiva – é requerida depois da promulgação e da publicação, quando a norma está em


vigor; requerida por várias entidades; apreciação da inconstitucionalidade e da legalidade.
o Por ação – um poder publico aprova uma norma, pratica um ato, toma uma decisão.
 Sucessiva abstrata (281º e 282º) – o TC aprecia a inconstitucionalidade de uma
norma independentemente da sua aplicação a quaisquer casos ou situações.
 Sucessiva concreta – surge uma dúvida de constitucionalidade a propósito de um
caso concreto que esteja a ser julgado num qualquer Tribunal.
 Difusa – 204º – feita pelos Tribunais comuns.
 Concentrada – 280º – o TC é chamado a apreciar, após recurso dos Tribunais
comuns, a inconstitucionalidade da norma aplicável ao caso em julgamento.
o Inconstitucionalidade por omissão (283º) – um poder público tem o dever constitucional
de praticar um ato, aprovar uma norma ou tomar uma decisão, e não o faz.

Terminologia:
 O Tribunal Constitucional:
o pronuncia ou não se pronuncia pela inconstitucionalidade – em fiscalização preventiva
o declara ou não declara a inconstitucionalidade – em fiscalização sucessiva abstrata
o julga ou não julga a inconstitucionalidade – em fiscalização sucessiva concreta
o verifica ou não verifica a inconstitucionalidade – em fiscalização por omissão
 O Tribunal Constitucional nunca se pronuncia, declara, julga ou verifica a constitucionalidade
de uma norma, mas apenas a inconstitucionalidade. O Tribunal Constitucional dizer que uma
norma não é inconstitucional não quer dizer que a norma seja constitucional já que, no futuro,
pode voltar a apreciar a inconstitucionalidade da mesma norma e declará-la inconstitucional.

B) Fiscalização preventiva
Características gerais:
 Incide sobre normas que ainda não foram promulgadas e, consequentemente, que ainda não
foram publicadas ou entraram em vigor.
 Apenas fiscalização preventiva da constitucionalidade, e não da legalidade. Apenas atos
legislativos e atos internacionais.
 Iniciativa:
o Presidente da República – normas constantes de: (i) decretos enviados para promulgação
como lei ou decreto-lei; (ii) tratados internacionais enviados para ratificação; (iii) acordos
internacionais enviados para assinatura.
o Representantes da República – só decretos legislativos enviados para assinatura
o 1/5 dos Deputados em efetividade de funções e Primeiro-Ministro – só leis orgânicas.
 Prazos para requerer a fiscalização preventiva: 8 dias a contar da receção do diploma.

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 Prazo para o TC se pronunciar: 25 dias, que pode ser encurtado a pedido do PR, o que
raramente acontece, dada complexidade do processo de fiscalização da constitucionalidade.

Efeitos da decisão:
 Se o TC não se pronunciar pela inconstitucionalidade, após a publicação da decisão, o PR tem
o prazo normal para promulgar ou vetar (veto político) – 136º/1.
 Se o TC considerar que há inconstitucionalidade, o diploma é necessariamente vetado pelo
Presidente da República (veto jurídico), como forma de realizar a decisão do TC – 279º/1.
 Após a declaração de inconstitucionalidade pelo TC e consequente veto jurídico por parte do
PR, o diploma é devolvido ao órgão que o aprovou, que tem várias opções:
o Desistir;
o Expurgar as normas inconstitucionais – órgão retira a norma inconstitucional do diploma.
o Reformular o diploma – em princípio, o diploma é tratado como um novo decreto,
podendo ser promulgado, vetado ou enviado para o Tribunal Constitucional pelo PR.
o Confirmar o diploma – a Assembleia da República (e, para alguma doutrina, as
Assembleias Legislativas regionais) pode confirmar a aprovação do diploma por uma
maioria de 2/3 dos Deputados. Esta é uma solução de conflito, entre a opinião política da
AR e a decisão jurídica do Tribunal Constitucional, que é arbitrada pelo Presidente da
República, a quem cabe a decisão final sobre se promulga ou não o diploma em causa.

Diferentes regimes de veto após confirmação da AR:


 Veto político – 136º/2 – após a confirmação, o PR é obrigado a promulgar, num prazo de 8
dias – no conflito AR/PR, prevalece a AR.
 Veto jurídico – 279º – após a confirmação (279º/2), o PR pode ou não promulgar – no conflito
AR/TC, o PR exerce um papel de árbitro, decidindo a favor de um ou de outro. Não estando
envolvido no conflito, faz sentido que o PR não seja obrigado a sujeitar-se à decisão da AR.
 JRN: é contraditório que um órgão com competência para declarar a inconstitucionalidade a
declare e, depois, outros dois órgãos permitam que a norma entre em vigor. É uma válvula
que CRP encontrou e que, por o ser, nunca foi utilizada.

Duplo papel da fiscalização preventiva:


 Filtragem de violações dos direitos fundamentais, evitando-se que normas inconstitucionais
possam produzir efeitos, que se gerem situações de facto consumado.
 Inibição ou dissuasão de tentações conjunturais de menorização da força normativa da
Constituição que seduzem as maiorias no poder.

O desempenho da fiscalização preventiva depende muito da atuação do PR, uma vez que a
iniciativa de desencadear o processo é quase exclusivamente sua:
 Se o PR se desvia dos fins do instituto, e o transforma em mero meio de luta política (ex:
Presidente Cavaco Silva), a racionalidade da fiscalização preventiva é posta em causa.

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 Se o PR não usar do seu poder de iniciativa, por considerar a fiscalização preventiva


desnecessária ou negativa (ex: Presidente Marcelo Rebelo de Sousa), há uma desvirtuação do
instituto, com graves consequências em termos de segurança jurídica (já que o TC poderá vir
a pronunciar-se pela inconstitucionalidade de uma norma em fiscalização sucessiva).

C) Fiscalização sucessiva abstrata por ação


Características gerais:
 Fiscalização da constitucionalidade e da legalidade de normas.
 281º/2 – iniciativa de entidades externas ao TC:
o PR, PAR, PM, PJ, PGR, 1/10 dos Deputados à AR
o No respeitante às R.A: RR, ALR, Presidentes das ALR e dos GR, 1/10 dos Deputados às ALR
 281º/3 e 82º LTC – vem introduzir uma exceção à iniciativa de entidades externas, permitindo
que qualquer juiz do TC ou MP junto do TC possam desencadear o processo de fiscalização
abstrata de uma norma sempre que essa norma tenha sido julgada inconstitucional ou ilegal
em três casos concretos. Esta exceção foge ao princípio da passividade dos Tribunais, segundo
o qual, em qualquer Tribunal, os juízes não têm iniciativa, devendo ter uma posição passiva,
aguardando que os processos lhes cheguem por iniciativa dos particulares.

Efeitos da declaração de inconstitucionalidade:


 282º/1 – o TC “declara”, o que é mais forte que o “pronuncia-se” da fiscalização preventiva.
 A declaração tem efeitos obrigatórios gerais:
o A norma declarada inconstitucional é erradicada da ordem jurídica e, em princípio, todos
os efeitos por ela produzidos, desde a sua entrada em vigor, desaparecem, são anulados.
É como se a norma não devesse ter entrado em vigor.
o Se a norma inconstitucional fosse uma norma revogatória, determina-se a repristinação
das normas por ela revogadas.
 282º/2 – introduz uma distinção:
o Inconstitucionalidade originária – 282º/1 – a norma é inconstitucional desde a sua origem
(nunca devia ter entrado em vigor), pelo que os efeitos que ela produziu vão desaparecer
desde a sua origem.
o Inconstitucionalidade superveniente – 282º/2 – quando a norma entrou em vigor, não era
inconstitucional ou ilegal. Só após o seu inicio de vigência, no momento da entrada em
vigor de uma revisão constitucional (inconstitucionalidade) ou de uma alteração a uma lei
com valor reforçado (ilegalidade) com conteúdo oposto ao seu, é que a norma passou a
ser inconstitucional ou ilegal. Assim, a declaração só produz efeitos desde a entrada em
vigor da norma constitucional ou legal posterior.
 282º/3 – em princípio, se a norma é declarada inconstitucional, todos os efeitos que produziu
desaparecem. O 282º/3 introduz uma exceção a essa regra e uma exceção a essa exceção:
o Exceção à regra – “Ficam ressalvados os casos julgados” – a norma declarada
inconstitucional foi aplicada a casos decididos pelos Tribunais (casos julgados), pelo que

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os particulares já tinham ficado com o seu caso decidido em julgamento e já tinham


organizado a sua vida em função da sentença. Se a decisão do caso julgado fosse alterada
isso seria uma ofensa grande à segurança jurídica que deve haver em Estado de Direito.
o Exceção à exceção – “salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a
norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for
de conteúdo menos favorável ao arguido” – se o TC quiser, pode afetar o caso julgado,
mesmo tendo a pessoa sido condenada ao abrigo da norma inconstitucional, se for norma
penal ou sancionatória e se for de conteúdo menos favorável ao arguido.
 282º/4 – se o TC nada disser, o alcance da norma é o do nº1 e do nº2. Mas “poderá o TC”
fixar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com alcance mais
restrito. Mas apenas quando a segurança jurídica (o mais comum), razões de equidade ou
interesse público de excecional relevo (que deverá ser fundamentado) o exigirem.
o Uma norma declarada inconstitucional pode ter estado em vigor durante dezenas de
anos, tendo-se celebrado inúmeros negócios jurídicos ao seu abrigo. Com a declaração de
inconstitucionalidade, todos os negócios celebrados ao abrigo dessa norma seriam
afetados, restituindo-se prestações e contraprestações, o que eu geraria uma situação de
enorme insegurança jurídica. A Constituição podia ter resolvido esta situação
estabelecendo um limite temporal para a norma poder ser considerada inconstitucional,
por exemplo, de um ano após o início de vigência, mas optou pela solução do art. 282º/4.
o O Tribunal Constitucional pode determinar consequências menos contundentes para os
efeitos da sua declaração de inconstitucionalidade, ou seja, selecionar os efeitos jurídicos
da norma inconstitucional que são abrangidos pela declaração de inconstitucionalidade.
Por exemplo, o TC pode decidir que a declaração não afeta os efeitos já produzidos pela
norma inconstitucional, pode ressalvar apenas alguns efeitos (até certa data, ou de certa
natureza) ou pode ainda determinar que, apesar da inconstitucionalidade, a norma
continue a produzir (alguns) efeitos (Acórdão nº 353/2012).
o Ao poder restringir o alcance da declaração de inconstitucionalidade, o TC fica com uma
grande margem de decisão, que normalmente os Tribunais não têm. Apesar de ser um
Tribunal especial, o TC não é um órgão político. Todavia, este tipo de decisão tem muito
de político. Faz sentido que assim seja, uma vez que, sem o nº4, haveria o perigo de, face
à regra geral do nº1, que tem consequências muito drásticas, o TC se inibisse de declarar
a inconstitucionalidade, com o objetivo de prevenir situações de insegurança jurídica.

Acórdão nº 353/2012 do TC
 Com a crise financeira de 2009, foram introduzidas várias medidas de austeridade nas leis do OE. Suprimiu-se o
pagamento do 13º e do 14º meses aos funcionários públicos e aos pensionistas para o ano de 2012 e seguintes,
supressão que o TC viria a declarar a inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
 Em vez de submeter o diploma a fiscalização preventiva da constitucionalidade, o Presidente Cavaco Silva, ciente
da inconstitucionalidade, promulgou o diploma, que entrou em vigor. A ordem jurídico-constitucional foi
gravemente ofendida, com dúvidas de constitucionalidade, com insegurança jurídica e com decisões sobre a
inconstitucionalidade da lei em litígios concretos, por Tribunais Administrativos, ficando o TC arredado da
decisão. Uma inconstitucionalidade de peso significativo e de consequências gravíssimas para a vida quotidiana
de milhares de pessoas não só entrou em vigor, como produziu efeitos como facto consumado.
 Mais tarde, o TC foi chamado por alguns Deputados a decidir sobre a inconstitucionalidade daquelas normas em
sede de fiscalização sucessiva abstrata. Dado o atraso na intervenção do TC, existiam, aparentemente, duas
alternativas: (i) não declarar a inconstitucionalidade, com prejuízos sérios para os direitos fundamentais dos
agredidos, ou (ii) declarar a inconstitucionalidade com os efeitos obrigatórios e gerais típicos numa altura de

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crise extrema. Com as dificuldades financeiras que o país atravessava, o Governo devolver às pessoas o valor
que lhes cortou geraria um caos na execução orçamental desse ano, com aumentos do défice e da dívida, para
além do desrespeito de acordos celebrados com financiadores externos.
 Para não colocar em causa a execução orçamental do ano económico em curso, o TC foi obrigado a restringir os
efeitos da declaração de inconstitucionalidade, salvaguardando os efeitos produzidos e a produzir pelas normas
inconstitucionais durante o ano de 2012. Pela primeira vez, o TC decidiu que, por razões de interesse público de
excecional relevo, com fundamento no 282º/4, as normas inconstitucionais continuassem a ser aplicadas
durante o resto do ano económico em curso. As normas foram declaradas inconstitucionais, mas continuam a
aplicar-se para o futuro. De facto, esta possibilidade não é clara, mas ela pode inferir-se de “com alcance mais
restrito do que o previsto nos n.os 1 e 2” (282º/4).

Duas exceções em que o TC funciona quase como órgão político:


 Os juízes têm iniciativa – 281º/3 – já que normalmente os Tribunais são passivos: os juízes
aguardam que os casos cheguem, não tendo iniciativa de desencadear um processo.
 Seleção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade – 282º/4 – dá uma extraordinária
latitude ao TC para gerir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

D) Fiscalização sucessiva abstrata por omissão


Características gerais:
 283º – O TC aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas
legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais.
 Normas não exequíveis por si próprias: carecem de normas legislativas ordinárias para
produzirem a plenitude dos seus efeitos (para serem exequíveis) – ex: art. 40º CRP – direito
de antena, a definir segundo critérios objetivos a definir por lei. Para o art. 40º ter
exequibilidade é necessária uma lei da AR que estabeleça esses critérios.
 Iniciativa: Presidente da República, Provedor de Justiça ou Presidentes das Assembleias
Legislativas das R.A. (com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas).
 Consequência (nº2) – “Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de
inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo
competente.” – o TC não pode ir mais longe no suprimento da omissão em causa. A aprovação
das normas legislativas em falta dependerá sempre do órgão legislativo competente.
 O TC “verifica”– é uma constatação da existência de inconstitucionalidade por omissão, tanto
que a consequência é apenas dar conhecimento ao órgão legislativo competente.

É uma modalidade de fiscalização da constitucionalidade muito limitada porque:


 Poucas entidades têm iniciativa: PR, PJ, PAR, e não os cidadãos.
 O TC não pode ser chamado a verificar toda e qualquer inconstitucionalidade por omissão ou,
tão pouco, toda e qualquer omissão de norma. Apenas pode verificar a eventual omissão de
lei que seja necessária para conferir exequibilidade a normas constitucionais; e a grande
maioria das normas constitucionais são exequíveis por si próprias.
 Só há fiscalização por omissão em sede de fiscalização abstrata, e não concreta.

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 As consequências são apenas uma chamada de atenção ao órgão que está em falta.

E) Fiscalização concreta

Fiscalização concreta difusa – 204º CRP


 204º CRP – “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”
 O art. 204º institui uma fiscalização concreta e difusa. Dele decorre que todos os juízes, de
todos os Tribunais, têm acesso direto à Constituição nos casos submetidos a julgamento. Na
medida em que, nesse julgamento, não se podem aplicar normas inconstitucionais, será
próprio da função judicial, será competência e dever do juiz, verificar previamente, expressa
ou implicitamente, a constitucionalidade da norma potencialmente aplicável ao caso.
 Se o juiz considerar inconstitucional a norma em questão, não a deve aplicar ao caso em
julgamento. Se a aplicar, pelo menos implicitamente, tenha ou não considerado a questão,
entendeu que não era inconstitucional.
 O problema de constitucionalidade surge como uma questão incidental e prévia, face à
questão principal. O objetivo da causa não é a decisão da questão de constitucionalidade, mas
sim de outra questão de qualquer outra natureza (civil, penal, laboral…). O problema de
constitucionalidade só surge porque o juiz ou umas das partes suscitou dúvidas sobre a
constitucionalidade da norma potencialmente aplicável ao caso.
 Surgindo incidentalmente no caso sujeito a julgamento, a questão de constitucionalidade
pode ser suscitada em qualquer momento do processo e em qualquer instância, havendo
eventualmente lugar a recurso para os Tribunais superiores, nos termos da lei processual
aplicável, das decisões que, sobre a questão de constitucionalidade, venham a ser tomadas.
 Em Portugal, tal como nos países de fiscalização judicial difusa de constitucionalidade, todos
os juízes são, de algum modo, “juízes constitucionais”, não apenas porque conhecem das
questões de constitucionalidade, mas também porque as decidem. No entanto, só
aparentemente é assim, porque há praticamente sempre possibilidade de recorrer dessas
decisões para o Tribunal Constitucional, sendo o recurso, por vezes, obrigatório. Logo, em
teoria, todos os juízes decidem questões de constitucionalidade, mas, na prática, quem tem
a última palavra é o Tribunal Constitucional.
 Como todos os juízes decidem questões de constitucionalidade, o mesmo caso podia ser
decido de formas diferentes em vários Tribunais – art. 280º responde a esse problema.

Regime de recursos para o TC – 280º CRP


Para efeitos de possibilidade de recurso da decisão do Tribunal comum para o TC, e consoante
a natureza da decisão do Tribunal comum, podem distinguir-se dois grupos:
 Grupo I – 281º/1/a – o Tribunal comum recusou a aplicação da norma com fundamento em
inconstitucionalidade.
 Grupo II – 281º/1/b – o Tribunal comum aplicou a norma porque, expressa ou implicitamente,
considerou não haver inconstitucionalidade.

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Advertências:
 Pode suscitar-se a questão de constitucionalidade no curso do processo, até a decisão final
ser tomada (ou após, se for uma decisão surpresa). Se a parte não se tiver lembrado de
levantar a questão em primeira instância, pode fazê-lo nos Tribunais superiores.
 A decisão que vale é sempre a decisão final, a última que tenha sido tomada sobre a questão
no processo em curso. Havendo recurso para os Tribunais superiores, o que conta para se
apurar o regime de recurso para o TC é o sentido da decisão que tenha sido tomada pelo
Tribunal superior, depois dos recursos admissíveis.

Grupo I – 280º/1/a – o Tribunal de cuja decisão se recorre recusou a aplicação da norma a um caso
concreto com fundamento em inconstitucionalidade – situação grave e anómala: um juiz entende
que uma norma em vigor na ordem jurídica é inconstitucional.
 Subtipo 1 – a norma consta de convenção internacional, de ato legislativo ou de decreto
regulamentar
o A norma em apreciação consta de um diploma com grande importância (atos sujeitos à
promulgação, assinatura ou ratificação do PR), pelo que a situação é ainda mais grave.
o Assim, o MP junto do TC é obrigado a recorrer da decisão do juiz comum para o TC
(280º/3), para que não haja insegurança jurídica em relação à inconstitucionalidade da
norma. Também as partes podem recorrer, se se sentirem prejudicadas pela decisão.
o Como o MP é obrigado a recorrer, mesmo que nenhuma das partes recorra, o TC vai
decidir finalmente a questão. Por isso, na prática, o juiz comum recusou aplicar a norma
em vigor, mas quem decide se a norma em causa é ou não inconstitucional para efeitos
da sua aplicação no caso em julgamento é o TC.
 Subtipo 2 – a norma consta de qualquer outro diploma
o A norma em apreciação é, em princípio, menos importante, pelo que, apesar da
insegurança gerada, as consequências não são tão problemáticas como no primeiro caso.
o Assim, o MP não é obrigado a recorrer da decisão do juiz comum para o TC, ou seja, o MP
ou a parte afetada recorrem se quiserem.
o Se nem o MP nem uma das partes recorrerem, a questão não chega ao TC.

Grupo II – 280º/1/b – o Tribunal de cuja decisão se recorre aplicou a norma porque, expressa ou
implicitamente, o juiz considerou não haver inconstitucionalidade – situação (em princípio) corrente:
os juízes aplicam aos casos sob a sua jurisdição as normas em vigor na ordem jurídica portuguesa.
 Subtipo 3 – a norma foi anteriormente julgada inconstitucional pelo TC (situação raríssima)
o Ainda assim, um juiz comum voltou a aplicar essa norma. Há uma situação de insegurança,
já que o juiz comum não segue a anterior orientação do TC. Se já é raro o TC julgar normas
inconstitucionais, mais raro é os juízes continuarem a aplicá-las. O raciocínio da
Constituição é o mesmo do raciocínio relativo à recusa de aplicação (grupo I): a situação
é anómala e excecional, pelo que o TC deve ser chamado a decidi-la.
o Há recurso para o TC (as partes podem recorrer, se sentirem que foram prejudicadas),
obrigatório para o MP (280º/5). Exceção: 72º/4 LTC – mesmo sendo o recurso obrigatório para o MP,
“O Ministério Público pode abster-se de interpor recurso de decisões conformes com a orientação que se

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encontre já estabelecida, a respeito da questão em causa, em jurisprudência constante do Tribunal


Constitucional”. O juiz ordinário seguiu a jurisprudência do TC, pelo que o MP não tem de recorrer.

 Subtipo 4 – a norma nunca foi julgada inconstitucional pelo TC (situação normalíssima)


o O juiz aplicar uma norma em vigor corresponde à normalidade. Integram-se no subtipo 4
quase todos os recursos para o TC em sede de fiscalização concreta, pelo que a filtragem
no acesso ao TC é maior; de outro modo, o TC acabaria por resolver, em recurso, todos os
processos (já que, em todos os processos, há sempre uma parte descontente, que não
concorda com a decisão). Sendo o subtipo 4 aquele em que há mais tendência para uma
utilização abusiva, há 4 requisitos cumulativos para se poder recorrer para o TC.

Requisitos para o recurso das situações do subtipo 4:


i) Aplicação judicial de uma norma existente na ordem jurídica (ou aplicação de uma norma que
decorra de uma dada interpretação de um enunciado normativo);
ii) 72º/2 LTC, 280º/4 CRP – a parte que recorre deve ter suscitado previa e expressamente, e de
modo tempestivo, a inconstitucionalidade da norma (ou da interpretação normativa) em
causa perante o Tribunal de cuja decisão se pretende recorrer – as partes são obrigadas a
colocar antecipadamente ao juiz da causa as questões de constitucionalidade que pretendam
fazer chegar ao TC, permitindo-lhe conhecer e decidir, expressa ou implicitamente, a eventual
inconstitucionalidade.
Excecionalmente, o particular pode recorrer para o TC sem que a questão de
constitucionalidade tenha sido suscitada, discutida e decidida durante o processo. Desde que
objetivamente o particular não tivesse tido oportunidade processual de invocar a
inconstitucionalidade ou não tivesse tido a possibilidade de antecipar razoavelmente que uma
dada norma seria aplicada no processo, o TC aceita um recurso mesmo depois de o juiz da
causa já ter esgotado a possibilidade de conhecer e decidir, ele próprio, essa mesma questão.
Por exemplo, numa “decisão-surpresa”, o juiz comum aplica uma norma eventualmente
inconstitucional, mas fá-lo de forma objetivamente surpreendente, sem que fosse
minimamente previsível a aplicabilidade daquela norma na situação concreta.
iii) 70º/2 LOTC, 280º/4 CRP – devem ter sido esgotados os recursos ordinários cabíveis na
situação segundo a lei de processo aplicável.
iv) Ratio decidendi – de acordo com jurisprudência constante do TC, só é possível recorrer
quando a norma (ou interpretação normativa) objeto da questão de constitucionalidade tiver
constituído o fundamento normativo, a ratio decidendi, a razão de ser da resolução do caso,
por parte do Tribunal de que recorre, em termos tais que se obrigariam à reforma da decisão
recorrida caso a arguição da inconstitucionalidade obtivesse provimento do TC.
Este requisito explica-se pelo caráter instrumental da fiscalização concreta, que está
orientada para a resolução de problemas de constitucionalidade em casos concretos em
julgamento. A decisão que venha a ser tomada pelo TC tem de ter influência real nesse
processo, conferindo sentido útil ao recurso. Portanto, cabe recurso para o TC se a decisão
sobre o caso fosse diferente se o Tribunal comum tivesse decidido a questão de
constitucionalidade em sentido contrário, devendo o Tribunal comum julgar a causa de novo
e de modo diverso. Já se a questão de constitucionalidade não fosse relevante para a decisão
de fundo, o TC não é chamado a resolvê-la, pois o recurso teria sido inócuo.
Este requisito aplica-se a todos os subtipos do regime de recursos

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Efeitos da decisão – 80º LTC


 A decisão que o TC proferir em fiscalização concreta faz caso julgado no processo quanto à
questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade suscitada (80º/1).
 Se a decisão do TC for contrária à do Tribunal comum, este fica obrigado a reformar a decisão
anterior em conformidade o que tinha sido anteriormente decidido (80º/2).
 Os efeitos da decisão do TC esgotam-se no caso julgado – mesmo que o TC julgue a norma
inconstitucional, a decisão só vale para o caso concreto em julgamento. A norma em causa
não foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo que, até que o seja,
permanecerá plenamente em vigor na ordem jurídica, podendo ser legitimamente aplicada
por outros juízes em outros processos e devendo ser observada pela Administração e pelos
particulares.
 Ainda que a decisão só valha para o caso concreto e a norma julgada inconstitucional
permaneça em vigor, qualquer outra decisão judicial que a aplique noutro processo será
obrigatoriamente recorrida pelo MP para o TC (280º/5).

