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Preâmbulo
A presente sebenta foi elaborada pelas estudantes Raquel Proença e Mariana Pinto,
sob a coordenação de Filipa Teixeira, tendo por base as aulas lecionadas pela docente Dra.
Regina Redinha e Professor Dr. António Graça Moura, sob a coordenação de com o
complemento da bibliografia dos autores Dr. Carlos Alberto Mota Pinto e Dr. Orlando de
Carvalho, considerada obrigatória para esta unidade curricular.

A equipa de Teoria Geral do Direito Civil deu o seu melhor para garantir a qualidade
dos apontamentos semanais e, agora, desta sebenta.

Esta sebenta constitui somente um complemento de estudo, não dispensando por


isso, a devida presença às aulas teóricas e práticas e a leitura das obras obrigatórias e
complementares da cadeira.

De estudantes para estudantes,

Bom Estudo!
Índice
O que é a Teoria Geral do Direito Civil?............................................................................................4
Distinção entre Direito Público e Direito Privado............................................................................. 5
1. Critério do Interesse..................................................................................................................... 5
2. Critério da Qualidade dos Sujeitos............................................................................................... 5
3. Critério da Posição dos Sujeitos....................................................................................................6
Autonomização de outros Ramos do Direito Privado....................................................................... 6
1. Direito Comercial..........................................................................................................................7
2. Direito do Trabalho....................................................................................................................... 7
3. Direito do Consumo......................................................................................................................7
4. Direito Internacional Privado........................................................................................................7
Fontes do Direito Civil..................................................................................................................... 8
1. Constituição..................................................................................................................................8
2. Código Civil................................................................................................................................... 9
Sistematização do Código Civil de 1966......................................................................................... 10
Sistema externo do Código Civil..................................................................................................... 10
1. Parte Geral........................................................................................................................... 10
2. Direito das Obrigações......................................................................................................... 10
3. Direito das Coisas/Reais....................................................................................................... 10
4. Direito da Família................................................................................................................. 10
5. Direito das Sucessões...........................................................................................................10
Ponderações sobre a Sistematização Germânica do Código Civil................................................... 11
Críticas desta Sistematização..........................................................................................................11
Técnicas Legislativas...................................................................................................................... 12
1. Tipo dos Conceitos Gerais Abstratos.......................................................................................... 12
2. Tipo das Simples Diretivas.......................................................................................................... 13
3. Tipo Casuístico............................................................................................................................15
Modificação do Código Civil...........................................................................................................15
Sistema Interno do Código Civil......................................................................................................15
1. Princípio do reconhecimento da pessoa e dos direitos de personalidade............................. 15
a) Características Essenciais dos Direitos de Personalidade.................................................... 16
b) Tutela dos Direitos de Personalidade...................................................................................16
2. Princípio da liberdade contratual.........................................................................................17
a) Direitos Subjetivos............................................................................................................... 18
b) Limites à Autonomia Privada............................................................................................... 18
2.1 Princípio da Liberdade de Modelação do Conteúdo Contratual...............................................21
a) Contratos Típicos ou Nominados......................................................................................... 21
b) Contratos Atípicos ou Inominados.......................................................................................21
c) Contratos Mistos.................................................................................................................. 21
d) Aditamento de Cláusulas..................................................................................................... 22
e) Limitações, provenientes da Lei, à Liberdade de Modelação do Conteúdo Contratual.......22

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f) Limitações, provenientes de Contratos de Adesão, à Liberdade de Modelação do Conteúdo
Contratual................................................................................................................................ 24
3. Princípio da igualdade e da não discriminação............................................................31
a) Mecanismos de Efetivação do Direito à Igualdade e à Não-Discriminação......................... 32
b) Tipos de Discriminação........................................................................................................ 34
c) Mudança de Conceção de Fatores Discriminatórios............................................................ 35
d) Tipos de Proteção de Asseguramento................................................................................. 35
4. Princípio da responsabilidade civil............................................................................... 36
a) Mecanismos de Efetivação do Princípio da Responsabilidade Civil..................................... 36
b) Tipos de Danos.....................................................................................................................37
c) Requisitos Cumulativos para a Verificação da Responsabilidade Civil................................. 38
d) Modalidades da Responsabilidade Civil Extracontratual..................................................... 43
e) Modalidade da Responsabilidade Civil Extracontratual por Factos Lícitos.......................... 46
f) Modalidade da Responsabilidade Civil Contratual............................................................... 47
5. Reconhecimento da Propriedade Privada....................................................................49
Teoria Geral da Relação Jurídica.................................................................................................... 50
1.Elementos da Relação Jurídica.................................................................................................... 52
2. Modalidades do Abuso de Direito.............................................................................................. 55
Direito Subjetivo........................................................................................................................... 58
1.Modalidades dos direitos subjetivos........................................................................................... 63
2.Modelações dos Direitos de Personalidade - estrutura funcional...............................................64
3.Posição Passiva aos Direitos Subjetivos e Potestativos................................................................66
Relações Jurídicas..........................................................................................................................66
1.Combinação de Relações Jurídicas.............................................................................................. 68
2. A Dinâmica da Relação Jurídica.................................................................................................. 69
3. Acidentes na Relação Jurídica.....................................................................................................82
4.Elementos da Relação Jurídica.................................................................................................... 83
Modificação de Direitos.................................................................................................................85
Teoria Geral dos Sujeitos da Relação Jurídica................................................................................. 88
1 . Direitos sem sujeito................................................................................................................... 89
2. Personalidade Jurídica................................................................................................................ 91
3 .Tutela da Personalidade Jurídica.................................................................................................93
4. Direitos Especiais de Personalidade........................................................................................... 95
5. Consentimento......................................................................................................................... 105
6 .Situações de Incapacidade....................................................................................................... 109
7. Menoridade..............................................................................................................................112
8. Proteção da Pessoa no seu Estatuto Pessoal............................................................................ 120

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O que é a Teoria Geral do Direito Civil?

Se é uma teoria, visa reduzir a um complexo coerente e unitário uma série de elementos
dispersos de matéria jurídica e adquirir linguagem e competência descodificadora do Direito Civil. E,
geral, porque não se circunscreve a uma parte do direito, mas sim a todo o direito privado. Para
concluir, do Direito Civil, porque esta teorização resulta de uma determinada conceção do direito
civil, que resulta da Escola Pandectista Alemã, do século XIX.

A parte geral (“zona comum”) inclui os princípios e regras comuns a todo o direito privado,
incluindo os denominadores comuns das partes especiais. Há sistemas que não possuem esta parte
geral, o Código Civil português tem por ser um sistema filiado do sistema alemão.

A relação jurídica é o núcleo fundamental do direito civil português e, para o regular, o


Direito pode revela-se de dois modos preferenciais:

1. Direito Objetivo (law)

O direito objetivo parte daquilo que o juiz dita ou daquilo produzido pelo legislador, ou seja,
é como um comando, ou ainda é o “direito-norma”. É algo que está fora da nossa esfera de atuação,
por ser uma revelação externa - “tenho de atuar de determinada forma porque a norma X assim me
obriga”.

Se se tratarem de normas imperativas estas têm de ser respeitadas, mas caso se tratem de
normas dispositivas, as partes podem decidir regular ou não as relações entre si.

2. Direito Subjetivo (right)

O direito subjetivo corresponde à capacidade legal atribuída ao sujeito para que este possa
agir da forma que pretende, logo, os efeitos existem porque assim o foi desejado pelo sujeito -
“comprei este bem imóvel, porque tenho o direito à propriedade”.

Ou seja, o direito subjetivo aparece como uma faculdade, onde dependendo da vontade dos
sujeitos os efeitos jurídicos de dado direito subjetivo produzem-se. Assim, correspondem à
capacidade legal atribuída ao sujeito para que este possa agir da forma que entende, logo, os efeitos
existem porque os sujeitos assim o desejaram. Por exemplo, no contrato de compra e venda entre A
e B: B tem o direito de exigir a A a entrega da coisa. - (right)

No domínio do Direito Civil centramo-nos sobretudo na vertente do direito subjetivo, sendo


aquele que está conectado a uma esfera jurídica. Assim, estamos no domínio da autonomia e
subjetividade, forma esta que está associada à vontade do sujeito que tem a titularidade do direito,
por contraposição do direito objetivo e heterónimo que advém de um querer que não o do sujeito,
que terá de arcar com a regulação.

A partir daqui releva distinguir entre Direito Público - associado a comandos e imposições - e
Direito Privado - associado ao direito enquanto faculdade.

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Distinção entre Direito Público e Direito Privado

1. Critério do Interesse

Segundo o critério do interesse o Direito Público difere do Direito Privado pelo tipo de
interesses a seguir, isto é, o Direito público visa prosseguir interesses públicos e o Direito Privado visa
prosseguir interesses privados.

Críticas subjacentes

Relativamente a este critério, existem diversas críticas nomeadamente o facto de existirem


interesses comuns ao Direito Privado e ao Público, o que dificulta a sua delimitação. Por exemplo, às
regras administrativas para ingresso no ensino superior estão inerentes os interesses particulares de
cada indivíduo (ou seja, interesses privados), mas esse ingresso é feito num interesse público.
Também, o artigo 875.º CC, que sujeita a venda de imóveis a escritura pública ou documento
particular autenticado, visa proteger as partes da precipitação e ligeireza (interesses privados), mas
defende também o interesse público, do lado do comércio jurídico.

As normas que regem a vacinação obrigatória, são normas que prosseguem o interesse
particular, neste caso a saúde de quem é vacinado, mas também o interesse público, na vertente da
saúde pública.

Por fim, numa tentativa de salvar este critério, criou-se uma nuance do mesmo: o direito
público promove predominantemente interesses públicos, e o direito privado promove
predominantemente interesses privados.

Porém, mesmo face a este critério corrigido, o Dr. Oliveira Ascensão apresenta uma nova
crítica, que diz que apesar deste juízo de predominância, que tem como objetivo a facilitação do
critério do interesse, cria-se, simultaneamente, uma insegurança e abrangência perigosa, visto que
nunca sabemos ao certo o que são interesses públicos e interesses privados predominantes.

Para além disso, existem normas que pela sua natureza, classificam-se como normas de
Direito Privado, mas que prosseguem fins públicos. Então, torna-se um critério impotente.

2. Critério da Qualidade dos Sujeitos

O Critério da Qualidade dos Sujeitos afirma que o Direito Público e o Direito Privado diferem,
substancialmente, nos tipos de sujeitos que formam a relação jurídica. Portanto, é Público o Direito
que regule as situações em que intervenha o Estado, ou qualquer outro ente público. Por outro lado,
é Privado o Direito que regule as situações entre particulares.

Crítica subjacente

Contudo, existem situações em que os entes públicos atuam como meros particulares, o que
distorce a veracidade deste critério, e nesses casos, aplica-se o Direito Privado. Por exemplo, quando
um ente público procura uma prestação de um serviço por parte de um particular, este atua
despojado de poder, pois não pode ter direito a esse serviço de uma forma especial face aos demais

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cidadãos. Ora, se atua despojado de poderes, então atua como um mero particular, e assim aplica-se
o Direito Privado.

3. Critério da Posição dos Sujeitos

Este afirma que o Direito Público e o Direito Privado diferem, substancialmente, na posição
em que as partes se encontram numa determinada relação jurídica. Assim, sendo o Direito Público:

● Regula as relações entre os entes públicos, no exercício das suas funções públicas;
● Regula as relações entre os entes públicos e os particulares, quando os entes públicos atuam
dotados do ius imperium.

Nota: o ius imperium corresponde a poderes de autoridade, atribuídos aos entes públicos,
que os permite atuar numa posição de vantagem em relações com os entes privados.

Já o Direito Privado:

● Regula as relações entre os particulares, numa posição de paridade, o que significa que
nenhuma das partes está numa posição mais vantajosa face à outra, sendo esta uma das
características do direito privado.
● Regula as relações entre os particulares e os entes públicos, quando estes últimos atuam
despojados do seu poder de império. Ou seja, tanto os públicos como os particulares se
encontram em posição de paridade.

Crítica subjacente

Este critério não permite a inclusão facilitada do direito internacional, em que ambos os
sujeitos, por serem soberanos, têm o poder de império. Contudo, para efeitos do direito interno, este
é o critério que melhor distingue o direito privado e o direito público e é, portanto, o aplicado.

De acordo com o Dr. Mota Pinto, esta divisão tem uma incidência prática muito relevante, na
medida em que, frequentemente, determina as vias judiciais a que o particular, que se considera
lesado pelo Estado ou ente público deve recorrer.

Autonomização de outros Ramos do Direito Privado

O Direito Privado não se esgota no Direito Civil, existindo dentro deste outros ramos do
direito, falamos do Direito Comercial e do Direito do Trabalho. Embora não haja unanimidade em
reconhecê-los como ramos de direito autónomos, a verdade é que têm percorrido um longo
processo de emancipação e autonomia, estando dotados de legislação própria.

São ramos de direito especiais por se aplicarem a determinados casos com regime próprio,
onde porém continua-se a aplicar subsidiariamente o Direito Civil sempre há lacunas ou não haja,
nestes Direitos especiais, regra autónoma.

1. Direito Comercial

Tem por objeto a disciplina dos atos de comércio, em sentido amplo, enquanto atividade de
circulação lucrativa de bens. A sua autonomização emergiu da necessidade de criação de uma lei

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comercial capaz de regular situações de direito comercial que não estavam abrangidas pela esfera do
Civil. Por exemplo, nos contratos de mútuo, contratos de coisa fungível (ex.: dinheiro), o Direito Civil
impõe certos requisitos para a sua celebração que o Direito Comercial já agiliza.

1.1 Direito Bancário: Neste, para além de uma autonomização relativamente ao direito
privado, autonomizou-se em relação ao Direito Comercial.

2. Direito do Trabalho

Tem como objeto estabelecer regras e direitos quanto ao emprego e trabalho assalariado,
sendo que é no código de trabalho que se encontram as normas deste ramo de direito. Contudo, não
quer isto dizer que não haja uma certa correspondência entre estes dois códigos, por exemplo, o
contrato de trabalho encontra-se definido no art. 1152º do CC.

A sua autonomização, enquanto ramo de direito privado, emergiu da necessidade de afastar


o regime geral de contratos do Código Civil, pela importância do trabalho na vida económica e social
do trabalhador. Porém, o direito do trabalho, quanto ao seu conteúdo normativo, é pouco
homogéneo, ao estarem presentes em si normas de direito privado (normas que regem a relação
entre o trabalhador e o empregador) e normas de direito público (normas que regem as
contravenções laborais).

3. Direito do Consumo

A sua autonomização, enquanto ramo de direito privado, emerge da necessidade de tutelar


os interesses dos consumidores, evitando as desigualdades de poder. Assim, como no Direito
Comercial, existem relações jurídicas fora da esfera jurídica do Direito Civil que já não as consegue
tutelar.

4. Direito Internacional Privado

Tem como objeto definir qual o sistema jurídico aplicável, quando em causa estão elementos
de países diferentes. Por exemplo, A é cidadã francesa e B cidadão alemão e tiveram um filho
nascido na Inglaterra, assim torna-se necessário saber qual legislação aplicável para reger os direitos
e obrigações decorrentes dessa situação.

É ao Direito Internacional Privado que cabe definir se a esta situação jurídica aplica-se a lei
francesa, alemã ou inglesa. Ou seja, as normas de direito internacional privado, são normas de
conflito que determinam qual a lei aplicável, ao caso concreto.

Para concluir, o Direito Civil é o direito nuclear do direito privado, ou seja, é de aplicação
subsidiária a todos os outros ramos de direito privado. Isto significa que quando um litígio não pode
ser resolvido por meio de outros ramos do direito, o Direito Civil é obrigatoriamente o ramo
regulador.

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Fontes do Direito Civil

Segundo o Dr. Mota Pinto, o Direito Civil contém a disciplina positiva da atividade de
convivência da pessoa humana com as outras pessoas, isto é, tutela os interesses dos homens em
relação com outros homens nos vários planos da vida onde essa cooperação entre pessoas se
processa, formulando as normas a que ela se deve sujeitar. A questão que, no entanto, se põe é: de
onde surge esse direito?

As fontes de direito são o modo de formação, extinção e modificação das normas


integradoras do ordenamento jurídico civil e logo nos artigos iniciais do Código Civil, vê-se uma
referência às fontes de Direito Civil:

● Artigo 1º - São fontes imediatas do direito as leis e as normas corporativas.


● Artigo 2º - (Revogação dos Assentos) por força de inconstitucionalidade dos mesmos.
Atualmente, não são fontes de Direito Civil.
● Artigo 3.º - Os usos que não forem contrários aos princípios da boa-fé são juridicamente
atendíveis quando a lei o determina.
● Artigo 4.º - Os tribunais podem resolver segundo a equidade.

A menção destas fontes de direitos é muito importante, na medida em que nos permite
concluir que, apesar de integradas no Código Civil, são fontes de direito que extravasam em muito o
estrito âmbito do Direito Civil. Para além destas, temos ainda as duas principais fontes de Direito
Civil.

1. Constituição

A Constituição consagra-se enquanto fonte importante de Direito Civil, na medida em que


estabelece princípios constitucionais que afetam, ainda que indiretamente, as normas de Direito
Civil. É o caso do princípio da igualdade perante a lei ex vi artigo 13.º CRP, a que todo o ordenamento
jurídico está sujeito.

No catálogo de Direitos, Liberdades e Garantias encontra-se diversos direitos que são


jurídico-civilísticamente concretizados na CRP, desenvolvendo os direitos constitucionalmente
consagrados oferecendo-lhes uma tutela mais concreta.:

○ Direitos, liberdades e garantias individuais que se encontra dialeticamente nos


direitos de personalidade – art. 24º ss
○ Princípio da igualdade, não discriminação – art. 13º
○ Reconhecimento da iniciativa económica privada relacionada com o princípio da
autonomia privada/liberdade contratual que é a trave-mestra do Direito Civil.
○ Garantia da propriedade privada – art. 62º
○ Princípios consignados nos artigos 35º, 36º, 37º, 41º, 47º, 67º que são direitos
fundamentais.

Aplicação Prática do Direito Constitucional no Direito Privado

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A Constituição é uma força geradora de direito privado, nas palavras do Dr. Mota Pinto, na
medida em que, as normas nela contidas, se aplicam vinculativamente ao legislador, ao juiz e aos
órgãos estaduais. Mas entendamos agora o seu efetivo peso prático na vida jurídica privada:

1) Incorre em inconstitucionalidade, qualquer disposição legal infratora dos preceitos


constitucionalmente previstos. Desencadeia também a invalidade do negócio jurídico, na
modalidade de nulidade, qualquer infração aos princípios fundamentais supra descritos, por
força de violação da Ordem Pública - artigo 280º, nº2 do CC - “É nulo o negócio contrário à
ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”.
2) O conteúdo das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados pode ser preenchido, pelo
intérprete, através do recurso a valores constitucionalmente consagrados.
3) Em caso de uma lacuna de regulamentação no Código Civil, ou seja para uma situação
civilístico-privada, não existe uma solução prevista no Código Civil, o intérprete pode recorrer
a normas constitucionais, reconhecedoras de direitos fundamentais, e que sejam passíveis
de aplicação, naquele caso concreto.

Contudo, releva mencionar que existem aspetos em que a Constituição e os preceitos nela
consignados não podem, de modo algum, prevalecer sobre os princípios do Direito Civil. Por
exemplo, o princípio da igualdade não pode prevalecer sobre a liberdade contratual, ou seja o artigo
13.º CRP não inibe o legislador de reconhecer as desigualdades assentes nas características da
matéria a disciplinar.

No nosso âmbito do Direito Civil, é comum que num contrato, as partes se possam encontrar
em posições desequilibradas, por exemplo e como veremos mais abaixo, no regime das cláusulas
gerais contratuais. O que o legislador não pode fazer é separar categorias de situações e, portanto, se
ele define que para aquele conjunto de situações, faz sentido fazer prevalecer o princípio da
liberdade contratual e o possível desequilíbrio entre as partes, então vai defini-lo para todas as
situações que mereçam esse regime.

2. Código Civil

O Código Civil compila as normas de Direito Civil, e apesar de não ser a primeira codificação
de Direito Civil, é, indubitavelmente, a mais importante. Foi após as Ordenações Filipinas, que entrou
em vigor o primeiro Código Civil, denominado de Código de Seabra de 1867. Este estava dividido em
quatro partes e essa era uma divisão antropocêntrica, na medida em que colocava o Homem no
centro de qualquer situação jurídica e no qual prevalecia a visão antropológica, nos termos do
Doutor Cabral Moncada.