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2. Características do regime português de fiscalização concreta

Sendo, nas outras modalidades de fiscalização, o sistema português réplica do que acontece
noutras experiências em Estado constitucional, releva atentar nas notas que conferem uma
identidade própria ao sistema de fiscalização concreta, especialmente no que o distingue dos grandes
modelos de justiça constitucional.
Importa refletir sobre o sistema de fiscalização concreta especialmente por ser através desta
modalidade de fiscalização que os particulares podem aceder à justiça constitucional para a proteção
dos seus interesses e direitos fundamentais. Isto é, enquanto para todas as outras modalidades de
fiscalização a iniciativa é sempre de entidades públicas e, portanto, só indiretamente, peticionando
ou dirigindo-se a essas entidades, os particulares podem suscitar questões de constitucionalidade,
na fiscalização concreta os particulares assumem-se como atores principais, podendo dirigir-se
diretamente ao TC, ainda que com condicionamentos, através do recurso interposto de decisões dos
Tribunais comuns.
A importância da fiscalização concreta é verificável quando se compara o número de
processos que são decididos pelo TC em fiscalização concreta (1557 processos em 2017) e nas outras
modalidades de fiscalização da constitucionalidade (14 processos de fiscalização abstrata em 2017).

A) O TC só aprecia a inconstitucionalidade de normas


Em fiscalização abstrata, quase por definição, o TC só poderia apreciar a inconstitucionalidade
de normas, e não outro tipo de atos, já que as modalidades da fiscalização abstrata (preventiva ou
sucessiva, por ação ou por omissão) respeitam exclusivamente a diplomas ou normas objetivamente
considerados. Todavia, o legislador constituinte optou por estender esta característica à fiscalização
concreta: o TC português só aprecia a inconstitucionalidade de normas, mesmo em fiscalização
concreta. Assim, o sistema português distingue-se, neste aspeto, dos dois modelos de justiça
constitucional, nos quais os Tribunais Constitucionais e os Supremos Tribunais também apreciam a
inconstitucionalidade de outros atos pretensamente violadores de direitos fundamentais.

O Tribunal constitucional só aprecia a inconstitucionalidade de normas:


 O recurso de inconstitucionalidade para o TC incide exclusivamente sobre a eventual
inconstitucionalidade de normas em vigor: ou da norma ordinária (ou interpretação
normativa) cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal comum com fundamento em
inconstitucionalidade ou da que foi aplicada apesar de se ter suscitado a respetiva
inconstitucionalidade durante o processo.
 Se os direitos e interesses constitucionais dos particulares forem violados noutras situações,
por mais grave que seja a violação da Constituição, só cabe recurso para o TC se puder ser
invocada uma questão de constitucionalidade referente a normas. Se a lesão dos seus direitos
ou interesses constitucionais decorrer de atos, decisões ou sentenças, da Administração, dos
Tribunais ou de outros particulares, não cabe recurso para o TC, independentemente da
gravidade da eventual inconstitucionalidade ou violação de direitos fundamentais.

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 Também não pode ser invocada a inconstitucionalidade por omissão de normas. A omissão
legislativa pode ser invocada no plano da fiscalização abstrata, mas não no da fiscalização
concreta, que apenas incide sobre normas e nunca sobre a falta delas.
 Não podendo o TC decidir sobre a inconstitucionalidade de atos ou decisões ou sobre a
omissão de normas ou atos, por mais relevante que seja a inconstitucionalidade cometida ou
por mais gravosos que sejam os danos causados, quaisquer decisões dos Tribunais comuns,
que têm competência exclusiva nessas matérias de constitucionalidade, são definitivas. Aqui,
o anómalo não é haver Tribunais comuns a decidir questões de constitucionalidade (o que
acontece no modelo americano), mas o facto de o Tribunal Constitucional, um Tribunal criado
para administrar a justiça constitucional, ser privado da decisão das eventualmente mais
relevantes e numerosas questões de constitucionalidade.

Por exemplo:
 Se um Tribunal, um poder público, condenasse alguém à morte, haveria indiscutivelmente
uma inconstitucionalidade grave e inequívoca (já que “em caso algum haverá pena de morte”
– 24º/2). De acordo com o sistema português, o TC não dispõe de competência para intervir,
uma vez que não está em causa a inconstitucionalidade de uma norma.
 O Estado está obrigado não apenas a não agredir os direitos dos cidadãos, como a protegê-
los de agressões de outros particulares. Se não proteger, comete uma omissão
inconstitucional. Todavia, a questão não pode ir para o TC, porque não incide sobre normas,
mas sobre o ato de um particular e uma omissão do Estado. Ex: se uma pessoa estiver a ser
agredida e um agente da polícia assistir, ele está obrigado a proteger a integridade física do
agredido; se não o fizer, está a cometer uma omissão inconstitucional; o cidadão lesado pode
recorrer aos Tribunais, mas não ao TC.

B) Os Tribunais comuns decidem, mas com recurso para o TC


Em Portugal, criou-se um Tribunal Constitucional, ao lado da ordem jurisdicional comum, com
a específica função de administrar a justiça constitucional (tal como no modelo europeu). Mas
continua a dar-se aos Tribunais comuns a competência para decidir questões de constitucionalidade
(tal como no modelo americano). Portanto, os Tribunais comuns têm não apenas a competência de
conhecer questões de constitucionalidade (como é normal em ambos os modelos), mas também a
de decidir essas questões (como no modelo americano, e ao contrário do modelo europeu).
 Modelo americano – todos os Tribunais comuns e só eles fazem fiscalização da
constitucionalidade (não há Tribunal Constitucional).
 Modelo europeu – o Tribunal Constitucional e só ele faz fiscalização da constitucionalidade.
Os Tribunais comuns apenas conhecem questões de constitucionalidade, e não as decidem.
 Sistema português – tanto o TC como todos os outros Tribunais fazem fiscalização de
constitucionalidade.

Quem tem mais poder, o juiz português ou o juiz europeu?


 É verdade que o juiz europeu não tem a possibilidade de decidir questões de
constitucionalidade, mas tem um poder definitivo neste domínio: reenviar a questão para o

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TC se a considerar pertinente, não reenviar se considerar que não tem razão de ser. Portanto,
o juiz europeu tem, pelo menos, o poder de decidir se a questão tem dignidade para ir para
o TC (e tal não é um défice do modelo europeu porque se o cidadão europeu pode socorrer-
se, em última instância, do recurso de amparo).
 Por outro lado, o juiz português pode e deve decidir questões de constitucionalidade, mas
apenas aparentemente: o poder de fiscalização da constitucionalidade foi como que um
presente envenenado para o juiz português, que corre um risco sério de ver a sua decisão
revogada pelo TC, vendo-se obrigado a reformar a sua decisão no caso concreto. Então, ainda
que o sistema português dê aos juízes comuns a possibilidade e a obrigatoriedade de decidir
questões de constitucionalidade, das suas decisões cabe quase sempre recurso para o TC,
muitas vezes obrigatório para o MP. E se o TC decidir em sentido diverso do anteriormente
decidido, o juiz comum tem que reformar a sua anterior decisão.
 Portanto, formalmente o sistema português de fiscalização concreta atribui a todos os
Tribunais a faculdade de decisão das questões de constitucionalidade mas, no fundo, as suas
decisões são meramente provisórias, porque se assegura que seja o TC a decidir em definitivo.
Ou seja, o sistema português confia nos Tribunais comuns ao atribuir-lhes a possibilidade de
decidir, mas retira-lhes imediatamente a confiança quando dá às partes possibilidade de
recurso para o TC.
 Em sentido contrário, no sistema português, no que à inconstitucionalidade de atos, decisões
e omissões diz respeito, a decisão do juiz comum é definitiva, não cabendo recurso para o TC.

C) Qualquer inconstitucionalidade de norma pode ser sujeita a fiscalização

A possibilidade de recurso para o TC é independente de requisitos como:


 a relevância do dano ou ao prejuízo ou lesão dos interessados;
 o tipo de inconstitucionalidade – que pode ser orgânico ou formal, e não apenas material;
 o momento em que a eventual inconstitucionalidade foi cometida – mesmo estando a norma
em causa em vigor e ser aplicada há dezenas de anos;
 a relevância constitucional da questão.

Assim, não é difícil “inventar” uma inconstitucionalidade:


 No sistema português, um particular não tem qualquer dificuldade em fazer intervir o TC
numa pretensa questão de constitucionalidade de normas, a todo o tempo – ex: basta alegar
que a matéria em causa é de reserva de competência da AR, o que é fácil de defender, por
exemplo, por a norma incidir sobre direitos, liberdades e garantias (165º/1/b).
 Pelo contrário, nos modelos americano e europeu de fiscalização da constitucionalidade, a
intervenção dos Supremos Tribunais e dos Tribunais Constitucionais é sujeita a filtros que
reservam a sua intervenção para as questões verdadeiramente importantes.
 Exemplo: uma norma laboral foi aprovada nos anos oitenta sem a prévia audição das
associações sindicais que a Constituição impõe; no entanto, era conhecida a opinião das
associações sindicais a propósito; a norma esteve em vigor incontestadamente durante mais

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de trinta anos, período durante o qual foi alterada vezes sem conta; as associações sindicais
foram posteriormente e repetidamente ouvidas, pelo que a omissão não causou qualquer
prejuízo; decorridos mais de trinta anos alguém invoca, num litígio concreto, a
inconstitucionalidade desta norma; o TC, não se provando a audição, se quiser cumprir a
Constituição, terá de julgar a referida norma inconstitucional e, em princípio, como se trata
de fiscalização concreta, vai ter de anular todos os efeitos que a norma entretanto produziu
na vida do litigante desde os anos oitenta até hoje.

D) A decisão do TC só vale para o caso concreto e não erradica a norma inconstitucional


Quando o Tribunal Constitucional julga uma norma inconstitucional em fiscalização concreta,
a sua decisão só produz efeitos no caso concreto, não erradicando a norma julgada inconstitucional
nem excluindo a sua aplicabilidade noutros casos. Esta característica do sistema português é uma
singularidade e uma anomalia:
 Modelo americano – vigora a regra do precedente judicial, como é típico nos países de
common law. Quando os Tribunais superiores, e especialmente o Supremo Tribunal, julgam
uma norma inconstitucional, os Tribunais inferiores estão vinculados a seguir essa
jurisprudência. A norma julgada inconstitucional pode continuar a ser law on the books, mas
deixa de ser aplicada, é dead law.
 Modelo europeu – embora não haja força vinculativa dos precedentes judiciais, as decisões
do TC, mesmo a propósito de um caso concreto, têm força obrigatória geral.
 Sistema português – a norma julgada inconstitucional pelo TC não vê nem a sua vigência nem
a sua aplicabilidade afetadas, podendo continuar a ser aplicada pelo mesmo ou por outros
Tribunais a outros casos. A decisão do TC não vincula.

Certas eventualidades têm consequências nefastas em termos de segurança jurídica, de


unidade do sistema jurídico e de igualdade entre os cidadãos:
 Uma norma aplica-se a um cidadão e, no mesmo dia, numa situação igual, outro cidadão vê
a aplicação da mesma norma recusada, mesmo tendo o TC tomado anteriormente uma
posição sobre a inconstitucionalidade norma.
 Uma norma pode ser sucessivamente julgada inconstitucional pelo TC em casos concretos,
mas, se ninguém tomar a iniciativa de a levar ao TC em fiscalização sucessiva abstrata, ela
continuará em vigor e a ser aplicada.
 Pode ter o TC julgado a não inconstitucionalidade da norma reiteradamente e, ainda assim,
continuarem os juízes a recusar-se a aplicá-la com fundamento em inconstitucionalidade.
 Poderia pensar-se ser uma questão de tempo, porque a questão chegará de novo ao TC, que
reporá a normalidade e unidade do sistema jurídico. Mas nada obriga o TC a manter a posição
anterior.

Essas eventualidades não são hipóteses académicas: caso real


 Art. 38º/1 do Regulamento Disciplinar da PSP – determina a suspensão automática de funções com perda parcial
de vencimento do agente da PSP objeto de um despacho de pronúncia em processo penal por infração a que
corresponda pena de prisão superior a três anos.

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 Em 2016, o Tribunal Constitucional considerou, em fiscalização concreta, o art. 38º/1 inconstitucional. Mas essa
norma, que pode produzir efeitos gravíssimos na vida profissional e pessoal dos afetados, continua em vigor e a
ser aplicada a outros casos.
 A norma chegou mais quatro vezes ao TC e em todas elas foi julgada inconstitucional, sempre com base no
fundamento de constituir uma violação do princípio da presunção de inocência do arguido conjugado com o
princípio da proporcionalidade.
 Apesar de cinco decisões do TC no sentido da inconstitucionalidade, a norma continua em vigor, a ser aplicada
e a produzir efeitos, até que, em fiscalização abstrata, o TC a declare inconstitucional com força obrigatória
geral. Após a quinta decisão, o MP teve iniciativa de desencadear o processo de fiscalização sucessiva abstrata.
 Tal poderia abonar a favor da racionalidade do sistema português de fiscalização da constitucionalidade: a
norma por cinco vezes julgada inconstitucional pelo TC seria finalmente declarada inconstitucional com força
obrigatória geral, desaparecendo da ordem jurídica, repondo a coerência, integridade e unidade do sistema.
 Mas nada garante que o Tribunal Constitucional decida no sentido das anteriores cinco decisões. Não é uma
hipótese meramente académica que o TC, após julgar a norma inconstitucional, por cinco vezes, se arrependa.
Foi o que aconteceu em 2017, quando o TC, à sexta decisão, decidiu que o art. 38º/1 não era inconstitucional.

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3. Modelos de justiça constitucional

A) Confronto entre os modelos de justiça constitucional

Modelo americano Modelo europeu


> Historicamente, foi o primeiro modelo, e o
mais solidamente estabilizado. Assenta
> Desenvolvido após a 2ªGG, assenta na criação
numa racionalidade jurídica inatacável, cujos
de um órgão exclusivamente responsável pela
fundamentos, apesar de ausentes no texto
administração da justiça constitucional, o Tribunal
constitucional, foram criados e
Constitucional (de inspiração kelseniana, dita
desenvolvidos pelo Supremo Tribunal a
austríaca), a quem se atribui a garantia dos
partir do célebre caso Marbury v. Madison
direitos fundamentais.
(1803). Está ligado à natureza de um sistema
jurídico de common law, assente na força do > Desenvolve, sobretudo a partir dos anos
precedente judicial. setenta, uma enorme atração junto dos novos
Estados constitucionais que integram a sucessivas
> Expandiu-se a partir do séc. XIX para
vagas de democratização na Europa, África, Ásia e
Estados da América latina e alguns países
excecionalmente, América.
europeus (Constituição portuguesa de
1911).
> Todos os juízes, de todos os tribunais, são > Na Europa, a separação de poderes foi assumida
“juízes constitucionais”, porque conhecem e de forma diferente. Durante mais de um século
decidem de questões constitucionalidade. após as revoluções liberais e a instituição de
Estados de Direito, a Constituição era assumida
> A assunção desta prerrogativa, mesmo
como um documento de referência política, uma
quando nada diz a Constituição (como nos
norma organizadora dos poderes públicos, mas,
EUA), justifica-se pela decisão que o juiz tem
no que se referia aos direitos fundamentais, não
de tomar quando se confronta com duas
era vista como norma jurídica aplicável pelos
normas opostas aplicáveis ao caso. Todos os
juízes. Assim, quando o instituto da fiscalização da
sistemas jurídicos de Estado de Direito
constitucionalidade foi praticamente ignorado nas
contêm critérios jurídicos de resolução do
ordens jurídicas europeias. Só no pós-2ªGG a
problema, como o critério da temporalidade
Constituição passou a ser generalizadamente
ou o da especialidade. Outro desses critérios
considerada norma jurídica.
é o da hierarquia: norma superior prevalece
sobre norma inferior. > Além disso, a ausência do precedente judicial
nas ordens jurídicas europeias contribuía para
> Ora, face a um conflito entre uma norma
afastar a ideia de importação para a Europa do
constitucional e uma norma
modelo americano de justiça constitucional, visto
infraconstitucional (ordinária), prevalece a
como um governo dos juízes, incompatível com os
norma constitucional, enquanto norma
quadros de uma democracia representativa
suprema de qualquer sistema jurídico de
assente no voto popular e na legitimidade das
Estado de Direito com Constituição em
assembleias representativas. Permitir que cada
sentido formal.
juiz pudesse decidir questões de
> A Constituição é assumida, desde o constitucionalidade, sem a presença unificadora
primeiro momento, como verdadeira norma da força do precedente judicial, geraria situações
jurídica aplicável pelos Tribunais. de insegurança e desigualdade inaceitáveis.

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> Para o juiz desaplicar a norma ordinária > Só entre as duas guerras se desenvolveram na
tem de previamente verificar se há uma Europa, sobretudo por influência de Kelsen,
desconformidade entre essa norma e a tímidas experiências de fiscalização da
Constituição, ou seja, deve proceder a uma constitucionalidade, em torno de um Tribunal
fiscalização (judicial review) e decidir uma Constitucional, à margem da ordem jurisdicional
questão de constitucionalidade. comum, a quem cabia a administração da justiça
> A questão de constitucionalidade surge constitucional, mas sobretudo em matérias
como uma questão incidental, no curso de relativas à estruturação e repartição vertical dos
um processo tendente à resolução de uma poderes e às questões de inconstitucionalidade
questão principal. orgânica e formal a elas associadas.

> É uma fiscalização concreta, na nascida e > O modelo de justiça constitucional europeu
orientada para a resolução de um caso desenvolvido no pós-2ªGG é algo de radicalmente
concreto. novo, assente na atribuição exclusiva a um
Tribunal Constitucional das competências no
> É uma fiscalização difusa, na medida em domínio da garantia dos direitos fundamentais e
que integra as funções e competências de dos princípios materiais estruturantes das ordens
todos os juízes, ainda que esteja sujeita a de Estado de Direito.
recurso para o Tribunais superiores, como
qualquer outra decisão judicial. > Os juízes comuns, embora conheçam das
questões de constitucionalidade, não as decidem.
> E apesar de os Tribunais superiores Assim, se no decurso de um caso concreto surgir
estarem apenas a decidir o recurso de uma uma questão de constitucionalidade, o juiz da
decisão de caso concreto, a posição que causa confirma a existência de dúvidas razoáveis
assumirem quanto à eventual sobre a conformidade constitucional, suspende a
inconstitucionalidade (da norma, ato ou instância e remete a decisão da questão de
decisão em causa) adquire força de constitucionalidade para o TC, através do instituto
precedente na respetiva jurisdição, pelo do reenvio prejudicial, que assegura a
que, em última análise, a decisão de exclusividade ou monopólio da administração da
inconstitucionalidade tomada pelo Supremo justiça constitucional pelo Tribunal Constitucional.
Tribunal, apesar de decidida num caso
concreto, tem força obrigatória geral e > Ao TC não cabe a apreciação do caso concreto,
passa a ser seguida por todos os Tribunais. mas apenas a decisão da questão de
inconstitucionalidade da norma em causa que,
> Na ausência de uma cultura jurídica de sendo inconstitucional, não só é desaplicada no
reconhecimento de força vinculante ao caso concreto como é erradicada da ordem
precedente judicial, outros países acolhem jurídica.
que o modelo americano adotam outros
mecanismos constitucionais eu procuram > A proteção dos direitos fundamentais contra
alcançar efeitos análogos, como seja a quaisquer normas ou atos inconstitucionais faz-se
súmula vinculante no Brasil. sobretudo através do recurso de amparo ou
queixa constitucional. Através deste instituto, os
cidadãos, após esgotarem a via judicial comum,
acedem diretamente ao TC para garantir os
direitos fundamentais que consideram violados,
por ação ou omissão, pelo legislador, a
administração, os Tribunais ou outros particulares.
> A generalidade dos sistemas que adotam o > Para assegurar a eficácia do sistema e prevenir
modelo americano institui mecanismos de eventuais bloqueios de funcionamento,
seleção e filtragem das questões de estabelecem-se alguns filtros de acesso direito
constitucionalidade que chegam ao dos cidadãos ao TC: reserva de acesso só para

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Supremo Tribunal. Nos EUA, é atribuído ao defesa de alguns direitos fundamentais,


ST a competência discricionária de escolher instituição de limites temporais para a reação
os casos que decide (writ of ceriorati). No contra eventuais violações, esgotamento dos
Brasil adotam-se critérios materiais de recursos ordinários, relevância da questão
seleção. constitucional.

B) Supremacia da Constituição na Europa e na América


As revoluções liberais dos finais do séc. XVIII fizeram emergir, na Europa e na América, Estados
de Direito dotados de Constituições vistas como norma suprema. No entanto, até meados do séc.
XX, a relevância dada à Constituição e as modalidades da sua garantia foram muito distintas na
Europa e na América.

Supremacia da Constituição na América


Nos Estados Unidos, os Tribunais assumiram a supremacia da Constituição no plano das fontes
de Direito, aplicando-a como verdadeira norma jurídica com caráter supremo. Nesse sentido,
arrogaram-se praticamente de imediato do poder de não aplicar leis inconstitucionais, mesmo na
ausência de uma previsão constitucional expressa, como sendo uma atividade normal e típica da
função judicial (dar preferência à norma superior em caso de colisão normativa).
 Causas do favorecimento da intervenção privilegiada do poder judicial:
o Ausência de suspeita política, social ou ideológica dos poderes políticos relativamente aos
juízes, devido a uma homogeneidade sociológica da comunidade (desconsiderando-se o
segregacionismo racista generalizado, que não revelava no mundo político constitucional
da época, dada a recusa da cidadania à população afro-americana) que se distribuía
indiferentemente por todos os ramos do poder.
o Desconfiança quanto a eventuais abusos das assembleias parlamentares, dado o histórico
relacionamento atribulado das colónias americanas com o Parlamento inglês.
o Sendo a forma de Estado dos EUA a de Estado federal, as questões de constitucionalidade,
particularmente a delimitação dos poderes federais da União e dos poderes dos Estado,
foram naturalmente remetidas para um poder judicial.
 Se no início as questões de constitucionalidade respeitavam sobretudo à desaplicação de
normas ordinárias inconstitucionais no plano da divisão vertical e horizontal dos poderes, a
garantia dos direitos fundamentais proclamados na Bill of Rights (10 primeiras emendas à
Constituição americana) também passou a ser vista como tarefa normal do poder judicial.
 Todavia, a defesa dos direitos fundamentais, por influência do contexto político que se
desenvolvia e dos pressupostos ideológicos dos intervenientes, acabou por ficar manchada:
o Decisão Dred Scott – em 1857 o Supremo Tribunal recusou a cidadania aos afro-
americanos, recusando-lhes o acesso aos Tribunais federais, e considerou os escravos
propriedade privada, protegida pela Constituição, pelo que o Congresso não dispunha de
poderes de regulação sobre os Estados nesse domínio.
o Lochner era – começou em 1905, com o caso Lochner vs. New York, e foi até a 1937.
Caracteriza-se pelo ativismo judicial reacionário de invalidação da legislação social e

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políticas económicas redistributivas, em nome de uma visão liberal-burguesa, da


liberdade contratual e de uma prevalência absoluta do direito de propriedade.
 Ainda assim, o poder judicial americano assumiu-se, praticamente desde a revolução liberal,
como juiz da distribuição constitucional dos poderes e da defesa das garantias constitucionais,
incluindo a delimitação das competências do legislador democrático.
 Mas só na segunda metade do séc. XX o Supremo Tribunal se afirmou plenamente como
Tribunal de defesa das liberdades e da igualdade entre cidadãos.

Supremacia da Constituição na Europa


No Estado de Direito liberal europeu, durante mais de um século, a desaplicação judicial de
leis com fundamento em inconstitucionalidade foi praticamente desconhecida e expressamente
rejeitada. Depositava-se inteiramente nos Parlamentos democráticos a competência e garantia da
realização política da Constituição, enquanto se recusava a garantia judicial da supremacia da
Constituição, que acabava por ter um caráter meramente proclamatório dos direitos fundamentais.
 Fatores determinantes da recusa em atribuir aos juízes quaisquer competências de
fiscalização da constitucionalidade ou de controlo da atuação do legislador:
o Conceção muito marcada da separação de poderes em que avultava a ideia de soberania
do Parlamento e de confiança incondicionada no império da lei.
o Desconfiança historicamente justificada para com os juízes, devido ao seu alinhamento
reacionário.
o A importação da judicial review americana geraria, em países de civil law, sem a regra do
precedente, que garante a uniformidade das decisões judiciais através da vinculação dos
Tribunais inferiores às decisões dos Tribunais superiores, insegurança jurídica, com juízes
a aplicar determinadas normas e outros a desaplicá-las em situações análogas.
 Após a fase inicial de rutura revolucionária começou a generalizar-se na Europa um processo
de compromisso com a reação monárquica que resultou na transformação do Estado de
Direito liberal, na sua origem revolucionária impregnado pelos valores da liberdade, em
Estado de Direito formal:
o Supremacia da Constituição – enquanto na América a Constituição era aplicada como
norma jurídica, na Europa, a Constituição material por que se lutara nas revisões
constitucionais (expressa pelo art. 16º da DDHC: direitos fundamentais e separação de
poderes) foi durante muito tempo reduzida a codificação meramente formal dos poderes
do Estado. A supremacia da Constituição era concebida como mero pressuposto de
integração e fundamentação da unidade piramidal do ordenamento jurídico.
o Estado de Direito formal é o Estado autolimitado pela lei positiva livremente criada pelo
poder político, que se identifica com império da lei, princípio da legalidade e justiça
administrativa.
o A justiça imanente ao Estado de Direito formal é garantida pela lei, geral e abstrata,
aprovada pelo órgão representativo. Assim, justiça e direitos fundamentais identificam-se
com a vontade do legislador.
o Durante o século e meio seguinte às revoluções liberais, a proteção institucional dos
direitos fundamentais não existiu como tema na Europa. Os direitos fundamentais são
vistos como mera proclamação político-constitucional, tendo uma natureza retórica ou

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programática. A determinação concreta do seu conteúdo (com exceções, como a


propriedade) cabia discricionariamente ao legislador democrático. Era a época do lema
“direitos fundamentais à medida da lei”.
o Nesse sentido, é impensável a aplicação direta dos direitos fundamentais pelo juiz, e
muito menos a aplicação dos direitos fundamentais contra a lei. Deve haver uma
subordinação da Administração e dos Tribunais à lei, aprovada pelos Parlamentos. “O juiz
é a boca que pronuncia as palavras da lei”.

C) Kelsen e a proposta de uma jurisdição constitucional especializada

ESTE PONTO ESTÁ INCOMPLETO E DESORGANIZADO


147-153, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional

Apesar de a fiscalização da constitucionalidade só ter surgido na Europa, de forma


generalizada, depois da 2ªGG, já a partir dos anos 1920 a academia discutia se a Europa devia
importar uma fiscalização como na América.
 Na compreensão positivista do Direito de Hans Kelsen, há necessidade de garantir a validade
indiscutível dos vários escalões normativos (Constituição, lei, regulamentos). Para que um ato
seja válido, tem de ter sido elaborado respeitando as imposições do ato acima na pirâmide
normativa. Para garantir esta necessidade, é necessário que um órgão independente, um
Tribunal Constitucional, verificasse a regularidade das normas face à Constituição, mas
unicamente relativamente ao que hoje se designa por inconstitucionalidade orgânico-formal.
O Tribunal Constitucional apenas se destinava a verificar se a lei tinha sido elaborada de
acordo com as normas constitucionais em vigor ou, quando a constituição fosse inequívoca,
a propósito de alguma questão material.
 Kelsen recupera as ideias norte-americanas da supremacia da Constituição enquanto norma
jurídica e da instituição de uma justiça constitucional, ainda que em moldes diferentes. Ainda
assim, estava excluído das tarefas da justiça constitucional a dimensão material e valorativa
daquela supremacia, pelo que ao Tribunal Constitucional não cabia a realização material dos
direitos fundamentais.
 Esta dicotomia – supremacia formal da Constituição e irrelevância normativa dos direitos
fundamentais – faz todo o sentido na construção kelseniana, que acompanhava o processo
de formalização do Estado de Direito e colocava entre parêntesis os valores materiais que
presidiram às revoluções liberais.
 Assim, para Kelsen, a justiça constitucional devia incidir primacialmente sobre o processo de
feitura de leis, apreciando-se unicamente inconstitucionalidades orgânico-formais. O Tribunal
Constitucional era um juiz do legislador ou legislador negativo, que se limita a invalidar as leis
inconstitucionais, erradicando do sistema jurídico as leis que não tivessem sido produzidas de
acordo com o escalão superior, o constitucional.
 Daí a necessidade de um controlo concentrado das leis, já que a expulsão da lei inválida da
ordem jurídica não seria realizável através de uma fiscalização difusa, sobretudo na Europa,

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onde não vigorava a regra do precedente, que permite a uniformização e generalização das
eventuais decisões de inconstitucionalidade dos Tribunais comuns.
 Assim, Kelsen alinhava-se com a visão europeia tradicional da separação de poderes: o TC faz
fiscalização da constitucionalidade não para impor os valores constitucionais na perspetiva de
uma qualquer supremacia material da Constituição (direitos fundamentais) contra o poder
democrático, mas para depurar as incoerências técnicas no sistema, para erradicar
contradições, permitindo que os Tribunais pudessem, de forma quase mecânica, aplicar as
leis ordinárias.
 Sendo a função legislativa uma função de livre criação do legislador, não materialmente pré-
determinado pela Constituição, a eventual anulação de uma lei por outra entidade que não o
legislador, o Tribunal Constitucional, um legislador negativo, devia estar inteiramente
determinada pela Constituição, não havendo nela lugar para decisão criativa; a jurisdição
constitucional devia ser simplesmente técnica.
 A lei só podia ser invalidade pelo TC quando, do ponto de vista procedimental ou,
excecionalmente, também material, estivesse inequivocamente em contradição com a norma
constitucional de conteúdo normativo suficientemente determinado. Só nas raras situações
em que a norma constitucional de direitos fundamentais é suficientemente determinada é
que podia servir de padrão inequívoco de controlo da constitucionalidade da lei pelo TC, sem
atropelo à natureza deste como legislador negativo.
 Se os princípios genéricos ou direitos fundamentais, na sua formulação típica, materialmente
indeterminada, invadissem o sistema de fiscalização, então o caráter necessariamente vago
e aberto deste tipo de normas remeteria para o juiz constitucional a possibilidade de
imposição dos seus valores próprios contra a decisão democrática do órgão legislativo, o que
transformaria ilegitimamente o juiz constitucional em legislador positivo. Se o conteúdo
desses princípios não pudesse ser determinados de forma unívoca, eles não podiam ser
objeto de aplicação jurídica técnica, uma vez que há tantos sentidos possíveis daquelas ideias
quanto a ideologia de cada um dos aplicadores. Se fosse possível fazer fiscalização da
constitucionalidade sobre princípios gerais, estar-se-ia a atribuir ao TC um poder perigoso: a
jurisdição constitucional poderia passar a decidir sobre qualquer lei aprovada pelo
Parlamento. Se a maioria dos juízes considerasse a lei injusta, face às suas próprias conceções,
ela seria invalidade, mesmo que a maioria da população, através do Parlamento, fosse de
opinião contrária.
 Kelsen estava, no plano dos direitos fundamentais, alinhado com a restante doutrina europeia
na rejeição do “governo dos juízes”. Permitir que o Tribunal Constitucional apreciasse, por
exemplo, a violação de princípios constitucionais seria acolher o governo dos juízes, o reino
do arbítrio, porque cada juiz tem a sua ideia sobre o que é a igualdade, a dignidade da pessoa
humana, a proporcionalidade. Se esta hipótese já era de rejeitar quanto ao TC, ainda mais
absurda seria quanto aos juízes comuns que, sem a devida legitimidade, seriam criadores da
norma que a seguir iriam aplicar ao caso concreto.
 Por isso, para Kelsen era fundamental a forma de designação dos juízes constitucionais,
designadamente sendo nomeados por órgãos democráticos, por Parlamentos, que lhes
garantia a legitimidade democrática indireta para funcionarem como legisladores negativos,
que tinham o poder de anular leis desconformes à Constituição (orgânico-formal),
 Proposta de Kelsen: Tribunal Constitucional que recolhe legitimidade democrática indireta e
que aprecia apenas inconstitucionalidades orgânico-formais e, excecionalmente, materiais
(quando a norma constitucional for suficientemente determinada), procurando garantir a

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vivencia da Constituição como norma jurídica superior, ao mesmo tempo que se assegurava
a integridade unitária e sem brechas do sistema jurídico, mas sem sucumbir aos perigos do
governo dos juízes.
 Alguns países europeus, como a Áustria e a Alemanha de Weimar, acolheram esta proposta
e criaram um Tribunal deste tipo, sobretudo porque, sendo Estados federais, era necessário
decidir os conflitos entre o que cabe ao Estado Federal e o que cabe a Estados federais,
assegurando a prevalência da Constituição federal.

A proposta kelseniana procurava afastar o risco de, num novo ambiente académico favorável
à importação do modelo americano, a doação da fiscalização da constitucionalidade das leis legitimar
uma possível insubordinação dos juízes contra as novas forças políticas e sociais progressistas que
entretanto chegavam, na Europa, aos parlamentos democráticos do Estado social. A revitalização do
Estado de Direito democrático, com o sufrágio universal e a consequente chegada à vida política das
novas camadas, forças sociais e partidos políticos, produziria um pluralismo parlamentar que pôs em
causa a ideia oitocentista da intrínseca racionalidade e justiça imanentes à lei geral e abstrata,
aprovada pelos órgãos da “vontade geral”. A lei já não era o produto consensual e racional de um
Parlamento homogéneo, mas o resultado da decisão política maioritária de um Parlamento plural.
Assim, era inelutável o reconhecimento da possibilidade de contradição entre Constituição e lei e,
logo, em Estado de Direito, da necessidade de instituição de uma justiça constitucional que
resolvesse essas desconformidades. Por outro lado, a adoção da justiça constitucional na Europa não
devia servir para replicar a situação americana de ativismo judicial do Supremo Tribunal contra
legislação social. Uma mera importação do sistema americano podia pôr em causa as novas
conceções de democracia e justiça social. Daí que a proposta de Kelsen de um Tribunal Constitucional
especialmente encarregue da fiscalização da constitucionalidade, à margem dos Tribunais comuns,
democraticamente legitimado, e exclusivamente empenhado numa verificação técnica que
garantisse a supremacia das normas constitucionais de conteúdo suficientemente determinado,
pretendia ser a resposta para aquela dificuldade.

D) Novo constitucionalismo

Superação da discussão clássica sobre os modelos de jurisdição constitucional


 O enquadramento teórico e o contexto social e político da discussão sobre os modelos de
jurisdição constitucional da primeira metade do séc. XX em nada tem a ver com o ambiente
que presidirá à criação generalizada da justiça constitucional na Europa no pós-guerra.
 Embora a proposta de Kelsen tenha estado na origem dos modernos Tribunais Constitucionais
e do modelo europeu de fiscalização da constitucionalidade, os motivos do desenvolvimento
desses e deste são completamente diferentes dos que presidiram ao debate dos anos vinte e
trinta na Europa, desde logo, devido ao papel dado, em cada um desses momentos, aos
direitos fundamentais e à garantia institucional dos mesmos.
 Os pressupostos da conceção europeia tradicional sobre as relações entre legislador e juiz, e
entre juiz comum e juiz constitucional, foram completamente alterados com o novo
constitucionalismo.

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Novo constitucionalismo na Europa


 A segunda metade do séc. XX é um momento de refundação para o constitucionalismo. Os
anos que antecederam esse período foram marcados, na Europa, por atrocidades
inimagináveis postas em prática por regimes totalitários, que evidenciaram uma chocante
inoperância dos mecanismos de defesa da Constituição. As experiencias dramáticas vividas
na Europa impuseram às comunidades políticas de Estado de Direito mudanças profundas
nas instituições e nas conceções, em todos os domínios, mas também na área constitucional.
 O novo Direito constitucional deve adequar-se ao tipo histórico de Estado que se contrapôs
às alternativas autocráticas do séc. XX e que prossegue hoje o legado do Estado de Direito
liberal e das revoluções liberais, o Estado social e democrático de Direito.
 Há, pois, uma rematerialização do conceito de Estado de Direito, não mais identificado com
o Estado de legalidade do positivismo, que permitiu o preenchimento do conceito de Estado
de Direito por quaisquer valores, desde que atuados na forma de lei. O Estado de Direito colhe
agora a sua legitimidade, também na observância da legalidade, mas sobretudo numa pauta
universal de valores em que se incluem os direitos fundamentais.
 Há uma rejeição dos valores que inspiraram a imposição de sofrimento atroz a milhões de
vítimas, como os do engrandecimento do Estado, da classe, raça ou religião. O novo
constitucionalismo reafirma, mas com um novo sentido, a sua inspiração fundadora no valor
da igual dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, que a devem assegurar.
 Os direitos fundamentais, que concretizam a garantia da igual dignidade da pessoa humana,
já não são mera proclamação retórica cuja realização se satisfaça com a sua entrega às boas
intensões do poder político e do legislador. Pelo contrário, são norma jurídica diretamente
aplicável, dotada da força constitucional e que vincula todos os poderes do Estado, incluindo
o legislador democrático. A supremacia dos direitos fundamentais deve agora ser assegurada
por um poder judicial independente da maioria política que ocupa conjunturalmente o poder.
 O novo constitucionalismo é configurado por outras preocupações, que convergem para o
domínio dos direitos fundamentais e da justiça constitucional: conceção dos direitos
fundamentais como parte nuclear da Constituição; preocupação com a garantia, efetividade
e aplicabilidade direta da Constituição e dos direitos fundamentais como normas jurídicas;
vinculação e responsabilização de todos os poderes, designadamente o poder judicial, na
observância e realização dos direitos fundamentais; garantia institucional do acesso dos
particulares aos Tribunais para defesa de lesões aos seus direitos fundamentais.

Novo constitucionalismo na América


 Também nos Estados Unidos a justiça constitucional experimentou, pela mesma altura, uma
viragem em sentido convergente, após o longo período de jurisprudência reacionária e de
oposição a medidas sociais do Supremo Tribunal.
 Em 1937, o Supremo Tribunal abandonou o conservadorismo ideológico militante da Lochner
era, orientando-se para uma autocontenção judicial no que diz respeito às medidas sociais. A
mudança jurisprudencial deu-se devido a ameaças do Presidente: se os juízes não parassem
com a oposição sistemática à legislação do New Deal, Roosevelt alteraria a composição do
Supremo Tribunal. A ameaça funcionou e um dos nove juízes mudou o seu sentido de voto, o
que inverteu a anterior maioria reacionária (the switch in time that saved nine).

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Baltazar Oliveira

 Já nas décadas de 1950 e 1960, o eventual ativismo judicial na jurisdição constitucional dos
Estados Unidos reorientou-se em favor dos direitos fundamentais, nomeadamente através
de decisões contra a segregação racial, de defesa das liberdades políticas das minorias, a favor
da separação Estado-religião ou de defesa dos direitos dos arguidos.

E) A importância da garantia dos direitos fundamentais e a convergência dos modelos


Perante a convergência material dos modelos de justiça constitucional que ocorreu com o
novo constitucionalismo, a anterior discussão sobre as alternativas dos modelos de fiscalização da
constitucionalidade em disputa, europeu e americano, foi ultrapassada. Agora, qualquer que seja a
opção institucional feita (modelo americano ou modelo europeu), a verdadeira questão prende-se
com a efetividade com que dado sistema (e tal não depende do modelo em que esse dado sistema
se enquadre) garante a supremacia material da Constituição e os direitos fundamentais.
Hoje, os modelos de justiça já não se distinguem entre o modelo que visa assegurar a
supremacia material da Constituição como norma jurídica na sua aplicação a casos concretos por
decisões judiciais (modelo americano) e o modelo que visa controlar a regularidade orgânica e formal
da produção legislativa através da fiscalização abstrata das leis (modelo europeu).
De acordo com o art. 16º da DDHC, Constituição é direitos fundamentais e separação de
poderes. Todavia, no Estado de Direito material do pós-guerra, deve haver consciência da
instrumentalidade da separação de poderes face à centralidade dos direitos fundamentais. Por isso,
os vários tipos de inconstitucionalidade não se encontram no mesmo plano nem assumem a mesma
relevância: o essencial da função das jurisdições constitucionais é assegurar a supremacia material
da Constituição e os direitos fundamentais.
Consequentemente, em Estado de Direito, com anulação judicial de leis inconstitucionais
aprovadas pelo Parlamento, há sempre uma entorse à regra da maioria e ao princípio democrático.
Essa entorse encontra justificação na garantia dos direitos fundamentais, matéria retirada pelo
legislador constituinte da livre disponibilidade das maiorias conjunturais.
Assim, a doutrina libertou-se do anacronismo da anterior competição entre modelo
americano e modelo europeu de justiça constitucional, dirigindo-se para o debate sobre qual a
melhor forma de garantia dos direitos fundamentais. Houve uma convergência ou hibridização dos
dois modelos clássicos. As funções que os Tribunais Constitucionais são hoje chamados a
desempenhar afastam-se do espírito da proposta de Kelsen (criação de um órgão jurisdicional especializado
e organicamente separado da estrutura hierárquica do poder judicial, o Tribunal Constitucional, que decide
exclusivamente questões de constitucionalidade, como a repartição territorial de poderes, a inconstitucionalidade das
leis e sua erradicação da ordem jurídica, mas limitando-se à verificação de inconstitucionalidades formais e orgânicas),
aproximando-se de uma justiça de casos do modelo americano, orientada para a proteção dos
direitos fundamentais.

Evolução do objeto sobre que incide a justiça constitucional do modelo europeu (de Tribunal
Constitucional), em três momentos históricos ou áreas materiais:
 O Tribunal Constitucional é jurisdição do político – delimitação das divisão horizontal e vertical
e territorial de competências.
 O Tribunal Constitucional é legislador negativo – controla a constitucionalidade das leis de
acordo com a proposta de Kelsen.

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Baltazar Oliveira

 Jurisdição de amparo dos direitos fundamentais – no pós-guerra

O modelo europeu é muito atrativo para Estados recém-chegados à democracia e ao Estado


de Direito, por todo o globo, especialmente quando esses Estados viveram regimes ditatoriais com
violações sistemáticas dos direitos fundamentais, com a passividade ou colaboração do aparelho
judicial. Por outro lado, percebe-se porque, em países como França ou o Reino Unido, em que os
direitos fundamentais foram assegurados durante o século XX sem ruturas significativas, e sem a
existência de uma justiça constitucional, haja tantas reticências relativamente à criação de uma
verdadeira justiça constitucional, em nome da separação de poderes.

O atual modelo de Tribunal Constitucional (hoje impropriamente dito europeu), embora


tributário da ideia de Kelsen, é algo de muito diverso dessa proposta. A novidade do modelo de
Tribunal Constitucional, que o aproxima do modelo americano de judicial review, é a garantia da
supremacia material da Constituição e dos direitos fundamentais, seja do legislador ou de quaisquer
outros poderes públicos, incluindo o juiz comum e a Administração.
Foi ultrapassada a anterior visão do Supremo Tribunal americano como juiz dos juízes e dos
Tribunais Constitucionais europeus como juízes do legislador. Hoje, os Tribunais Constitucionais
aplicam diretamente a Constituição e os direitos fundamentais nela consagrados relativamente a
alegadas violações que tenham ocorrido nos Tribunais comuns, não se limitando a verificar, em
abstrato, a inconstitucionalidade das leis. Hoje, o juiz europeu não é apenas juiz do legislador, mas
também juiz dos juízes. O TC é um juiz dos casos, que verifica se as decisões de casos concretos feitas
pelos juízes comuns respeitam a supremacia material da Constituição.
Esta extensão das competências do Tribunal Constitucional à resolução de casos concretos
faz-se essencialmente através de dois institutos: reenvio prejudicial e recurso de amparo.

Reenvio prejudicial:
 O juiz comum, confrontado com dúvidas de constitucionalidade na aplicação de uma norma
a casos submetidos a julgamento, tem a possibilidade de levar previamente a referida questão
de constitucionalidade à decisão do TC.
 Mesmo se a atenção do TC incide, não sobre o mérito da questão principal, mas sobre
eventual inconstitucionalidade da norma objeto do reenvio, a sua decisão não se pode
abstrair dos factos e circunstancias do caso concreto, o que arrasta o TC para a partilha
objetiva da decisão de casos concretos com o juiz comum.
 Os juízes comuns acedem necessariamente à Constituição para apreciarem e decidirem a
razoabilidade das dúvidas de constitucionalidade cujo esclarecimento seja necessário para a
resolução dos respetivos casos concretos.

Recurso de amparo ou queixa constitucional:


 Instituto surgido no pós-guerra, da maior repercussão da justiça constitucional na garantia
dos direitos fundamentais.

Os juízes comuns acedem diretamente à Constituição:

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 Ao apreciarem o mérito das dúvidas de constitucionalidade, antes de as reenviarem para o


TC.
 Ao fazerem interpretação conforma à Constituição.
 Ao preencher conceitos indeterminados e princípios gerais de Direito em consonância com
os princípios constitucionais.
 Na assunção do dever estatal de proteção dos direitos fundamentais que lhes cabe enquanto
poder judicial, na resolução de casos concretos. Assim, quando aplicam legislação ordinária
aos conflitos dos particulares, e sobretudo quando o legislador ordinário não cumpriu
adequadamente os deveres que lhe cabem na proteção e promoção dos direitos
constitucionais, não podem deixar de atender à necessidade de garantia judicial dos direitos
fundamentais indiretamente envolvidos, para o que recorrem aos mesmos princípios
constitucionais que pautam a atuação dos juízes constitucionais, como a dignidade da pessoa
humana, a igualdade, a proibição do excesso e a proibição do défice.

A hibridização dos modelos de justiça constitucional também se deu no domínio dos efeitos da
decisão ou declaração de inconstitucionalidade:
 No modelo americano, a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo juiz constitucional
respeita unicamente ao caso sub judice, sendo a consequência dessa decisão a desaplicação
das normas inconstitucionais ao caso concreto, com efeitos inter partes. Todavia, por força
da regra do precedente, as decisões de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal têm efeito
erga omnes, ficando os restantes Tribunais vinculados ao precedente na decisão de casos
futuros.
 Além disso, várias Constituições que adotam o modelo americano, como a brasileira, adotam
mecanismos que pretendem atingir o mesmo efeito de uniformização de jurisprudência, para
além de acrescentarem competências de decisão, a titulo principal, da constitucionalidade de
atos, normas ou omissões dos poderes estatais, em sede de fiscalização abstrata, segundo
procedimentos análogos aos do modelo de Tribunal Constitucional.
 No modelo europeu, o Tribunal Constitucional é chamado a apreciar a constitucionalidade da
norma a titulo principal e em sede abstrata, pelo que a declaração de inconstitucionalidade
tem como consequência a erradicação da norma inconstitucional da ordem jurídica. Na
decisão de questões de inconstitucionalidade suscitadas a propósito de casos em julgamento
nos Tribunais comuns, o alcance da prenuncia de inconstitucionalidade repercute, em
especial, direta e muitas vezes exclusivamente sobre o conflito concreto que subjaz à decisão
que corre ou tinha corrido no Tribunal comum, mesmo quando a declaração de
inconstitucionalidade tem efeitos gerais e obrigatórios.