Vigorou cerca de 100 anos, mas, devido à Implantação da República foi exigida uma
mudança, concretamente a consagração normativa de novos princípios, e por outros motivos, o
Código de Seabra foi revogado pelo nosso atual Código Civil, de 1966 aprovado pelo Decreto-Lei nº47
344.

Sistematização do Código Civil de 1966


Desde logo, perde-se, parcialmente, a sistematização antropológica, retirando destaque à
pessoa, visto que aquilo que agora é juridicamente relevante é a pessoa enquanto sujeito da relação

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jurídica. Adota-se, antes, uma sistematização germânica, proveniente da Escola Pandectista Alemã, e
que centra o Direito Civil na relação jurídica, sendo que esta corresponde à relação da vida social que
produz efeitos juridicamente relevantes.

Sistema externo do Código Civil

O Código Civil é constituído por 4 partes, sendo que todas elas têm por base a Parte Geral.

1. Parte Geral

O reconhecimento desta parte tem como origem a Escola Pandectista Alemã e que vai ser o
nosso objeto de análise. É também nesta parte que se encontram as normas relativas à Interpretação
de Leis e as normas de conflito de Direito Internacional Privado e, ainda quando a parte
especial/regime específico não regula uma dada relação jurídica, que se recorre à Parte Geral.

2. Direito das Obrigações

Trata das obrigações legais entre as partes, que são vínculos jurídicos por virtude dos quais
uma pessoa fica adstrita para com a outra à realização de uma prestação. Por exemplo, vejamos o
Art. 397.º CC - nele consta que uma pessoa tem o direito de exigir de outra o cumprimento de uma
prestação positiva ou negativa, por exemplo, se A empresta o seu computador a B, a relação que se
estabelece entre A e B é uma relação de crédito, em que B fica obrigado a restituir o objeto
emprestado. A tem o direito de exigir a prestação e denomina-se de sujeito ativo da obrigação e B
tem o dever de prestar e denomina-se de sujeito passivo.

3. Direito das Coisas/Reais

Os direitos reais são relações de um sujeito jurídico com todas as outras pessoas, por força
das quais aquele sujeito adquire um poder direto e imediato sobre uma coisa. Tem, portanto, efeitos
erga omnes, ou seja, se Z tem um terreno, todos estão obrigados a respeitar o seu direito de
propriedade. Assim trata, essencialmente, dos direitos de propriedade e posse de bens móveis ou
imóveis.

4. Direito da Família

Trata de relações emergentes do casamento, do parentesco, da afinidade e da adoção -


artigo 1576º CC: “São fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade
e a adopção”.

5. Direito das Sucessões

Regula a transmissão por morte e existem 2 tipos de sucessão:

● Sucessão Voluntária: pode ser testamentária quando é possível a sucessão


testamentária ou contratual quando não é possível celebrar contratos mortis-causa.
● Sucessão Legal: pode ser legítima, se puder ser afastada pelo de cuius ou legitimária,
se não puder ser afastada pelo de cuius.

Conclui-se que uma boa compreensão do Código Civil é essencial, visto que este está
revestido de uma linguagem técnica de significado jurídico, contudo, este uso de linguagem é

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controverso. Uns defendem o uso de uma linguagem universalmente percetível, outros defendem o
uso de uma linguagem jurídica própria, direcionada, exclusivamente, àqueles que praticam o direito.

Ponderações sobre a Sistematização Germânica do Código Civil

A sistematização germânica do Código Civil tem um valor didático, na medida em que nos
ajuda a compreender o Direito Civil, mas tem pouco relevo para as soluções jurídicas. Essa
racionalidade intocável apresenta:

● Vantagens, na medida em que nos dá uma panorâmica simplificada deste instituto jurídico
complexo e evita constantes repetições e remissões (consagra desde logo os princípios
aplicáveis a qualquer área).
● Desvantagens, na medida em que tem um caráter incompleto, a falta de um critério unitário,
quebra de matérias e confusão entre sistemas.

Críticas desta Sistematização

1. Caráter Incompleto

Este carácter sente-se, essencialmente, na falta de enquadramento em certas áreas. É o caso


dos direitos de personalidade - direitos da pessoa sobre os direitos vitais no desenvolvimento da sua
personalidade física e moral. Isso leva, de certo modo, à despersonalização do indivíduo, na medida
em que se no Código de Seabra a pessoa é o centro de qualquer relação jurídica, aqui é um mero
elemento dessa relação.

Face a esta crítica, o Dr, Mota Pinto parece discordar e considera que dizer que a base do
Direito Civil é a relação jurídica é errado, na medida em que submerge a pessoa humana na noção
formal e abstrata de sujeito de relação jurídica. Considera que a pessoa humana se inclui dentro
desse conceito, no mesmo nível que as pessoas coletivas que têm também a qualidade de sujeitos de
relações jurídicas.

Até porque temos o artigo 70º CC que visa tutelar esses mesmos direitos de personalidade:
“A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade
física ou moral”. Também o artigo 66º CC consagra que todo o Homem tem personalidade jurídica e
ninguém fica à margem do direito: “A personalidade adquire-se no momento do nascimento
completo e com vida”

2. Falta de um Critério Unitário

Esta crítica advém do facto de que o critério que é utilizado para autonomizar as 4 partes do
Código Civil, não é um critério unitário. Vejamos:

● O Direito das Coisas e o Direito das Obrigações estão autonomizados com base num
critério estrutural (depende da relação onde alguém tem direito sobre uma coisa
(reais) ou a uma coisa (obrigações). Aqui a relação jurídica tem um grande relevo.

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● O Direito da Família e o Direito das Sucessões são baseados num critério institucional
(instituição família ou instituição sucessões). Aqui o sujeito da relação jurídica tem
grande relevo.

O facto de as 4 partes não estarem autonomizadas com base no mesmo critério, acaba por
gerar alguma incoerência.

3. Quebra de Matérias

Questiona-se se a Parte Geral não terá gerado quebras entre matérias que deveriam estar
juntas. Por exemplo, a noção de coisa encontra-se consagrada no artigo 202º CC, ou seja, na Parte
Geral, porém fazia mais sentido esta integrar-se nos Direitos Reais, por ter uma especial relevância
nesta área. Ainda neste âmbito, releva mencionar que a análise de um artigo ou de um Livro (dos
que se encontram no Código Civil) pode nunca ser suficiente.

Também se se procurar determinar o regime jurídico de um contrato de compra e venda,


não se pode atender exclusivamente ao artigo 874.º CC, mas pode ter de se atender igualmente ao
artigo 405º CC, que estabelece a liberdade contratual. Ambos os artigos se encontram no Livro II,
referente ao direitos das obrigações, mas pode ainda acontecer, como vimos supra, ter que se
proceder à análise de diferentes artigos, contidos em partes especiais distintas do Código Civil.

Porém, se em causa já tiver a invalidade desse contrato de compra e venda (negócio jurídico
bilateral) então tenho que analisar os termos do artigo 261.º CC, que se encontra no Livro I, Parte
Geral e não no Livro II.

4. Confusão entre os Sistemas do Código

Esta arrumação também pode levar a uma confusão entre o sistema interno e externo do
Código Civil. A antecipação de uma Parte Geral sugere que na Parte Geral está a disciplina que visa
preencher tudo o que a parte especial falha em abranger. Ora, isso leva a crer que há uma plenitude
lógica do ordenamento jurídico, quando este não é perfeito, apresenta lacunas, obrigando o
legislador a prever outro tipo de soluções.

Técnicas Legislativas

Segundo Larenz, jurista alemão, o Código Civil distingue três tipos de formulação legal: o tipo
dos conceitos gerais-abstratos, o tipo simples das diretivas e o tipo casuístico.

1. Tipo dos Conceitos Gerais Abstratos

Os conceitos gerais abstratos são conceitos jurídicos fundamentais amplos, genéricos e


aplicáveis a uma variedade de situações legais. Advém essencialmente da consciência da
impossibilidade do ordenamento jurídico de prever todas as hipóteses geradas na vida social e, por
reconhecer esta falácia do ordenamento jurídico, alarga, dessa forma, o caráter ativo e valorativo da
intervenção do juiz, ao aplicar a lei. Certamente, se a norma é mais adaptável e ampla, o âmbito de
análise e interpretação daquela norma pelo juiz, será certamente alargado.

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Vejamos um conceito geral abstrato no artigo 210.º/1 CC: “São coisas acessórias, ou
pertenças, as coisas móveis que, não constituindo partes integrantes, estão afectadas por forma
duradoura ao serviço ou ornamentação de uma outra”

No caso do artigo 210.º/1 CC, sabemos que as coisas acessórias são as que estão afetadas
por forma duradoura ao serviço ou ornamentação de uma outra, contudo mais nada se acrescenta a
este respeito, designadamente não se faz qualquer concretização. Assim, é efetivamente definido um
núcleo daquilo que são coisas acessórias, mas à medida que fugimos desse núcleo daquilo que coisa
acessória significa juridicamente, há uma maior margem de incerteza. Por exemplo, um livro é,
inegavelmente, uma coisa, mas se falarmos de eletricidade, já é mais difícil enquadrá-la
juridicamente. Será uma coisa?

Este é o perigo dos conceitos gerais abstratos: a perigosa desuniformidade de julgados e a


falta de segurança jurídica e portanto, precisamente com intenções de atenuar essa desvantagem, o
legislador introduziu as Cláusulas Gerais e os Conceitos Indeterminados. Aqui pode surgir confusão
entre conceitos gerais abstratos e cláusulas gerais/conceitos indeterminados e, por esse motivo,
releva distingui-los.

Efetivamente, os três visam alargar o âmbito de aplicação da norma, porém os conceitos


gerais abstratos são termos amplos, e frequentemente não definidos ou aprofundados
normativamente - como já vimos relativamente às coisas acessórias.

Já as cláusulas gerais ou os conceitos indeterminados podem considerar-se mais específicos


e direcionados, na medida em que, por muito amplos que sejam, fornecem sempre os princípios e
orientações, pelos quais o juiz se deve guiar, quando aplicar aquela norma. Por muito que as
cláusulas gerais necessitem do caráter constitutivo e valorativo da intervenção judicial, há sempre
uma objetividade decorrente da sujeição do juiz à obediência da lei, que o limita (elemento literal - o
ponto de partida é sempre o texto da norma legal). Nos conceitos gerais abstratos, esse texto da lei é
mais dúbio.

2. Tipo das Simples Diretivas

Neste último tipo de formulação legal, o legislador recorre às meras diretivas enquanto
linhas de orientação, que contém critérios valorativos. Vejamos quais.

As Cláusulas Gerais contrapõem-se à regulamentação casuística por serem normas de Ius


Aequum e não regulam tipos de casos especialmente determinados, não definindo a que casos é que
a sua norma se vai aplicar.

Por exemplo, o artigo 280.º consagra uma cláusula geral ao dizer que é nulo o negócio
contrário à ordem pública, ou ofensivo aos bons costumes. Os bons costumes correspondem às
convicções morais ou éticas que uma pessoa correta tem na nossa sociedade, ou seja, não estão em
causa princípios do direito civil, aí estaríamos a falar de ordem pública (conceito indeterminado),
mas sim os princípios morais das pessoas corretas.

Diz este artigo que qualquer negócio jurídico que ofenda esses princípios morais, é nulo. Por
exemplo, contratos que promovam a discriminação legal ou o casamento forçado são contratos

13
ofensivos dos bons costumes, por violarem os princípios ético-morais da não discriminação e da
liberdade de escolha individual.

O artigo 239.º consagra também uma cláusula geral ao dizer que na falta de disposição
especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam
tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa-fé, quando outra
seja a solução por eles imposta.

São ainda cláusulas gerais, a ausência justificativa (artigo 473.º), a equidade (artigo
489.º/494.º), o abuso de direito (artigo 334.º), etc.

As Cláusulas Gerais são critérios de valoração, na medida em que estas exigem ainda um
processo de apreciação, isto é, não só temos que perceber o conceito de “bons costumes” ou
“boa-fé”, como temos que perceber se aquela conduta cabe dentro desta cláusula.

Essa análise é feita através da necessária consideração do ambiente social, da função, do


conteúdo, da ratio legis e dos interesses das partes, naquela cláusula. Por exemplo, no artigo 239.º
diz-nos que se não conseguirmos integrar a declaração negocial na vontade das partes, então
deve-se proceder a um processo de apreciação, e incluir essa declaração nos juízos de boa-fé.

Os Conceitos Indeterminados contrapõem-se aos Conceitos Determinados por serem


normas de Ius Aequum e o seu uso justifica-se para permitir a adaptação da norma à complexidade
da matéria regular ou à mudança das situações, visto que são conceitos facilmente adaptáveis e sem
uma zona definida.

O artigo 487.º/2 consagra um conceito indeterminado ao dizer que a culpa é apreciada, na


falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de
cada caso. Atualmente, o conceito de bom pai de família é seguramente diferente daquilo que era
considerado no século XIX e por ser um conceito evolutivo, apela, simultaneamente, a uma aplicação
evolutiva, e a uma apreciação prudente das circunstâncias do momento, que certamente, não serão
as mesmas.

O artigo 494.º também consagra um conceito indeterminado ao dizer que quando a


responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em
montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do
agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

Não estão aqui em causa critérios de valoração, mas situações indeterminadas que cabe ao
intérprete densificar. São conceitos que exigem um preenchimento por parte do intérprete, na
medida em que, como refere a parte final do artigo supra, é necessário atender às circunstâncias do
caso para apreciar a culpa, sendo isto que torna estes conceitos tão flexíveis, pois na sua aplicação ao
caso concreto a conclusão jurídica pode ser diferente na medida em que, as circunstâncias também
são diferentes

O juiz ao fixar a indemnização, de valor inferior ao dano, tem parâmetros que o ajudam, que
são termos comparativos das situações patrimoniais do lesado e lesante. Ora as “outras
circunstâncias” podem ser o estado de saúde, a condição profissional, a idade, as responsabilidades
parentais, e esta indeterminação é um reenvio para o julgador e a escolha desses fatores é validada
pelo conceito "circunstâncias do caso".

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3. Tipo Casuístico

A par das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados, o legislador introduziu os


Conceitos Determinados, enquanto normas de Ius Strictum, com fins de atingir uma maior
segurança e certeza jurídica. O que está aqui em causa é a crença de que o ordenamento jurídico é
perfeito e capaz de dar resposta a todas as situações, através de normas revestidas de uma
regulamentação extremamente minuciosa.

Todavia, como os conceitos determinados, por serem muito específicos na matéria a regular,
incorrem, frequentemente, em lacunas de regulamentação. Estas consistem na não inclusão da
norma, numa situação que merece aquele tratamento jurídico.

Modificação do Código Civil


As modificações do Código de Seabra de 1867 para o Código Civil não foram muito
significativas, o contrário acontece quando comparamos o Código de 1966 e o Código de 1977. Em
1977, deu-se a primeira revisão ao Código de 1966, pelo Decreto-Lei 496/77 e a mudança da
Constituição, agora democrática e com novos princípios, esteve na base dessa mudança radical.

Isso sentiu-se ao nível da maioridade, que se passou a atingir aos 18 e não aos 21; abriu-se a
possibilidade de divórcio a casamentos pela igreja; surge o direito à liberdade de associação;
alterações no regime de arrendamento, entre outros.

Sistema Interno do Código Civil

O sistema interno do Código Civil, consiste no conjunto de linhas estruturantes que estão na
base das soluções normativas, nele contidas. É uma estrutura composta por vários princípios, que
podem ser aplicados diretamente com aplicação normativa.

1. Princípio do reconhecimento da pessoa e dos direitos de personalidade

Este é o princípio basilar do Direito Civil que antecede todos os outros. Quando falamos de
personalidade, falamos em sentido estrito, isto é, com referência à sua etimologia persone, os
direitos da pessoa. Assim, ser pessoa, em sentido jurídico, corresponde à suscetibilidade de ser
titular de direitos e obrigações.

Ora, poderá acontecer que esse conceito seja, muitas vezes, incompatível com a noção de
ser humano? Sim, já o foi no passado, por exemplo um escravo era um ser humano, mas não era
considerado pessoa, por não ser passível de titularidade desses direitos e obrigações. Também
acontece com as pessoas coletivas que são consideradas pessoas por possuírem direitos e
obrigações, mas não são consideradas seres humanos.

Esta questão é resolvida pelo artigo 66º CC, que nos diz que “a personalidade adquire-se no
momento do nascimento completo e com vida” - prevê este artigo que todo o homem adquire
personalidade jurídica no nascimento, portanto não é possível separar o conceito de ser humano
com o conceito de pessoa jurídica. O reconhecimento jurídico da pessoa não é condição de
existência do ser humano, mas sim uma consequência. Reconhece-se o princípio da dignidade do
homem e, para tal, dota-o de uma qualidade indispensável, a personalidade jurídica.

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a) Características Essenciais dos Direitos de Personalidade

Estes são todos os direitos reconhecidos ao ser humano, a partir do momento em que lhe é
reconhecida a sua personalidade jurídica. Estes:

● São Direitos Absolutos – são direitos universais, imputáveis a todos os sujeitos, com eficácia
erga omnes. Inclui todos os direitos de personalidade, é o caso do direito à vida, à liberdade,
à integridade física, à privacidade, entre outros.
● São Direitos Natos – integram a esfera jurídica do indivíduo desde o seu nascimento, sendo
assim automático.
● Possuem Tutela Multinível – existem vários mecanismos que visam proteger a violação dos
direitos de personalidade.
● São Direitos Irrenunciáveis – nenhum sujeito pode renunciar os seus direitos de
personalidade, por serem direitos essenciais.

No âmbito da irrenunciabilidade dos direitos de personalidade, é importante ressalvar que


estes são irrenunciáveis mas limitáveis voluntariamente, veja-se por exemplo o art. 81º CC.

A Renúncia e Limitação são conceitos que não se confundem e este artigo estabelece a
possibilidade da limitação voluntária dos direitos de personalidade, contudo essa limitação tem que
ter os seus próprios limites e esses limites são os princípios da ordem pública.

Qualquer limitação voluntária aos direitos de personalidade deixa de ser lícita, a partir do
momento em que viola esses princípios. Por exemplo, se eu me submeter a uma intervenção
cirúrgica, naturalmente estarei a limitar o meu direito à integridade física, mas não o renuncio, na
medida em que continua a ser meu. Além disso, toda a limitação voluntária é passível de ser
revogada, nos termos do número 2 deste artigo, isto é a qualquer momento eu posso deixar de
consentir na lesão ao meu direito.

b) Tutela dos Direitos de Personalidade

Estes direitos de personalidade integram o conteúdo mínimo e imprescindível da esfera


jurídica de cada pessoa e, consecutivamente, é-lhes exigida a existência de mecanismos de proteção
a esses bens. Esses mecanismos podem surgir nos três planos:

1. Proteção no plano Constitucional


2. Proteção no plano Penal

Existe tutela penal quando esses bens jurídicos mostram uma incidência criminal. Há,
portanto, também uma resposta em sede criminal para a violação destes direitos, por exemplo a
violação do direito à vida, constitui crime; a violação da integridade física, constitui crime de ofensas
corporais; a violação do direito à honra, constitui crime de difamação.

3. Proteção no plano Civil

A tutela civil visa proteger bens jurídicos essenciais do Homem, que quando se encontram
violados, geram responsabilidade por facto ilícito civil. Estes modos de tutela, encontram a sua
expressão normativa no artigo 70.º CC.

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No seu nº1 - “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa
à sua personalidade física ou moral” - consagra uma cobertura genérica de todas as expressões de
personalidade, seja através de tutela civil, penal ou constitucional, sendo que está referido Lei e essa
pode ser uma lei penal, civil ou constitucional.

Já no seu nº2 consagra a possibilidade de recorrer a mecanismos que atenuem a ofensa -


“Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida
pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a
consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”

Ora, quando há lugar à violação de um direito de personalidade, o lesado pode recorrer aos
mecanismos de tutela para se proteger, e inicia-se imediatamente um processo de responsabilidade
extracontratual, que pode gerar pena de prisão, indemnização, medidas de segurança da liberdade,
etc, por facto ilícito civil. Contudo, receia-se que isso não seja suficiente, e portanto quando há
verificação de ofensa de direitos da personalidade, o lesado pode também requerer em Tribunal que
sejam providenciados instrumentos de atuação que ou evitem a ofensa ou atenuem a sua gravidade.

Por exemplo, são divulgadas publicações de caráter difamatório contra X, já vimos que X
pode requerer acarretamento de responsabilidade extracontratual para o infrator, segundo o artigo
483.º CC, por estar em causa uma ofensa ao direito à honra de X. Porém, para além disso o autor da
ação, X, pode também exigir em Tribunal que essas publicações não sejam divulgadas (impedimento
da ofensa que ainda não ocorreu) ou, que após divulgação, sejam eliminadas e desmentidas
(atenuação da gravidade da ofensa que já ocorreu).