F) A comum politização das jurisdições constitucionais supremas

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175-179, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional

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Baltazar Oliveira

Existe a ideia de que a justiça constitucional europeia, dos Tribunais Constitucionais, é uma
justiça política, em contraposição à justiça constitucional americana, dos Supremos Tribunais, que
seria uma justiça mais jurídica. Todavia, estas crenças não são consentâneas com a realidade.
 É verdade que a justiça constitucional é, em grande medida, uma justiça política, já que trata
de questões políticas, decididas por Presidentes, Parlamentos e Governos. Trata dessas
questões porque a Constituição serve para limitar os poderes públicos. E quando a justiça
constitucional decide contra um órgão de soberania, essa decisão tem um caráter político,
porque impede os poderes públicos de prosseguir certos objetivos. Inevitavelmente, os juízes
constitucionais são obrigados, mesmo que não queiram, a tratar de questões políticas. Mas
não é neste aspeto, comum aos dois modelos de justiça constitucional, que reside a crítica da
politização da justiça constitucional europeia.
 O descrédito dos Tribunais Constitucionais nasce da crença de que, enquanto os Supremos
Tribunais são Tribunais como quaisquer outros Tribunais da jurisdição comum, os Tribunais
Constitucionais estão separados da organização judicial comum, sendo de nomeação política.
Assim, nos países europeus, ao lado dos Tribunais Supremos de Justiça, Administrativos ou
outros, compostos por juízes como qualquer outro juiz, mas que progrediram na carreira por
força do seu mérito, experiência e conhecimentos, haveria Tribunais Constitucionais,
compostos por juízes de nomeação política, que não lá chegaram pela progressão na carreira.
Fica, pois, a ideia de que o Tribunal Constitucional é um Tribunal designado pelos partidos
políticos. Pelo contrário, no modelo americano, em vez que Tribunal Constitucional, haveria
Supremos Tribunais, que funcionam dentro da organização judicial comum.
 Mas este raciocínio está errado, já que os juízes do Supremo Tribunal dos EUA não chegam
ao Tribunal encarregue da justiça constitucional por progressão na carreira, mas porque são
nomeados pelo presidente. Tanto os juízes dos ST como os dos TC são de nomeação política
porque, para que um Tribunal se possa opor à aprovação de uma lei por um Parlamento eleito
pelo Povo, os seus juízes não podem ser uns quaisquer juízes, sem legitimidade democrática.
Os Tribunais que se vão opor a decisões de órgãos de soberania têm de ter uma legitimidade
democrática indireta indiscutível, devendo ser designados por órgãos democráticos.
 Se na Europa os juízes são nomeados pelos Parlamentos, na América são-no pelos
Presidentes. A diferente fonte de legitimidade em cada um dos modelos explica-se pelos
diferentes sistemas de governo: presidencialismo na América, parlamentarismo e
semipresidencialismo na Europa. Se, por um lado, os Presidentes americanos têm uma
legitimidade democrática indiscutível, fruto da sua eleição popular, por outro, acabam por
apenas designar juízes próximos do seu próprio pensamento, ideologia e mundividência. Se
o mesmo Presidente fizer dois mandatos, e lhe seguir um Presidente do mesmo partido, pode
acontecer que o Supremo Tribunal seja quase exclusivamente composto por juízes da mesma
área política, ou conservadores ou progressistas. De uma forma ou de outra, há um grande
desfasamento entre a composição do ST e o conjunto da sociedade, onde existem várias
correntes políticas, e os Parlamentos, que representam essas correntes. Outro aspeto vem
agravar a situação: os juízes do Supremo Tribunal norte-americano são designados
vitaliciamente, só saindo do cargo se morrerem ou se renunciarem. Assim, uma determinada
composição do Supremo Tribunal, configurada por certo Presidente, vai condicionar
sucessivas gerações futuras.
 A ideia de que o Tribunal Constitucional português é um Tribunal político, designado pelos
partidos, e que faz o que esses querem, não corresponde à realidade. Os juízes do TC são
designados por 2/3 da Assembleia da República, ou seja, no mínimo, pelas duas maiores
correntes representadas no Parlamento. Desta forma, garante-se que o pluralismo existente

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na sociedade portuguesa também existe no Tribunal Constitucional. É verdade que os juízes


do TC eles estão lá como juízes, mas, não obstante, as decisões que vão tomar dependem das
suas conceções políticas e filosóficas e da sua mundividência. Por isso, é positivo que um
Tribunal que tenha um poder tão importante como o de invalidar as leis represente as várias
sensibilidades da sociedade.

G) Tutela judicial plena dos direitos fundamentais e recurso de amparo

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179-197, Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional

H) Apontamentos das aulas a integrar neste capítulo

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Modelos
Apesar de nos Estados de Direito, em geral, haver fiscalização de constitucionalidade, há alguns em
que não há a diferença formal entre norma constitucional e norma ordinária, pelo que não há FC.
Mas na generalidade dos ED há fiscalização da constitucionalidade.

Dois grandes modelos de FC:


- americano – em primeiro lugar, ao dos EUA, onde nasceu a fiscalização da constitucionalidade.
Nasceu praticamente com a aprovação da Constituição (1787). Em 1803 o Supremo Tribunal
defrontou-se com um caso e na resolução desse caso, o juiz do Supremo que estava a tratar da
situação deparou-se com uma norma ordinária que o estava a fizer para resolver num sentido e ao
mesmo tempo, uma norma da Constituição americana dizia-lhe para resolver em sentido oposto. A
Constituição norte-americana não tem, hoje, nenhum artigo sobre FC. O Supremo Tribunal raciocina
assim: tenho duas normas que dispõem em sentido oposto. Ou aplico uma ou outra. Tenho de
encontrar um critério para fazer esta escolha. Se tenho de optar entre uma norma constitucional e a
norma ordinária, um critério é a norma superior prevalecer sobre a norma inferior. Se a Constituição
é a norma suprema nos EUA, devo aplicar a norma constitucional e recusar a aplicação da norma
ordinária na decisão do caos. Mas para isso, tive de fazer um primeiro juízo, que foi verificar se a
norma ordinária contrariava a norma constitucional. Sem que a Constituição americana dissesse algo,
o Supremo Tribunal fez fiscalização da constitucionalidade ou judicial review. O trabalho normal do
juiz é, quando tem várias normas aplicáveis a um caso, escolher um critério, por exemplo, a
prevalência da norma superior. O juiz está a fazer o trabalho do juiz. Nasceu a FC e o modelo
americano de FC. Traços:
----- Todos os juízes podem e devem não aplicar normas com fundamento em inconstitucionalidade.
Essa característica, típica do modelo americano, também existe no sistema português, mas não existe
no modelo europeu. Mas há uma diferença notória: nos países americanos, não há Tribunal

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Constitucional. Só existe a ordem comum dos Tribunais, com o Supremo Tribunal no topo. Neste
modelo, e particularmente e no modelo dos EUA, havendo recurso para o Supremo Tribunal, as
decisões desse devem ser seguidas por todos os outros Tribunas – regra do precedente. O que os
tribunais superiores decidem, todos os tribunais inferiores tem de seguir, com força de lei. Se o ST
considera uma norma inconstitucional, nenhum outro tribunal a pode aplicar. É um modelo que
acaba por ser bastante simples e que permite ver bem a diferença com o nosso sistema.
---- Não há um tribunal com competência especial para administrar a justiça constitucional. Todos os
Tribunais fazem fiscalização da constitucionalidade.
---- As decisões do Supremo são vinculativas para todos os outros tribunais. Se o Supremo considera
uma norma inconstitucional, é como se ela desaparecesse da ordem jurídica. Os Tribunais não a
podem aplicar.
---- O ST aprecia constitucionalidade não só normas, mas quaisquer atos, praticados por qualquer
entidade.

Modelo europeu – durante todo o séc. XIX e até à segunda metade do séc. XX não havia fiscalização
de constitucionalidade. Diferença enorme com o que se verifica nos EUA e nos outros países
americanos, os Tribunais aplicavam a Constituição aos casos que tinham de decidir, e por força disso
recusavam muitas vezes aplicar leis, na Europa isso era impensável, o que hoje é uma normalidade
também nos países europeus.
Europeus não queriam governo dos juízes – desconfiança entranhada que durante anos e anos os
europeus tinham relativamente aos juízes. Quando se fizeram as revoluções liberais, todo o corpo de
juízes era nomeado pelo monarca absoluto. As revoluções foram feitas para dar poder as assembleias
representativas do povo, aos parlamentos, que aprovam as leis, que vão dar corpo às ideias
revolucionárias liberais, que instituem igualdade perante a lei, generalidade e abstração da lei…
Aprovação dos novos códigos, aprovação das leis, que concretizavam o ideário revolucionário das
revoluções liberais. Permitir que juízes nomeados pelo monarca absoluto, que estavam contra as leis
aprovadas pelos parlamentos, pudessem recusar a aplicação das leis era ter feito a revolução e depois
entregá-la ao anterior titular do poder.
Então, na relação entre poder legislativo e judicial era, durante o Estado liberal, a desconfiança
relativamente ao poder judicial, que devia ser apenas a boca que pronuncia as palavras da lei, mas a
lei é o principal ato do Estado. A lei é justa por definição, a partir do momento em que é geral, abstrata
e aprovada pelos parlamentos eleitos pelos cidadãos.
A experiência dos americanos era dar-se mal com o Parlamento, inglês, que lhes impunha impostos.
Não tinham problema nenhum com juízes. Quando fazem a Constituição, preocupam-se muito em
estabelecer freios e contrapesos ao poder do Parlamento e têm uma grande confiança no poder
judicial. O fantasma do governo dos juízes não era sentido na América.
Europa: império da lei: os juízes e a administração aplicam a lei.
Durou durante século e meio e só foi posto em causa, na Europa, no período entre guerras, quando
se revelou que a lei podia ser violadora dos direitos fundamentais. Hoje, os cidadãos europeus sabem
que os seus direitos fundamentais também devem ser defendidos do legislador e da lei. Após a 2ªGG
houve uma revolução constitucional, um novo constitucionalismo, na Europa, que se traduz na
criação de um órgão, o TC, encarregado de fazer justiça constitucional. Porque criar um órgão
especial? Para não cair no perigo do governo dos juízes. O Tribunal especial, encarregado de fazer
justiça constitucional e defender os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes públicos

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(legislador, administração, juízes). Generalizou-se na Europa depois da 2ªGG e foi acolhido na CRP76,
na primeira revisão, de 1982, criou-se um TC, tal como em Espanha em 1978.
Quando Portugal criou este TC, podíamos pensar que o nosso sistema seria um modelo de tipo
europeu. O facto de ter criado um TC não levou a CRP a aderir ao modelo europeu, mas a um modelo
singular muito discutível.
Em termos históricos, apesar de só de uma forma generalizada isto se ter feito depois da 2ªGG, já a
partir dos anos 20 se discutia na academia se a Europa devia importar uma FC como na América. A
ideia era muita resistência relativamente ao governo dos juízes, mas acolhia-se alguma FC como
solução intermédia.
Hans Kelsen – sugere a criação de um TC. O governo dos juízes não, alinhando-se com os restantes
académicos europeus. Mas deve haver alguma fiscalização do legislador. Na sua compreensão
positivista do Direito, há necessidade de garantir a validade indiscutível dos vários escalões
normativos: constituição, lei, regulamentos, atos. Na pirâmide normativa, cada ato deve ter sido
elaborado respeitando as imposições do ato que lhe está acima. Só assim é valido. Para garantir isso
é necessária uma verificação acerca da regularidade do ato através de um órgão independente,
sobretudo o que hoje designamos por inconstitucionalidade orgânica e formal, mas só relativamente
a essas. E direitos fundamentais, ver se princípios como a igualdade ou a proporcionalidade são
violados? Kelsen: seria acolher o governo dos juízes, porque cada juiz tem a sua ideia sobre o que é
a igualdade, a dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade. Seria o reino do arbítrio. Este
tribunal só se destinava a verificar se a lei tinha sido elaborada de acordo com as normas
constitucionais em vigor, ou quando a constituição fosse inequívoca a propósito de alguma questão.
Sugere criação de um órgão novo, que fosse capaz de anular leis não conformes à constituição do
ponte de vista orgânico-formal.
Tendo este poder de anular leis inconstitucionais, o TC devia ter uma legitimidade que lhe permitisse
fazer isso. Devia ser nomeado por órgãos democráticos, que garantissem indiretamente uma
legitimidade democrática, poe exemplo, ser nomeado por Parlamentos. Alguns países europeus,
como a Áustria e a Alemanha de Weimar, criaram um Tribunal deste tipo. Sobretudo porque, sendo
Estados federais, havia conflitos entre o que cabe à federação e o que cabe a Estados federais. Para
resolver este tipo de conflitos, era bom um tribunal que assegurasse a prevalência da Constituição
federal, que seria o TC.
Esta conceção mudou radicalmente depois da 2ªGG. O fundamental do TC não é fazer isso. A sua
função essencial é garantir os direitos constitucionais das pessoas, que devem ser aplicados como
norma jurídica. a constituição deve ser aplicada como norma jurídica, logo, o TC tem a função de
garantir que as leis são feitas de forma regular, mas também garantir que os DF não são afetados.
E o papel dos juízes comuns no modelo europeu no domínio da fiscalização da constitucionalidade,
quando se levantar uma questão na decisão de um caso concreto em julgamento? Se for uma
questão séria, se houver uma dúvida séria de constitucionalidade, se o juiz do caso considerar que
há dúvidas de constitucionalidade, será necessário esclarecer a questão de constitucionalidade, para
que não perturbe o andamento do processo. O juiz deve suspender o julgamento e dizer ao TC:
surgiram estas dúvidas sobre se esta norma aplicável a este caso é inconstitucional. o TC aprecia e
decide; o juiz segue o julgamento de acordo com o que o TC disse. A este instituto chama-se reenvio
prejudicial.
Diferença para América: os juízes decidem questões de constitucionalidade. No modelo europeu, não
decidem, apenas decidem se suspendem o processo para levar a questão ao TC. Deem fazê-lo se
houver dúvidas sérias de constitucionalidade.

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Recurso de amparo ou queixa constitucional – se o cidadão considerar viu o seu direito fundamental
agredido, e essa agressão não foi reconhecida pelo Tribunal comum? O cidadão não tem de acatar a
decisão do Tribunal, do juiz que não lhe deu razão. O cidadão tem um período para suscitar a questão
junto do TC. Através do recurso de amparo, os cidadãos europeus levam ao TC eventuais lesões dos
seus DF que não foram reconhecidas pelos Tribunais comuns.

AULA 2

Dois grandes modelos de justiça constitucional: americano e europeu


Enquanto no modelo americano remete para os juízes, para todos os tribunais a apreciação e decisão
das questões de constitucionalidade, podendo todos os juízes e tribunais recusar aplicar normas com
fundamento em inconstitucionalidade, o que é visto como função normal do trabalho judicial. Todos
os juízes são juízes constitucionais
Modelo europeu tem órgão próprio. Há um tribunal de juízes constitucionais
Em termos orgânicos, são modelos completamente distinto
Evolução histórica muito diversa
Os juízes, de sua iniciativa, mas não porque a constituição o dissesse, começaram a fazer fiscalização
da constitucionalidade, no séc. XIX, após a revolução liberal
Na europa, durante praticamente 150 anos, as constituições não eram vistas e aplicadas como norma
jurídica. o pode do legislador era quase absoluto, não havendo possibilidade de contestar a
constitucionalidade das decisões tomadas pelos parlamentos.

Depois da 2ªGG há uma convergência substancial dos dois modelos. Não no plano orgânico (tribunais
VS TC), mas no plano da natureza da justiça constitucional, não havendo hoje diferenças substanciais
entre o que se passa na generalidade dos estados de direito onde existe fiscalização da
constitucionalidade. Esta convergência entre os dois modelos faz-se no reconhecimento de que a
função principal da justiça constitucional é a garantia dos direitos fundamentais, ideia que é hoje
assumida de forma generalidade, onde há sistemas de fiscalização da constitucionalidade. Quando
um estado passa de estado autocrático para estado de direito, a primeira preocupação é instituir um
modelo de justiça constitucional, que assegure os direitos fundamentais.
Esta não foi sempre a preocupação dos tribunais norte-americanos? Há alguma novidade, neste
período do pós-guerra? Em termos formais, foi sempre assim: os juízes e o ST fazia fiscalização da
constitucionalidade, no entanto, os critérios materiais em função dos quais se fazia este controlo
eram parâmetros muito diferentes dos que existem hoje. Hoje, os TC e ST são tribunais de defesa dos
DF. Até quase aos anos 50 do séc. XX, a visão de aplicação da Constituição que tinha o ST era muito
diversa, o que eu se vê na atitude ods tribunais relativamente ao princípio da igualdade. Na
jurisprudência do ST dos EUA há decisões, no séc. XIX, em que o ST dizia que os cidadãos afro-
americanos não eram verdadeiros cidadãos norte americanos, e que não deviam ter acesso aos
tribunais para proteger os seus direitos. Escravatura: o ST considerava os escravos propriedade, e o
governo federal e dos estados não se podiam imiscuir na relação de propriedade, no entender do ST.
Não foi só um problema do séc. XIX. Este tipo de jurisprudência reacionária do ST dos EUA manteve-
se durante a primeira metade do séc. XX. No congresso dos EUA, tal como nos parlamentos europeus,

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na passagem do EDL ao EDSD (anos 20-40). Todas as tentativas do congresso dos EUA de legislação
social (salario mínimo), eram opostas pelo ST em nome da Constituição. O valor máximo, supremo
da constituição era a liberdade de iniciativa economia privada, a liberdade de contratar, o direito de
propriedade. Toda a legislação que tocasse nesses direitos, à luz desse entendimento, seria
inconstitucional. A constituição norte-americana não dizia isto. Tratava-se de uma interpretação do
ST.
Em termos reflexos, teve influência no q eu se passava na europa, onde não havia FC. Nos meios
académicos, universitários, discutia-se a possibilidade de os europeus importarem esta ideia
americana, de FC. Mas como a imagem que os europeus tinham era a de um ST conservador, que
proibia o legislador de aprovar legislação social, os europeus viam isto na pratica. Por isso, a
importação da FC via dificuldades. Instituir esse sistema, seria instituir na Europa o governo dos juízes.
Os parlamentos decidiam e, a seguir, os juízes, sem legitimidade democrática tão forte como a dos
parlamentos, não permitiam.
Só no pós-guerra as coisas mudaram, na Europa e nos EUA. Nos eua houve conflitos graves entre os
presidentes americanos dos anos 30 e 40 e o ST. Paralelo entre o que acontece agora na relação
entre Presidente dos EUA e ST e o que acontecia na altura. Há uma tensão entre o atual ST e o atual
PR dos EUA. Por vicissitudes relacionadas com a designação dos juízes do ST, o ST tem uma
composição, em temos político, muito marcada pelos mandatos dos presidentes dos últimos anos.
Há um desfasamento muito grande entre o sentido do congresso e o sentido do ST, o que pode gerar
problemas em questões de costumes, económicas… esta relação de tensão entre os dois poderes,
judicial e executivo/legislativo. Presidente Roosevelt como que ameaçou os juízes do ST, que são 9,
onde havia uma maioria de 5 juízes contra o congresso, 4 a favor. Roosevelt ameaçou os juízes do ST
que faria uma reforma da composição do ST dos EUA. Esta pressão levou a que houvesse uma
mudança na atitude do ST, passando a haver 5 juízes a favor do congresso, o que permitiu uma
evolução na jurisprudência dos EUA. Começaram a surgir as primeiras decisões contra a
discriminação racial, o que levou, de forma progressiva e sistemática a que a jurisprudência do ST dos
EUA passasse a ser uma jurisprudência “amiga” dos direitos e liberdades.
Na Europa passava-se algo do género, os TC também eram amigos dos DF. Esta convergência entre
os dois modelos levou a que a JC dai para a frente passasse a ser vista como justiça de garantia dos
DF. Evolução enorme.
É isto que leva a que, sistematicamente, em todos os países que chegam à democracia e ao ED haja
um preocupação imediata em instituir uma justiça constitucional.
Em Portugal, no meio jurídico e judicial, há muito a ideia de que a justiça constitucional europeia, dos
TC, é uma justiça quase política, ao contrário do que seria a justiça constitucional americana, que
seria mais jurídica. É uma visão errónea, que se concentra no facto de na américa não haver TC, mas
ST, tribunais como quaisquer outros. Por isso há a ideia de que essa JC não é política, mas meramente
jurídica. na europa, como os TC estão separados da organização judicial comum, e sendo um T de
nomeação politica, mais acentuaria a natureza politica do TC. Isto leva a um descredito da JC, com
base no argumento de que é uma justiça política.
Porque é que esta visão não é consentânea com a realidade? É verdade que a JC é, em grande
medida, uma justiça política porque, quer queira quer não, tem de se meter em questões políticas,
decididas pelos parlamentos e governos, uma vez que a Constituição limita os poderes públicos.
Quando a justiça constitucional decide contra os P e os G, isso tem um carater político, porque a JC
impede os poderes públicos de prosseguir certos objetivos. É uma inevitabilidade. Inevitavelmente,
isto obriga os juízes constitucionais, mesmo que não queiram, a meter-se em questões políticas. Mas
não é a esta natureza política que se refere quem faz a tal critica.

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A ideia que há é: temos um STJ ou um STA, que são os Tribunais superiores de cada uma das ordens
jurídicas, tribunais como os outros, com pessoas que foram para juízes e fazem a progressão na
carreira, à medida que têm mais experiência e mérito. Quando olhamos para o STJ e o STA estamos
a ver tribunais como os outros, compostos por juízes como os outros, só que com mais mérito e
conhecimento. A ideia que há é que no TC já não é assim, porque os membros do TC não cegaram
àquele lugar através da progressão na carreira, mas sim porque foram designados por uma maioria
de 2/3, constituída por deputados ligados a partidos políticos. Fica a ideia de que o TC é um tribunal
designado por partidos, pelo que é um tribunal político. Ao contrário, se a justiça fosse feita por um
ST, não seria assim. Dá-se o exemplo daquilo que acontece na américa, em que quem faz a justiça
constitucional são os ST.
Porque é que este raciocínio está errado? Na América, quem nomeia os juízes do ST é o Presidente.
Porque é que não se deixa seguir pela via da carreira profissional dos juízes? Porque para que um T
se possa opor a um Parlamento, eleito pelo Povo, não pode ser um juiz qualquer, sem legitimidade,
a dizer que o Parlamento não pode aprovar certa lei. Problemas sérios de legitimidade democrática.
Por isso, para que os TC e os ST tenham uma legitimidade democrática indireta indiscutível, devem
ser designados por órgãos democráticos. Na europa, designados pelos parlamentos, na américa pelos
presidentes. A fonte de legitimidade é diferente nos dois casos por causa do sistema de governo.
Qual o melhor método? É verdade que o Presidente foi eleito diretamente, tendo uma legitimidade
democrática indiscutível. Mas uma pessoa, um presidente, pensa de certa maneira, tem certa
ideologia, certa mundividência e, quando vai designar os juízes, acaba por designar pessoas que estão
próximas da sua visão do mundo. Imagine-se que faz dois mandatos e que, ao longo dos dois
mandatos, tem possibilidade de designar vários juízes do ST. A composição desse tribunal vai ficar
muito ligada àquela visão do mundo. Se antes desse PR, estivesse outro da mesma linha ideológica,
podia acontecer que o ST fosse apenas composto ou por juízes conservadores ou por juízes
progressistas, havendo um grande desfasamento entre a composição do ST e o conjunto da
sociedade, onde existem várias correntes políticas, as principais representadas nos parlamentos.
Em Portugal: a ideia de que o TC é um Tribunal político, designado pelos partidos, que faz o que os
partidos querem, não corresponde à realidade. Para ser designado um juiz para o TC, ele precisa de
ser aprovado por 2/3 da AR, ou seja, no mínimo, um consenso entre as duas grandes correntes
representadas na AR, esquerda e direita, para a nomeação de um juiz. Há uma garantia que tal como
na sociedade portuguesa existe este pluralismo, o mesmo existe no TC. Há uma representação das
várias sensibilidades. é verdade que eles estão lá como juízes, mas as decisões que vão tomar
dependem das conceções políticas e filosóficas que têm e da sua mundividência. É bom que um
tribunal que tenha um poder tão importante como o de invalidar as leis, que tenhamos a garantia
que corresponde ao sentido da sociedade, às diferenças que existem na sociedade. JRN: Isto é mais
bem garantido através de uma designação por 2/3 do parlamento do que através de uma só pessoa,
que pode acabar por nomear a maioria dos juízes do ST. Há ainda outra questão: os juízes do ST
americano são designados vitaliciamente. Só se quiserem sair antes de morrerem é que saem. Senão,
não saem. Uma composição do ST feita hoje por um certo presidente vai condicionar as gerações
futuras. Constrói-se um ST com uma composição oposta à da generalidade da sociedade: esse ST vai
tomar decisões durante gerações, até aqueles juízes morrerem.

Modelo europeu ou de Tribunal constitucional


- os TC generalizaram-se na Europa depois da 2ªGG mas já nos anos 20, em algumas experiencias,
foram criados TC. A principal razão de ser precoce desses TC era a garantia da separação de poderes,

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em estados federais, para resolver conflitos de competência entre estado federal e estados
federados.
- desenvolveu-se uma outra área, onde os TC surgem como chamados legisladores negativos. Kelsen:
há Constituição; cabe ao legislador concretizá-la, de forma política, criativa, de acordo com as suas
conceções; ao TC não cabe meter-se na realização da Constituição; cabe apenas verificar se a lei
respeita as regras constitucionais, sobretudo as objetivas, de competência. O TC apenas rejeitava
algumas leis se elas não obedecessem as regras objetivas constitucionais. Fiscalização preventiva e
sucessiva abstrata, embora com outro caráter, porque após a 2ªGG não cabe apenas ao TC verificar
a regularidade da formação da lei, mas ver se ela respeita ou não os DF.
- terceira área: proteção dos DF.