É uma cláusula geral que o legislador introduziu, que por abranger todas as medidas
passíveis de serem adotadas, visa evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já
cometida. Em termos de efetivação de direitos individuais, é uma cláusula muito importante, porque
alarga o leque sancionatório de uma forma muito específica.

2. Princípio da liberdade contratual

O princípio da liberdade contratual é uma emanação do princípio da autonomia privada,


sendo que esta consiste no reconhecimento a cada indivíduo de poder gerir e autorregulamentar os
seus interesses. Este reconhecimento decorre do chamado poder jurisgénico que corresponde à
capacidade dos indivíduos em criarem direito, ou seja autorregulamentarem a sua esfera jurídica,
através da vinculação contratual. Exemplos do exercício da Autonomia Privada:

a) Direitos Subjetivos

Eu tenho o direito à constituição de família, mas também tenho autonomia para não querer
constituir família, e não exerço esse direito. Um outro exemplo é se o devedor A deve uma certa
quantia ao credor B, apesar de B poder legalmente exigir essa quantia, também é livre de não o
querer fazer. Se C é dono do terreno X, este pode explorar o seu terreno, melhorá-lo e desenvolvê-lo,
mas também é livre para não o fazer.

Ou seja, os direitos subjetivos são um conjunto de direitos que de que eu sou titular, mas
cujo exercício ou não exercício dos mesmos, depende inteiramente da minha vontade, da minha

17
autonomia privada. Porém, apesar de não ser o único, o principal instrumento da autonomia privada
é o negócio jurídico, sendo que este é um facto jurídico voluntário, expresso numa declaração
negocial, para que possa criar efeitos jurídicos. Este pode ser:

● Unilateral

Quando os efeitos jurídicos surgem de uma declaração de vontade, ou de várias declarações


mas que atuam no mesmo sentido - uma procuração é um exemplo de um negócio jurídico
unilateral, e apesar de poder ser outorgada por mais do que um sujeito, é unilateral, pois o objeto é
o mesmo.

● Bilateral

Quando os efeitos jurídicos surgem de duas ou mais declarações de vontade. É o caso dos
contratos de compra e venda, aqui existe um desejo convergente de celebrar o contrato, mas esse
desejo parte de pontos divergentes, porque A quer comprar e B quer vender, mas ambos querem
celebrar o contrato. A declaração de vontade inicial designa-se de proposta, e a declaração que
constitui a concordância com a proposta, designa-se aceitação. Dentro do negócio bilateral este
ainda pode ser:

- Unilateral - pode ainda o negócio ser bilateral unilateral quando surge de duas declarações
de vontade, mas gera obrigações para apenas uma das partes.
- Bilateral - pode ainda o negócio ser bilateral bilateral quando surge de duas ou mais
declarações de vontade e gera obrigações para ambas as partes.

Nota: o contrato nunca é a soma de dois negócios jurídicos unilaterais, pois são estruturalmente
diferentes.

b) Limites à Autonomia Privada

No campo da responsabilidade civil, não podemos falar de autonomia privada, mas sim de
uma efetivação de direitos. Por estarem em causa direitos de outros sujeitos, é lógico que não se
exprima uma esfera de autonomia com grande relevo mas sim de imposição, quando há afetação
desses direitos. Se o agente pratica um ato ilícito civil que desencadeia essa responsabilidade civil,
este simplesmente não tem autonomia para se poder recusar a essa sujeição.

Também perante negócios jurídicos unilaterais, a autonomia privada dos sujeitos é mais
restrita, na medida em que nenhuma relação jurídica pode ser modificada e tão pouco extinguida
unilateralmente, a menos que haja previsão legal que o permita ou que ambas as partes o consintam
– artigo 406.º CC - Princípio do Pacta Sunt Servanda.

Para além disso, se nos negócios bilaterais, as partes são livres de fixar o seu conteúdo
contratual, os negócios unilaterais só constituem obrigações, quando a lei assim o prevê. São
negócios que produzem efeitos jurídicos para terceiros e seria impensável a afetação não consentida
da esfera jurídica de outros sujeitos. Está então em causa o Princípio da Tipicidade previsto no artigo
457.º CC.

Voltando ao princípio da liberdade contratual, este é um corolário do princípio da autonomia


privada, ou seja tem uma menor amplitude, porque como já vimos existem outras manifestações

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dessa autonomia e a liberdade contratual é apenas uma delas. Este princípio tem a sua consagração
normativa expressa no artigo 405º/1 CC e em primeira linha, este artigo estabelece a liberdade de
celebração que consiste na faculdade de livremente realizar contratos (liberdade positiva) ou recusar
a sua celebração (liberdade negativa).

A ninguém pode ser imposta a celebração de um contrato e ninguém pode ser sancionado
pela não celebração de um contrato. Todavia, releva mencionar que existem limitações à liberdade
de celebração, na medida em que nalgumas situações, contemplam-se questões de vulnerabilidade e
de suscetibilidade, que condicionam essa mesma liberdade. Vejamos abaixo quando é que isso
acontece:

● Dever Jurídico de Contratar

Há casos em que tanto as pessoas individuais como as coletivas têm o dever jurídico de
contratar, ou seja, se não o fizerem incorrem num ato ilícito e sujeitam-se a sanções. Exemplo disso é
o dever de prestação de serviços médicos, onde está em causa o dever deontológico dos médicos, ou
seja frequentemente estes podem ver-se obrigados à prestação de serviços, e cuja recusa desdobra
sanção civil e disciplinar.

Outro exemplo desse dever jurídico de contratar é o dever de contratar seguradoras.


Portanto, se é de âmbito obrigatório ter um seguro automóvel, é lógico que seja também obrigatório
haver uma entidade que o assuma

Às vezes este dever de contratar é criado pelo próprio indivíduo, é o caso paradigmático da
celebração de contratos-promessa que vem previsto no artigo 410.º CC e ss, e consiste num tipo
contratual que vincula a parte ou as partes a celebrarem, à posteriori, um determinado contrato.
Portanto, através da celebração de um contrato-promessa, as partes ficam vinculadas a celebrarem
um contrato posterior e perdem a sua liberdade de vinculação.

Por exemplo, A e B celebram um contrato-promessa, no qual A se compromete a vender o


terreno X e B se compromete a comprá-lo. O contrato-promessa não tem como objeto o terreno X
mas sim o contrato prometido (aquele que é assinado depois). A partir daquele momento, o contrato
prometido terá de ser realizado, no qual A terá obrigatoriamente que vender o terreno X e B terá
obrigatoriamente que o comprar. A promessa seria unilateral se apenas A estivesse vinculado à
obrigação de vender e bilateral se tanto A estivesse vinculado à venda e B vinculado à compra.

Também encontramos este dever de celebração de negócios a propósito do fornecimento de


bens essenciais, caso da energia, da água, da luz, etc. São empresas concessionárias responsáveis
pelo fornecimento desses bens essenciais e que, por esse motivo, não se podem opor à contratação.

Para além dos mencionados, o artigo 13.º CRP é ainda um limite à liberdade de celebração,
já que consagra o princípio da igualdade e condena toda a recusa de contratar que envolva um
caráter discriminatório ou diferenciador das pessoas, limitando assim a entidade empregadora.

● Proibição de Contratar com Determinadas Pessoas

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O que está em causa aqui são limitações que advém de normas que proíbem a realização de
certos contratos com determinadas pessoas. O exemplo mais significativo é a proibição de contratar
com menores para a prática do ato em determinado espetáculo ou estabelecimento1.

A indisponibilidade relativa também serve de exemplo, e esta consiste na impossibilidade de


doar ou testar a favor de determinadas pessoas, nos termos dos artigos 2192.º a 2198.º CC.

O artigo 877.º surge também como uma limitação, já que consagra que os pais e avós não
podem vender a filhos ou netos, se não houver consentimento dos outros filhos ou netos, isto para
garantir que a sucessão se faz de acordo com as regras que estão definidas na sucessão legítima.

Note-se que a venda é proibida mas o artigo não refere a doação, portanto pais e avós
podem doar a filhos e netos, mesmo sem consentimento dos outros, pois não atenta da mesma
forma às regras sucessórias.

É também proibida a cessão de direitos litigiosos a juízes ou magistrados do ministério


público, funcionários judiciais ou advogados, nos termos do artigo 579.º CC. A Cessão corresponde
ao ato de transferência de direitos de uma pessoa para a outra e direitos litigiosos são direitos que
estão a ser discutidos num processo judicial. Portanto, o artigo 579.º proíbe a transferência de
direitos a pessoas que tenham intervenção naquele litígio, sendo que o que se tenta assegurar aqui é
a transparência das transações, e a impossibilidade da ocorrência de conflitos de interesses.

● Necessidade de Consentimento ou Aprovação de outrem para que haja contrato

Há situações que pela própria natureza do contrato ou pelo peso dos bens em causa há
necessidade de autorização de uma autoridade pública.

No quadro do casamento encontramos também uma série de situações em que a celebração


contratual está dependente do consentimento do outro cônjuge - casos do artigo 1682.º/1 e 3, do
artigo 1682-A, e do artigo 1682-B.

Estes artigos consagram que tem que haver consentimento de ambos os cônjuges para se
poder proceder à alienação ou oneração de determinados bens, sejam eles móveis ou imóveis como
a casa de morada de família, ou seja, um cônjuge não pode alienar unilateralmente a casa de ambos,
encontrando-se condicionados a esse consentimento.

Isto acontece também na aquisição de determinados bens por serem bens perigosos como
explosivos ou armas, onde é necessário haver uma autorização ou uma forma de intervenção da
autoridade pública para que se possa adquirir esses bens, devido ao seu grau de perigosidade.

2.1 Princípio da Liberdade de Modelação do Conteúdo Contratual

A liberdade de modelação do conteúdo contratual consiste na liberdade de fixar o conteúdo


contratual.

Artigo 405.º/1 CC - “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o
conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as
cláusulas que lhes aprouver”.
1
Note-se que esta limitação não tem caráter discriminatório.

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Este artigo, ou melhor, a liberdade de modelação do conteúdo contratual, permite a
celebração de contratos típicos ou nominados, a celebração de contratos atípicos ou inominados, a
celebração de contratos mistos e ainda o aditamento de quaisquer cláusulas que melhor servirem os
interesses das partes.

a) Contratos Típicos ou Nominados

Estes têm um regime próprio e uma configuração definida na lei - ex. contrato de compra e
venda, o contrato de trabalho, o contrato de locação, etc. Todos sabemos de que tipo negocial
estamos a falar, porque ele está desenhado na lei e tem um regime próprio que a lei lhe atribui.
Note-se que quando falamos de lei aqui falamos essencialmente do Código Civil, mas não só, há
outros que se encontram noutras leis. É importante distinguir que:

● Um contrato típico é um contrato disciplinado e previsto pela lei.


● Um contrato nominado é um contrato que tem nome jurídico, é designado.

A par disso, releva ainda mencionar que um contrato típico é sempre nominado, porque
quando o legislador acolhe e disciplina um certo regime, também lhe dá uma designação de direito.
O que pode acontecer é que haja uma designação que não seja regulada pelo direito, porque o
legislador considera que não há maturidade o suficiente para haver uma regulamentação. Em suma,
todos os contratos típicos são contratos nominados, mas nem todos os contratos nominados são
contratos típicos.

b) Contratos Atípicos ou Inominados

As partes podem ainda celebrar contratos atípicos ou inominados. Estes são atípicos por não
corresponderem aos tipos de contratos tradicionais que o ordenamento jurídico reconhece e, são
inominados por não terem uma designação específica - não têm um nomen iuris próprio - e são
resultado da plena autonomia dos sujeitos e da sua capacidade jurisgénica. São, assim, contratos
mais flexíveis e adaptáveis.

c) Contratos Mistos

A celebração de contratos mistos consiste na combinação de dois ou mais tipos de contratos


distintos, num só contrato. Por exemplo, A contrata a pessoa B para serviços de portaria no seu
condomínio e disponibiliza ainda uma fração do condomínio para habitação da pessoa B. Num só
contrato, temos o cruzamento de um contrato de prestação de serviços e um contrato de
arrendamento.

d) Aditamento de Cláusulas

As partes têm a liberdade para aditar as cláusulas que melhor favorecerem os seus
interesses, isto é, podem seguir um dos modelos pré-definidos e acrescentar-lhe cláusulas que
melhor se adequam à prossecução das suas motivações e necessidades. As cláusulas podem ainda
ser:

● Típicas, se o seu regime vier previsto no Código Civil. Por exemplo, eu posso sujeitar um
contrato de compra e venda a uma condição se disser: Só compro o terreno Y, se no contrato
de compra e venda estiver estabelecido que o terreno Y tem as seguintes condições. Este é
um regime previsto no código e reconhecido na prática jurídica.

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● Atípicas, se o seu regime não tiver qualquer expressão normativa prévia. São condições que
uma das partes quer estabelecer porque naquela situação específica faz sentido, mas não é
corrente que aconteça noutros casos.

e) Limitações, provenientes da Lei, à Liberdade de Modelação do Conteúdo Contratual

À semelhança do que vimos face à liberdade de celebração, a liberdade de modelação


também está sujeita a restrições. Vejamos essas restrições.

1) Artigo 280º

1 - É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou
indeterminável.

2 - É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.

Neste caso, é a própria lei que estabelece condicionamentos quanto ao conteúdo contratual,
já que estabelece as balizas do objeto negocial e consagra que o objeto do contrato tem que ser
físico ou legalmente possível, não pode ser contrário à lei nem à ordem pública, nem indeterminado
ou ofensivo dos bons costumes, sob pena de nulidade. A ordem pública corresponde aos princípios
fundamentais estruturadores do sistema interno do código.

A título de exemplo, a venda de órgãos é, simultaneamente, contrária à ordem pública, na


medida em que põe em causa a integridade física do sujeito e contrária aos bons costumes, visto que
não é aceite pela consciência ético-jurídico.

2) Normatividade Imperativa

Estão aqui em causa contratos sujeitos a normas imperativas e que se encontram


autolimitados pelas mesmas. É o caso da proibição de venda a filhos ou netos, sem o consentimento
dos outros filhos ou netos, ex vi do artigo 877.º CC. Já analisamos esta restrição supra, e ela é
simultaneamente uma restrição à liberdade de celebração e à liberdade de modelação do conteúdo
contratual. É também o caso do artigo 1146.º que dispõe sobre as taxas máximas de juros, por muito
que as partes possam modelar o conteúdo contratual, não pode ir contra o disposto neste artigo.

3) Contratos-Promessa

Também já analisamos acima que quando as partes se vinculam a um contrato-promessa,


estão vinculadas à celebração do contrato definitivo. Porém, esse contrato definitivo tem que versar
sobre as matérias estabelecidas no contrato-promessa. Eu não posso vincular-me a um
contrato-promessa sobre a compra e venda de um bem imóvel, e assinar um contrato definitivo
sobre a prestação de serviços. Em suma, os contratos-promessa, também, limitam as partes ao nível
da liberdade de celebração e ao nível da liberdade de modelação do conteúdo contratual.

4) Negócios Usurários

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A proibição dos negócios usurários advém da proibição de Usura. Podem estar em causa
duas situações:

● Proibição Geral da Usura

A usura, neste caso, consiste no estabelecimento de benefícios desproporcionais para uma


das partes, através do aproveitamento da vulnerabilidade da outra parte. Está em causa uma
proibição desse desequilíbrio de prestações, nos termos do artigo 282º CC. Aqui é de relevar os
elementos do negócio usuário:

- Elemento Subjetivo: o contraente beneficia, conscientemente, da situação de


inexperiência ou necessidade da contraparte.
- Elemento Objetivo: um dos contraentes adquire um benefício desproporcional e,
aqui, quem fica lesado são os consumidores, não a contraparte - ex. eu não posso
vender pastilhas elásticas a um milhão de euros cada uma.
-
● Usura com Regime Próprio (Contrato de Mútuo)

A usura aqui constitui-se pela fixação de juros acima do patamar legalmente estabelecido,
nos termos do artigo 1146º CC. O contrato de mútuo vem estabelecido no artigo 1142º CC, sendo
que este é um contrato de empréstimo, que versa sobre dinheiro ou outra coisa fungível. Se o
empréstimo não versar sobre dinheiro ou coisa fungível, então está em causa o Contrato de
Comodato que tem o seu regime no artigo 1129º do CC - “comodato é o contrato gratuito pelo qual
uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação
de a restituir.”

5) Princípio da Boa-Fé

Esta regra de atuação é uma expectativa de conduta que se requer à contraparte e que acaba
por limitá-la na sua atuação - artigo 762º nº2 do CC - “no cumprimento da obrigação, assim como no
exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé”.

6) Juízos de Equidade

Quando as partes celebram um contrato consoante determinadas circunstâncias, e essas


circunstâncias sofrem alterações muito significativas, a parte lesada tem o direito a resolver ou
modificar o contrato, segundo juízos de equidade, se foram essas circunstâncias alteradas que
estiveram na base da vontade contratual. A resolução ou modificação do contrato tem
obrigatoriamente que ser exercida, de acordo com a equidade - artigo 437º do CC - “se as
circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração
anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de
equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os princípios da
boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”.

7) Contratos-Programa

Os contratos-programa são acordos formais, de valor genérico, que visam regular um


determinado setor, através do enquadramento das condições vigentes, desse determinado setor.
Todos os contratos individuais, posteriormente celebrados nesse setor, vão receber o clausulado do
contrato-programa inicial.

23
Por exemplo, os contratos coletivos de trabalho são contratos-programa, na medida em que
determina a normatividade que se vai projetar nos futuros contratos individuais.

Também no setor bancário, temos a presença de contratos-programa, na medida em que


quando negociamos um contrato individual com o banco, as condições desse contrato refletem um
contrato-programa que as padronizou previamente.

f) Limitações, provenientes de Contratos de Adesão, à Liberdade de Modelação do Conteúdo


Contratual

Até agora vimos todas as restrições que a lei impõe à liberdade de modelação do conteúdo
contratual. Vejamos agora essas restrições de ordem prática, por parte dos Contratos de Adesão.

Nos contratos de adesão, uma das partes tem a possibilidade de determinar o clausulado
contratual2, ao passo que a contraparte não tem a menor participação na preparação deste
clausulado contratual, nem a menor possibilidade de impor condições ao contraente.

Quer isto dizer que a contraparte ou aceita aquelas condições, ou não celebra o contrato, e
encontra-se, portanto, limitada na sua fixação do conteúdo contratual.

Por exemplo, quando vamos ao banco para ter um cartão de crédito não negociamos as
condições de utilização desse cartão, nem sequer temos essa possibilidade, então se o queremos, ou
aceitamos o clausulado contratual, que o banco nos oferece, ou então não temos cartão.3

Normalmente, o que está em causa são Organizações, que pelos bens ou serviços que
oferecem e pela posição de mercado que detém necessitam de recorrer a uma padronização
contratual. Essa padronização leva a uma oferta uniforme das condições contratuais a um maior
número de clientes e é essa necessidade de padronização que legitima a possibilidade de haver um
desequilíbrio social e económico entre as partes, sendo que uma delas se encontra inevitavelmente
mais débil.

Note-se que a limitação da liberdade contratual aqui decorre da natureza dos factos, isto é
do desequilíbrio natural entre partes e não do plano legal. Fala-se em desequilíbrio natural, na
medida em que esse desequilíbrio é condição de existência dos contratos de adesão que se
caracterizam-se precisamente pela desigualdade fáctica entre as partes envolvidas - é um
desequilíbrio lícito.

a) Regime Jurídico aplicável aos Contratos de Adesão


Durante muito tempo, estes contratos estavam sujeitos ao regime geral dos contratos. No
entanto, em 1985 entrou em vigor o Decreto-Lei nº446/85 que estabelece o chamado Regime
Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais. Atualmente, é o regime que regula toda a atividade em
matérias de contratos de adesão, com uma regulamentação própria e mecanismos de proteção para
o contraente mais vulnerável.

As Cláusulas Contratuais Gerais ou Condições Gerais de Contrato são as cláusulas que estão
incluídas no contrato de adesão, são o conteúdo contratual e como já vimos acima, estas são

2
O clausulado contratual corresponde ao conjunto de cláusulas inseridas num contrato. Nos C.A, uma das
partes pode, unilateralmente, definir essas cláusulas.
3
Neste tipo de contratos só podemos recusar ou aceitar o que nos é proposto.