A justiça constitucional europeia, que se reparte por estas três áreas, acaba por se concentrar na
garantia dos DF. Através de que institutos?
2 Institutos típicos:
-- reenvio prejudicial – na discussão de um caso em Tribunal, podem se levantar duvidas sobre
constitucionalidade de normas aplicáveis ao caso. Se surgirem duvidas razoáveis sobre se há ou não
inconstitucionalidade da norma, cabe ao juiz verificar a dúvida. É importante verificar se a dúvida é
razoável. Se não se verificasse isso, este instituto podia ser utilizado para fazer prolongar o processo
– uma das partes levantava questões artificiais para fazer prolongar o processo. Cabe ao juiz verificar
se há fundamento para ter dúvidas razoáveis de constitucionalidade. Se o juiz considera que há, e
que não é uma tentativa de fazer perder tempo, o juiz suspende a instância, o processo, e reenvia a
questão ao TC. Diz: esta norma ia ser aplicada neste caso: vejam se a norma é ou não inconstitucional,
para prosseguir o processo. Se o TC considera a norma inconstitucional, ela desaparece da ordem
jurídica e o caso continua.
-- recurso de amparo ou queixa constitucional – diretamente associado à defesa dos direitos
fundamentais – possibilidade de qualquer cidadão que considere que os seus DF foram violados, por
não importa quem, basta que haja violação do seu DF, esse cidadão tem a possibilidade de ir para os
Tribunais, mas se considera que, nos tribunais, o seu direito, que no seu entender estava a ser
violado, essa violação não foi impedida pelos Tribunais, ele tem a possibilidade de colocar a questão
da violação do DF ao TC. Recurso para o TC para defesa dos DF da pessoa, ou porque os juízes não
lhe deram razão, ou porque mantiveram a lesão do seu DF, ou porque foram s juízes que, na decisão,
violaram os seus DF. Durante algum período de tempo, a pessoa pode ir para o TC. Por vezes, mesmo
sem ter ido para os Tribunais, por exemplo, se não houver possibilidade em tempo útil, o acesso ao
TC é garantido nessas circunstâncias, sempre com o objetivo da garantia dos DF das pessoas. A partir
do momento em que este tipo de recurso é instituído numa ordem jurídica, os cidadãos recorrem a
ele em massa. Quem quer que já o agressor, seja um pode publico ou entidade privada, se o direito
está ameaçado ou lesado, o cidadão tem possibilidade de ir para o TC. Os TC e o legislador
constitucional estabelecem alguns filtros no acesso ao TC: confirmação de um caso sério de lesão de
um DF, que seja uma questão de constitucionalidade, com relevância constitucional; se isso
acontecer, o TC aceita a queixa apresentada.
Requisitos: tempo, esgotar a via judicial (a não ser que não tenha tempo), 3. Na prática, a esmagadora
maioria das decisões dos TC fazem-se no domínio dos recursos de amparo apresentados pelos
cidadãos.
Espanha tem este modelo

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Sistema de fiscalização concreta português vs. modelo europeu


1 - Quando surgem duvidas de constitucionalidade, o juiz comum europeu não decide, remetendo a
questão para o TC. O juiz português decide questões de constitucionalidade. Quem faz a justiça
constitucional, na Europa, são os TC. Reenvio prejudicial.
2 – em Portugal não existe queixa constitucional. Um cidadão português pode considerar que o seu
DF está a ser violado, mas não tem possibilidade de ir para o TC, a não ser através dos recursos da
fiscalização concreta.
Como é que esses recursos em Portugal se distinguem do recurso de amparo? Em Portugal, quando
o cidadão recorre ao TC na fiscalização concreta, aquilo que o cidadão pode dizer não tem a ver com
o seu DF, garantido pela Constituição, que está a ser violado, lesado, mas com inconstitucionalidade
ou não inconstitucionalidade de normas.
Isto tanto é assim no modelo europeu como no americano. Um caso está a ser julgado em tribunal.
Se considera que o seu DF está a ser violado, pode recorrer para os Tribunais superiores, para o ST,
por lesão do seu direito.
Singularidade do sistema português: o cidadão português não pode invocar a lesão dos seus direitos
perante o TC. Restrição que só existe no nosso sistema.

Quem tem mais poderes, os juízes portugueses ou os europeus? Enquanto o juiz europeu aprecia a
questão, mas não a decide,
Os juízes têm a garantia da independência, de decidir incondicionadamente. Num caso levanta-se
uma questão de constitucionalidade e o juiz decide. Mas esta decisão nunca é definitiva. Se as partes
quiserem, podem sempre recorrer para o TC. De todas as decisões que os juízes portugueses tomam,
para além de haver recurso para os tribunais superiores, há recurso para o TC. A decisão que o juiz
tomou corre o risco sério de ser revogada pela decisão do TC, que depois obriga o juiz a reformar a
decisão no caso concreto. O que à partida parece um grande poder do juiz português, parece um
grande poder, mas não é. A decisão do juiz foi meramente provisória. É verdade que o juiz europeu
nem teve essa possibilidade, mas tem um poder definitivo neste domínio: se considera que a dúvida
de constitucionalidade não tem razão de ser, não a leva para o TC, não é obrigado a enviar ao TC,
reenvia se considerar se há dúvida. Juiz português decide, europeu não. Apenas aparentemente o
juiz português tem mais poder. Foi um presente envenenado para o juiz português, que pode ver a
sua decisão contrariada pelo TC. O juiz europeu tem, pelo menos, o poder de decidir se a questão
tem dignidade para ir para o TC.
Será que isso não é um défice do modelo europeu? Teríamos uma dúvida de constitucionalidade que,
por causa. No fim, pode ser feito por recurso de amparo, desde que o cidadão invoque que, daquela
norma, resultou violação do seu DF. Não há um défice de fiscalização, porque o cidadão tem depois
a possibilidade do recurso de amparo.

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Modelos de justiça constitucional – resumos antigos

VERSÃO ANTIGA DO CAPÍTULO “MODELOS DE JUSTIÇA CONSTITUCIONAL”


A versão acima (mais recente) está mais bem redigida e organizada, mas não inclui alguns dos
capítulos e não integra os apontamentos das aulas (apenas dos manuais). Esta versão está mais
completa, mas mais confusa e, possivelmente, com erros.

A) Supremacia da constituição
As revoluções liberas do séc. XVIII fizeram emergir, na Europa e na América, Estados de Direito
dotados de Constituições vistas como norma suprema na ordem jurídica nacional. No entanto, até
meados do séc. XX, tanto a relevância jurídica cada à Constituição como as modalidades da sua
garantia foram significativamente na Europa e na América.
Nos EUA, os Tribunais assumiram essa supremacia no próprio plano das fontes de Direito. A
Constituição era considerada e aplicada enquanto verdadeira norma jurídica, com caráter supremo.
Por isso, os Tribunais arrogaram-se, desde cedo, do poder de fazer fiscalização da
constitucionalidade, como uma atividade típica da função judicial (dar preferência à norma superior
em caso de conflito normativo) mesmo quando a Constituição nada dizia sobre isso. Várias razões
contribuíram para isso:
 A particular forma de Estado federal dos EUA remeteu, naturalmente, as questões de
constitucionalidade para a decisão do poder judicial, que deveria delimitar as fronteiras entre
os poderes da União e os poderes dos Estados.
 Ausência de qualquer suspeita política, social ou ideológica dos poderes políticos
relativamente aos juízes, devida à significativa homogeneidade sociológica da comunidade
que se distribuía indiferentemente por todos os ramos do poder, desconsiderando-se,
obviamente, a recusa da cidadania a afro-americanos fruto do segregacionismo racista.
 Desconfiança, no domínio da preservação dos direitos individuais, quanto às assembleias
parlamentares, dado a atribulada relação entre Parlamento inglês e colónias americanas.
 O poder judicial norte-americano assumiu-se, praticamente desde a revolução liberal, como
intérprete da distribuição constitucional dos poderes e da defesa das garantias
constitucionais, incluindo a delimitação das competências de atuação do próprio legislador
democrático.

Já no Estado de Direito liberal europeu, a relação entre Constituição e lei era muito diferente,
sendo expressamente recusada a fiscalização da constitucionalidade até meados do séc. XX.
Depositava-se inteiramente nos Parlamentos democráticos a competência de garantia da realização
política da Constituição, sendo recusadas aos juízes quaisquer competências de controlo do
legislador. Assim, os direitos fundamentais acabavam por ter um caráter meramente proclamatório.
A Constituição material por que se lutara nas revoluções liberais (“só há Constituição onde há
separação de poderes e direitos fundamentais”) foi, durante muito tempo, reduzida a codificação
meramente formal dos poderes do Estado.

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 Conceção de separação de poderes: soberania do Parlamento, confiança incondicional no


império da lei, desconfiança face aos juízes reacionários.
 Razão técnica que inviabiliza a importação da judicial review para a Europa: insegurança
jurídica que traria a países de tradição de direito romano, sem regra do precedente. A
ausência de vinculação e uniformidade garantidas pela regra do precedente em países de
common law tenderia a gerar as maiores contradições, com uns juízes a aplicar leis em vigor
e outros a recusar a aplicação das mesmas leis em situações análogas.
 Após uma fase inicial de rutura revolucionária, generalizava-se, na Europa, ao longo do séc.
XIX, um processo político de estabilização ou de compromisso com a reação monárquica.
Houve uma progressiva transformação do Estado de Direito liberal (materialmente
impregnado pelos valores da liberdade, na sua origem revolucionária) em Estado de Direito
formal, onde justiça e direitos fundamentais se identificavam com vontade do legislador e
onde a supremacia dos valores constitucionais e dos direitos fundamentais se realizava
exclusivamente através do império da lei, do princípio da legalidade e justiça administrativa.
A questão do domínio e proteção institucional dos direitos fundamentais não existia na
Europa como tema constitucional. Os direitos fundamentais eram vistos como mera proclamação
político-constitucional, com natureza retórica ou programática, e a determinação do seu conteúdo
(com exceção do direito de propriedade) cabia discricionariamente ao legislador democrático. Era a
época dos “direitos fundamentais à medida da lei”. Com a identificação pacífica dos princípios do
império da lei e da legalidade da administração com a noção de Estado de Direito, seria impensável,
na altura, a aplicação direta dos direitos fundamentais pelo juiz, ainda mais, contra a lei.
O Estado de Direito formal era concebido como Estado autolimitado pela lei que o poder
político livremente criava. A justiça imanente ao sistema seria garantida em dois planos: na
generalidade e abstração da lei, aprovada pelo legislador democrático, e através da subordinação da
Administração e do judicial à lei. Por isso, o juiz era apenas “a boca que prenuncia as palavras da lei”.

B) Modelo americano
Foi nos EUA que nasceu a fiscalização da constitucionalidade, praticamente com a aprovação
da respetiva Constituição, em 1787.
 Em 1803, ao resolver o caso Marbury v. Madison, o Supremo Tribunal defrontou-se com um
duas normas que resolviam o caso em sentidos opostos; uma norma ordinária e uma norma
constitucional. Mas a Constituição norte-americana nada dizia e nada diz, até hoje, sobre
fiscalização da constitucionalidade, em qualquer dos seus preceitos.
 O Supremo Tribunal (e depois, todos os Tribunais que se defrontaram com estes conflitos)
teve de encontrar um critério que lhe permitisse optar por uma das duas normas aplicáveis
ao caso, que dispunham em sentido oposto. Todos os sistemas jurídicos de Estado de Direito
contêm critérios jurídicos de resolução de conflitos normativos, como o critério da
temporalidade ou o da especialidade. Outro desses critérios é o da hierarquia: norma superior
prevalece sobre norma inferior.
 Ora, face a um conflito entre uma norma constitucional e uma norma infraconstitucional
(ordinária), prevalece a norma constitucional, enquanto norma suprema de qualquer sistema
jurídico de Estado de Direito com Constituição em sentido formal, devendo recusar-se a

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aplicação da norma ordinária ao caso. Assim, a Constituição é assumida, desde o primeiro


momento, como verdadeira norma jurídica aplicável pelos Tribunais.
 Mas antes desse raciocínio, para o juiz desaplicar a norma ordinária, teve de previamente,
num primeiro juízo, verificar se há uma desconformidade entre essa norma e a Constituição,
ou seja, procedeu a uma fiscalização e decidiu uma questão de constitucionalidade. Assim,
sem que a Constituição americana dissesse algo, o Supremo Tribunal fez judicial review
(fiscalização da constitucionalidade), como um trabalho normal da função judicial.
 Sendo, o modelo americano o primeiro modelo de justiça constitucional, e o mais
solidamente estabilizado, expandiu-se a partir do séc. XIX para os Estados da América latina e
alguns países europeus (Constituição portuguesa de 1911).

Assim, a questão de constitucionalidade surge como uma questão incidental, no curso de um


processo tendente à resolução de uma questão principal. No modelo americano, a fiscalização da
constitucionalidade é uma fiscalização:
 concreta – nascida e orientada para a resolução de um caso concreto;
 difusa – na medida em que integra as funções e competências de todos os juízes, ainda que
esteja sujeita a recurso para o Tribunais superiores, como qualquer outra decisão judicial.

Traços do modelo americano:


 Todos os juízes são “juízes constitucionais” – qualquer juiz pode e deve conhecer e decidir
questões de constitucionalidade, isto é, não aplicar normas com fundamento em
inconstitucionalidade.
 Não há Tribunal Constitucional – não há um Tribunal com competência especial para
administrar a justiça constitucional porque todos os Tribunais fazem fiscalização da
constitucionalidade. Só existe a ordem comum dos Tribunais, com o Supremo Tribunal no
topo.
 As decisões do Supremo são vinculativas para todos os outros Tribunais – o modelo americano
está ligado à natureza de um sistema de common law assente na força do precedente judicial.
A decisão do ST adquire força de precedente: se o Supremo considera uma norma
inconstitucional, essa decisão tem força obrigatória geral, sendo vinculativa para os outros
Tribunais não a podem aplicar; é como se a norma desaparecesse da ordem jurídica. Na
ausência de uma cultura jurídica de reconhecimento de força vinculante ao precedente judicial, outros países
acolhem que o modelo americano adotam outros mecanismos constitucionais eu procuram alcançar efeitos
análogos, como seja a súmula vinculante no Brasil.

 O Supremo Tribunal (e os Tribunais comuns) aprecia a inconstitucionalidade não só normas,


mas de quaisquer atos ou decisões, de qualquer entidade.
 A generalidade dos sistemas que adotam o modelo americano institui mecanismos de seleção
e filtragem das questões de constitucionalidade que chegam ao Supremo Tribunal. Nos EUA,
é atribuído ao ST a competência discricionária de escolher os casos que decide (writ of
ceriorati). No Brasil adotam-se critérios materiais de seleção.

C) Modelo europeu

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Na Europa, durante todo o séc. XIX e até à segunda metade do séc. XX não havia fiscalização
de constitucionalidade. O que se passava, nesse período, nos EUA e noutros países americanos, e o
que hoje é uma normalidade na Europa, seria impensável.
 Os Europeus temiam o “governo dos juízes” – as revoluções liberais foram feitas para dar
poder às assembleias representativas do Povo, aos Parlamentos, que queriam aprovar leis
que dessem corpo ao ideário revolucionário liberal, como a igualdade perante a lei, a
generalidade e abstração da lei ou a aprovação dos novos códigos. Ora, quando se fizeram as
revoluções, todo o corpo de juízes existente tinha sido nomeado pelo monarca absoluto.
Permitir que esses juízes, que se opunham às leis aprovadas pelos Parlamentos, pudessem
recusar a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade seria fazer a
revolução e de seguida entrega-la ao anterior titular do poder.
 Assim, durante o Estado de Direito liberal, a relação entre legislativo e judicial era de
desconfiança face ao segundo, que devia ser apenas a boca que pronuncia as palavras da lei,
nas palavras de Montesquieu. A lei, principal ato do Estado, é justa por definição, a partir do
momento em que é geral, abstrata e aprovada pelos Parlamentos eleitos pelos cidadãos.
Devia reinar o império da lei: os juízes e a administração limitam-se a aplicar a lei aprovada
pelos Parlamentos.
 Na América não era sentido o fantasma do “governo dos juízes”, que eram nomeados pelo
poder revolucionário. Pelo contrário, um dos principais adversários dos revolucionários
americanos era o Parlamento inglês, que lhes impunha impostos excessivos. Assim, quando
fizeram a Constituição, os americanos preocupam-se em estabelecer freios e contrapesos ao
poder do Parlamento, tendo grande confiança no poder judicial.

Esta conceção, que durou século e meio, só foi posta em causa, na Europa, no período entre
guerras, quando se revelou que a lei podia ser violadora dos direitos fundamentais. Hoje, os cidadãos
europeus sabem que os seus direitos fundamentais também devem ser defendidos do legislador.
Novo constitucionalismo – após a 2ªGG houve uma revolução constitucional na Europa, que se traduz
na criação de um órgão, o Tribunal Constitucional, encarregado de administrar a justiça
constitucional e defender os direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes públicos
(legislador, administração e judicial). Criou-se esse órgão especial exatamente para não se cair no
perigo do governo dos juízes. Assim, o modelo europeu de justiça constitucional generalizou-se na
Europa depois da 2ªGG.

D) Novo constitucionalismo
A segunda metade do séc. XX foi um momento de refundação, marcado pelos anos
antecedentes de atrocidades inimagináveis que evidenciaram uma chocante inoperância dos
mecanismos de defesa da Constituição face aos movimentos totalitários. Apesar da importância do
contributo de Kelsen, a sua proposta tem muito pouco a ver com o novo constitucionalismo que
surgiu no pós-guerra. Agora, o papel central dos Tribunais Constitucionais e dos sistemas de
fiscalização da constitucionalidade é, em radical oposição à proposta kelseniana, a garantia dos
direitos fundamentais. O novo Direito Constitucional deve adequar-se ao tipo histórico de Estado
que, contra as alternativas autocráticas, prossegue o legado das revoluções liberais: o Estado social
e democrático de Direito.
Assiste-se a uma rematerialização do conceito de Estado de Direito, não mais identificado

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com o Estado de legalidade, que havia aberto o conceito de Estado de Direito à a possibilidade de
preenchimento por quaisquer valores desde que atuados por lei. O Estado de Direito colhe agora a
sua legitimidade também da observância de uma pauta universal de valores em que se incluem dos
direitos fundamentais, de que os poderes políticos não dispõem. O novo constitucionalismo reafirma
a sua inspiração fundadora no valor da igual dignidade da pessoa humana, independentemente da
raça, credo, sexo, religião ou convicção, e nos direitos fundamentais que devem assegurar o respeito,
proteção e promoção da dignidade humana.
Com esta revolução constitucional, os direitos fundamentais já não são uma mera
proclamação retórica, realizados pelo legislador, mas constituem parte nuclear da Constituição,
sendo norma jurídica diretamente aplicável, dotada da força constitucional que vincula todos os
poderes do Estado, incluindo o legislador democrático, e cuja supremacia deve, por isso, ser
assegurada por um poder judicial estrutural e funcionalmente independente da maioria política que
ocupa conjunturalmente o poder. Há, pois, uma preocupação com a garantia, efetividade e
aplicabilidade direta da Constituição e dos direitos fundamentais enquanto normas jurídicas. Todos
os poderes estão agora vinculados à observância e realização dos direitos fundamentais, incluindo o
poder judicial. Deve ser garantido o acesso dos particulares aos Tribunais para defesa contra
quaisquer lesões aos seus direitos fundamentais.
Porque estas novas conceções têm uma origem e motivação cultural e civilizacional de um
tempo não exclusivamente europeu, mas progressivamente global, também nos EUA a justiça
constitucional experimenta uma viragem, em sentido convergente com o europeu. Após um longo
período de oposição reacionária do Supremo Tribunal a medidas sociais, em nome da liberdade
contratual e do direito de propriedade, a justiça constitucional norte-americana, sujeita à pressão
avassaladora do New Deal de Roosevelt, abandonou (devido a pressões de Roosevelt, que mudaram
o sentido de um dos votos do Supremo Tribunal, garantindo uma maioria ao Presidente, e salvando
o conjunto dos juízes) o conservadorismo ideológico militante, orientando-se para uma
autocontenção judicial relativamente à legislação social. Em contrapartida, nos anos 1950 e 1960 o
ativismo judicial na jurisdição constitucional dos EUA reorientou-se em favor dos direitos
fundamentais, decidindo contra a segregação racial, a favor das liberdades políticas das minorias, da
separação Estado-religião, neste momento, contra o sentimento das maiorias sociais e religiosas.

Aulas
A conceção mudou radicalmente depois da 2ªGG. O fundamental do TC não é fazer isso. A
sua função essencial é garantir os direitos constitucionais das pessoas, que devem ser aplicados como
norma jurídica. A Constituição deve ser aplicada como norma jurídica, logo, o TC tem a função de
garantir que as leis são feitas de forma regular, mas também garantir que os DF não são afetados.
E o papel dos juízes comuns no modelo europeu no domínio da fiscalização da
constitucionalidade, quando se levantar uma questão na decisão de um caso concreto em
julgamento? Se for uma questão séria, se houver uma dúvida séria de constitucionalidade, se o juiz
do caso considerar que há dúvidas de constitucionalidade, será necessário esclarecer a questão de
constitucionalidade, para que não perturbe o andamento do processo. O juiz deve suspender o
julgamento e dizer ao TC: surgiram estas dúvidas sobre se esta norma aplicável a este caso é
inconstitucional. o TC aprecia e decide; o juiz segue o julgamento de acordo com o que o TC disse. A
este instituto chama-se reenvio prejudicial.
Diferença para América: os juízes decidem questões de constitucionalidade. No modelo
europeu, não decidem, apenas decidem se suspendem o processo para levar a questão ao TC. Deem
fazê-lo se houver dúvidas sérias de constitucionalidade.

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Recurso de amparo ou queixa constitucional – se o cidadão considerar viu o seu direito


fundamental agredido, e essa agressão não foi reconhecida pelo Tribunal comum? O cidadão não
tem de acatar a decisão do Tribunal, do juiz que não lhe deu razão. O cidadão tem um período para
suscitar a questão junto do TC. Através do recurso de amparo, os cidadãos europeus levam ao TC
eventuais lesões dos seus DF que não foram reconhecidas pelos Tribunais comuns.

E) Importância dos direitos fundamentais e convergência dos modelos


Depois da 2ªGG houve uma convergência substancial dos dois grandes modelos de justiça
constitucional, americano e europeu. Essa convergência não ocorreu no plano orgânico (subsistindo
a profunda dicotomia Supremos Tribunais na América, Tribunais Constitucionais na Europa), mas no
plano da natureza da justiça constitucional, nomeadamente no reconhecimento de que a função
principal da justiça constitucional é a garantia dos direitos fundamentais. Esta ideia é hoje assumida
pela generalidade dos Estados de Direito com fiscalização da constitucionalidade, não havendo
diferenças substanciais entre o modelo americano e modelo europeu neste plano. Por isso, hoje,
quando um país passa de Estado autocrático a Estado de Direito, a sua primeira preocupação é
instituir um modelo de justiça constitucional, que garanta os direitos fundamentais.
É certo que o Supremo Tribunal dos EUA já fazia fiscalização da constitucionalidade desde
1803, todavia, os critérios materiais em função dos quais se fazia este controlo eram parâmetros
muito diferentes dos do pós-guerra.
 No séc. XIX, a visão de aplicação da Constituição do Supremo Tribunal dos EUA era muito
diferente. A partir de finais do séc. XIX, a apropriação judicial das questões de direitos
fundamentais pelo Supremo Tribunal ficou historicamente manchada:
o Decisão Dred Scott (1857) – o Supremo Tribunal considerou que os afro-americanos,
escravos ou não, não podiam reclamar a condição de cidadãos dos Estados Unidos e, logo,
não poderiam aceder aos Tribunais federais. Enquanto escravos, eram propriedade
privada protegida pela Constituição, pelo que o Congresso não dispunha de poderes de
regulação sobre os Estados nesses domínios.
o Atitude dos Tribunais relativamente ao princípio da igualdade. Na jurisprudência do
Supremo Tribunal, afro-americanos não eram considerados cidadão norte-americanos:
porque os escravos eram considerados propriedade, e o Governo federal ou os Governos
estaduais não se podiam imiscuir na propriedade dos cidadãos, recusando-se aos afro-
americanos acesso aos Tribunais, para que pudessem proteger os seus direitos. Esta
jurisprudência reacionária do ST manteve-se até quase aos anos 1950.
o Era Lochner – a partir do caso Lochner vs. New York (1905) – era de ativismo judicial do
ST, que invalidava legislação social em nome da liberdade contratual e de uma visão
anacrónica sobre a prevalência absoluta do direito de propriedade.
o Na passagem do Estado de Direito liberal para o Estado de Direito social e democrático,
entre os anos 1920 e 1940, as tentativas do Congresso dos EUA de aprovar legislação
social (como o salário mínimo) eram negadas pelo Supremo Tribunal, em nome da
Constituição, cujos valores supremos eram a liberdade de iniciativa económica privada, a
liberdade de contratar e o direito de propriedade. Qualquer legislação que afetasse estes
direitos, à luz do entendimento do Supremo Tribunal, seria inconstitucional. Todavia, a
interpretação do ST era uma interpretação possível entre muitas, já que a Constituição
americana nada diz, em concreto, sobre estas questões.