24
elaboradas de antemão por um dos contraentes e o seu destinatário limita-se a subscrevê-las ou
aceitá-las, sem possibilidade real de as modificar. São dotadas de duas características:

1. Generalidade
2. Indeterminação

Nota: as cláusulas gerais contratuais são gerais e indeterminadas, aplicadas aos contratos de
adesão, mas estes já são individualizados, apenas contém cláusulas que não o são. Assim, os
Contratos de Adesão são dotados de 3 características:

1. Pré-formatação
2. Imodificação (rigidez)
3. Unilateralidade
4.
b) Mecanismos de Proteção aderentes das Cláusulas Gerais
Existem dois grandes perigos que se enfrentam nos contratos de adesão, em primeiro lugar,
existe o perigo de as pessoas que assinam estes contratos não os lerem, portanto há que garantir
que houve consentimento por parte destas, relativamente a todas as cláusulas.

Em segundo lugar, a partir do momento em que há uma parte que predispõe,


unilateralmente, o conteúdo negocial, evidentemente que essa parte pode pisar o risco da legalidade
facilmente, porque pode impor à contraparte situações desfavoráveis. O que está em causa nos
contratos de adesão é um desequilíbrio entre partes, por exigência da natureza do contrato. Agora,
esse desequilíbrio entra no campo da ilicitude quando a parte dominante se aproveita da sua posição
vantajosa para adquirir benefícios, à custa da vulnerabilidade da outra parte.

À medida que foram proliferando estes contratos, foi naturalmente também proliferando o
abuso e, daí a necessidade de o minimizar e de o controlar. Ora, o decreto-lei 446/85 institui ele
próprio um sistema de controlo e proteção contra esses possíveis abusos por parte da posição
dominante. Essa proteção faz-se por duas vias: através das normas materiais e através das normas
processuais. Vejamos cada uma:

b.1) Normas Materiais dos Contratos de Adesão


Trata-se daquelas que são elaboradas de antemão e os seus destinatários limitam-se a
subscrevê-las ou a aceitá-las. Não interessa o tipo de contrato, qualquer contrato pode ser um
contrato de adesão, o que importa é que haja predisposição do clausulado contratual. Este regime
também se aplica a cláusulas inseridas nos contratos individualizados, onde o contraente não teve
possibilidade de influir no seu conteúdo – acontece nos contratos de trabalho.

Nas normas materiais temos como formas de controlo, o controlo de inclusão e o controlo
de conteúdo (aquilo que é ou não possível de incluir numa determinada cláusula). Então, temos um
controlo operado em primeiro lugar, através destas normas materiais e esse pode ser um controlo de
inclusão ou de conteúdo.

25
b.1.1) Controlo de Inclusão

O Controlo de Inclusão destina-se a verificar se a parte mais fraca consentiu aquelas cláusulas,
porque frequentemente as partes não leem o programa contratual e, assim, evitar a existência de
cláusulas abusivas.

Este é feito através de quatro mecanismos:

1. Ónus de Comunicação

Vem previsto no artigo 5º do DL 446/85, que diz que todas as cláusulas contratuais gerais
devem ser comunicadas pelo predisponente (quem insere as cláusulas) ao destinatário das mesmas,
sem exceção de nenhuma. Para além disso, essa tem que ser uma comunicação adequada, na
medida em que a linguagem utilizada tem de ser percetível para a contraparte. Tem ainda que ser
inteligível, feita com uma certa antecedência, para que o destinatário das cláusulas contratuais tenha
tempo para refletir acerca da celebração do contrato.

Por força do último número deste artigo, existe ainda uma inversão do “Ónus da Prova" (art.
344.º CC) e, portanto, é ao predisponente, a quem cabe o trabalho probatório em caso de denúncia.
Isto significa que se a contraparte alegar que houve má comunicação ou não comunicação das
cláusulas contratuais, não é este quem tem que provar esse facto, mas é quem comunicou as
cláusulas, a quem cabe provar que nunca houve falhas de comunicação ou que houve efetiva
comunicação, em primeiro lugar.

Não é, portanto, lícito o predisponente fazer valer cláusulas que não foram comunicadas
eficientemente ao aderente e caso tal aconteça, as normas ficam excluídas do contrato.

2. Dever de Informação Qualificado

Se no dever de comunicação, se exigia a mera comunicação das cláusulas, no dever de


informação exige-se, para além disso, a explicação dessas cláusulas e o que estas implicam. Caso o
destinatário levante alguma dúvida, o contratante está obrigado, por força do artigo 6.º do DL
446/85, a prestar qualquer esclarecimento. Este dever de informação será tão maior consoante a
parte, em causa, por exemplo, se a pessoa for analfabeta, o dever de informação é mais exigível.

Qualquer cláusula que se mostre ineficazmente esclarecida ao seu destinatário, é excluída do


contrato.

3. Proibição de Cláusulas Surpresa

Aqui estão em causa dois tipos de cláusulas. Por um lado, todas as cláusulas apresentadas de
forma dissimulada e disfarçada, de modo a que o contratante real médio não pudesse perceber o
seu verdadeiro conteúdo ou a sua existência. Acontece quando fazem uso de letras muito
pequeninas ou remetem o conteúdo da cláusula para documentos, os quais a contraparte não tem
acesso.

Por outro lado, refere ainda as cláusulas que sejam inseridas após a assinatura do
contratante. Ambas as cláusulas são excluídas dos contratos singulares, se se verificar a sua
existência - art 8.º alíneas c) e d).

26
4. Redução Automática do Contrato

Até agora analisamos quais as cláusulas que não podem, por força deste Decreto-Lei, estar
inseridas nos contratos singulares, portanto, o artigo 9.º consagra qual a consequência jurídica da
verificação de invalidade dessas cláusulas. Refere o número 1 deste artigo que quando se verifica a
existência de cláusulas que violam os números referidos no artigo acima, estas são expurgadas dos
contratos.

Assim, recorre-se ao instituto da redução, previsto no regime geral do artigo 292.º CC,
através do qual se expurgam/retiram as cláusulas inválidas, mas toda a parte sã e legal do contrato
mantém-se. Para suprir a falta das cláusulas expurgadas, recorre-se a normas supletivas contratuais,
que seriam as aplicadas, se as partes não tivessem predisposto aquele ponto em concreto. Portanto,
a mera invalidade de algumas cláusulas não leva à invalidade total do contrato, na medida em que
ele continua a vigorar.

Porém, esta redução não procede se houver uma indeterminação insuprível de aspetos
essenciais ou um grave desequilíbrio nas prestações atentatório da boa-fé. Portanto, quando a
expurgação de cláusulas inválidas afeta aspetos essenciais ou haja um desequilíbrio entre as partes
que chegue a atentar contra a boa-fé, o contrato é automaticamente nulo. Nestes casos, a nulidade
parcial desencadeia a nulidade total.

Por exemplo, suponhamos um contrato em que há uma cláusula relativamente ao prazo de


pagamento que não é comunicada, então está a violar o princípio do dever de comunicação e por
força do artigo 9.º, tem de ser expurgada. Todo o contrato mantém-se e apenas a cláusula sobre o
prazo de pagamento desaparece, sendo que para suprir a falta de jurisdição naquela matéria,
aplica-se a norma supletiva dos contratos e passa a ser aplicado o prazo nela estabelecido, e não o
prazo nos termos acordados, porque esse foi expurgado.

b.1.2) Controlo de Interpretação

O controlo de interpretação é um instrumento de efetivação relativamente ao controlo de


inclusão. O artigo 10.º do DL 446/85 consagra que as cláusulas contratuais gerais têm de ser
interpretadas de acordo com as regras relativas à interpretação dos negócios jurídicos, previstas no
artigo 236.º CC e ss, e dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluem.

É de notar o Artigo 11.º do DL 446/85 que desenvolve as chamadas Cláusulas Ambíguas:

1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante
indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição
de aderente real.

2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente (quem está vinculado).

3 - O disposto no número anterior não se aplica no âmbito das ações inibitórias.

Assim, as cláusulas gerais ambíguas são cláusulas das quais é possível extrair mais do que
um sentido de interpretação, devido por exemplo à falta de clareza, imprecisão ou duplo sentido pela
forma como está redigida. O número 1 estabelece que perante uma cláusula ambígua, vale o sentido
que o contratante indeterminado normal teria dado à cláusula, se tivesse acesso aos meios
conferidos ao aderente real.

27
Primeiro percebamos que o contratante indeterminado normal é a parte que aceita as
cláusulas e o aderente real é a posição que este adquire quando já está vinculado ao contrato. Desta
forma, perante uma cláusula pouco clarificada, o sentido que vai valer é o sentido que o contratante
indeterminado normal que aceita aquela cláusula lhe teria dado, se ele já estivesse vinculado àquele
contrato com aquela cláusula.

O número 3 estabelece que quando em causa estão cláusulas de inibição, não se vai extrair
delas o sentido mais favorável ao aderente. As ações de inibição (art. 25.º DL 446/85) são ações
judiciais que visam impedir a prática de uma conduta - ilícita - que está a ocorrer ou que está para
ocorrer. Pode acontecer, por exemplo, quando várias empresas fizeram uso de uma cláusula proibida
e, neste caso, interpreta-se a cláusulas no sentido mais desfavorável, pois não está em causa a
proteção de ninguém, apenas a inibição do uso da cláusula pelas empresas.

b.1.3) Controlo de Conteúdo

Aqui o que está em causa não é a mecânica da inserção das cláusulas no contrato, mas o seu
conteúdo, de forma a evitar a existência de cláusulas abusivas. Efetua-se por duas vias:

1. Limitação pelo Princípio da Boa-Fé

Diz o artigo 15º do DL 446/85 - “São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à
boa-fé”

A boa-fé diz respeito a uma conduta baseada em valores como a honestidade, correção e
lealdade, portanto está sempre em causa uma expectativa da contraparte que não deve ser
frustrada. Assim, só são admitidas cláusulas que não destruam esta relação de confiança e
expectativa quanto ao comportamento da outra parte. A boa-fé encontra-se consagrada nos artigos
227.º, 762.º, entre outros, do Código Civil.

2. Catálogo de Proibições (arts. 18.º ss. DL 446/85)

Este catálogo de proibições é estabelecido em função das partes no contrato (sujeitos


envolvidos e relações que se estabelecem entre eles) e em função da gravidade da proibição,
podendo estas ser absolutamente ou relativamente proibidas, dependendo da gravidade da cláusula
para o equilíbrio contratual.

Existem catálogos de proibições que acontecem nos contratos entre empresários ou entre
consumidores, sendo que faz-se esta distinção porque os catálogos são diferenciados consoante o
tipo de contrato e consoante o tipo de gravidade das cláusulas.

a) Relações entre Empresários ou Entidades Equiparadas (B2B - business to business)


previstas no art. 17º do DL 446/85

1. Catálogo de Cláusulas Absolutamente Proibidas

Estas são irremediavelmente proibidas, não havendo consideração de quaisquer outros


fatores para as aceitar. Todas as cláusulas absolutamente proibidas entre empresas ou entidades
equiparadas estão previstas no artigo 18.º.

28
2. Catálogo de Cláusulas Relativamente Proibidas

Estas são “relativamente proibidas”, na medida em que já não são determinadas como
proibidas, temos que fazer a análise do contexto em que essa cláusula surge para sabermos se elas
são relativamente proibidas. Todas as cláusulas relativamente proibidas entre empresas ou entidades
equiparadas estão previstas no artigo 19.º.

b) Relações com Consumidores Finais (B2C - business to consumers)


Nas relações entre consumidores finais, são consideradas proibidas, todas as cláusulas que
também são proibidas nas relações entre empresários, nos termos do artigo 20.º: Neste âmbito,
voltamos a ter:

Catálogo de Cláusulas Absolutamente Proibidas entre consumidores finais - tem o seu regime no
artigo 21.º

Catálogo de Cláusulas Relativamente Proibidas entre consumidores finais - tem o seu regime no
artigo 22.º.

Nota: a título de distinção entre empresas e consumidores finais, atentemos ao seguinte


exemplo:

- Se eu compro uma carrinha para levar os meus filhos à escola, está em causa uma relação
entre consumidores finais.
- Se eu compro uma carrinha para vender gelados, está em causa uma relação entre empresas
(entre o prestador de serviços e o utente).

b.2) Normas Processuais dos Contratos de Adesão

É através das normas processuais que é efetivado o Controlo Processual - mecanismo que o
legislador criou para que possam ser efetivadas regras que presidem à elaboração de Cláusulas
Contratuais Gerais. Dentro deste, podemos encontrar o:

b.2.1) Controlo Incidental

O que ocorre no controlo incidental é a apreciação da validade das cláusulas contratuais


gerais, no contexto de um conflito concreto instalado entre um predisponente - quem elabora o
clausulado contratual - e um aderente - quem aceita ou rejeita esse clausulado.

Por exemplo, se entre um cliente e o seu banco suscitar um conflito, quanto ao alcance de
determinada cláusula, o Tribunal pode ser chamado a apreciar esse conflito, e proceder a um
controlo incidental do caso concreto.

b.2.2) Controlo Abstrato (arts. 25.º ss. DL 446/85)

O controlo abstrato é sobretudo feito através da chamada ação inibitória, sendo que estas
são ações que têm eficácia ultra-partes, podem ser invocadas por outras pessoas de caráter coletivo.
As ações inibitórias visam impedir a inclusão de cláusulas contratuais gerais proibidas nos contratos
de adesão, quando estas sejam inválidas. As cláusulas podem ser:

29
● De integração inválida, apenas naquele contrato de adesão - aqui, a cláusula é por si só
válida, mas naquele contrato de adesão em específico é inválida, por exemplo uma cláusula
que não tenha sido comunicada ao aderente.
● De integração inválida, em toda e qualquer circunstância;

É destas que se vai ocupar o controlo abstrato, sendo que é abstrato precisamente, porque a
cláusula é sempre inválida. É quando uma destas cláusulas integra ou está para integrar o contrato,
que se aciona a ação inibitória.

Não faria sentido acionar a ação inibitória no controlo de inclusão ou nas cláusulas
relativamente proibidas, porque aqui nem se considera tanto o conteúdo da cláusula, mas a forma
como ela é comunicada e as circunstâncias que a rodeiam.

Ainda no âmbito do controlo abstrato, observe-se o disposto nos artigos 26.º; 27.º; 30.º/2;
31.º; 32.º/1 e 3; 33.º/1; 35.º do presente DL:

1. Artigo 26.º4 - estabelece quem pode intentar a ação de condenação pelo uso ilícito de
cláusulas contratuais gerais (legitimidade ativa), ou seja, quem pode invocar a ação inibitória.
2. Artigo 27.º - estabelece contra quem pode ser intentada a ação de condenação pelo uso
ilícito de cláusulas contratuais gerais (legitimidade passiva), ou seja, contra quem pode ser
invocada a ação inibitória.
3. Artigo 30.º/2 - o autor pode pedir em Tribunal que o vencido seja obrigado a publicitar o uso
de cláusulas proibidas como castigo, normalmente no DGSI.
4. Artigo 31.º/1 - mesmo que não tenha sido incluída nenhuma cláusula proibida no contrato,
se se prever a sua possibilidade de inserção, pode provisoriamente proibir-se a sua aplicação.
5. Artigo 32.º/1 e 3 - qualquer cláusula que já tenha sido considerada proibida, no caso julgado,
não pode ser reaplicada, sob pena de nulidade.
6. Artigo 33.º/1 - se a cláusula já foi considerada proibida no caso julgado e o demandante
infringe a obrigação negativa de não a utilizar, é-lhe aplicada uma sanção pecuniária
compulsória - art. 829.º - A do CC.
7. Artigo 35.º - todas as cláusulas que sejam consideradas proibidas devem ser registadas e
esse registo deve manter-se atualizado.

Até agora analisamos o Regime Contratual do Decreto-Lei 446/85, contudo, este não é único
diploma legislativo que visa corrigir os desequilíbrios contratuais. Releva então mencionar as LEI
Nº23/96 e a LEI Nº24/96.

4
O número 2 deste artigo diz-nos ainda que estas entidades atuam no processo em nome próprio, mas o
direito é um direito que está numa esfera jurídica distinta, está na esfera jurídica dos consumidores no seu
conjunto. Por isso, dizemos que este controlo abstrato tem uma eficácia ultra partes, que passa para além da
esfera jurídica da parte que está no processo.

30
A LEI Nº 23/96 lei tem indiscutivelmente um relevo menor que o regime das cláusulas
contratuais gerais, embora também tenha aspetos importantes de proteção dos contraentes. É uma
lei antiga de 1996, que já conheceu variadas alterações e que pretende criar mecanismos de
proteção para o utente de serviços públicos essenciais, ou seja da parte mais frágil.

Nota: Distinção entre Utente e Prestador de Serviços:

● Utente - pessoa singular ou coletiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.


● Prestador de Serviços - toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer
dos serviços referidos no n.º 2, [do art. 1.º] independentemente da sua natureza jurídica, do
título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.

A LEI Nº24/96 estabelece a proteção e defesa do consumidor, dando as bases do corpo


normativo voltado para a proteção do consumidor.

3. Princípio da igualdade e da não discriminação

O direito civil é o ramo do direito no qual este princípio tem o seu acento axiológico mais
nítido, por se caracterizar pelas suas relações interpares, contudo, podemos verificar que a sua
origem se consagrou noutro ramo do direito: o direito do trabalho / laboral. Foi assim, no âmbito do
direito público, que primeiro surgiram as preocupações com a igualdade e a não discriminação.

Em termos históricos, no direito laboral, a preocupação em assegurar a igualdade e a não


discriminação surgiu por força da necessidade de traduzir, normativamente, a realidade histórica da
chegada das mulheres ao mercado de trabalho, e a discriminação proveniente do desiquilíbrio das
relações laborais. Hoje em dia, os fatores discriminatórios já são muito variados, como veremos mais
abaixo, e portanto, foi sendo desenvolvida regulamentação específica destinada a assegurar este
princípio.

a) Mecanismos de Efetivação do Direito à Igualdade e à Não-Discriminação

Atualmente, são vários os mecanismos de tutela deste princípio, estando assim em causa uma
tutela multinível, que não se cinge ao direito interno mas reconhece também supra-estruturas
internacionais. Comecemos por aí:

- Carta dos direitos fundamentais da União Europeia


A influência do Direito da União Europeia tem movido, em grande medida, o avanço do direito à
igualdade e não discriminação porque, para além dos textos legislativos de aplicação geral, o DUE
tem tido um contributo decisivo numa jurisprudência muito progressiva na concretização deste
princípio. Nesse sentido, temos hoje um diploma fundamental a influenciar a estrutura normativa
nacional: a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE).

A CDFUE tem um capítulo dedicado à Igualdade, que consagra artigos protetores da sua
efetivação.

● Artigo.º 20 - Igualdade perante a Lei - “Todas as pessoas são iguais perante a lei”.

31
● Artigo.º 21 - Não Discriminação - “É proibida a discriminação em razão, designadamente, do
sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou
convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza,
nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.”
● Artigo.º 22 - Diversidade cultural, religiosa e linguística
● Artigo.º 23 - Igualdade entre homens e mulheres
● Artigo.º 24 - Direitos das crianças
● Artigo.º 25 – Direitos das pessoas idosas
● Artigo.º 26 - Integração das pessoas com deficiência

Para além destes artigos, a Carta Fundamental dos Direitos Fundamentais da União Europeia
consagra ainda uma série de diretivas que visam concretizar o princípio da igualdade e da
não-discriminação.

● DIRETIVA 2010/41/UE relativa à aplicação do princípio da igualdade de tratamento entre


homens e mulheres que exerçam uma atividade independente.
● DIRETIVA 2006/54/CE relativa à aplicação do princípio da igualdade de oportunidades e
igualdade de tratamento entre homens e mulheres, em domínios ligados ao emprego e à
atividade profissional.
● DIRETIVA 2004/113/CE que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e
mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento.
● DIRETIVA 2000/78/CE que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no
emprego e na atividade profissional.
● DIRETIVA 2000/43/CE que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas,
sem distinção de origem racial ou étnica

- Artigo 13.º CRP
Este artigo 13.º consagra uma norma axial que estabelece o seguinte: todos os cidadãos têm
a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado,
prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo,
raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica, condição social ou orientação sexual.

Este artigo tem uma consideração de mais fatores discriminatórios mais ampla do que a que
foi acolhida na CDFUE.

- Legislação Ordinária
Já vimos os mecanismos de tutela, deste princípio, no plano supranacional e no plano
constitucional. Relativamente ao plano ordinário, existe uma série infindável de diplomas que se
ocupam da efetivação da igualdade e da não-discriminação. Existem dois tipos de tutela:

● Tutela Geral
● Tutela Especial
➔ Regime Especial dirigido ao Género, no qual
se integra a tutela da parentalidade.

32
➔ Regime Especial dirigido à Deficiência

Quando falamos em igualdade e não discriminação, temos sempre que proceder a um juízo
de comparação entre a situação concreta e a situação ideal típica.

A situação concreta corresponde à situação real analisada e a situação ideal típica


corresponde à situação que satisfaz os parâmetros da dignidade humana - situção que consagra
idealmente os valores de igualdade e não discriminação. Após esse juízo de comparação, podemos
chegar a uma de três situações:

1. Situação Ideal Típica > Situação Real

A situação ideal típica é melhor do que a situação real, ou seja, a situação real fica aquém
das exigências da situação ideal -> Discriminação.

2. Situação Ideal Típica = Situação Real

A situação real equipara-se ao dever-ser, ou seja, à situação ideal típica, satisfazendo as


exigências de pré-figuração típica -> Igualdade.

3. Situação Ideal Típica < Situação Real

A situação ideal típica é menos exigente do que a situação real, isto é, o tratamento da
situação real é melhor do que o padrão de dever-ser imposto pela situação ideal típica ->
Diferenciação Não Ilícita. Em caso de diferenciação não ilícita, não é necessário intervir
corretivamente, na medida em que se a situação real ultrapassa o dever-ser da situação ideal típica,
então já houve uma medida de ação positiva que permitiu este resultado.

Um exemplo de diferenciação positiva lícita seria uma organização decidir empregar,


exclusivamente, pessoas com deficiência. Esta é uma diferenciação positiva, na medida em que não
discrimina pessoas sem deficiência, apenas visa equilibrar o acesso ao mercado de trabalho, através
da atribuição de vantagens a uma minoria que, frequentemente, se encontra em situação de
desvantagem - trata-se de um exemplo de uma medida de ação positiva.

b) Tipos de Discriminação
A discriminação pode revelar-se através de três manifestações:

1. Discriminação Direta
Este é o tipo de discriminação mais facilmente identificável já que através de um dado
comportamento, reconhece-se, de imediato, que este é discriminatório. Por exemplo, o porteiro de
uma discoteca deixar entrar toda a gente menos aqueles que pertencem a uma determinada etnia.

2. Discriminação Indireta
A situação de discriminação indireta advém de uma prática, aparentemente neutra, mas
que, no seu núcleo, se encontra motivada a ser aplicada discriminatoriamente. Por exemplo, num
concurso é introduzida uma exigência de saber pronunciar dialetos, quando apenas um concorrente
está apto para satisfazer essa exigência.

33
Trata-se de práticas aparentemente neutras, mas que não se livram de poderem constituir,
indiretamente, situações discriminatórias. Para atender a essa determinação, isto é, se a medida é ou
não discriminatória, há que proceder à análise do princípio da proporcionalidade previsto no artigo
18.º CRP. Assim, todas as restrições impostas, que possam afetar direitos, liberdades e garantias
devem ser necessárias, adequadas e não excessivas - se um destes requisitos cumulativos não se
verificar, a situação é discriminatória.

O TJUE tem tido uma atividade judicial nesta matéria ao ter uma leitura muito exigente das
consequências das práticas que constituem discriminação indireta.

Por último, o que essencialmente disintingue estes dois tipos de discriminação é o facto da
discriminação direta ser sempre intencional, ao passo que a discriminação indireta pode ou não ser
intencional. Para além disso, a discriminação indireta pode apresentar uma justificação objetiva, ao
passo que a discriminação direta não pode, e assim podemos concluir que discriminação direta é
sempre discriminação.

Por exemplo, se eu na escolha de arrendatários para viverem no meu prédio, estabelecer que
apenas aceito mulheres, na medida em que só me sentirei confortável, dessa forma, então é
justificável - temos aqui o que poderia ser um caso de discriminação indireta, mas como tem uma
justificação objetiva, então não pode ser considerado como discriminatório.

3. Discriminação por Ricochete


Na discriminação por ricochete, a discriminação surge precisamente pelo medo da sanção da
discriminação. Por exemplo, num concurso de recrutamento para a polícia, existe um clima de tensão
racial, visto que parte dos participantes são caucasianos e a outra parte são afro-americanos.
Acontece que só foram recrutados caucasianos, porque simplesmente calhou que estes tivessem
adquirido as melhores classificações.

A polícia, por medo de acusação de discriminação aos afro-americanos, cancelou o concurso


e não ganhou ninguém. O que acontece é que quem acabou por ser discriminado foram os
caucasianos, que mereceram o acesso à polícia, que depois lhes foi negado.

c) Mudança de Conceção de Fatores Discriminatórios


Naturalmente, a nossa conceção de igualdade e não discriminação foi-se alterando e
evoluindo ao longo dos tempos. Se, inicialmente, essa discriminação se sentia, essecialmente, no
género e nas relações laborais, atualmente os fatores discriminatórios são diversos. Por exemplo,
hoje em dia sente-se muito a discriminação pela aparência física ou a discriminação multifatorial -
há vários fatores de discriminação que convergem numa só pessoa.

Para além dessa, existe a discriminação cujo fator discriminatório se localiza numa pessoa
diferente, isto é, a discriminação não é direcionada à pessoa individual, mas é feita por causa de uma
situação de outrém.

Por exemplo, uma mãe trabalhadora de um jovem deficiente que seja despedida, porque
não consegue cumprir os critérios de assiduidade da mesma forma que as outras trabalhadoras, está
a ser vítima de discriminação.

Hoje, o princípio da igualdade e da não discriminação adquiriu tal grau de aperfeiçoamento,


que ultrapassa a sua origem laboral e é exportado para todos os ramos do direito, inclusive o direito

34
civil. Vejamos abaixo quais os tipos de proteção fornecidos ao princípio da igualdade e da não
discriminação.

d) Tipos de Proteção de Asseguramento

1. Proteção Imediata
A proteção imediata é o tipo de proteção que consagra instrumentos que existem para
corrigir ou prevenir, imediatamente, práticas discriminatórias. Esta pode ser:

● Preventiva

É feita através de recursos que sancionam comportamentos discriminatórios e que visam a


prevenção dessa discriminação. É o caso das medidas de ação positiva, das normas destinadas ao
poder parental, etc.

● Corretiva ou Repressiva

É feita através da atribuição de responsabilidade civil ao tratamento discriminatório e até, no


limite, à criminalização de certos atos, como os crimes de ódio. Existem, assim, dois instrumentos de
repressão:

○ Sanções Penais
○ Sanções Civis - A discriminação é sempre um facto ilícito culposo que, por sua vez,
gera sempre responsabilidade civil, ex.:. artigo 483º CC.

Com a verificação da responsabilidade, vem a necessidade de indemnização nos termos


deste artigo.

Para além disso, no direito do trabalho, na intenção de facilitar o processo à vítima de


discriminação, há lugar à inversão do ônus da prova - a vítima está dispensada da carga probatória
completa, cabendo-lhe apenas fazer prova da existência dos factos e indicar a quem se considera
discriminado. Todavia, é o empregador quem tem que provar que não houve lugar à discriminação.

2. Proteção Lateral

É feita através de instrumentos cujo objetivo não é a tutela de situações discriminatórias,


mas têm outras finalidades. Por exemplo, é o caso da responsabilidade parental e da regulamentação
sobre o assédio, sexual ou moral. Na responsabilidade parental, o primeiro interesse é o da criança e
assegurar o seu livre desenvolvimento em condições de apoio e afeto familiar, contudo, acaba por
efetivar também o princípio da igualdade e da não discriminação.

4. Princípio da responsabilidade civil

No direito em geral, o princípio da responsabilidade civil é o princípio que tem maior


importância prática, na criação de vínculos obrigacionais. Portanto, o seu principal objetivo é a
atribuição da obrigação de reparação do prejuízo.

Por exemplo, a falta de pagamento da dívida pelo devedor ao credor, ou a falta de


pagamento da pensão de alimentos pelo progenitor são sempre factos que desencadeiam
responsabilidade civil.

35
A responsabilidade civil tem por finalidade tornar o lesado indemne, ou seja, sem dano,
portanto, visa colocar o lesado na situação em que este estaria, se não tivesse ocorrido o facto que
originou o dano.

Casus Sentit Dominus - em princípio, se eu sou o proprietário de algo, vou arcar com os
prejuízos daí decorrentes.

a) Mecanismos de Efetivação do Princípio da Responsabilidade Civil


Nos termos do artigo 566 do CC, a Reconstituição Natural é o modo regra. Contudo, quando
esta não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o
devedor, aplica-se a Reintegração por Equivalente, através de uma indemnização que já não seja tão
onerosa.

Por exemplo: B torna A indemne aquando da danificação do muro, a primeira reconstituição


é a reconstrução do muro. Caso não seja possível, B terá de indemnizar A, atribuindo-lhe uma
quantia pecuniária permitindo-lhe estar na situação que se encontrava antes da verificação da
prática.

O Senhor A contrata um engenheiro para lhe construir uma moradia e pede-lhe para utilizar
uma marca específica de tubagem, mas quando a moradia já estava construída, o Senhor A
apercebeu-se que a tubagem utilizada não era a tal que ele tinha pedido, e então solicitou em
tribunal a reconstituição natural da casa - ou seja a reconstrução da casa com o uso de tubagem
inicialmente pedido.

O tribunal disse que a tubagem usada foi considerada semelhante em relação ao


preço-qualidade àquela que deveria ter sido usada, e que a reconstituição da casa seria
excessivamente onerosa. Então indemnizou-se o Senhor A, através da atribuição de uma quantia
pecuniária, em vez de se reconstituir naturalmente a casa, através da Reintegração por Equivalente.

Segundo o número 2 do artigo 566 do CC - “Sem prejuízo do preceituado noutras disposições,


a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na
data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem
danos.”

Então está consagrada a Teoria da Diferença para analisar qual deve ser o montante a pagar,
assim, calcula-se o valor da situação patrimonial em que o lesado está, e o valor da situação
patrimonial em que o lesado estaria, se não tivesse havido violação da norma pelo devedor.

No artigo 496 do CC - “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais
que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” - está em causa o regime da compensação.

Este corresponde à atribuição, ao lesado, de uma soma pecuniária de reparação por danos
morais, que pela sua natureza não patrimonial, não são suscetíveis de Reconstituição Natural ou
Reintegração por Equivalente, ou seja, não são suscetíveis de indemnização.

Quando o artigo refere “mereçam a tutela do direito”, isto significa que o dano patrimonial
tem que afetar bens juridicamente relevantes, como a vida. Assim, se estiverem em causa
“sensibilidades particularmente agudas”, então estas não são passíveis de serem compensadas.

36
É errado utilizar o termo indemnização, porque a indemnização significa eliminar o dano,
mas danos morais não são pecuniariamente elimináveis, então atribui-se um estatuto financeiro ao
sujeito que tente compensar o prejuízo moral.

A responsabilidade civil encontra, essencialmente, a sua concretização normativa nos artigos


já referidos mais estes: artigo 562º e artigo 483º CC.

b) Tipos de Danos

Neste âmbito, releva distinguir entre os dois tipos de dano:

● Dano Patrimonial

Um dano patrimonial é um dano real que incide, sempre, sobre a situação patrimonial do
lesado. Dentro dele existem variantes:

● Dano Emergente - dano causado nos bens ou direitos que já existem na titularidade
do lesado à data da lesão. São os prejuízos decorrentes do dano.
● Lucro Cessante - corresponde aos benefícios que o lesado deixou de obter por força
do facto lesante - artigo 564.º/1 CC.

● Dano Não Patrimonial

Os danos não patrimoniais são danos que não são pecuniariamente avaliados, são aqueles
que atingem a saúde, bem-estar, liberdade, integridade estética, bom nome, etc. Estes são danos
compensáveis, como manda o artigo 496.º/1 do CC.

c) Requisitos Cumulativos para a Verificação da Responsabilidade Civil

Verifica-se a existência de responsabilidade civil, quando há lugar à verificação cumulativa de


uma série de pressupostos:

1. Existência de um Facto Voluntário


2. Existência de um Facto Ilícito
3. Existência de um Nexo de Causalidade
4. Existência de um Facto Danoso
5. Existência de um Facto Culposo

Analisemos cada um:

1. Facto Voluntário
Para haver um dano, é necessária a existência de um facto voluntário. Quando dizemos
“voluntário” significa que tem que acontecer alguma coisa ligada à vontade do sujeito, mesmo que a
criação do dano não tenha sido querida por este. Se quem produziu o dano, pudesse ter atuado de
forma que evitasse a sua consumação, então estamos perante um facto voluntário.

Por exemplo, eu estava a caminhar distraída e vou contra a minha colega que deixa o
telemóvel cair e ele parte-se. Por muito que eu não quisesse partir o telemóvel, era legitimamente

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exigível que eu não tivesse distraída, ou seja, eu podia ter atuado de forma que não levasse à criação
do dano e, assim, gera-se responsabilidade civil.

2. Facto Ilícito
O facto tem que ser reprovável pela ordem jurídica, na medida em que viola direitos
subjetivos alheios, tutelados por disposição legal - artigo 483.º CC: “aquele que, com dolo ou mera
culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger
interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Facto Ilícito vs Facto Voluntário

Há que distinguir entre facto ilícito e facto voluntário, sendo que o primeiro é a violação de
um direito e o segundo é a situação que gerou o dano. Por exemplo, A ia a conduzir e, devido à sua
distração, atropelou B que sofreu danos gravosos.

Aqui o facto ilícito corresponde à violação do direito absoluto de B, o direito à integridade


física (art. 70.º CC) e não a uma situação específica. O atropelamento não é um facto ilícito, porque
pode haver atropelamento sem haver dano, por exemplo, se eu atropelar uma pessoa morta, não
estou a violar nenhum direito absoluto dessa pessoa.

O facto voluntário aqui é a condução, abstratamente falando, ou seja, é a situação que leva à
propensão da criação do dano - se eu não estivesse a conduzir, não teria atropelado B e a este não
teria gerado danos. É um facto voluntário, porque por muito que eu não quisesse ter criado o dano, o
facto que, indiretamente, gerou o dano, foi praticado voluntariamente. Para que, no caso concreto,
haja lugar à responsabilidade civil extracontratual, ambos os factos têm de se verificar.

Mas quando é que o facto não é voluntário? Por exemplo, no sonambulismo, aqui o sujeito
nem queria estar acordado, portanto, o facto propício à criação do dano nem foi praticado
voluntariamente.

3. Nexo de Causalidade
Tem de haver um nexo de causalidade entre o facto e o dano para que haja lugar à
responsabilidade civil. Por outras palavras, o dano tem que ter sido causado por aquele facto, assim
o facto tem que originar dano e o resultado tem que ser sempre o prejuízo. É, todavia, um elemento
de prova muito difícil.

Por exemplo, B ia a conduzir a alta velocidade, embatendo no peão C que ia atravessar a


estrada e causando-lhe danos severos. A condução a alta velocidade é o facto e o embatimento em C
é o dano. Assim, B só é responsável pelo dano de C, se o que causou os danos severos de C, foi a
condução a alta velocidade - o dano tem que ter sido gerado por aquele facto.

Teoria da Causalidade Adequada - art. 563.º do CC

Ainda no âmbito do nexo de causalidade, temos a teoria da causalidade adequada que nos
diz que o facto ilícito, voluntário e danoso seria adequado a dar luz ao dano. Por exemplo, A
atropelou B, o que levou à fratura do braço direito de B. Este é levado para o hospital e no dia
seguinte, quando sai do mesmo, é atropelado por um camião, acabando por falecer após esse
atropelamento.

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A teoria da causalidade adequada diz-nos que A só é responsável pela fratura do braço de B,
pois este foi um dano gerado pelo atropelamento de A. Contudo, A já não é responsável pela morte
de B, pois não há nexo de causalidade entre o atropelamento de A e a morte de B.

Foi o segundo atropelamento de B que levou à sua morte, não o atropelamento por A, assim
sendo A seria, apenas, punido por ofensas à integridade física (art. 70.º CC), mas não pela ofensa ao
direito à vida de B (art. 24.º CRP).

4. Facto Danoso
Daquele facto, tem de ocorrer um dano. O Dr. Orlando de Carvalho distingue ainda entre o
dano:

● Direito / Indireto

Atende-se à natureza do direito violado. Assim, o dano é direto se eu diretamente lesei o


direito de outrem - se eu embater no carro de A e causar estragos, a lesão foi imediata. E o dano é
indireto quando surgem como consequências de um dano - se eu sofro uma lesão cerebral e isso
afeta o meu desempenho no trabalho, todos os problemas que eu venha a ter pela minha falta de
desempenho são danos indiretos da lesão cerebral.

● Patrimonial / Não Patrimonial

Naturalmente contende-se aqui com a natureza do dano, e consiste na sua redutibilidade a


uma lesão pecuniária.

5. Facto Culposo
Está aqui em causa a culpa, sendo que a culpa é um juízo de reprovação e censura
ético-jurídica pela conduta do agente - há lugar à culpa, quando o autor da lesão podia ter agido de
outra forma, de forma a evitar o dano.

A culpa remete-nos ainda para a voluntariedade do ato, ou seja, quanto maior o grau de
voluntariedade do ato, maior o juízo de culpa. A culpa pode revestir-se de duas formas distintas: o
dolo e a negligência.

5.1) Dolo

Num ato doloso, o grau de censura é muito grande, sendo esta a modalidade de culpa mais
gravosa. Aqui o agente quer praticar o ato ilícito, portanto o facto não só é voluntário, como também
é querido. Aos factos ilícitos praticados com dolo, dá-se a designação de delitos. Temos três
modalidades de Dolo:

● Dolo Direto

O agente, na sua prefiguração mental, quer determinado efeito da conduta. Por exemplo,
imaginemos que um determinado sujeito pretende assassinar outro, e sabe que a vítima pernoita
numa casa abandonada, dirige-se à casa e põe fogo às instalações sabendo que irá originar a morte
do ocupante.

Aqui, o facto está diretamente ligado à produção do dano, e o agente não só quis praticar o
ato como também quis o resultado, morte do ocupante, que ele sabia que adviria daquele facto.

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● Dolo Necessário

Aqui o agente não quer diretamente o facto ilícito, mas prevê a possibilidade de ele se
verificar e mesmo assim decide agir. Por exemplo, o agente quer destruir a casa, sabe que há alguém
que pernoita nessa casa, mas ele não quer matar o ocupante, e sabe que se ele lá estiver ele morre,
e, portanto, o seu dolo é um dolo necessário - prevê o efeito como necessário.

Ou seja, o dolo necessário distingue-se do dolo direto, na medida em que no dolo direto o
agente quer mesmo matar o ocupante, ao passo que no dolo necessário, o agente que incendiar a
casa e sabe que como consequência, terá a morte do ocupante. Contudo, não era interesse
primordial que essa morte acontecesse, mas foi um efeito necessário. É um tipo de dolo menos
grave, visto que o grau de voluntariedade na morte do ocupante é menor, ou seja, não era da
vontade do agente que esta tivesse ocorrido, mas ele previu que isso fosse acontecer e mesmo assim
agiu.

● Dolo Eventual

O agente prevê a produção do facto ilícito, mas apenas como condição eventual da sua
conduta. Por exemplo, o agente prevê a morte do ocupante como efeito eventual, mas não sabe se
vai todas as noites, nem sabe se ele vai estar, sabe só que se lá estiver é possível que morra - a
adesão ao resultado é sucessivamente menor.

A única diferença deste para o dolo necessário, é que no dolo necessário o agente sabe que
o ocupante lá vai estar. No dolo eventual, o agente não sabe se o ocupante lá vai estar, mas sabe que
isso pode acontecer.

5.2) Negligência / Mera Culpa

A negligência não é uma modalidade de culpa tão grave como o dolo, na medida em que o
ato é voluntário, mas não é querido. Se no dolo temos adesão ao resultado, aqui não se verifica essa
adesão - há uma omissão da diligência exigível ao agente. A reprovação que lhe dirigimos é uma
censura por ele não ter agido como deveria. Aos factos ilícitos praticados por negligência dá-se o
nome de quase delitos. Temos duas modalidades de negligência:

● Negligência Consciente

A negligência é consciente nos casos em que há precipitação e espúria por parte do agente.
Por exemplo, o sujeito previa a produção do facto como possível, mas acreditava que não havia lá
ninguém, seguindo o exemplo anterior. Ou seja, ele é otimista na negligência consciente, porque
apesar de ele saber que o ocupante podia lá estar, ele acredita que não está.

● Negligência Inconsciente

O agente não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se vir a verificar, isto é, não
era apenas o resultado, mas também o facto que não são da vontade do agente. Por exemplo, o
agente deita fora um cigarro aceso, o que leva à propagação de fogo pela casa e eventualmente à
morte do ocupante. Não há uma adesão ao resultado, ou seja, o agente nunca quer, nem nunca
previu a propagação do fogo, e por maioria de razão, a morte do ocupante.