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o Nos EUA houve, nos anos 1930 e 1940, graves conflitos entre Presidentes/Congressos e
Supremo Tribunal. Devido ao modo de designação dos apenas nove juízes, o Supremo
tinha uma composição, em termos políticos, muito marcada pelos Presidentes dos anos
anteriores. Havia, por isso, um grande desfasamento entre a orientação política do
Presidente, Congresso e generalidade da população, e a orientação política do Supremo
Tribunal. Esta tensão entre os dois poderes criava vários problemas em questões de
económicas e de costumes. (Paralelo com a situação atual: Presidente e Congresso são
progressistas e o Supremo tem uma larga maioria conservadora.)
o Durante o mandato do Presidente Roosevelt, do Partido Democrata, havia uma maioria
5/4 conservadora, isto é, 4 juízes decidiam no sentido das orientações do Congresso e do
Presidente, mas os outros 5 bloqueavam as suas decisões. Tentando resolver a questão,
Roosevelt pressionou os juízes, anunciando que faria uma reforma do Supremo Tribunal
se não houvesse uma mudança de atitude da sua parte. Após esta ameaça, o juiz mais
moderado alterou as suas posições, passando a haver uma maioria de 5/4 a favor do
Congresso, o que permitiu uma evolução na jurisprudência do Supremo dos EUA.
 Começaram a surgir as primeiras decisões contra a discriminação racial, o que levou, de forma
progressiva e sistemática a que a jurisprudência do ST dos EUA passasse a ser uma
jurisprudência “amiga” dos direitos e liberdades. Só na segunda metade do séc. XX o ST se
afirmou plenamente como Tribunal de defesa das liberdades e da igualdade entre os
cidadãos. Hoje, o Supremo Tribunal dos EUA é um Tribunal de defesa dos direitos
fundamentais.
 Este estado de coisas teve, reflexamente, influencia no que se passava na Europa. Ainda que
a possibilidade de importação de um sistema de fiscalização da constitucionalidade
americano fosse discutida nos meios académicos, a imagem que os europeus tinham do
Supremo Tribunal, de um Tribunal conservador que proibia o legislador de aprovar legislação
social, trazia dificuldades à adoção de uma justiça constitucional. Institui-la seria instituir o
governo dos juízes: os Parlamentos legislavam e, logo a seguir, os juízes, sem legitimidade
democrática tão forte como a dos Parlamentos, proibiam.
 Só houve uma alteração destas circunstâncias no pós-guerra, tanto nos EUA como na Europa.
Na Europa, no pós-guerra, os Tribunais Constitucionais também eram “amigos” dos direitos
fundamentais. Assim, houve uma convergência entre modelo americano e modelo europeu,
o que levou a que a justiça constitucional passasse a ser vista como justiça de garantia dos
direitos fundamentais. Por isso é que todos os países que chegam à democracia e ao Estado
de Direito têm uma preocupação imediata em instituir um sistema de justiça constitucional.

F) Modelo europeu, reenvio prejudicial e recurso de amparo


Os Tribunais Constitucionais só se generalizaram na Europa depois da 2ªGG, mas já nos anos
1920 existiam em alguns países. Várias razões explicam a precocidade de certas experiências:
 A principal razão era a garantia da separação de poderes e a resolução de conflitos de
competência entre Estados federais e Estados Federados.
 Em segundo lugar, os Tribunais Constitucionais surgiram como os chamados legisladores
negativos. Segundo Kelsen cabe ao legislador concretizar a Constituição, de forma política,
criativa, e de acordo com as suas conceções; ao Tribunal Constitucional não cabe intervir na
realização da Constituição, mas apenas verificar se a lei respeita as regras constitucionais,

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Baltazar Oliveira

sobretudo as regras objetivas, de competência. Assim se desenvolveu a fiscalização abstrata,


preventiva e sucessiva.
 Após a 2ªGG não cabe apenas ao TC verificar a regularidade da formação da lei, mas ver se
ela respeita ou não os direitos fundamentais. Os Tribunais Constitucionais são agora Tribunais
de defesa dos direitos fundamentais.

A justiça constitucional europeia, que se reparte por estas três áreas, acaba por se concentrar
mais na garantia dos direitos fundamentais, através de dois institutos: reenvio prejudicial e recurso
de amparo.

Reenvio prejudicial:
 Na apreciação de um caso em Tribunal, podem levantar-se duvidas sobre constitucionalidade
de normas aplicáveis ao caso. Nesse caso, cabe ao juiz do caso considerar que essas dúvidas
sobre a potencial inconstitucionalidade da norma têm fundamento, se são dúvidas razoáveis.
Se o juiz não verificasse isso, o reenvio prejudicial podia ser utilizado para uma das partes, ao
levantar questões artificiais, fazer prolongar o processo.
 Se o juiz comum considera que as dúvidas são razoáveis, e que não há uma tentativa de fazer
prolongar o processo, o juiz suspende o processo e reenvia a questão de constitucionalidade
para o Tribunal Constitucional, para que este se pronuncie sobre a sua inconstitucionalidade.
Após o TC se pronunciar, o caso prossegue. Se o TC considerar a norma inconstitucional, ela
desaparece da ordem jurídica.
Reenvio prejudicial:
 Embora os juízes comuns conheçam das questões de constitucionalidade, eles não as
decidem. Assim, se no decurso de um caso concreto a ser julgado num Tribunal comum surgir
uma dúvida de constitucionalidade de uma norma aplicável ao caso, o juiz da causa confirma
a existência de dúvidas razoáveis sobre a conformidade constitucional (se o juiz não
verificasse isso, o reenvio prejudicial podia ser utilizado para uma das partes, ao levantar
questões artificiais, fazer prolongar o processo), suspende a instância e remete a decisão da
questão de constitucionalidade para o TC, através do instituto do reenvio prejudicial, que
assegura a exclusividade ou monopólio da administração da justiça constitucional pelo
Tribunal Constitucional. Após o TC se pronunciar, o juiz segue o julgamento de acordo com a
decisão tomada.
 Ao TC não cabe a apreciação do caso concreto, mas apenas a decisão da questão de
inconstitucionalidade da norma em causa que, sendo inconstitucional, não só é desaplicada
no caso concreto como é erradicada da ordem jurídica.

Recurso de amparo ou queixa constitucional:


 Este instituto, diretamente associado à defesa dos direitos fundamentais, dá a possibilidade
aos cidadãos de, se entenderem que os seus direitos fundamentais foram violados, por
qualquer entidade, pública ou privada, e após terem recorrido aos Tribunais comuns, se
considerarem que os juízes comuns não lhe deram razão ou que não impediram a violação
do seu direito fundamental, acederem diretamente ao Tribunal Constitucional para garantir
os direitos fundamentais que consideram terem sido violados, por ação ou omissão, pelo
legislador, a administração, os Tribunais ou outros particulares.
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Baltazar Oliveira

 A partir do momento em que este tipo de recurso é instituído numa ordem jurídica, os
cidadãos recorrem a ele em massa. De facto, na prática, a esmagadora maioria das decisões
dos Tribunais Constitucionais fazem-se no domínio dos recursos de amparo apresentados
pelos cidadãos. Por isso, os legisladores constitucionais e os Tribunais Constitucionais
estabelecem alguns filtros no acesso ao TC.
 Requisitos/filtros:
o Prazos estritos – só se pode recorrer ao TC durante certo período de tempo.
o Esgotar a via judicial – só se pode recorrer ao TC após esgotados todos os recursos. Ainda
assim, por vezes, se um cidadão não puder recorrer aos Tribunais comuns em tempo
útil, o acesso ao TC é lhe garantido, com o objetivo da garantia dos direitos
fundamentais.
o Confirmação de que se trata de um caso sério de lesão de um direito fundamental
o Relevância da questão de constitucionalidade.
o Conceitos-filtros: como “especial transcendência constitucional” (Espanha), que dão
alguma discricionariedade ao TC para selecionar os casos constitucionalmente
relevantes, aproximando-o dos Supremos Tribunais.
 Justificações:
o Razão pragmática: duas situações de necessidade de acesso dos particulares ao TC/ST
 O Tribunal ordinário não reconhece a lesão do direito fundamental que o particular
convoca
 Lesão do DF que o particular alega advém da ação ou omissão dos órgãos
jurisdicionais quando arbitram litígios concretos.
o Razão lógica: se os DF são garantias constitucionais, se corporizam a parte nuclear da
Constituição material, e se os TC/ST são guardiões da Constituição, seria inconsequente
não disporem de uma última palavra.
o Vantagens: uniformização de jurisprudência, constitucionalização do Direito,
desenvolvimento da doutrina
 Caráter subsidiário do instituto

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4. Singularidade e origem do sistema português de fiscalização


concreta

A) Origem do sistema português


Em 1982, os portugueses criaram um Tribunal Constitucional, todavia, sem aderirem ao
modelo europeu de fiscalização da constitucionalidade. Em primeiro lugar, não se adotou o reenvio
prejudicial: quando surgem dúvidas de constitucionalidade, o juiz comum europeu não decide, mas
remete para o TC pois, na Europa, quem faz a justiça constitucional são os Tribunais Constitucionais.
Em segundo, em Portugal não existe queixa constitucional: um cidadão português pode considerar
que o seu direito fundamental está a ser violado, mas não tem possibilidade de ir para o Tribunal
Constitucional, a não ser através dos recursos da fiscalização concreta.
Cabe refletir sobre o que terá levado o legislador constituinte português de 1976/1982 a
enveredar por um sistema de fiscalização da constitucionalidade tão singular e original de entre as
várias alternativas já experimentadas noutros países, de entre os dois grandes modelos de
fiscalização.
A doutrina que sustenta a bondade do sistema português de fiscalização concreta tende a
apresentar o sistema atual como uma decorrência natural da confluência entre duas lógicas distintas,
mas convergentes, que combinam criativamente tradição e modernidade:
 Manutenção de um legado histórico do constitucionalismo português, de onde resultaria a
conservação da fiscalização judicial difusa oriunda do modelo americano – desde a
Constituição de 1911 que há, em Portugal, um sistema de fiscalização da constitucionalidade,
que se enquadrava no modelo americano (todos os Tribunais fazem fiscalização da
constitucionalidade). Este sistema continuou com a Constituição de 1933. Em 1976/1982,
manteve-se a fiscalização difusa própria do modelo americano, mas criou-se um Tribunal
Constitucional. De certa forma, concebeu-se um modelo misto.
 Modernização introduzida pela inserção europeia da Constituição portuguesa, de onde
resultou a criação de um Tribunal Constitucional responsável pela fiscalização concentrada.

Esta é uma explicação romanceada da criação de um sistema racional e intencionalmente


constituído sobre a tradição do nosso constitucionalismo, mas que tem muito pouco a ver com a
história da adoção do sistema. A origem e a singularidade do sistema português explicam-se sim pelas
circunstâncias próprias do tempo conturbado em que a Constituição de 1976 foi elaborada,
nomeadamente, pelas negociações do Segundo Acordo MFA/Partidos.
 Grande parte do conteúdo da Segunda Plataforma de Acordo Constitucional, celebrado em
fevereiro de 1976, veio a ser vertido no texto da Constituição.
 A ideia originária era instituir um sistema próximo do modelo europeu (com reenvio
prejudicial e, de acordo com propostas de alguns partidos, com recurso de amparo), que era
tendencialmente acolhido nos vários projetos de Constituição dos partidos, sustentado pela
mais importante doutrina e apresentado pelo Conselho da Revolução aos partidos no quadro
de negociação do Segundo Acordo MFA/Partidos. O sistema português seria um sistema do
modelo europeu, mas com uma diferença: durante uma fase transitória, os militares
conservavam um poder de natureza jurisdicional. O Conselho da Revolução teria papel de TC.

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 Previa-se a competência do Conselho da Revolução para julgar as questões de


constitucionalidade suscitadas nos Tribunais comuns, que lhe chegariam através de reenvio
prejudicial (comum no modelo europeu, ainda que com um TC) depois de serem
juridicamente preparadas pela Comissão Constitucional, a quem caberia a elaboração dos
projetos de acórdão. O CR não ficava limitado exclusivamente a fiscalização de normas, uma
vez que o recurso respeitava a quaisquer atos, configurando-se embrionariamente o que seria
um posterior desenvolvimento de um recurso de amparo.
 A ser aceite esta proposta, como seria expectável, não é difícil imaginar que o sistema
português evoluísse no sentido do modelo europeu (com os seus institutos típicos do reenvio
prejudicial e de recurso de amparo), como aconteceu com Espanha quando chegou ao Estado
de Direito democrático em 1978 e adotou o modelo europeu.
 Surpreendentemente, atendendo à convergência de posições teóricas sobre o problema e à
qualidade técnica da proposta do Conselho da Revolução, houve uma oposição do PPD a esta
configuração, sustentada pelo receio conjuntural de se estar a institucionalizar uma
intervenção excessiva do Conselho da Revolução neste domínio. Para Reis Novais, esta foi
uma visão a curto prazo, que não teve a noção de que não seriam os militares a decidir as
questões de constitucionalidade, mas sim uma Comissão Constitucional, integrada por alguns
dos mais notáveis juristas da época, a que se seguiria passados poucos anos, naturalmente,
após a revisão de 1982, um Tribunal Constitucional.
 A proposta do PPD foi então, no sentido de entregar a decisão das questões de
constitucionalidade aos juízes comuns, com as seguintes particularidades:
i) Recurso das decisões dos Tribunais comuns para um Tribunal especial – em vez de
reenvio prejudicial para o Conselho da Revolução, devem ser os juízes a decidir as
questões de constitucionalidade, havendo recurso para um Tribunal especial.
ii) Possibilidade de recurso só nos casos em que os juízes recusassem a aplicação de
normas em vigor com fundamento em inconstitucionalidade.
 O Conselho da Revolução cedeu à proposta do PPD, que veio a constituir, no fundo, a solução
adotada no Segundo Acordo MFA/Partidos e na Constituição de 1976, com as seguintes
alterações:
i) Substitui-se o Tribunal especial pela Comissão Constitucional;
ii) Possibilidade de recurso para a Comissão Constitucional de decisões de aplicação de
normas cuja inconstitucionalidade tivesse sido suscitada no processo.
 Assim, o TC apenas decide questões de constitucionalidade de normas. No equilíbrio do
sistema português, teria inevitavelmente de ser assim, já que, de outro modo, ampliando o
controlo do TC também a atos e decisões judiciais, o TC converter-se-ia em Tribunal de
recurso para toda e qualquer decisão judicial.
 Portanto, o sistema português não tem origem em qualquer visão estratégica, mas
simplesmente no receio conjuntural do PPD de uma intervenção excessiva dos militares. Foi
esse temor imediatista que determinou a inclusão no sistema português de elementos
contraditórios, pouco racionais e cujas consequências seriamente negativas não podiam ter
sido perfeitamente percetíveis na época, mas são hoje evidentes.
 Só após a entrada em vigor da CRP surgiu o argumento histórico: se os juízes portugueses
tinham competência para apreciar questões de constitucionalidade desde 1911, não se lhes
podia tirar este poder e atribuí-lo ao TC. Tal seria uma ofensa. Todavia, na prática, os juízes

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portugueses não exerciam essa competência. Desde 1911, até 1976, o número de vezes que
o poder de fiscalização da constitucionalidade foi utilizado por juízes comuns conta-se pelos
dedos das mãos.

B) A questão da última palavra


No domínio da garantia da Constituição e, especialmente, dos direitos fundamentais, é
essencial a questão de saber a quem dispõe da competência para a decisão derradeira, isto é, a quem
cabe a última palavra se estiver em causa a violação de direitos fundamentais.
 Tribunal Constitucional – violação de direitos fundamentais por atos normativos.
 Supremo Tribunal de Justiça – violação de direitos fundamentais por ato não normativo de
um particular ou de um magistrado, ou seja, no âmbito de relações entre privados ou, neste
âmbito, por incumprimento do correspondente dever de proteção que cabe aos Tribunais
comuns na resolução de litígios emergentes daquelas relações, ou através da atuação dos
magistrados judiciais no âmbito de quaisquer processos que lhes caibam decidir.
 Supremo Tribunal Administrativo – violação de direitos fundamentais por ato não normativo
da Administração ou derivado de ato ou de omissão dos Tribunais administrativos a quem
cabe o julgamento do litígio.
 Tribunal Europeu dos Direitos Humanos – violação de direito fundamental constante da
Convenção Europeia dos Direitos Humanos, sendo que muitos dos direitos fundamentais
consagrados na CRP constam da CEDH.

O facto de a jurisdição constitucional suprema em domínio de direitos fundamentais poder


estar entregue a quatro jurisdições constitucionais paralelas, consoante o tipo e o agente da violação,
levanta vários problemas:
 Incoerência do sistema – cada Tribunal pode ter uma posição diferente sobre o mesmo direito
fundamental, sem que haja uma instância de uniformização da jurisprudência. Uma mesma
questão de constitucionalidade pode ser decidida de forma diferente por TC, STJ, STA e TEDH,
ficando o futuro da CRP dependente de quem tiver a última palavra.
 Falta de legitimidade dos Tribunais Supremos para decidirem questões essenciais de
constitucionalidade em decisão final.
 Principalmente, levanta-se a questão da existência de um conjunto de violações de direitos
fundamentais (as inconstitucionalidades materiais mais relevantes) que os cidadãos
portugueses ficam impedidos de colocar ao seu Tribunal Constitucional, o Tribunal criado
para administrar a justiça em matéria jurídico-constitucional.

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5. Crítica: proteção inadequada dos direitos fundamentais

A) Ausência de proteção no domínio das intervenções restritivas nos direitos fundamentais


No fundo, o objetivo de um sistema de fiscalização da constitucionalidade em Estado de
Direito é garantir os direitos fundamentais. Todavia, o facto de o Tribunal Constitucional português
apenas poder apreciar a inconstitucionalidade de normas, e não de atos, decisões ou omissões,
traduz-se num défice significativo de proteção dos direitos fundamentais.
 O sistema português foi construído, pelo menos implicitamente, a partir do pressuposto de
que o risco de agressões aos direitos fundamentais, e daí as inconstitucionalidades, provém
essencialmente de órgãos com competência para fazer normas. O inimigo dos direitos
fundamentais dos cidadãos seria, em primeira linha, o legislador. Tal tinha razão de ser logo
após a entrada em vigor da Constituição, depois de um regime ditatorial. Nos primeiros anos
de vigência da Constituição foi feito um grande esforço de atualização do quadro legislativo e
de invalidação das normas que contrariassem a Constituição e os direitos fundamentais nela
consignados. Por isso, apenas se atribuiu ao TC a competência de fiscalizar a
inconstitucionalidade de normas, e não de atos ou decisões.
 Hoje, e logo após a entrada em vigor da CRP, o panorama alterou-se. Não é normal que, no
dia-a-dia de um Estado de Direito democrático, o legislador aprove normas violadoras de
direitos, liberdades e garantias. Várias razões explicam que só excecionalmente as leis
restritivas de direitos fundamentais possam ser inconstitucionais:
o Os Parlamentos são órgãos eleitos e representativos, que decidem de acordo com a
vontade das várias correntes políticas da sociedade, que estão sujeitos a condições
privilegiadas de publicidade e contraditório e ao intenso debate democrático que ocorre
na arena política, na imprensa e na opinião pública.
o A atividade do legislador está sujeita a controlos, como o veto presidencial, a fiscalização
preventiva da constitucionalidade e a fiscalização sucessiva abstrata. Com estes
mecanismos de filtragem, a subsistência de normas inconstitucionais na ordem jurídica
tende a ser residual.
o Nas questões política e socialmente mais controversas ou fraturantes, a tendência da
justiça constitucional é para reconhecer ao legislador democrático uma ampla margem de
decisão dentro das molduras amplas da Constituição. Assim, quando a decisão legislativa
é politicamente muito controversa, não redunda, normalmente, e inconstitucionalidade.
o A maioria das normas restritivas de direitos fundamentais (dada a imprevisibilidade das
circunstancias reais da colisão entre direitos fundamentais) apresenta um caráter
genérico, aberto e indeterminado, remetendo-se para a Administração e para os Tribunais
a intervenção nos direitos fundamentais a decidir em função da ponderação no caso
concreto.
 Certamente pode acontecer que, passados estes filtros, o legislador aprove normas
inconstitucionais. Mas os principais riscos para os direitos fundamentais não vêm do
legislador, mas surgem na aplicação das normas em vigor pela Administração e pelos
Tribunais, nas relações entre os particulares ou pela falta de normas para esses defenderem
os seus direitos fundamentais. E o TC não pode intervir em qualquer destes domínios.

É nas intervenções restritivas de direitos fundamentais que se verificam a maioria das

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inconstitucionalidades:
 Intervenções restritivas de direitos fundamentais: atos pontuais, individuais e concretos
praticados pela Administração e pelos Tribunais e que agridem um direito fundamental.
 Só em casos excecionais é que o TC pode intervir quando seja alegada a inconstitucionalidade
de uma intervenção restritiva: quando se alega que a norma habilitadora da intervenção (a
norma que habilita a Administração ou o poder judicial a intervir restritivamente nos direitos
fundamentais) é inconstitucional – ex: se a polícia detém alguém inconstitucionalmente, tal
inconstitucionalidade não pode ser atalhada pelo TC; o TC só pode apreciar as normas que
regulam a intervenção policial, nunca a própria inconstitucionalidade da intervenção policial;
ex: se a legislação laboral permite a requisição civil dos trabalhadores em greve, o TC pode
verificar se a lei é inconstitucional, mas se, invocando habilitação legal, o Governo determina
uma requisição civil, violando o direito à greve, o TC não pode intervir.
 Porém, é nas intervenções restritivas de direitos fundamentais cuja norma ordinária
habilitadora não é inconstitucional que se verificam a maioria das situações de lesão dos
direitos fundamentais. Porém, o sistema português de fiscalização da constitucionalidade
está, no domínio dos direitos fundamentais, unilateralmente orientado para a proteção
contra as normas restritivas. Há, pois, um défice significativo de proteção dos direitos
fundamentais dos cidadãos sob jurisdição do Estado português, que não podem recorrer para
o TC das agressões individuais e concretas praticadas pela Administração e pelos Tribunais.
 Assim, no sistema português, o Tribunal Constitucional não é o Tribunal dos direitos
fundamentais. Já no modelo europeu, se o cidadão considera que o seu direito fundamental
foi agredido, qualquer que seja a entidade pública, pode fazer uma queixa constitucional.
Também no modelo americano qualquer ato pode chegar ao Supremo Tribunal, preenchidos
os requisitos do processo.

Mas porque exige uma proteção efetiva dos direitos fundamentais a intervenção do TC?
 A criação de um Tribunal Constitucional, com funções de controlo de constitucionalidade,
funda-se, naturalmente, numa lógica de desconfiança relativamente ao mérito das decisões
dos Tribunais comuns. Se assim não fosse, os recursos das decisões judiciais em fiscalização
concreta não deviam ser dirigidos ao TC, mas antes ao STJ e ao STA.
 Além disso, porque seria legitimo desconfiar das decisões dos Tribunais comuns
relativamente a normas restritivas de direitos fundamentais, mesmo quando a
inconstitucionalidade invocada é meramente técnica (orgânica ou formal), mas já é ilegítimo
análoga desconfiança relativamente a intervenções restritivas, mesmo quando se traduzam
em lesões mais graves dos direitos fundamentais?
 Mais, porque essa intervenção unificadora e orientadora de um Tribunal especializado em
questões de constitucionalidade tem um efeito de uniformização da jurisprudência e de
fornecimento de critérios e padrões de apreciação e progresso do Direito.