Compreendamos, agora, o porquê de ser tão importante definir o grau de adesão do agente
ao resultado. Em primeiro lugar, quando falamos de adesão falamos do grau de ligação entre o

40
agente e o dano causado. Quanto maior for esse grau de ligação, maior é o grau de voluntariedade,
ou seja, se houver uma grande adesão, isso significa que o agente quis, efetivamente, a produção
daqueles efeitos, daí que o grau de voluntariedade seja maior.

Esse maior grau de voluntariedade vai refletir-se num maior grau de culpa - eu sou tão ou
mais culpado, consoante maior seja a minha intenção de cometer um ato ilícito que desencadeia tal
resultado. Daí que na negligência, o grau de culpa seja menor, na medida em que o grau de
voluntariedade também o é já que um agente negligente não quis aquele resultado, ou por outras
palavras, quando produziu aquele facto, não previu que fosse gerar aquele resultado.

Podemos encontrar consagração normativa do que foi supra mencionado no artigo 494.º CC
- “Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa (negligência), poderá a indemnização ser
fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que
o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais
circunstâncias do caso o justifiquem”.

O que este artigo nos vem dizer é que nos casos de negligência ou mera culpa, pelo grau de
voluntariedade e, consecutivamente, o grau de culpa do agente serem menores, também o
montante a indemnizar o será. Há uma limitação equitativa da indemnização, na medida em que
pelo facto ter ocorrido por negligência, o agente não é obrigado a ressarcir, integralmente, os danos.
Logicamente, tal só sucede se devidamente justificado.

Já estudamos em Direito Penal que a sanção se mede pelo grau de culpabilidade do agente,
portanto se esse grau é menor nos casos de negligência, também a indemnização, enquanto sanção
mais frequente do direito privado, o será. Quando o facto ocorre por dolo, o agente já é obrigado a
ressarcir integralmente os danos, pelo seu grau de culpa ser maior.

Distinção entre Dolo Eventual e Negligência Consciente

Com o propósito de não restarem dúvidas acerca da distinção entre estas duas modalidades,
desenvolvamos sucintamente cada uma. Inegavelmente, a fronteira entre a negligência consciente e
o dolo eventual é uma fronteira difícil de estabelecer. Portanto, a primeira pergunta a fazer é: na
prática do facto, qual foi a verdadeira convicção do agente? Essa é, na verdade, a solução para
distinguir todas as modalidades de dolo ou negligência.

Tanto no dolo eventual como na negligência consciente, o agente sabe que o resultado é
passível de ocorrência, mas estes distinguem-se porque:

● No dolo eventual, o agente não sabe se o resultado se vai efetivar, mas sabe que é possível
que aconteça.
● Na negligência consciente, o agente acredita que o resultado não se vai efetivar. Toma uma
posição otimista, pois sabe que o resultado poderia ocorrer, mas acredita que naquele dia
não ocorre.

Ainda no exemplo anterior, em dolo eventual, o agente sabe que a morte do ocupante da
casa pode acontecer e, mesmo assim, isso não o dissuade de incendiar a casa. Já na negligência

41
consciente, o agente incendiou a casa, mas nunca previu que isso pudesse levar à morte de alguém -
caso o tivesse previsto, nunca teria praticado o facto, em primeiro lugar.

Essa é a grande pedra de toque entre estes dois conceitos: no dolo eventual, o agente
praticou o facto, mesmo sabendo que havia a possibilidade de desencadeamento daquele resultado.
Na negligência consciente, só o agente praticou o facto, porque nunca previu tal resultado. Desta
forma, a negligência consciente é menos censurável, visto que apesar de ser exigível que o agente
tivesse verificado se alguém ocupava a casa quando a incendiou, o facto de ele acreditar que
ninguém o fazia, torna a produção do dano, decorrente da sua conduta, um pouco menos voluntária.

Por último, releva apenas mencionar que a necessidade de distinção entre os tipos de dolo e
negligência é diferente, seja no Direito Civil, seja no Direito Penal. Isto porque o Direito Civil só tem
consequências normativas, na distinção entre dolo e negligência, aliás, o artigo 494.º, supracitado,
não faz referência aos tipos de negligência, porque para o Direito Civil, o dever do agente é ressarcir
os danos causados, sendo que o grau de culpa com que este agiu seja menos relevante para o efeito.
Já no Direito Penal, todo o ponto de partida é esse grau de culpa, daí que seja mais importante
determiná-lo.

O mesmo facto pode ainda gerar responsabilidade civil e penal: se o agente puser fogo à
casa, e isso resultar na morte do ocupante, este vai responder pelo fogo posto e pelo homicídio,
contudo, vai responder também pelos danos à casa e pelo dano morte.

Distinção entre Negligência Inconsciente e Ausência de Culpa


Esta é uma distinção muito ténue: quando é que se considera culposo o ato em que o agente
não quis nem a ocorrência do dano, nem a prática da conduta geradora do dano?

Considera-se que houve culpa, ainda que na modalidade de negligência inconsciente,


quando se pode exigir que o agente tivesse atuado de forma diligente, ao passo que a conduta é
ausente de culpa, quando o agente atuou de acordo com os padrões médios de diligência e mesmo
assim o dano ocorreu.

Por exemplo, A está no meio da multidão e ao espreguiçar-se, empurra C que cai ao chão e
magoa-se. Efetivamente, A não queria nem empurrar C nem magoá-lo, todavia era exigível que A
não se tivesse espreguiçado se sabia que estava no meio da multidão e podia embater em alguém.

d) Modalidades da Responsabilidade Civil Extracontratual

1. Responsabilidade Subjetiva
Estamos perante responsabilidade subjetiva quando podemos dirigir ao agente um juízo de
censura, seja a título de negligência ou dolo - Artigo 483.º CC.

Portanto, quando o facto que gerou a responsabilidade foi praticado culposamente pelo
agente, está em causa a responsabilidade subjetiva. Esta é a modalidade-regra da responsabilidade,
ou seja, por norma, o facto gerador da responsabilidade é sempre praticado com culpa. Só
excecionalmente é que existem outras formas de responsabilidade.

2. Responsabilidade Objetiva / Responsabilidade pelo Risco


A responsabilidade objetiva é a segunda modalidade de responsabilidade, e esta é a
exceção. Há lugar à responsabilidade objetiva, quando o facto gerador da responsabilidade foi

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praticado sem culpa, desta forma, ela não se baseia na culpa do agente, mas sim no pressuposto do
risco - responsabilidade pelo risco.

Esta responsabilidade existe porque, pese embora, não atue com culpa, baseia-se no
pressuposto do risco, ou seja, os danos são obrigatoriamente ressarcidos pelo agente, não porque
este agiu culposamente, mas porque a sua atuação se insere numa das hipóteses de risco previstas
na lei, mas não porque tem culpa. Dizer que esta é uma modalidade excecional, significa que apenas
excecionalmente podemos admitir uma responsabilidade que prescinda da culpa. Por regra, a culpa
é uma “conditio sine qua non” da responsabilidade.

Fazendo uma contextualização histórica da origem da responsabilidade objetiva, podemos


dizer que esta surgiu com a revolução industrial. A revolução levou à introdução em massa das
máquinas a vapor, todavia essas máquinas tinham os seus defeitos e, portanto, mesmo quando
observadas todas as regras conhecidas de boa atuação para o seu funcionamento, havia acidentes,
porque elas explodiam.

Os trabalhadores sofriam acidentes e não havia qualquer tipo de base legal que consagrasse
essa responsabilidade, o que levava a que os trabalhadores ficassem condenados à miséria já que
ficavam incapazes de trabalhar e não tinham qualquer suporte social.

Precisamente porque não havia responsabilidade, legalmente, imputável aos empregadores,


na medida em que estes tinham agido de acordo com os melhores padrões de atuação conhecidos,
foi-se consolidando a seguinte ideia: efetivamente não era imputável um sentido de culpa ou
reprovação aos empregadores, porém, estes ao explorarem uma situação arriscada, o uso das
máquinas, devem responder pelos danos por ela causados. Isto é a responsabilidade objetiva, no seu
sentido mais puro.

Mas relativamente à legitimidade da responsabilidade objetiva, não será injusto repercutir


o dano causado pelo agente, quando este atuou desprovido de culpa? O que está em causa na
responsabilidade objetiva é uma responsabilidade moral, no domínio da consciência e da ética do
ordenamento jurídico, à qual se pretende, que o facto dessa responsabilidade moral assente no
mesmo fundamento da responsabilidade com culpa.
Ora, a lógica associada à responsabilidade objetiva é de que se deve imputar a
responsabilidade ao agente que explore e beneficie de uma situação, mesmo quando os danos por
ela causados não sejam da culpa do agente. A objetivação da responsabilidade surge na
redistribuição do peso do risco independentemente da atuação individual.

Esta ideia foi sendo alargada a outras situações, nomeadamente, à circulação automóvel, ou
seja, mesmo que empregue toda a diligência e perícia, pode haver acidentes.

Lógico que, do ponto de vista da construção dogmática, a responsabilidade subjetiva é muito


melhor conseguida e mais consistente, do ponto de vista da justiça distributiva e do ponto de vista
axiológico, na medida em que fazer apelo à culpa é responsabilizar o homem social (é mais justo
responsabilizar o agente que atuou com culpa). Daí que esta seja a regra - um facto só gera
responsabilidade objetiva, quando este se encontre consagrado numa das hipóteses dos artigos
499.º - 510.º CC. Quando a situação não se encaixar numa destas hipóteses, a responsabilidade é
subjetiva.

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Esse regime subsidiário da responsabilidade objetiva vem previsto no artigo 499.º - “são
extensivas aos casos de responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de preceitos legais
em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos”

Análise do Artigo 500.ºCC - é a norma axial pelo que tem especial relevância:

“ 1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de


culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de
indemnizar.

2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário,


ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi
confiada.

3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o


reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será
aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 497.º “

Entendamos primeiro que, no âmbito da responsabilidade objetiva, temos sempre três


intervenientes:

- Comitente (A)
- Comissário (B) - quem desempenha uma tal tarefa em nome do comitente, com
quem estabelece uma relação de comissão.
- Lesado (C)

Por exemplo, A, comitente, encarrega B, comissário, a realizar determinado transporte de


mercadorias, assim sendo, A e B estão numa relação de comissão. De seguida B, de forma
negligente, causa um acidente que provoca danos em C.

Esses danos causados em C vão ser ressarcidos por A, que apesar de ter dado a B as
instruções certas, é chamado a responder independentemente da culpa, visto que a realização do
transporte o beneficiava a si, e já vimos acima, que é quem beneficia da situação que deve responder
pelos danos por ela causados - situação prevista no número 1 deste artigo. Para além disso,
presume-se que o comitente está em melhor posição económica para responder pelos danos, do que
o comissário, daí ser uma responsabilidade de garantia.

O número 2 do artigo 500.º estabelece ainda que o comitente só é obrigado a ressarcir os


danos, se esses danos foram causados pelo comissário, no âmbito de tarefa que lhe foi atribuída
pelo comitente. Para além disso, o comitente só fica obrigado a responder pelos danos quando o
comissário atuou com culpa, dolo ou mera culpa, na prática do facto.

O número 3 do artigo 500.º vem estabelecer uma solução à situação excessivamente


onerosa em que o comitente fica. Portanto, voltando ao exemplo, supondo que o dano equivale a
uma indemnização de 10 000 euros, a responsabilidade de ressarcir esses 10 000 continua a ser de A,
todavia este pode recorrer àquilo a que se designa de Direito de Regresso.

Após A pagar os 10 000 a C, este pode exigir o reembolso dos 10 000 a B, tendo em conta
que foi este quem praticou, culposamente, o facto que gerou o dano. Com o Direito de Regresso, o

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comitente é sempre o responsável pelo ressarcimento dos danos, mas pode invocar o Direito de
Regresso contra o comissário e exigir que este se coloque na posição de devedor perante o
comitente, e lhe reembolse a quantia.

Vejamos agora, dentro da subsecção II do Código Civil, alguns exemplos de responsabilidade


objetiva:

● Artigo 501.º CC

Responsabilidade do Estado e outras Pessoas Coletivas Públicas

O Estado e as Pessoas Coletivas Públicas respondem civilmente pelos danos causados a


terceiros pelos seus órgãos/representantes em atividades de gestão privada.

● Artigo 502.º CC

Responsabilidade por danos causados por Animais

● Artigo 503.º CC

Responsabilidade por Acidentes causados por Veículos

● Artigo 506.º CC

Colisão de Veículos

● Artigo 509.º CC

Danos causados por instalações de Energia Elétrica ou Gás

Em todas estas hipóteses, o agente praticou o facto gerador do dano desprovido de culpa,
mas é-lhe imputável a ele o ressarcimento desses danos.

e) Modalidade da Responsabilidade Civil Extracontratual por Factos Lícitos


A responsabilização por factos lícitos consiste na possibilidade de responsabilização de uma
pessoa por ações que, embora sejam legalmente permitidas ou lícitas, causam danos a terceiros.
Nesta responsabilidade, o agente fica obrigado a reparar um prejuízo que a sua prática ocasiona, não
obstante ele ter agido de forma lícita. O exemplo clássico da responsabilidade por factos lícitos é o
Estado de Necessidade, previsto no artigo 339.º CC:

1. É lícita a ação daquele que destruir ou danificar coisa alheia com o fim de remover o
perigo atual de um dano manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro.

2. O autor da destruição ou do dano é, todavia, obrigado a indemnizar o lesado pelo


prejuízo sofrido, se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso, o tribunal
pode fixar uma indemnização equitativa e condenar nela não só o agente, como aqueles que tiraram
proveito do acto ou contribuíram para o estado de necessidade.

Este número 2 prevê duas hipóteses:

45
● O agente tem culpa na prática do facto, ainda que essa seja lícita e, portanto, é
obrigado a ressarcir os danos que advenham dessa prática.
● O agente não tem culpa na prática do facto, e portanto o tribunal fixa uma
indemnização que não só cabe ao agente pagar, como àqueles que beneficiaram do
estado de necessidade.

Vejamos os seguintes exemplos:

● Artigo 1322.º CC

“O proprietário de enxame de abelhas tem o direito de o perseguir e capturar em prédio


alheio, mas é responsável pelos danos que causar”

Imaginemos que A tem um enxame de abelhas que fogem para o prédio Y onde reside B.
Assim, A vai ao prédio Y tentar capturar o enxame de abelhas e acaba por partir a janela do
apartamento de B, onde estavam as abelhas. A prática de captura do enxame em prédio alheio é
lícita, por força deste artigo, mas apesar da licitude da prática, esta gerou danos a B. Cabe, então, a A
ressarcir esses danos, ainda que a prática tenha sido lícita.

● Artigo 1349.º CC

“1. Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime,
colocar objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros
actos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses actos.

….

3. Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o proprietário tem direito a ser indemnizado
do prejuízo sofrido”

Imaginemos que C está a construir um prédio e precisa de fazer passar os materiais pelo
prédio do lado, contudo, um dos andaimes acaba por provocar danos no prédio do lado. A prática de
fazer passar materiais pelo prédio do lado é lícita, por força deste artigo, contudo qualquer dano que
esses materiais possam gerar, é ressarcido pelo responsável da construção da obra.

Em ambos os exemplos acima descritos, o agente tinha culpa na prática do facto que gerou
danos, e ainda que seja lícita, este é obrigado a ressarcir os danos. Integram-se na hipótese da
primeira parte do número 2 do artigo 339.º.

Contudo, pode acontecer que a prática do facto careça de culpa - Imaginemos que B ia a
conduzir e C atravessa a estrada em momento inoportuno. B sabe que não vai conseguir travar a
tempo, então desvia-se e acaba por embater na loja de F, gerando danos para este. Mais uma vez, a
prática da condução de B era lícita, se se provar que este não excedia os limites de velocidade, e a
culpa do dano gerado não é de B, mas sim de C que atravessou a estrada, quando não devia, fazendo
com que B fosse contra a loja de F.

Neste exemplo, o agente não teve culpa na prática do facto que gerou o dano, já que B só
embateu na loja de F para não atropelar C, não porque o quis fazer. Portanto, temos uma prática
lícita que gerou um dano a terceiros, mas cuja culpa não é imputável ao agente do dano. Integra-se
na hipótese da segunda parte do número 2 do artigo 339.º.

46
f) Modalidade da Responsabilidade Civil Contratual
Até agora analisamos a responsabilidade extracontratual ou delitual, que deriva da
necessidade de ressarcir os danos causados a outra pessoa, mesmo que entre elas não exista um
contrato formal, havendo antes lugar à violação de direitos absolutos.

Porém, a par desta existe a responsabilidade contratual, que deriva da falta de cumprimento
de obrigações emergentes de negócios unilaterais ou de contratos. Estas duas modalidades de
responsabilidade distinguem-se, essencialmente, nos tipos de direitos que são violados e no
incumprimento. A expressão legal da responsabilidade contratual encontra-se no artigos 798.º e
800.º

Artigo 798.º CC. - “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se
responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.

Neste caso, a culpa pelo inadimplemento (incumprimento) da obrigação, no âmbito


contratual, é do devedor. É possível fazer remissão deste artigo para o artigo 483.º - responsabilidade
subjetiva, já que em ambos os casos o agente atuou com culpa, seja na violação de interesses
alheios, seja no incumprimento da obrigação.

Por exemplo, A empresta 100 euros a B e este não restitui a quantia, no prazo previsto e
entra em mora de pagamento. Eventualmente, é declarado incumprimento definitivo da obrigação
de pagamento do indevido por B. Este artigo diz que o autor do incumprimento se torna responsável
pelo prejuízo deste incumprimento, perante o credor.

Distinção entre Mora e Incumprimento Definitivo


Dentro dos vários tipos de obrigações, existem as obrigações com prazo e nestas o devedor é
obrigado a cumprir a sua obrigação até ao dia X. Se o devedor não cumpre o prazo estabelecido no
contrato e, portanto, passa do dia X, este entra em mora, mas só após interpelação pelo credor.

O instituto da interpelação - art. 808.ºCC - ocorre quando o devedor não cumpre com a
obrigação dentro do prazo estabelecido e o credor o interpela para que este cumpra. O devedor só
se constitui em mora após ser interpelado pelo credor, pois antes da interpelação, deve recorrer-se à
via extrajudicial.

Após interpelação, o devedor entra em mora mas se mesmo após ser interpelado, o devedor
não cumpre, este acaba por incorrer em incumprimento definitivo - aqui deixa de haver interesse na
prestação.

Por exemplo, A contrata com B para a realização de um bolo de noiva até dia 7 (contrato de
prestação de serviços). A paga pelo serviço, mas passa o dia 7 e B ainda não prestou o serviço, se
mesmo após intervenção extrajudicial, B não cumpre, A interpela-o e B constitui-se em mora.
Entretanto, A casa-se, e assim B entra em incumprimento definitivo, pois deixa de haver interesse
por A, na entrega do bolo.

Nota: Mora - art. 805.º CC - os juros de mora são os juros que o devedor deve pagar por
estar constituído em mora.

47
Artigo 800.º CC - “O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus
representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais
actos fossem praticados pelo próprio devedor”

Neste caso, a culpa do incumprimento da obrigação é do representante legal do devedor,


contudo é ao devedor a quem se imputa a responsabilidade por incumprimento. É possível fazer
remissão deste artigo para o artigo 500.º - responsabilidade objetiva - , já que em ambos os casos, o
devedor carece de culpa seja na violação de interesses alheios, seja no incumprimento da obrigação,
contudo é este quem tem de assumir o prejuízo causado à outra parte ou ao credor.

Por exemplo, B nomeia C seu procurador para que C celebre um contrato com D, em nome
de B. Dessa forma, C e D celebram um contrato de prestação de bens e serviços, no qual C se
compromete a prestar o serviço e D se compromete a pagar por esse serviço. Todavia, C não presta o
serviço de acordo com o contrato, e incorre em incumprimento da sua obrigação. Apesar da culpa
por incumprimento ser imputável a C, dispõe este artigo que é B o responsável pelos atos de C e,
portanto, é este quem tem que assumir o incumprimento e não C.

A responsabilidade extracontratual distingue-se ainda da responsabilidade contratual, em


quatro aspetos:

1. Prescrição do Prazo
● O artigo 309.º diz-nos que o prazo ordinário de prescrição do cumprimento da
obrigação é de 20 anos - r. contratual.
● O artigo 498.º diz-nos que o prazo ordinário de prescrição da indemnização é de 3
anos - r. extracontratual.
2. Presunção de Culpa
● Diz-nos o art. 799.º que, no caso de incumprimento da obrigação, presume-se que a
culpa é do devedor e é este quem tem que provar que cumpriu (r. contratual) -
inversão do ónus da prova (art. 344.º).
● Na r. extracontratual, é quem alega ter visto o seu direito absoluto violado que tem
que fazer prova dessa violação, isto é, presume-se ius tantum que quem violou esse
direito, não o fez - ónus da prova (art. 572.º).

Em ambos os casos, está em causa uma presunção ius tantum, ou seja, suscetível de prova
em contrário.

3. Incumprimento
4. Direitos Violados
● Na responsabilidade contratual, violam-se direitos relativos.
● Na responsabilidade extracontratual, violam-se direitos absolutos.

Responsabilidade Civil pelas Pessoas Coletivas

Pode ainda haver lugar à responsabilidade civil por pessoas coletivas, quando o autor se vê
lesado por atos praticados pela pessoa coletiva - art. 165.º CC.

48
5. Reconhecimento da Propriedade Privada

O reconhecimento da propriedade privada e da instituição da família não podem ser


considerados princípios basilares do direito civil, mas são antes linhas de força, na medida em que
não são condição de existência do Direito Civil, mas constituem pilares importantes do mesmo. Tanto
a propriedade como a família têm conhecido ao longo da história várias modulações.

Reconhecimento da Propriedade – atualmente o direito à propriedade é um direito


relativizado e constitucionalmente protegido, no artigo 62.º CRP. No princípio do reconhecimento da
propriedade privada, a regra é a não limitação dos poderes do proprietário, senão através das
concretas restrições pela lei impostas (ius utendi, fruendi e abutendi).

Portanto, a todo o direito subjetivo correspondem deveres - por exemplo, o proprietário de


uma empresa, apesar de deter o direito de propriedade sobre essa empresa, este não pode fazer
tudo o que quiser com a empresa, estando sempre sujeito aos seus deveres e obrigações.

O Código Civil não define o direito de propriedade, contudo caracteriza-o, nos termos do
artigo 1305.º CC - “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e
disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições
por ela impostas”.

Reconhecimento da Instituição da Família – Tempos houve em que pertencer a uma certa


família era pertencer à comunidade e ter acesso a bens, mas hoje a família é um conceito muito mais
apertado, reduzido à família nuclear. O casamento, por seu turno, também tem vindo a sofrer
modificações muito acentuadas, sentando-se hoje sobretudo numa comunidade de vida dos
cônjuges.

Existem alguns princípios, legalmente consagrados na CRP, concernentes à família:

● Direito à Celebração do Casamento (art 36.º/1 2ª parte)


● Direito a Constituir Família (art 36.º/1 1ª parte)
● Admissibilidade dos Cônjuges (art 36.º/2)
● Igualdade dos Cônjuges (art 36.º/3)

Teoria Geral da Relação Jurídica


A relação jurídica é o critério uniforme e neutro que permite a aplicação do nosso
ordenamento jurídico, um sistema lógico e racionalista, enquanto conjunto de normas que
disciplinam um certo tipo de relações. A relação jurídica, em sentido operativo, pode descrever-se
em:

● Sentido Lato (lato sensu): é toda a relação da vida social relevante para o Direito e
disciplinada por este, produtiva de efeitos jurídicos.
● Sentido Restrito (stricto sensu): é toda a relação da vida social também disciplinada pelo
Direito, correspondente ao vínculo jurídico, no qual se atribui a uma das partes um direito
subjetivo, e se impõe à contraparte um dever jurídico (credor vs devedor).

Esta pode ainda ser avaliada de 2 formas:

49
● Forma Estática - corresponde às posições jurídicas das partes (credor-devedor,
marido-mulher).
● Forma Dinâmica - corresponde ao programa contratual entre as partes (duração do negócio).

A relação jurídica é, essencialmente, uma relação da vida social disciplinada pelo direito,
produtora de consequências jurídicas.

No âmbito do Direito Subjetivo em sentido estrito, o Dr. Orlando de Carvalho defende, ainda,
que a relação jurídica pode ser perspetivada, de acordo com o critério funcional e o critério
estrutural.

Critério Funcional
A todos os indivíduos é reconhecido o poder de autogestão da sua esfera de interesses -
poder jurisgénico. Por outras palavras, o poder jurisgénico corresponde à autonomia do sujeito em
criar direito na sua esfera jurídica, consoante o seu interesse em vista - ex. A e B celebram um
contrato de arrendamento e estipulam neste contrato todas as disposições que estes considerem
adequadas.

Está em causa a liberdade contratual, enquanto corolário da autonomia privada, e a


liberdade de modelação do conteúdo contratual. As partes, autonomamente, celebraram o contrato,
produtor de efeitos jurídicos, no qual fixaram todos os pressupostos necessários. Exerceram o seu
poder jurisgénico.

Segundo o critério funcional, toda a relação jurídica funda a sua juridicidade no poder de
autodeterminação, reconhecido a qualquer indivíduo, que o possibilita de gerir a sua esfera jurídica.
Por outras palavras, este poder jurisgénico, supradescrito, é condição de existência da relação
jurídica, na medida em que é este que legitima o valor jurídico de todas as relações.

Vertentes do Poder de Autodeterminação

1.1 A esfera de um indivíduo não se confunde com a esfera do outro

A cada um só é lícito dispor dos interesses que se inscrevam na sua esfera de interesses.
Portanto, apesar de se admitir um ponto de interseção, por exemplo, quando em causa estão
interesses do Estado que, inevitavelmente, intervêm na esfera pessoal de cada um, o poder de
autogestão do sujeito A só incide em interesses da esfera de interesses do sujeito A.

1.2 Função Positiva

O poder de autogestão visa a prossecução dos interesses do indivíduo, e não a negação


desses interesses.

1.3 Caráter Sancionatório

As partes detém autonomia na autodeterminação dos seus interesses e o modo de


prossecução desses interesses, contudo este é um poder secundum legem. Portanto, as partes têm o
poder de criação de Direito na sua esfera jurídica, mas essa é uma criação condicionada pelos limites
da lei, cuja violação desencadeará sanção.

50
Por exemplo, A e B celebram um contrato de mútuo, através do qual A empresta
determinada quantia a B. B compromete-se, contudo, à devolução da quantia prestada. Se
porventura, não houver devolução, há lugar à sanção pelo incumprimento de B. Assim, a sanção é
um dos elementos da relação jurídica.

1.4 Facto Jurídico

A relação jurídica não surge espontaneamente, mas de um facto jurídico. Por exemplo, A e B
celebram um contrato de compra e venda, então esse mesmo contrato é o facto jurídico que dará
origem à relação jurídica de compra e venda. O facto jurídico, enquanto a sua causa, é também um
dos elementos da relação jurídica.

Em suma, todos os sujeitos visam alcançar os seus interesses, e com destino a tal, criam
relações jurídicas com outros sujeitos, através do seu poder jurisgénico.

Critério Estrutural
O critério estrutural converge com o critério funcional, no pressuposto de que a relação
jurídica se funda no poder de autodeterminação, conferido à pessoa jurídica, das consequências do
direito.

O que efetivamente diverge entre estes dois critérios é que (1) passámos de designar o
sujeito como indivíduo, mas sim como pessoa jurídica. Na prossecução de tutela dos interesses do
indivíduo na relação jurídica, urge que estes sejam designados de pessoas jurídicas.

Além disso, (2) deixamos de falar de um poder de autodeterminar a esfera de interesses,


para um poder de autodeterminar as consequências do direito.

Sem visar negar a relação jurídica, este critério admite que o direito possa ter que introduzir
algumas alterações ao nível da regulamentação de relações, que até agora eram vistas apenas como
relações humanas.

O critério funcional funda-se, essencialmente, no poder que o indivíduo possui na definição


dos seus interesses e na forma como esses interesses legitimam o seu poder de autodeterminação,
que gera a relação jurídica. Contudo, se o interesse aqui se apresenta como uma conditio sine qua
non desse poder, ou seja, sem interesse não há legitimidade à existência de uma relação jurídica,
aniquila-se toda a autonomia cada vez que se tem de se proceder à prova de existência de um
interesse que justifique aquela relação.

Dessa forma, o critério estrutural reconhece aos indivíduos um poder de autodeterminação


arbitrário, ou seja, presume que o poder é usado com correção, sem que haja necessidade de um
interesse que o justifique. Esta é a grande pedra de toque entre os dois poderes.

Para concluir, o conceito estrutural não anula o conceito funcional da relação jurídica, este
está sempre latente como veremos mais à frente no abuso de direito e nos poderes-deveres.

1.Elementos da Relação Jurídica


1. Sujeitos
2. Objeto
3. Facto Jurídico

51
4. Garantia

A partir destes quatro elementos, chegamos a posições estruturais

Direito Subjetivo (componente ativa) → Dever Jurídico / Sujeição (componente passiva)

O Direito Subjetivo corresponde a uma posição de prevalência, reconhecido pelo


ordenamento jurídico, face a um Estado de Sujeição correspondente a uma posição de dependência.

Agora, no âmbito do direito subjetivo em sentido amplo, o Dr. Orlando Carvalho faz a
seguinte distinção do direito subjetivo, enquanto:

1. Mecanismo de determinação autónoma das consequências do direito - autonomia

Até agora falamos do direito subjetivo enquanto meio de criação de vínculos obrigacionais
na esfera própria do indivíduo, consoante os seus interesses - se eu quero comprar o terreno X a B,
celebro um contrato de compra e venda com B e vinculo-me à obrigação de pagamento.

2. Mecanismo de tutela

Para além disso, o direito subjetivo, como defende o Dr. Orlando Carvalho, pode também ser
um mecanismo de tutela, na medida em que confere uma situação de poder a quem está na posse
do direito subjetivo - no contrato de compra e venda com B, se B incumprir no contrato, eu posso
judicialmente exigir esse cumprimento, porque tenho o direito à entrega da coisa (terreno).

Portanto, aqui já não está apenas em causa a minha esfera jurídica, mas a imposição de
deveres na esfera jurídica de outrem, B. Ora, se alguém é titular de um direito subjetivo, este tem
que ter limites. Esses podem ser:

Limites Internos

Os limites internos, ou seja, dentro da estrutura do direito, podem emergir de três


elementos: lei, boa-fé e os bons costumes. Os dois últimos inserem-se ainda nos limites internos,
mas com uma formulação diferente da normatividade positiva, tendo um conteúdo mais fluído, pois
são princípios encerrados em cláusulas gerais, pelo que têm uma concretização menor.

1. Lei

O sujeito é titular de um direito subjetivo que lhe confere um poder de autodeterminação,


contudo este só pode autodeterminar até que a lei o consinta. Por exemplo, as pessoas coletivas
existem para determinadas finalidades e só podem atuar na adoção de medidas que visem
concretizar esses fins.

2. Boa-fé

A honestidade, correção e lealdade são as linhas da boa-fé, e quando um sujeito não age de
acordo com as mesmas, atua de má-fé. Podemos distinguir entre:

52
- Boa-Fé Objetiva - a boa-fé em sentido objetivo funciona enquanto padrão de conduta, isto é,
aquilo que nós consideramos que seja uma atuação de boa-fé no caso concreto.
- Boa-Fé Subjetiva - a boa-fé em sentido subjetivo funciona enquanto estado de convicção
individual.

Vejamos o seguinte exemplo:

O artigo 291.º/3 estabelece que quando o sujeito celebra um contrato, que este não sabia
que era inválido, atuou de boa-fé - a boa-fé aqui funciona em sentido subjetivo, porque o sujeito
desconhecia do vício.

Para que se possa falar de boa-fé é necessário que haja pelos menos 2 sujeitos envolvidos,
porque o princípio da boa-fé é um princípio regulador entre pessoas que assenta numa relação de
confiança que pressupõe a expectativa de uma conduta. Como é que eu posso frustrar essa
expectativa, se não há sujeito que a crie?

Se existe a frustração de expectativas, existe lesão, se existe lesão, existe dano.


Tendencialmente, se há dano, há responsabilidade por ilícito - esta é sanção quando o agente atua
de má-fé. Mais uma vez, a boa-fé difere aqui dos bons costumes, na medida em que a violação do
princípio da boa-fé não afeta a validade do direito, ao passo que a violação dos bons costumes
desencadeia invalidade do direito e, ainda, responsabilidade.

Como é que a boa-fé surge, então, como limite interno? Diz-se que esta pressupõe um limite
à autodeterminação individual, pois ainda não há contrato, mas já existe uma imposição de atuação
de acordo com os padrões da boa-fé, de acordo com o artigo 227º CC.

Artigo 227º CC -“Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos
preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder
pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

Neste artigo podemos fazer uma remissão para o artigo 498º CC - o dever de indemnizar o
lesado prescreve após decorrerem 3 anos desde que o lesado tomou conhecimento da violação do
seu direito.

3. Bons Costumes

Os bons costumes são um padrão de conduta ponderada, nos quais se intercetam o direito e
a moral. São os ditames da moral que prevalecem numa concreta sociedade e que, nessa medida,
constituem um limite à liberdade individual, mesmo que não haja lesão direta de alguém. São
conceitos evolutivos, na medida em que aquilo que hoje é aceitável e permitido, podia não ser aquilo
que era aceitável e permitido, no passado.

Aquilo que distingue os bons costumes da boa fé é que nos bons costumes basta um
indivíduo para que se possa ferir a moral pública, ao passo que a boa-fé exige sempre uma interação.
Uma parte tem que ter uma expectativa e a outra tem que frustrar essa expectativa para se
considerar que o agente atuou de má-fé. Se uma das partes não tiver uma expectativa criada, então
a contraparte não pode frustrar nada, porque não existe expectativa, em primeiro lugar.

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Por exemplo, se A publicar um anúncio a publicitar uma venda de órgãos humanos está
diretamente a atentar contra os bons costumes, portanto, basta um indivíduo para que se possa ferir
a moral pública.

Um ato atentatório dos bons costumes é nulo - artigo 280º/2 CC - mas para além disso, um
ato que atente contra os bons costumes também pode gerar responsabilidade.

Por exemplo, A e B celebraram um contrato convictos de que este era válido, contudo o seu
programa contratual continha algumas cláusulas contrárias aos bons costumes. Com base nessas
cláusulas, A comprou terrenos - justapõe-se a nulidade e a responsabilidade, pelas despesas não
ressarcidas que A teve. Apesar da invalidade, o próprio curso das coisas pode levar à existência de
danos, ou seja, para além da nulidade acrescenta-se a responsabilidade com vista ao ressarcimento
desses danos.

Tanto o conceito de boa-fé como o conceito de bons costumes se caracterizam pela sua
indefinição e ganham relevância em circunstancialismos concretos. Como diz o Dr. Orlando Carvalho,
são normas em branco.

Limites Externos

O direito subjetivo é o instrumento de satisfação de um dado interesse, não o interesse em


si. O uso de direito é ilegítimo sempre que o titular desse direito, em vez de prosseguir um interesse
próprio, o utilizar para lesar o direito de outrem.

Portanto, quando falamos de limites externos, falamos de Abuso de Direito, já que se há um


direito, pode haver abuso desse direito.

Esta figura foi contestada no passado pela sua impossibilidade lógica, na medida em que se
defendia que se há um direito, então não pode haver limites a esse direito. Vejamos a evolução do
conceito, imaginemos que numa relação de vizinhança, A e B vivem em dois prédios diferentes, mas
colados um ao outro.

Havia um declive entre os dois prédios e, por força desse desnível, um deles abrindo o poço,
conseguiu evitar que a água chegasse ao poço do vizinho. Assim, A resolveu abrir um poço na
extremidade do seu terreno, com a única finalidade de secar a água do prédio do lado.

A abertura do poço encontrava-se na propriedade de A, e diz a lei que “quem tem o direito
de propriedade, tem o direito a explorar essa propriedade”. Contudo, a única finalidade de A a atuar
daquela forma era prejudicar a contraparte.

Desta forma, o tribunal defrontou-se com este problema: dentro do quadro de direito de
propriedade, houve um resultado desconforme com a estrutura do direito de propriedade. Assim, o
Abuso de Direito foi, pela primeira vez, invocado.

Temos um sujeito que tem um direito, o direito de propriedade, mas cujo exercício é abusivo,
assim há titularidade do direito de A, contudo este não o pode exercer com a finalidade de prejudicar
B. O que se reprime no abuso de direito é a vantagem que o lesante adquire ao exercer
abusivamente o seu direito sobre outrem.

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O direito subjetivo é um instrumento da autodeterminação individual, visto que quando se
exerce esse direito para lá da função que lhe é atribuída, a satisfação de um interesse, há uma
desconformidade.

É no artigo 334º CC que o Abuso de Direito encontra a sua expressão legal - “É ilegítimo o
exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé,
pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Contudo, é uma disposição muito criticada quanto à sua precisão técnica, na medida em que
é dissonante do ponto de vista lógico com a estrutura do código na sua globalidade, o que traz
problemas hermenêuticos e de coerência.

O exercício do abuso de direito é ilegítimo, mas o Código Civil não faz menção a
ilegitimidades e as suas respetivas sanções. Aquilo que nós sabemos é que a ilegitimidade do
exercício abusivo corresponde a uma ilicitude, e esta gera, por regra, a nulidade. Portanto, o
exercício abusivo de um direito gera a nulidade do negócio jurídico.

Releva ainda mencionar que só se conclui a efetivação de existência de abuso de direito


quando há uma consequência danosa para o lesado. Ainda no exemplo acima, a atuação de A só
seria considerada abusiva se B tivesse ficado sem acesso a água.

Em matéria de funcionamento lógico do sistema, o abuso de direito é a última ratio, ou seja


só recorremos a esta cláusula, quando todos os outros instrumentos anteriores utilizáveis falham em
dar resposta.

2. Modalidades do Abuso de Direito


- Venire Contra Factum Proprium

O venire contra factum proprium é a modalidade mais grave do Abuso de Direito que ocorre
quando a criação da confiança e a frustração da confiança são imputáveis ao mesmo sujeito.
Ninguém pode se comportar contra os seus próprios atos, quando essa mudança de comportamento
seja manifestamente abusiva.

Vejamos o seguinte exemplo - a compra e venda de imóveis está sujeita a forma, escritura
pública ou documento particular autenticado, por força do artigo 875.º CC. Imaginemos que A e B
celebram um contrato de compra e venda e A, vendedor, convence B de que a venda do terreno X
não está sujeita a forma, e podem as partes apenas acordar verbalmente a sua venda. Assim, eles
celebram o contrato, mas uns anos mais tarde, há uma alteração das circunstâncias e o terreno X
valoriza extraordinariamente.

Agora A intenta uma ação, invocando a nulidade daquele contrato de compra e venda, por
inobservância de forma. Portanto, o contrato é efetivamente nulo e sempre o foi, pois a observância
de forma é condição da sua validade e, neste caso, não foi observada. Todavia, A nunca poderia
invocar a nulidade do negócio, se foi ele a causa desta nulidade, na medida em que foi A quem
convenceu B da desnecessidade de escritura pública, facto que levou à nulidade.

Pressupostos de verificação - para que se possa alegar que está em causa esta modalidade
de abuso de direito, é necessária a verificação de certos requisitos.

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Segundo a conceção do Dr. Batista Machado

● Existência de um comportamento anterior do agente suscetível de fundar uma situação


objetiva de confiança - o ponto de partida vai ser a conduta do sujeito e é dessa conduta que
vai erradicar a confiança futura.
● Investimento da confiança e irreversibilidade do investimento, ou seja, da convicção de que o
sujeito tinha aquele direito, sendo que investiu com base nessa convicção.
● Existência de boa-fé pelo confiante - o lesado tinha que ter acreditado na pessoa que
frustrou a sua confiança.

O exemplo clássico neste último requisito seria a incapacidade de menores na celebração de


negócios jurídicos - o menor não pode invocar a anulabilidade de um ato que este praticou se ele
sabia que não tinha legitimidade para tal.

Segundo a conceção do Dr. Menezes Cordeiro

● Existência de um comportamento lícito do agente que frustrou a confiança.


● Criação de uma expectativa na contraparte.
● Existência de um comportamento contraditório imputável ao agente que frustrou a
confiança.
● Existência de um nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o investimento que
nela assentou.

- Inalegabilidade Formal

A inalegabilidade formal consiste no desencadeamento de abuso por invocação de um dado


direito. Segundo o Dr Menezes Cordeiro, existem 3 pressupostos que carecem de verificação para
que haja lugar à inalegabilidade formal:

● Devem estar em jogo apenas interesses das partes envolvidas e não, também, interesses de
terceiros de boa-fé.
● A situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar.
● O investimento de confiança deve ser sensível e dificilmente assegurado por outra via.

Note-se que estes são requisitos que acrescem aos requisitos supra mencionados.