B) Ausência de proteção no domínio da eventual violação dos DF por omissão de atuação estatal
Após uma fase inicial, em que a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão gerou
alguma controvérsia e interesse, ela praticamente desapareceu como tema de Direito constitucional,

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seja pelo seu alcance tão restrito11, seja porque o instituto permaneceu durante muitos anos
adormecido. Ainda assim, nos últimos anos houve um renovamento do interesse pelo instituto.
 De facto, o recurso à fiscalização abstrata é objetivamente sustentável em Estado de Direito
social. Numa Constituição de Estado de Direito social decorrem das normas constitucionais e
dos direitos fundamentais, para os poderes públicos, não apenas obrigações de respeito, mas
também deveres de proteção, perante ameaças à liberdade, à autonomia e ao bem-estar
provindas de outros particulares, bem como deveres de promoção e de ajuda estatal a quem
não dispõe de condições para o exercício dos direitos e liberdades fundamentais ou para
aceder aos bens por eles garantidos.
 Qualquer destes deveres, relativamente a qualquer direito fundamental, tem uma dimensão
positiva (dever de fazer) e uma dimensão negativa (dever de não fazer), podendo o
incumprimento do dever resultar de qualquer das duas dimensões, isto é, traduzir-se numa
inconstitucionalidade por ação ou numa inconstitucionalidade por omissão. E o
incumprimento total ou parcial de deveres de proteção, promoção e ajuda, que são
imposições constitucionais, traduz-se numa omissão inconstitucional. Assim, a omissão
injustificada de atos normativos, materiais, administrativos, judiciais, pode ser configurada
como violação dos direitos fundamentais por omissão, todavia, na maioria das vezes
insuscetível de ser verificada pelo TC.
 De facto, o sistema português de fiscalização da constitucionalidade por omissão não é
adequado à verificação de omissões inconstitucionais na área mais importante, a da garantia
dos direitos fundamentais. Não o é porque o TC só pode fiscalizar a inconstitucionalidade por
omissão de normas necessárias para conferir exequibilidade às normas constitucionais, e não
de outras normas, de atos ou de decisões, designadamente atos e decisões necessários para
que as entidades públicas, incluindo os Tribunais, cumpram os deveres estatais que lhes
caibam na realização dos direitos fundamentais.
 Ao contrário do que normalmente se possa pensar, este défice do sistema de fiscalização por
omissão envolve todos os direitos fundamentais, sejam direitos de liberdade ou direitos
sociais, e não exclusivamente os últimos. O direito à vida, a liberdade de religião ou a
liberdade de ensino podem ser violados por ação ou por omissão.
 Exemplos de omissões inconstitucionais: falta de norma sancionatória para garantir uma
proteção efetiva de um bem jusfundamental perante ameaças de terceiros; o cidadão é
abandonado pelo Estado a uma situação intolerável de penúria impeditiva do acesso a bens
jusfundamentalmente protegidos, como a saúde ou a habitação; omissão de atos materiais
ou administrativos necessários ao exercício de um direito fundamental.
 E o facto de existir, no sistema português, a modalidade de fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão, modalidade que não existe em grande parte dos Estados
de Direito, torna este défice de proteção dos direitos fundamentais ainda mais contraditório.
As entidades mencionadas no art. 283º podem requerer ao TC que verifique a omissão de
normas necessárias para realizar normas constitucionais. Todavia, os cidadãos não podem,
em fiscalização concreta (a única que lhes permite recorrer ao TC), recorrer por falta de
norma quando haja uma omissão de proteção dos seus direitos fundamentais pela

11
Razões do alcance restrito da fiscalização da constitucionalidade por omissão: (i) só fiscaliza omissão de normas que
conferem exequibilidade a normas constitucionais, e não de normas exequíveis por si mesmas (a grande maioria), de atos
ou decisões (especialmente, decisões judiciais); (ii) só fiscaliza em sede de fiscalização abstrata, e não concreta; (iii)
número limitado de entidades pode requerer; (iv) a consequência é uma mera chamada de atenção – ver Parte III / Cap.
1 / Ponto D.

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Administração ou pelos Tribunais, mesmo que os seus direitos fundamentais estejam a ser
violados.

De facto, salvo raras exceções, as omissões inconstitucionais dificilmente se configuram como omissão de norma
legislativa necessária para dar exequibilidade às normas constitucionais, sendo inacessível o acesso ao TC em sede de
fiscalização abstrata. Este défice só poderia ser suprido através da instituição do recurso de amparo (por violação de
direitos fundamentais tanto por ação quanto por omissão), passando a ser possível suscitar a eventual omissão
inconstitucional relativa à proteção de direitos fundamentais junto dos Tribunais comuns e, aí, sempre que a
inconstitucionalidade não fosse devidamente reconhecida, poder apelar à intervenção do TC.
Outra via de suprir o défice de proteção é através da configuração artificial da omissão normativa como
equivalendo à existência de uma norma implícita ou virtual denegadora da prestação normativa em falta e,
consequentemente, transformando a inconstitucionalidade por omissão (real) em inconstitucionalidade por ação
(virtual).
 Assim, onde a Constituição, intencionalmente, só permite a fiscalização de normas, e não de atos, a solução teria
sido simples: o ato é teoreticamente reconstruído como se fosse norma e tudo passa a ser sindicável pelo TC,
bastando que, num caso concreto, o Tribunal se comprometa ativamente naquela reconstrução e trate o ato
como se fosse norma.
 Onde a Constituição distingue entre fiscalização da inconstitucionalidade por ação (admitida) e fiscalização da
inconstitucionalidade por omissão (só excecionalmente admitida), a solução seria simples: a omissão é
teoricamente reconstruída como ação (implícita, virtual), passando o TC a poder fiscalizá-la, desde que essa
omissão seja concebida (reconstruída) como norma implícita ou virtual, passando a ser sindicável como norma.
O TC acaba a poder fiscalizar, contra o plano da Constituição de 1976, a omissão de “x”, bastando que diga que
está a fiscalizar a ação “não x”.
 Porém, é uma estratégia de compensação artificiosa, já que as duas situações não são equiparáveis: o oposto
de uma norma segundo a qual o legislador está obrigado a dar exequibilidade a uma norma constitucional é,
quando muito, uma norma implícita segundo a qual o legislador não está obrigado a dar exequibilidade à norma
constitucional; mas nunca que a ordem jurídica passou a conter uma noma implícita que dispõe em sentido
contrário da norma, inexistente, que o legislador estava obrigado a aprovar. Ex: há um direito fundamental não
suficientemente protegido contra agressões de outros particulares, como no caso de ausência de criminalização
de atos agressivos; pode dizer-se que, a partir de um certo grau de insuficiência de proteção, há
inconstitucionalidade por omissão da medida legislativa de proteção, uma vez que se pressupõe existir um
comando normativo constitucional que obriga o legislador a atuar nessas circunstâncias. No entanto, em caso
algum essa ausência de norma de proteção pode significar que existe na ordem jurídica norma (implícita) que
autoriza a ocorrência das agressões.
 Esta estratégia não é adequada, porque leva até às suas últimas consequências o processo que o TC encetou ao
forçar até ao limite o conceito de norma para efeitos de fiscalização, a ponto de identificar omissão normativa
com norma (implícita, virtual), e subvertendo o próprio programa do sistema de fiscalização instituído pela
Constituição de 1976. Estas estratégias que se baseiam na tentativa de, através da expansão do conceito de
norma, fazer dissipar a distinção entre norma e ato, entre inconstitucionalidade por omissão e
inconstitucionalidade por ação, só parcialmente conseguem endireitar o que nasceu torto, mas criam sempre
novos e não menos indesejáveis tortos12.
 E mesmo que a estratégia fosse bem sucedida, continuariam sempre insindicáveis as violações aos direitos
fundamentais por omissão de atos materiais ou administrativos ou por omissão das correspondentes decisões
judiciais.

C) Ausência de proteção no domínio das relações entre privados


De acordo com a posição tradicional, os direitos fundamentais vinculam exclusivamente o
Estado. Na segunda metade do séc. XX, o tema da eventual vinculação das entidades privadas aos

12
Ver ampliação do conceito de norma pelo TC – Parte III / Cap. 6 / Ponto A

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direito fundamentais assumiu significativo relevo. Nesse sentido, a CRP76 proclamou, ao contrário
da maioria das Constituições, no seu art. 18º/1: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos
direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas.”
 Situações de eventual incumprimento do dever estatal de proteção dos direitos fundamentais
ocorrem, com grande frequência, no domínio das relações entre privados. Perante ameaças
de outros particulares, o cidadão invoca a titularidade dos direitos fundamentais para exigir
a proteção correspondente do Estado e, em última análise, do juiz.
 Com o 18º/1 CRP, seria expectável que a Constituição garantisse a proteção dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares (que estariam a violar o 18º/1), nomeadamente
no acesso ao TC. Pensou-se estar a prevenir previsíveis resistências dos civilistas e dos juízes
comuns à primazia da Constituição e dos direitos fundamentais, porque se deixava claro que
os direitos fundamentais não eram um tema exclusivo das relações entre o Estado e indivíduo.
 Nesse sentido foram outras ordens jurídicas (alemã, espanhola, latino-americanas), que se
orientaram para a garantia efetiva do acesso dos cidadãos ao TC, através da consagração do
recurso de amparo. Por outro, o constituinte português aventurou-se nos terrenos da
controvérsia doutrinária (o que não é tarefa da Constituição), através da proclamação da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais (18º/1), mas deixando-os totalmente
abandonados à boa vontade do juiz comum nas relações entre privados.
 Portanto, a CRP proclama a vinculação direta das entidades privadas aos diretos
fundamentais, mas paradoxalmente confia em absoluto na jurisdição comum para fazer valer
os direitos fundamentais, não permitindo o acesso ao TC por particulares que não viram
reconhecida pelo juiz comum a agressão por outros particulares aos seus direitos
fundamentais. É assim porque o TC português só aprecia a inconstitucionalidade de normas.
E os particulares não fazem, em princípio, normas sindicáveis pelo TC (poderá haver “normas
privadas” sindicáveis, como convenções coletivas de trabalho).
 Ex: um Tribunal comum pode decidir um confronto entre a liberdade de imprensa de um
jornal e o direito à privacidade de um cidadão, dando razão a uma das partes; se um particular
considerar (e há sempre um que considera) que o seu direito fundamental não foi protegido
pela decisão judicial, de forma inconstitucional, não pode recorrer ao TC.

D) Incoerência do sistema de relações entre Tribunais comuns, TC e TEDH


A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) consagra direitos também considerados
fundamentais pela Constituição portuguesa e permite, no seu sistema de garantias, o recurso
individual, perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), das decisões dos Estados que,
tendo ratificado a CEDH, ofendam esses direitos.
 Como nessas decisões estatais estão incluídos quaisquer tipos de atos, normativos ou não, o
cidadão português pode recorrer ao TEDH de quaisquer intervenções restritivas de direitos
fundamentais atuadas pelo Estado nacional (mesmo que individuais e concretas). Pode desde
que já tenha esgotado os recursos internos e não lhe tenha sido dada razão pelos Tribunais
ordinários ou que tenham sido esses Tribunais a intervir restritivamente no seu direito. Pelo
contrario, em muitas dessas situações, o cidadão português não pode recorrer para o Tribunal
Constitucional, que só aprecia a inconstitucionalidade de normas.

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Baltazar Oliveira

 Portanto, pode acontecer, e acontece frequentemente, que os Tribunais ordinários


portugueses rejeitem queixas de um cidadão sobre uma pretensa violação do seu direito
fundamental e, após esse cidadão recorrer para o TEDH, venha obter a condenação do Estado
português por violação desse direito, e seja indemnizado peça lesão não atalhada pelos
Tribunais portugueses, podendo eventualmente a condenação do Estado obrigar,
indiretamente, à revogação das decisões judiciais internas.
 É incompreensível que, estando em causa uma questão de constitucionalidade, das mais
sérias e relevantes (lesão de direito fundamental), e por mais gravosa e importante que seja,
tudo seja decidido num diálogo entre os Tribunais comuns portugueses e o TEDH, mantendo-
se o TC, suposto guardião da Constituição e dos direitos fundamentais, totalmente
marginalizado nesse dialogo e nessa decisão, porque o ato inconstitucional não é uma norma.
É incompreensível que o cidadão português possa recorrer a um Tribunal em Estrasburgo,
sendo o seu caso julgado por juízes internacionais, mas não possa recorrer ao Tribunal
Constitucional português, no Terreiro do Paço, que devia garantir os seus direitos
fundamentais.

Discrepância nas decisões dos Tribunais comuns e do TEDH e o papel de harmonização que o
Tribunal Constitucional poderia ter
 Nos últimos anos têm-se repetido casos de violação dos direitos fundamentais em que o
Estado português é sucessivamente condenado pelo TEDH por violação da liberdade de
expressão. Normalmente, são conflitos entre particulares, que dão origens a queixas criminais
devido a colisão entre liberdade de expressão ou de imprensa com o direito ao bom nome e
à reputação. Surgem também casos nas relações entre o Estado ou a Administração e os
particulares, em que a liberdade de expressão surge justificadamente com a prossecução de
outros interesses público, como a ordem pública ou o segredo de justiça. Os casos de conflito
entre direitos fundamentais, surgidos nas relações entre particulares, naturalmente, são da
competência dos Tribunais comuns. Mas quem tem a última palavra sobre a questão de
constitucionalidade?
 Tendo Portugal uma jurisdição constitucional especializada, a resposta deveria ser o Tribunal
Constitucional. Todavia, o TC só fiscaliza a constitucionalidade de normas, e estes casos são
de atos ou decisões judiciais que fazem prevalecer um dos dois direitos fundamentais em
confronto. Só em raras ocasiões, quando um dos particulares alega que certa interpretação
judicial das normas em causa é inconstitucional, é que o TC é chamado a decidir. E mesmo aí
não decide a questão de fundo de direitos fundamentais, isto é, qual o direito que deve
permanecer em Estado de Direito democrático nas circunstancias do caso, mas só é chamado
a decidir se uma daquelas normas, na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal comum,
é ou não inconstitucional. E, em geral, a interpretação daquelas normas não é inconstitucional
(essas normas estão em vigor bá muitos anos sem suscitar interpretações divergentes). O que
é inconstitucional é a decisão do juiz comum de ponderação entre os direitos em jogo, decisão
que o TC não pode controlar.
 Há, pois uma irracionalidade na distribuição de competências de decisão dos litígios entre
particulares que, não encontrando satisfação nos Tribunais comuns, e não podendo recorrer
para o TC, recorrem, em última análise, ao TEDH (se o direito afetado constar da CEDH). Uma
vez que esse direito fundamental é também um direito protegido pela Constituição
portuguesa, se o TEDH considera ter havido violação, então houve uma inconstitucionalidade.
Portanto, o TEDH foi chamado a fazer a tarefa que, em primeira linha, devia caber ao TC,

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Baltazar Oliveira

verificar se os poderes públicos atenderam devidamente ao direito fundamental que a CRP


acolheu.
 E esta irracionalidade na distribuição de competências não é negativa por si só. Ela envolve
consequências no mérito da própria decisão da questão de direitos fundamentais, já que tudo
se passa num diálogo entre Tribunais comuns e TEDH, e de que o TC está alheado. Ora, nesse
diálogo, há uma impressiva discrepância entre as decisões dos Tribunais comuns (que vão no
sentido da prevalência dos valores contrários à liberdade de expressão) e as decisões do
Tribunal Europeu (que sistematicamente decide a favor da liberdade de expressão/imprensa,
condenando o Estado português). De facto, é anormal existir, quer numa, quer na outra
jurisprudência, a clara prevalência de um dos valores, um sintoma de que algo está errado.
 Da parte dos Tribunais comuns, há um défice de perceção de relevância da liberdade de
expressão e de imprensa num Estado democrático e um défice de domínio de conceitos hoje
basilares na teoria dos direitos fundamentais. Da parte do TEDH, há uma negligência das
circunstancias nacionais e da margem de apreciação que deve ser deixada às instancias
nacionais. Por exemplo, o TEDH não tem consciência da importância e gravidade das violações
do segredo de justiça em Portugal.
 Um requisito essencial para garantir uma harmonização entre a jurisdição do TEDH e as
jurisdições nacionais seria assegurar que o TC tem a possibilidade de se pronunciar antes de
a questão ser apreciada pelo TEDH. Por um lado, tal intervenção seria particularmente
relevante no plano da uniformização e orientação da interpretação e aplicação das normas e
princípios constitucionais. Por outro, o TEDH estaria habilitado com informação e
conhecimento adequados das circunstancias nacionais de resolução do problema, havendo
condições otimizadas de diálogo entre as duas instancias jurisdicionais especializadas na
garantia dos direitos fundamentais. Todavia, o TC só controla a constitucionalidade de
normas, permanecendo alheado das decisões sobre direitos fundamentais e do diálogo entre
Tribunais comuns e TEDH.

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6. Crítica: irracionalidade, insegurança, desigualdade, utilização


inapropriada

A) Ampliação do conceito de norma pelo Tribunal Constitucional


Na lógica do sistema português, o que está sujeito a controlo do TC é a norma, o sentido
objetivo que resulta do enunciado normativo. Ou seja, o que justifica a existência de justiça
constitucional é a circunstância haver normas vigentes e potencialmente aplicáveis a casos que,
eventualmente, sejam inconstitucionais. O TC seria um Tribunal do legislador, que controla o autor
da norma, e não um Tribunal dos juízes, de recurso das decisões judiciais. Nesta lógica originária do
sistema português, toda uma vasta zona de garantia dos direitos fundamentais permaneceria à
margem do controlo de constitucionalidade: atos, decisões, omissões de normas, omissões de atos,
omissões de decisões, agressões a direitos fundamentais por particulares.
A Comissão Constitucional e o Tribunal Constitucional tiveram, desde o primeiro momento,
consciência das consequências negativas de um sistema de fiscalização de constitucionalidade que
protege deficientemente os direitos fundamentais. Por isso, desde cedo, respeitando formalmente
os limites instituídos pela Constituição, procuraram extrair do sistema o máximo de possibilidades
garantísticas, tentando controlar a constitucionalidade de atos que o sistema instituído deixou de
fora do controlo de constitucionalidade.
Assim, o TC, que assistia passivamente a agressões aos direitos fundamentais, vai procurar
ampliar o conceito de norma adequado à fiscalização da constitucionalidade (um conceito que não é
definido pela Constituição). Dando sucessivos passos, o TC foi assumindo a tarefa de traçar a fronteira
da sua própria competência de fiscalização, ao adotar uma compreensão muito ampla e flexível de
norma, permitindo-se apreciar outras questões de constitucionalidade.

Como amplia o conceito de norma?


i) Conceito funcional de norma
ii) Apreciação da interpretação feita pelo juiz
iii) Apreciação de normas inexistentes na ordem jurídica, criadas por interpretação errónea
iv) Apreciação de normas implícitas

i) Conceito funcional de norma


Assim, o TC veio a adotar o conceito funcional de norma, o mais adequado às funções do
Tribunal Constitucional. Norma não é apenas o ato geral e abstrato mas, para efeitos de fiscalização
da constitucionalidade:
 Todo o ato com características normativas – generalidade, abstração, imposição de um
padrão de comportamento, caráter inovatório, caráter vinculativo – independentemente da
natureza formal do diploma de que conste.
 Todo o comando normativo contido em ato legislativo – mesmo que não tenha características
normativas, mesmo que seja um comando individual, pontual e concreto. Ex: uma disposição
normativa que materialmente se reduzisse a um ato administrativo ou a uma intervenção
restritiva num direito fundamental de um titular determinado poderia ser sujeita a controlo
de constitucionalidade desde que estivesse contida em lei.
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Baltazar Oliveira

ii) Apreciação da interpretação feita pelo juiz


Ampliando mais uma vez o conceito de norma, para efeitos da fiscalização da
constitucionalidade, o TC arrogou-se da competência para fiscalizar a constitucionalidade de normas
na concreta interpretação que lhes foi dada pelo juiz comum.
 Na lógica do sistema português, sujeito a controlo do TC seria a norma, o sentido objetivo que
resulta do enunciado normativo, apurado por via interpretativa. O TC, como era típico da
construção kelseniana original, seria um Tribunal do legislador, um Tribunal que controla o
autor da norma; não seria um Tribunal dos juízes, um tribunal de recurso de decisões judiciais.
 Contra essa lógica, o TC não se limitou a fiscalizar a inconstitucionalidade de normas
ordinárias quando consideradas objetivamente e em abstrato na sua relação com a norma
constitucional, mas arrogou-se da competência para fiscalizar a constitucionalidade das
normas na concreta interpretação que delas supostamente faz o juiz comum. E releva a
interpretação do juiz comum porque foi por causa dela que a causa foi decidida de certa
forma, porque essa interpretação foi a ratio decidendi do caso.
 Tal é pacífico, uma vez que, partindo da distinção básica entre enunciado normativo (texto da
disposição jurídica) e norma (comando normativo), se do mesmo enunciado podem resultar,
em função da interpretação, normas de conteúdo diverso, então seria natural que o controlo
do TC incidisse sobre o concreto comando normativo que o juiz da causa extraiu do
enunciado, já que é esse que é controvertido, já que foi a interpretação em causa que
constituiu a ratio decidendi, a razão por que a causa foi decida em certo sentido.
 Assim, o TC pode deixar intocada a norma ordinária legalmente positivada, mas pronunciar-
se pela sua inconstitucionalidade na interpretação que no caso concreto lhe foi dada pelo juiz
comum.

iii) Apreciação de normas inexistentes na ordem jurídica, criadas por interpretação errónea
Extremando a anterior lógica, o TC deu mais um passo, admitindo sindicar situações em que
o sentido objetivo do enunciado não comportava sequer a interpretação com que o juiz efetivamente
o aplicou. Não se trata de um problema de inconstitucionalidade de norma vigente na ordem jurídica,
mas de norma criada pelo juiz a partir de uma interpretação errónea, que não tem apoio no
enunciado. Trata-se de um erro judicial, que devia ser resolvido pelo recurso para os Tribunais
ordinários, dado que o TC estava originalmente configurado como Tribunal do legislador, e não como
Tribunal dos juízes. Com esta ampliação do conceito de norma, o TC acaba por discutir qual a
interpretação correta da norma com o STA, STJ e Tribunais da Relação.

iv) Apreciação de normas implícitas


Outro passo (quase uma revolução) foi dado quando o TC passou a apreciar não apenas
normas que resultavam direta, intencional e explicitamente da interpretação judicial das disposições
normativas vigentes no ordenamento, mas também sobre quaisquer normas que pudessem ser
pressupostas ou deduzidas intelectivamente das decisões judiciais individuais e concretas.
 O TC passou a incluir, enquanto ditas interpretações normativas sujeitas a controlo de
constitucionalidade, normas que não foram sequer expressamente invocadas na
fundamentação da decisão judicial, mas que eram tidas como implicitamente pressupostas

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ou comportadas por essa decisão. Ou seja, se o juiz decidiu de certa forma, é porque
implicitamente interpretou certa norma com determinado sentido.
 Todavia, o TC já está a elaborar sobre uma ficção. Quando o juiz interpreta a norma com
determinado sentido, fundamenta-o na decisão judicial. Se o juiz nada diz, a que titulo pode
o TC saber o que estava na cabeça do juiz quando aplicou a norma? Assim, para qualquer
decisão judicial, pode invocar-se que o juiz decidiu em certo sentido porque, para esse juiz,
implicitamente, existe uma norma na ordem jurídica portuguesa com esse sentido, e o
cidadão considera esse sentido inconstitucional.
 Ex: no julgamento de um crime hediondo, um Tribunal comum, em última instância, condenou uma pessoa à
morte, contra o disposto no art. 24º/2 da Constituição (“em caso algum haverá pena de morte”), e sem qualquer
fundamento em legislação penal. Esta é uma inconstitucionalidade da maior gravidade. Todavia, na lógica do
sistema português de fiscalização da constitucionalidade, o cidadão não pode recorrer ao TC. Ainda assim, e não
havendo qualquer norma na ordem jurídica portuguesa que tenha habilitado os juízes a condenar uma pessoa
à morte, o TC pode entender que, se os juízes condenaram à morte, é porque implicitamente consideraram que
existia na ordem jurídica portuguesa uma norma que, naquelas circunstâncias, permitia condenar à morte.
Nesse caso, o TC pode apreciar a eventual inconstitucionalidade da norma implicitamente aplicada pelos juízes.
No entanto, não só não existe essa norma na ordem jurídica, como ela nunca foi invocada pelos juízes. O TC fez
uma construção.

Diluição da fronteira entre norma e decisão judicial


Como, em princípio, qualquer decisão judicial foi, pelo menos, inspirada por um certa norma
jurídica, que resultou da interpretação de enunciados normativos vigentes no ordenamento, então
a fronteira entre decisão e norma é algo que se esfuma e que fica nas mãos do TC quando determina
qual a pretensa norma que está ou não subjacente ou implícita na decisão judicial.
 Essa fronteira dissolve-se potencialmente quando o TC entende que aquela norma jurídica
pode ser uma norma realmente existente na ordem jurídica, mas também pode ser, no limite,
uma norma virtual (re)construída a posteriori, através de uma operação mental que,
configurando mentalmente a decisão judicial concreta e individual do caso enquanto norma
potencialmente aplicável a todas as possíveis situações em que se reproduza a ocorrência dos
mesmos factos relevantes, chega inevitavelmente a uma equalização prática entre ato judicial
de decisão do caso e norma suscetível de fiscalização.
 Então, se a norma que fundamentou virtualmente a decisão puder ser arguida de
inconstitucionalidade, e tal alegação vier a ser aceite pelo TC, isso significa que o juiz de que
se recorre fica obrigado a revogar a sentença na medida em que a decisão individual se
fundava, supostamente, numa norma virtual, inexistente, mas de qualquer modo
inconstitucional. Logo, na prática, a arguição de inconstitucionalidade daquela norma
identifica-se, não apenas em termos de fundamento como em termos de resultado, com a
arguição de inconstitucionalidade da própria sentença/decisão individual.

A admissão de recursos de quase-amparo


Assim, não só os poderes de controlo do TC foram substancialmente ampliados, como
aumentaram as possibilidades de, em fiscalização concreta, os cidadãos acederem ao TC para
contestar a constitucionalidade de meras decisões judiciais.
 Para tanto, basta que saibam alegar que tais decisões constituem a aplicação de uma norma
inconstitucional, expressa ou implícita (explicitamente assumida na fundamentação da

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Baltazar Oliveira

sentença ou nela apenas suposta), real ou virtual (vigente no ordenamento jurídico ou


supostamente admitida como tal, ou criada pelo juiz).
 No espírito originário do sistema português de fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional
era juiz do legislador: mesmo quando o acesso à sua jurisdição fosse feito no quadro do
recurso de decisões judiciais, o TC apenas verificava a inconstitucionalidade de uma norma.
O controlo do TC devia limitar-se a validar ou invalidar as decisões de (in)constitucionalidade
tomadas pelos juízes comuns que incidissem sobre normas em vigor. Tudo o mais,
nomeadamente a eventual inconstitucionalidade da decisão judicial na questão de fundo,
ficaria excluído do controlo do TC.
 Porém, a partir do momento em que o TC passa a arrogar-se o poder de julgar a
inconstitucionalidade da norma na concreta interpretação/criação feita pelo juiz comum, e
não apenas de normas vigentes no ordenamento, mas também de normas implícitas e
virtuais, dissipa-se a fronteira entre controlo da inconstitucionalidade da norma e controlo da
inconstitucionalidade da decisão judicial. E podendo o particular passar a recorrer ao TC
nesses termos, o sistema português começa, de alguma forma, a admitir, na prática, ainda
que ao arrepio das regras estabelecidas, queixas constitucionais, recursos de amparo ou
recursos de quase-amparo, relativamente a decisões dos tribunais comuns. Decisões judiciais
violadoras de direitos fundamentais podem agora chegar ao TC por recurso direto dos
particulares, ainda que, numa construção ficcionada, travestido de recurso incidindo sobre a
constitucionalidade de normas.
 Por exemplo: há uma colisão entre o direito à liberdade de imprensa e o direito à honra. Em princípio, não há
qualquer problema de constitucionalidade das normas legais que regulam o caso e que há anos permanecem
em vigor (normas do Código Civil, da lei de imprensa, do estatuto dos jornalistas…). Na resolução do litigio, o juiz
da causa terá de ponderar o peso dos interesses e direitos das partes, e fazer ceder, na situação concreta, um
dos direitos em colisão. Como essa cedência se traduz numa intervenção restritiva de direitos fundamentais
atuada pelo juiz, se existisse recurso de amparo no sistema português, a decisão judicial seria recorrível para o
TC (quanto à específica questão da constitucionalidade da intervenção restritiva). Não havendo recurso de
amparo, e segundo a lógica do sistema português de fiscalização, não é possível recorrer daquela decisão para
o TC: trata-se de uma decisão judicial normal, feita pelo juiz comum com base nas normas aplicáveis e nas
circunstâncias fácticas do caso, e que, na ponderação de direitos, determinou a cedência de um. Tratando-se de
ato/decisão judicial e não de norma/interpretação normativa, não seria possível ao titular do direito afetado
recorrer ao TC (ainda que fosse possível recorrer para o TEDH). Porém, é possível, e aceitável, reconfigurar o
problema sub judice e apresentá-lo enquanto questão de interpretação normativa eventualmente
inconstitucional.

Imprecisão, insegurança, arbitrariedade e desigualdade


Este desenvolvimento jurisprudencial, ainda que escapando à lógica do sistema de fiscalização
constitucionalmente instituído, teve a vantagem de permitir a possibilidade de recurso de decisões
judiciais claramente violadoras de direitos fundamentais que, de outra forma, seriam irrecorríveis
para o TC. Por isso, sustentam alguns autores que a proposta de introdução do amparo no sistema
português nada acrescentaria ao que hoje é proporcionado pela fiscalização concreta, a não ser a
perturbação introduzida com a mudança de sistema. Não é assim: o referido desenvolvimento
também tem consequências negativas:
 Aumentando exponencialmente a possibilidade de os particulares recorrerem ao TC,
estimula-se uma utilização não canónica da fiscalização concreta.
 Imprecisão, casuísmo e incerteza nos critérios de admissibilidade dos recursos e insegurança,
desigualdade e arbitrariedade num domínio que devia ser transparente, claro e percetível
pelos interessados.

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Baltazar Oliveira

Apesar de a possibilidade de recurso ter sido extremamente alargada, o TC insiste numa


pretensa diferença fundamental quando à admissibilidade dos recursos de saber se o que é alegado
é a inconstitucionalidade de uma certa norma ou interpretação normativa (caso em que o recurso é
admitido) ou se é a inconstitucionalidade de um ato ou decisão judicial desprovidos de caráter
normativo, caso em que o recurso não é admitido.
 Todavia, a distinção só faria sentido se fosse dogmaticamente possível distinguir com clareza
se o que está em causa no recurso é uma norma ou uma decisão fundada naquela norma.
Mas não é:
 Uma mesma situação ou ato podem ser indiferentemente configurados como norma ou como
decisão, dependendo da perspetiva de quem vê ou da construção escolhida por quem
apresenta. De facto, são inúmeras as decisões de não admissibilidade de recurso por não estar
em causa a inconstitucionalidade de uma norma, mas sim de uma decisão, que podiam
facilmente, com um pequeno esforço de reformulação argumentativa, ser reconvertidas em
decisões de admissibilidade. Na prática, no sistema português de fiscalização concreta, nos
casos duvidosos, um recurso é ou não admitido consoante quem recorre sabe ou não
escrever, ou consoante quem decide da admissibilidade do recurso quer ou não recebe-lo.

B) Os riscos de insegurança, decisionismo e desigualdade

ESTE PONTO ESTÁ INCOMPLETO E DESORGANIZADO


146-148, 154-156, Sistema Português de Fiscalização da Constitucionalidade: Avaliação Crítica

É que a contradição em que assenta o sistema português de fiscalização concreta (recusa o


recurso de amparo mas assenta numa distinção capital, para efeitos de acesso dos particulares ao
TC, entre norma e decisão, para a qual não existem critérios objetivos de distinção) acaba, em grande
parte dos casos, por deixar a questão de saber quando é ou não possível recorrer na insuperável
incerteza sobre a decisão de admissibilidade que será tomada pelos juízes do Tribunal Constitucional.
 Tal tem consequências inevitáveis como a insegurança jurídica, o subjetivismo, os riscos de
tratamento desigual dos cidadãos e o potenciar dos conflitos entre jurisdição constitucional
e Tribunais comuns. O TC forçou os limites originários à custa da segurança jurídica,
designadamente quanto aos critérios de admissibilidade dos recursos interpostos das
decisões judiciais. Tudo fica inseguro, difuso, indeterminado. A admissão de um recurso
depende sobretudo da sensibilidade e recetividade dos juízes a quem couber a decisão.
 O Tribunal Constitucional sabe que um recurso interposto não de uma norma mas de uma
decisão judicial pode ser sempre mental e argumentativamente reconstruído como recurso
relativo à norma, recurso de uma interpretação normativa; mas, simultaneamente, como tem
que se mover dentro dos limites que lhe foram traçados pelo legislador constituinte, o TC tem
que continuar a insistir que só aceita recursos relativos a normas e não recursos de decisões.
Logo, o resultado só pode ser este: o recurso é ou não admitido consoante o advogado da
causa saiba ou não apresentá-lo como recurso sobre a inconstitucionalidade de uma norma
e consoante os juízes que decidem da admissibilidade estejam dispostos a aceitar a ficção.

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Baltazar Oliveira

 A insegurança jurídica que inevitavelmente resulta da imprecisão e incerteza da aplicação


destes critérios e os riscos de desigualdade de tratamento no acesso dos particulares ao
tribunal são inafastáveis.
 A questão é decisiva no domínio dos direitos fundamentais. A possibilidade admitida pelo TC
de verificar a interpretação/criação normativa implícita ou subjacente à decisão judicial é
também aqui intrinsecamente contraditória e redundante.
 A decisão sobre a admissibilidade acaba por ser essencialmente casuística, dependendo da
secção do TC que examina o problema, da maioria conjuntural dos juízes que apreciam o caso,
da composição concreta do TC, e não de critérios objetivos simples, identificáveis, que os
cidadãos possam conhecer a priori.
 Uma tal complexificação do direito ao recurso acaba por reservar o acesso ao TC apenas aos
particulares que podem dispor de uma assistência jurídica especializada e conhecedora, o que
introduz fatores de desigualdade de acesso e de exclusão, precisamente num domínio, o do
acesso ao TC para defesa dos direitos fundamentais, onde a garantia da igualdade de armas
e da simplicidade de procedimentos deveria constituir preocupação central.

AULA
Se um advogado puser em causa a decisão judicial que condenou à pena de morte, o TC vai recusar
o recurso. Se o advogado fundamentar que o juiz aplicou certa norma do CP com determinada
interpretação em que, verificados certos pressupostos, é possível a pena de morte, aí o TC, só se
quiser, pode aceitar o recurso, dizendo que é uma norma implícita na decisão judicial. Ficção
construída sobre normas que não existem na ordem jurídica portuguesa.
Inconveniente com que os advogados se debatem quando querem ir para o TC: não estando em
causa normas, têm de construir o recurso de uma maneira que permita a admissão. Mas o TC pode,
mesmo com uma argumentação bem feita, recusar intervir, dizendo que se trata de uma decisão
judicial. Gera insegurança total. Os advogados nunca sabem quando o recurso vai ser aceite ou não,
não havendo norma, porque estamos no domínio da ficção e do implícito. O TC pode aceitar de umas
vezes e de outras não. Algo que devia ser inequívoco em termos de segurança jurídica: saber quando
se pode ir para o TC, acaba por não ter fronteiras bem estabelecidas. Nunca se sabe se o TC vai ou
não aceitar o recurso.
Gera uma enorme desigualdade entre os cidadãos, porque só quem tem acesso a bons advogados,
que conheçam estas distinções, é que tem possibilidades de ir para o TC. Quem tem não tem acesso
a bons advogados, os recursos são sistematicamente recusados. Se a pessoa não construir aquilo nos
termos acima explicados, o TC não aceita. Desigualdade que também existe quando o TC não aceita
e o cidadão pode ir para o TEDH em Estrasburgo, o que custa muito, também porque só bons
advogados dominam recursos para o TEDH.

C) Arguição irrestrita de inconstitucionalidades orgânicas e formais em fiscalização concreta


O sistema português de fiscalização concreta permite um acesso indiscriminado ao TC desde
que se possa alegar a inconstitucionalidade de uma norma (real ou virtual, vigente ou apenas suposta
para efeitos de recurso), independentemente da natureza e gravidade da inconstitucionalidade
alegada ou da lesão do direito ou interesse do particular que recorre. Tal tem consequências muito
negativas para o equilíbrio e racionalidade do sistema.

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Baltazar Oliveira

A possibilidade de invocação de inconstitucionalidades materiais tem uma justificação


indiscutível:
 Da perspetiva do particular que recorre – os seus direitos e interesses lesados pela
inconstitucionalidade material merecem tutela.
 Da perspetiva da ordem jurídica – há um interesse permanente na reconstituição da
integridade da ordem jurídica, ferida pela subsistência de normas ordinárias contrárias às
normas e princípios materiais inconstitucionais.

Por outro lado, a amplitude da possibilidade de invocação de inconstitucionalidades orgânicas


e formais não tem justificação aceitável:
 Da perspetiva do particular que recorre – a preterição de requisitos de competência ou de
forma na aprovação de uma lei não é causa de lesões aos seus direitos e interesses – ex: a
aprovação de uma norma de reserva de competência da AR pelo Governo não causa prejuízos
ao particular, desde que, caso se tivesse verificado a observância integral das regras de
competência e de forma, a norma viesse a ter conteúdo exatamente igual ao que foi
efetivamente aprovado.
 Da perspetiva da ordem jurídica – o efeito negativo da inconstitucionalidade orgânica e formal
(preterição dos limites de competência e de procedimento por quem estava obrigado a
respeitá-los, com a consequente erosão da força normativa da Constituição) ocorreu durante
o processo de formação da norma, mas esgota aí, praticamente, os seus efeitos. Após a
entrada em vigor das normas, as inconstitucionalidades orgânicas e formais perdem
relevância:
o Se uma norma relativa a matéria de reserva de competência da AR for aprovada pelo
Governo, a ordem jurídica não beneficiou da publicidade e contraditório democrático
necessários e a norma carece da legitimidade e da capacidade de produzir integração
social e política que devia ter.
o Por isso, a ordem jurídica estabelece sanções para essas situações, até para que tenham
um efeito inibitório: há filtros no processo de aprovação que previnem e reprimem a
ocorrência destes vícios, como a fiscalização preventiva, a fiscalização sucessiva abstrata
e a apreciação parlamentar de decretos-leis (a AR, através dos partidos da oposição, teve
a oportunidade de chamar o decreto inconstitucional a apreciação; se há no Parlamento
uma vontade diversa da que foi plasmada no decreto orgânica ou formalmente
inconstitucional, a AR pode alterá-lo em conformidade).
o Se a inconstitucionalidade orgânica ou formal não for atalhada nesta fase, ou durante um
período temporalmente delimitado, os seus efeitos nocivos dissipam-se naturalmente
com a passagem do tempo. O vício subsiste, mas sem consequências substantivas. Por
isso mesmo, na prática do sistema português, a alegação de inconstitucionalidades
orgânicas e formais é muito frequente em fiscalização preventiva, mas muito rara em
fiscalização sucessiva abstrata.

No entanto, no sistema português de fiscalização concreta, a inconstitucionalidade orgânica


e formal é arguível a todo o tempo, independentemente do momento em que foi praticada, da sua
importância ou das consequências que gera. Uma norma pode estar em vigor ininterruptamente e

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Baltazar Oliveira

ser aplicada incontestadamente há décadas, mas se um particular, numa investigação de arqueologia


jurídica, detetar no seu processo de aprovação um vício orgânico ou formal, pode levá-lo para o TC.
E esta prática não constitui um exercício abusivo do direito de recorrer. Antes, é algo natural,
previsto, pacificamente admitido e estimulado pelo sistema em vigor, que ocorre frequentemente e
consome parte significativa do labor do TC em fiscalização concreta.

Este aspeto é ainda mais significativo porque o sistema de repartição das competências
legislativas da CRP76, com o seu regime de reserva de lei parlamentar, estimula exponencialmente a
possibilidade de, relativamente a qualquer diploma aprovado pelo Governo, se poderem multiplicar
as dúvidas de inconstitucionalidade orgânica.
 O elenco de matérias sujeitas a reserva de competência legislativa parlamentar tem vindo a
aumentar ao longo das sucessivas revisões constitucionais. Se na versão originária da CRP as
matérias objeto de reserva parlamentar eram, grosso modo, 23, hoje são pelo menos 48.
 Entre as matérias reservadas, algumas comportam conteúdos vastíssimos e dificilmente
delimitáveis – ex: o 165º/1/b (é da reserva relativa da AR legislar sobre “direitos, liberdades e
garantias”); e alguns direitos têm uma abrangência ilimitada, como a liberdade de iniciativa
económica privada, o direito ao desenvolvimento da personalidade e a liberdade de profissão.

Há, pois, um universo inabarcável de inconstitucionalidades orgânicas à espera de descoberta


para fins do conveniente recurso de inconstitucionalidade em sede de fiscalização concreta. Um
advogado minimamente conhecedor não tem grandes dificuldades em descobrir uma
inconstitucionalidade orgânica útil, e em fazê-lo com fundamentos sérios (a reserva parlamentar
constitucional é tão vasta que, se interpretada à letra, justifica e fundamenta quaisquer dúvidas de
constitucionalidade), de cuja consideração do TC não se pode eximir, pelo que o recurso não pode
ser rejeitado à partida. Muito menos se pode procurar dissuadir a utilização desta possibilidade de
recorrer para o TC, dado que não há aqui qualquer abuso: o sistema português foi concebido para
admitir recursos com esses fundamentos. Tal tem várias consequências:
 Obriga-se o TC, para garantir um mínimo de segurança jurídica, a milagres retóricos
argumentativos para justificar a não inconstitucionalidade.
 A infindável possibilidade de arguição de pretensas inconstitucionalidades pelos particulares
pode sobrecarregar e capturar o labor do Tribunal Constitucional para fins estranhos às suas
funções essenciais de defesa da Constituição e dos direitos fundamentais.
 Chega-se ao absurdo de o sistema português não permitir a um cidadão recorrer ao TC se o
seu direito fundamental tiver sido séria e inapelavelmente violado por uma intervenção
restritiva de um juiz, mas permitir que um particular recorra ao TC porque, por exemplo, uma
norma há trinta anos em vigor foi aprovada na especialidade por uma Comissão da AR em vez
de, como devia, o ter sido pelo Plenário, ainda que a lei tivesse sido aprovada por
unanimidade em votação final global pelo Plenário.

As razões desta irracionalidade do sistema português de fiscalização concreta são um enigma.


Porventura podem ter a sua origem na memória do art. 123º/2 da Constituição de 1933:
 Art. 123º/2 – apenas a Assembleia Nacional, e não os Tribunais ordinários, podia conhecer da
inconstitucionalidade orgânica ou formal dos diplomas promulgados pelo Chefe de Estado.

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 Esta fiscalização política da constitucionalidade dos diplomas mais importantes, instituída no


contexto de um regime autocrático, era vista como um retrocesso face ao sistema de
fiscalização da Constituição de 1911. Por isso, em 1974, foi considerada revogada
implicitamente pelas leis de transição.
 Muito provavelmente, terá sido a reação contra esta norma que levou os constituintes de
1976 a adotar uma atitude de indiferenciação geral relativamente aos diferentes tipos de
inconstitucionalidade, incluindo inconstitucionalidades orgânicas e formais, sem qualquer
tipo de limite temporal.

D) Utilização dilatória e inapropriada do sistema de recursos para o TC


Comparando com o modelo alternativo (modelo europeu: sistemas de Tribunal Constitucional
com reenvio prejudicial e recurso de amparo) o sistema português é bastante generoso nas
possibilidades que dá aos particulares para acederem ao Tribunal Constitucional, já que:
 Enquanto no modelo europeu…
o os cidadãos podem alegar inconstitucionalidade por violação de um conjunto de direitos
fundamentais previamente delimitado;
o o acesso do particular ao TC depende da existência de uma inconstitucionalidade que
constitua lesão atual de um seu direito fundamental;
o a inconstitucionalidade levada ao TC teve que ser praticada por um tempo muito
delimitado antes da apresentação da queixa;
o o TC dispõe de filtros que lhe permitem selecionar o acesso (transcendência da questão
de constitucionalidade, gravidade do prejuízo sofrido…);
 … no sistema português:
o os cidadãos podem alegar inconstitucionalidade por violação de qualquer norma
constitucional;
o o particular pode invocar qualquer tipo de inconstitucionalidade de norma aplicável no
seu caso, independentemente de ela constituir ou não causa do dano sofrido, de haver
ou não afetação do direito fundamental;
o a inconstitucionalidade alegada pode ter sido praticada em qualquer altura, desde que a
norma em causa esteja em vigor e seja aplicável ao caso como fundamento da decisão;
o o TC não dispõe de qualquer possibilidade afim aos filtros do modelo europeu.
 Pelo contrário, o sistema português seria menos generoso por só permitir suscitar
inconstitucionalidades normativas. Todavia, esta desvantagem foi substancialmente
atenuada, ainda que com inconvenientes, através da ampliação do conceito de norma pelo
TC. Assim, atendendo à quantidade de recursos suscetíveis de chegar ao TC, o acesso é muito
mais aberto no sistema português. (Tal contradiz o argumento contra a reforma do sistema
de que a introdução do recurso de amparo geraria um bloqueio do funcionamento do TC.)

Irracionalidade do sistema português:

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 Ao contrário do que muitas vezes se pensa ser o ponto de discórdia entre defensores e críticos
do sistema português, a questão central não está nas maiores ou menores possibilidades de
acesso dos particulares ao TC, mas na maior ou menor racionalidade do sistema.
 O sistema português estimula possibilidades de acesso direito dos particulares ao TC
praticamente ilimitadas, mesmo quando não há justificação aceitável para tal, sem que, em
contrapartida, assegure possibilidades adequadas de defesa contra agressões sérias aos
direitos fundamentais que não provenham do legislador, portanto, praticadas por
intervenções restritivas da Administração e, pelo menos em teoria, do poder judicial.
 Já as possibilidades de um particular recorrer ao TC no âmbito dos processos decididos pelos
outros Tribunais são quase ilimitadas: basta que, durante o processo, o particular invoque a
inconstitucionalidade de uma norma aplicável ao caso ou de uma sua interpretação particular.
A não ser que a alegação seja manifestamente infundada, o sistema garante-lhe, em caso de
posterior decisão desfavorável, a possibilidade de fazer prolongar o processo através do
recurso de inconstitucionalidade para o TC.

Utilização dilatória e inapropriada do sistema de recursos:


 O sistema português permite uma exploração quase ilimitada de interesses privados sem
relevância constitucional, caso sejam a parte eventualmente interessada em eternizar o
processo judicial. Mais, esta possibilidade é tão mais utilizada quanto mais poder, em
princípio económico, tem a parte que pode contratar advogados hábeis que, conhecedores
dos meandros do sistema, o sabem explorar até à exaustão.
 Como o acesso ao TC opera após a decisão judicial e enquanto recurso desta, a parte trata de
invocar durante o processo uma “pretensa” inconstitucionalidade da norma (real, implícita,
ou virtual) ao caso e relativamente à qual possa ser alegado ter constituído fundamento da
decisão judicial. Não lhe sendo dada razão, como acontece, naturalmente, na esmagadora
maioria dos casos, abre-se quase automaticamente a possibilidade de acesso ao TC. Basta
que a decisão judicial não agrade a uma das partes e esta tenha interesse em fazer prolongar
o processo para que se lance indiscriminadamente mão do recurso de inconstitucionalidade
para o Tribunal Constitucional.
 Assim, de instituto potencialmente vocacionado para a função de proteção dos direitos
fundamentais, a justiça constitucional (no que à fiscalização concreta diz respeito)
transformou-se em grande medida num instrumento dilatório para a obtenção de fins menos
nobres.

Pelo contrário, o modelo europeu praticamente exclui esta utilização dilatória e inapropriada
do sistema de recursos:
 Reenvio prejudicial – a alegação de inconstitucionalidade de norma teria que ser feita antes
da decisão final e só subiria ao TC, a título incidental e com suspensão de instancia, se o juiz
da causa considerasse existir, de facto, uma dúvida de inconstitucionalidade séria e fundada
de norma de que dependesse a resolução do caso, o que praticamente exclui a utilização do
instituto para fins dilatórios no que respeita à pretensa existência de inconstitucionalidade de
normas vigentes no ordenamento.
 Recurso de amparo – o particular só pode alegar inconstitucionalidades por lesão atual de
direito fundamental expressamente discriminado, num tempo delimitado, e tendo o TC a

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possibilidade de selecionar em função da importância constitucional da questão, diminuindo-


se significativamente a possibilidade de instrumentalização da atividade normal do TC.

O sistema português não apenas permite, como até estimula a utilização do sistema de
fiscalização concreta como puro instrumento dilatório, o que contribui para o desprestigio da função
jurisdicional e para corrosão das ideias de Constituição, de Tribunal Constitucional e de justiça
constitucional. Enquanto nos sistemas com Tribunal Constitucional e recurso de amparo os cidadãos
tendem a ver na Constituição e no TC a garantia última dos seus direitos fundamentais, em Portugal
a Constituição e a justiça constitucional, no domínio da fiscalização concreta, tendem a ser
percebidas como artifícios ao serviço dos poderosos e meios de estes escaparem às imposições que
obrigam os restantes concidadãos.

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