Por exemplo, A é cantora e celebrou um contrato com o Hotel X , na qual se comprometeu a


prestar um concerto dia 9, mas acontece que nesse dia, o seu filho, B, ficou gravemente doente.
Efetivamente, incumbe a A a prestação da sua obrigação e, de um modo abstrato, o Hotel X poderia
invocar o seu direito à prestação do serviço ou exigir uma indemnização. Todavia, o interesse de A,
tomar conta de B, deve prevalecer face ao interesse do Hotel X e seria abuso de direito permitir que
o hotel obrigasse A a prestar aquele serviço, dadas as circunstâncias.

Outro exemplo, A celebra com B um contrato de compra e venda de um prédio, e A


convenceu B de que este pode ser celebrado oralmente. Claro está que o negócio é nulo, mas
passados 40 anos e A invoca a nulidade do negócio, mas não pode, pois foi ele o causante da
nulidade. A inalegabilidade formal aqui é o que impede que A possa invocar a nulidade e proteger os
interesses de B.

- Supressio

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Há lugar à supressio quando existe uma abstenção prolongada que cria uma expectativa
eventualmente frustrada. Por exemplo, A e B têm uma sociedade e, nessa sociedade, é possível a
exclusão de sócios, devidamente fundamentada. Então A tem o direito de excluir o sócio B, mas não
o faz. Acontece que B investe muito dinheiro na sociedade,e após esse investimento, A exclui B da
sociedade.

Aqui temos um caso onde A criou, durante anos, uma convicção em B de que não iria exercer
o seu direito de o excluir, e depois frustrou essa convicção.

- Atos Emulativos

Nos atos emulativos, não existe propriamente um direito a ser exercido, pois os direitos
devem ser exercidos com o mínimo de dano possível a terceiros. Há lugar a um ato emulativo
quando:

● Temos uma pessoa a exercer um direito apenas com a intenção de prejudicar outrem.
● O exercício do direito não traz qualquer vantagem para o titular.
● O exercício do direito até traz vantagens para o particular, mas é um exercício
desproporcional - o seu exercício é mais desvantajoso para terceiros do que é vantajoso para
o titular.

Por exemplo, A e B celebram um contrato-promessa. Mas C, com o intuito de prejudicar B,


diz a A para não celebrar o contrato definitivo com B e paga-lhe um montante superior pelo
incumprimento. Com esta atitude, C não está a exercer nenhum direito nem a adquirir nenhuma
vantagem, apenas está a afetar o direito ao crédito de B.

- Desequilíbrio

Há lugar ao desequilíbrio quando alguém é titular de um direito, do qual vai obter um


benefício pequeno e que vai causar um sacrifício grande à contraparte. Aqui releva o exemplo acima
dado - A é cantora e celebrou um contrato com o Hotel X , na qual se comprometeu a prestar um
concerto dia 9, e nesse dia o seu filho, B, ficou gravemente doente.

Efetivamente, incumbe a A a prestação da sua obrigação e, de um modo abstrato, o Hotel X


poderia invocar o seu direito à prestação do serviço ou exigir uma indemnização. Contudo, a
exigência de cumprimento da obrigação ia gerar um benefício pequeno para o Hotel X e,
simultaneamente, ia gerar um sacrifício muito grande para A.

- Tu Quoque

Quem atua de forma ilícita não pode fazer-se valer da sanção aplicada àquele que atua,
igualmente, de forma ilícita. Por exemplo, A não paga as quotas do condomínio há 10 anos, mas o
condomínio está obrigado a realizar obras no prédio, contudo não as realiza.

A atua ilicitamente, porque não cumpre com a obrigação de pagamento das quotas e o
condomínio atua ilicitamente, porque não cumpre com a obrigação de realização das obras. A não
pode exigir ao condomínio a realização das obras, se não paga as quotas do condomínio.

Tem que haver uma ligação entre os dois atos ilícitos, neste caso o condomínio não realiza as
obras porque A não paga as quotas.

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Direito Subjetivo
O Direito é um direito congénito da relação jurídica concreta, ou seja, este só se manifesta
após a criação da relação jurídica. Podemos ainda definir direito subjetivo, em Sentido Estrito e em
Sentido Amplo.
Por exemplo, A e B celebram um contrato de compra e venda. A, enquanto credor, tem o
direito subjetivo de poder exigir a entrega da coisa vendida a B, que enquanto devedor, tem o dever
jurídico de entregar a coisa vendida.

Em sentido estrito, como refere o Dr. Orlando de Carvalho, é o mecanismo de


regulamentação, adotado pelo Direito, que consiste na concreta situação de poder, que faculta a
uma pessoa em sentido jurídico exigir ou pretender de outrém um determinado comportamento,
que pode ser positivo, ação ou negativo, omissão. Se alguém é titular de um direito subjetivo em
sentido estrito, impende na contraparte o dever de corresponder a esse direito - o dever jurídico.

Distinção entre Ação ou Omissão

● O credor exige a outrem o pagamento da dívida, logo exige uma ação.


● O comerciante exige ao seu antigo empregado que não abra um estabelecimento
concorrente no edifício ao lado, logo exige uma omissão.

Diferença entre Exigir e Pretender


Na maioria dos casos, o titular do direito pode, se a contraparte incorrer em incumprimento,
recorrer aos tribunais e exigir medidas sancionatórias relativamente ao incumprimento. Nestes
casos, o titular exige, mas há uma percentagem de casos em que existe apenas apenas o poder de
pretender - é o caso das obrigações naturais.

As obrigações naturais são a exceção, enquanto que as obrigações civis são o regime-regra.
O que caracteriza esta modalidade de obrigação é a sua espontaneidade e o facto de serem
desprovidas de coercibilidade judicial - encontram a sua base legal no artigo 402.º ss CC.

Nas obrigações naturais, o credor tem direito a reter o que foi pago (solutio retentio) e exclui,
consequentemente, o direito do devedor à repetição do indevido (condictio indebiti). Continuam, no
entanto, a ser designadas de obrigação, porque mesmo desprovidas da mesma capacidade
sancionatória, estas têm elementos estruturais da obrigação civil - princípio da não repetição do
indevido.

Esta obrigação é espontânea, contudo se o devedor pagar, o credor tem a legitimidade de


fazer sua a prestação (art. 403.º CC). Por exemplo, A e B celebram um contrato de mútuo de 100 000
euros, contudo a dívida não foi cobrada e decorrem 20 anos. Mais tarde, B paga a quantia a A, mas a
dívida estava prescrita, o que significa que o credor, A, não podia exigir, apenas podia pretender o
cumprimento da mesma. Contudo, se B pagou, A tem o direito de reter o montante e B não pode
exigir a sua repetição.

Exemplos de Obrigações Naturais

● Artigo 304.º/1 e 2

Consagra a dívida prescrita.

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● Artigo 1245º CC

Este artigo refere-se ao contrato de jogo e aposta. Por norma, estes não são sequer
contratos lícitos, contudo se o forem, não são fonte de obrigações civis mas enquadram-se no âmbito
das obrigações naturais.

● Artigo 495º/3 CC

Este artigo refere-se à prestação de alimentos e diz-nos que o responsável pela morte do
lesado obriga-se a indemnizar aqueles que do lesado exigiam alimentos ou a quem o lesado prestava
no cumprimento de uma obrigação natural. Ou seja, porque a prestação de alimentos aos filhos nem
sempre é judicialmente imposto ao sujeito, esta é considerada uma Obrigação Natural que o sujeito
cumpre num dever de justiça.

Do ponto de vista Penal, se a figura que cumpria esta obrigação natural morrer por culpa de
outrem, o culpado da lesão é obrigado a indemnizar aqueles que usufruiam da prestação de
alimentos do lesado.

● Artigo 1895º/2 CC

Este artigo consagra os bens cuja propriedade pertence aos pais. Portanto, diz-nos que os
bens, fruto do trabalho do filho menor, que viva com os pais, pertencem aos pais. No entanto, os pais
têm o dever de compensar os filhos pelo seu trabalho. Esse dever é uma obrigação natural, como
refere a parte final do número 2 deste artigo “não pode, todavia, ser judicialmente exigido”.

Em sentido amplo (Direito Potestativo), como refere o Dr. Orlando de Carvalho, o direito
subjetivo em sentido amplo é o mecanismo de regulamentação, adotado pelo direito, que consiste
na concreta situação de poder que faculta a uma pessoa em sentido jurídico, por ato de vontade seu
/ per si, produzir determinados efeitos jurídicos que se impõem inelutavelmente a outra pessoa.

Por outras palavras, corresponde ao poder que é concedido ao titular do direito à produção
dos efeitos jurídicos, apenas mediante declaração do titular, isto é, só por declaração de vontade do
titular, produzem-se os efeitos na esfera jurídica de outrém.

A contraparte encontra-se numa posição de sujeição, pois não há como escapar aos efeitos
queridos pela contraparte. Enquanto que no dever jurídico, a parte obrigada a adotar o
comportamento pode não adotá-lo, sujeitando-se às consequências, na sujeição, assim que o direito
potestativo é exercido, ele produz os efeitos - ex. divórcio, constituição de servidão, resolução do
contrato etc.

Se basta a vontade do sujeito para se produzirem efeitos, no reverso da situação temos uma
situação de sujeição, isto, porque não há como escapar à produção de efeitos queridos pela outra
parte, não há margem para o cumprimento ou não. Enquanto no dever jurídico, a pessoa pode optar
por não realizar o comportamento, tem uma manobra de escola, mesmo sujeitando-se às
consequências, já o direito potestativo produz logo os seus efeitos.

Acabam por introduzir uma modificação jurídica, alterando o status quo jurídico, pois
alteram as relações jurídicas pré-existentes. O poder é concedido ao titular para que ele produza um
efeito jurídico mediante simples declaração de vontade ou integrando essa declaração de vontade
com uma decisão judicial.

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Isto significa que, no lado passivo do direito, está uma situação de sujeição, porque a
contraparte tem que suportar o exercício do direito, ou seja, as consequências jurídicas que o
exercício do direito potestativo implica, sem poder fazer nada para o evitar. Os direitos potestativos
podem, ainda, ser:

● Constitutivos - constituem relações jurídicas;

Por exemplo, temos dois prédios contíguos, onde um deles é encravado, ou seja, não tem
acesso direto à via pública. Quando isso acontece, há direito à constituição de uma servidão de um
direito de passagem (art 1550.º CC) - o prédio vizinho torna-se o prédio serviente e o prédio que
pede a servidão de passagem é o prédio dominante.

Este direito à constituição da servidão é um direito potestativo do titular do prédio


dominante (quem pede a servidão de passagem), porque basta a sua vontade para surja na ordem
jurídica, esse direito. O prédio vizinho pode violar o direito de passagem do prédio dominante se
simplesmente não o deixar os vizinhos passarem para a via pública, mas a servidão de um direito de
passagem não é passível de ser violada.

É ainda exemplo de direitos potestativos constitutivos o artigo 2050.º CC.

● Modificativos - modificam uma relação jurídica que já existe e que vai subsistir, embora
noutros termos diferentes daqueles em que foi criada.

Imaginemos que B decide arranjar o prédio serviente e convém-lhe que A, do prédio


dominante, passe por outro lado, que não o inicial, podendo fazê-lo nos termos do artigo 1568.º CC.
Assim, basta a vontade unilateral de B, ao querer alterar a trajetória da servidão, não sendo
necessário o consentimento de A, que tem de suportar as consequências jurídicas deste direito
potestativo.

São ainda exemplos de direitos potestativos modificativos os arts. 1767.º, 1794.º, 252.º/2,
283.º/1, 437.º, 1118.º, 1482.º e 2168.º CC.

● Extintivos - extinguem relações jurídicas pré-existentes

Inserem-se os direitos de revogação, denúncia, renúncia, resolução, invocação de invalidade,


rejeição, remição, entre outros. Por exemplo, se entretanto é construída uma nova via pública que
passa a dar acesso direto ao prédio serviente, a servidão extingue-se por desnecessidade (art
1569.º/2 CC).

É preferível existirem poucas situações de partilha de poderes, logo, existindo a possibilidade


de reconstituir a unidade da titularidade do direito, é essa a hipótese que a ordem jurídica prefere.

São ainda exemplos de direitos potestativos extintivos os arts. 793.º/2, 801.º/2, 802.º,
1047.º, 1093.º, 1050.º, 927.º, 891.º, 1122.º/2, 1140.º, 1150.º, 1222.º, 1235.º, 1242.º, 81.º/2, 265.º/2
e 3, 448.º, 970.º, 1170.º, 1705.º/2, 1765.º, 2168.º e ss., 447.º, 1054.º, 1095.º, 1096.º e ss., 1215.º/2,
1229.º, 1002.º, 1003.º e ss. e o 1569.º.

Poderes Deveres / Poderes Funcionais


Diz-nos o Dr. Carlos Alberto da Mota Pinto que só nos deparamos com um direito subjetivo
quando o exercício do poder jurídico respetivo está dependente da vontade do seu titular, isto é, o

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sujeito do direito subjetivo é livre de o exercer ou não. Por falta dessa liberdade de atuação, por
existir uma vinculação ao exercício dos poderes respectivos, não são autênticos direitos subjetivos os
chamados poderes deveres ou poderes funcionais, como por exemplo, os poderes integrados no
poder paternal ou na tutela. Quer isto dizer que estes poderes não podem ser exercidos se o seu
titular quiser e como quiser, mas devem ser exercidos do modo exigido pela função do direito.

Estes poderes/deveres são posições jurídicas que se traduzem na atribuição de um poder a


um sujeito para tutela de interesse alheio. O Dr. Orlando de Carvalho compara os poderes deveres
aos poderes da administração pública, na medida em que esta atua sempre num interesse alheio ao
seu, um interesse público.

O caso clássico dos poderes deveres é a parentalidade - artigo 1878.º CC.

Aqui existe desconformidade na titularidade do direito e na prossecução daquele interesse,


porque os pais são os titulares desses poderes deveres sobre os filhos, contudo, apesar dessa
titularidade, atuam sempre no interesse alheio desses filhos. Na parentalidade, o interesse do titular
do direito e o interesse alheio tendem a compenetrar-se devido aos laços afetivos que se presumem
que existam. A lei confia nessa presunção de que aquele titular satisfará da melhor forma o interesse
alheio.

No abuso de direito, também existe uma desconformidade entre o direito e o interesse,


todavia no abuso de direito, essa desconformidade está na mão do titular e é ilícita, ao passo que
nos poderes deveres essa desconformidade é lícita mas só o é, se o direito for exercido com vista ao
interesse em causa.

Figuras que se aproximam, mas não se confundem com Deveres

1. Ónus

Os ónus não são deveres, no entanto vinculam a necessidade de adotar um comportamento


para a concretização de um interesse próprio. Não é um dever, porque a não adoção desse
comportamento, não leva a nenhuma sanção, o onerado apenas deixa de ter uma vantagem - caso
do Ónus da Prova (art 342.º - art. 572.º).

Por exemplo, A sente-se lesado por B e reclama em tribunal uma indemnização (direito à
indemnização), invocando os factos constituídos do direito alegado, isto é, todos os elementos
probatórios que consubstanciam a existência daquele direito. A não é obrigado a fornecer esses
elementos, mas se não o fizer deixa de alcançar o seu objetivo: a prova do seu direito.

Este ónus pode ter flutuações - Inversão do Ónus da Prova (art 344.º). Ainda no mesmo
exemplo, A deixa de ter que provar os elementos constitutivos do direito, porque tem a seu favor
uma presunção. O ónus da prova aqui recai sobre B: presume-se que o direito de A já existe e é B
quem tem que apresentar elementos que o contradigam.

Faculdades Jurídicas Primárias e Faculdades Jurídicas Secundárias

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O direito subjetivo em sentido amplo (direitos potestativos), a montante, tem as faculdades
em que se desdobra o poder de autodeterminação, e a jusante, tem as faculdades que também elas
compõem o direito de que se é titular.

Por exemplo, o direito de propriedade existe numa esfera jurídica a partir do momento que
há uma compra, porém, antes de comprar, existe abstratamente o direito de comprar. Pelo facto de
ser proprietário, existem muitas faculdades jurídicas secundárias que daí derivam - por exemplo,
poder comprar um imóvel é a faculdade primária e o poder de arrendar o imóvel sobre o qual eu
sou titular do direito de propriedade, é uma das faculdades secundárias.

Então, pode-se dizer que:

→ As faculdades primárias precedem a relação jurídica e a constituição do direito subjetivo (são um


prius do direito subjetivo) e emanam do poder de autodeterminação / jurisgénico.

→ As faculdades secundárias sucedem a relação jurídica e não emanam de um poder de


autodeterminação, mas das faculdades jurídicas primárias (são um posterius do direito subjetivo).

Note-se ainda que há figuras que não se incluem em nenhuma das faculdades como a
constituição de uma servidão legal, direito à resolução do contrato etc. Estas são figuras que se
distinguem das faculdades primárias porque supõem a constituição de uma relação jurídica e nessas
a relação jurídica ainda não existe. Distinguem-se ainda das faculdades secundárias porque não
emanam das faculdades primárias para que possam existir - eu posso constituir uma servidão legal,
sem ter um direito de propriedade sobre o prédio.

Por último, existem os direitos que ainda não existem como jus perfectum. Estes são direitos
que carecem de produtividade jurídica, contudo veem-se numa esperança de aquisição pelo futuro
titular, posição que o ordenamento jurídico protege.

É o caso da sucessão mortis-causa - um herdeiro legitimário tem a expectativa de vir a


suceder mortis-causa a alguém mesmo que o futuro de cuius não tenha ainda morrido. São
expectativas juridicamente protegidas que se encontram numa posição de estado indeterminado,
pois falta que se verifique uma condição, neste caso a morte, para que o direito se concretize.

1.Modalidades dos direitos subjetivos


● Inatos/natos

Atende à ligação intrínseca ou extrínseca do direito com o titular. Os direitos inatos têm uma
ligação intrínseca com a pessoa, nascem com ela - é o caso dos direitos de personalidade. Já os
direitos natos são direitos adquiridos - é o caso do direito ao nome (não confundir com o direito à
identificação), direito moral de autor (é necessário ser autor de algo, para ter esse direito).

● Essenciais/não essenciais

Atende à ligação intrínseca ou extrínseca dos direitos com estados em que a pessoa se
encontra e que inerem a ela. Os direitos essenciais são direitos dos quais a pessoa não se pode privar
sem ser, consequentemente, privada de certas condições - é o caso dos direitos de personalidade,
estatutos familiares (direitos pessoais dos cônjuges) - neste último, enquanto não houver separação

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de bens entre cônjuges, a separação não se extingue.

● Pessoais/Patrimoniais

Atende à natureza dos bens jurídicos em causa, isto é, à suscetibilidade de esses bens serem
ou não redutíveis a um equivalente pecuniário.

São patrimoniais, todos os direitos que podem ser reduzidos a um equivalente pecuniário. A
sua violação gera lugar à restituição in natura, ou quando esta não for possível, à restituição por
equivalente.

São hoc sensu pessoais / não patrimoniais, os direitos cuja violação dá lugar a uma
compensação (art. 496.º CC), porque não são indemnizáveis. É o caso dos direitos de personalidade e
os direitos pessoais de família.

● Disponíveis/Indisponíveis

Atende à possibilidade ou não de o sujeito se desligar da sua titularidade, isto é, de transferir


a sua titularidade a outrem. Se pode transferir esse direito é disponível, como os direitos
patrimoniais, se não pode é indisponível, como os direitos da pessoa. A este nível encontram-se
graus de indisponibilidade, por vezes o direito é parcialmente disponível ou indisponível.

Eu posso transferir o meu direito de propriedade sobre o prédio X a C, mas não lhe posso
transferir o meu direito à vida.

● Absolutos/relativos

Atende aos titulares passivos dos direitos, ou seja, às pessoas a que os mesmos se impõem.
Se se impõe só pessoas certas e determinadas, os direitos dizem-se relativos, pelo contrário se se
impõem a todos os membros da coletividade jurídica, os direitos dizem-se absolutos. São exemplos
de direitos absolutos o direito à vida, ou o direito de propriedade.

Quando A é proprietário de um prédio, as pessoas que pertencem à comunidade jurídica


têm a obrigação passiva universal de a respeitar, logo é absoluto, tem eficácia erga omnes (contra
todos, universal).

É exemplo de um direito relativo, o direito ao crédito - A e B celebram um contrato de


mútuo, mas só B está obrigado a satisfazer o crédito, só a ele é imputável a obrigação contratual de
cumprimento - eficácia inter-partes, a eficácia é relacional.

Direitos da Personalidade → Dever de Respeito

Os direitos de personalidade correspondem aos direitos da pessoa sobre si mesma (jura in


ipsum) que se opõem aos restantes membros da comunidade jurídica - eficácia erga omnes (todos
estamos obrigados a respeitar esses direitos).

O dever de respeito corresponde ao dever de não perturbar o exercício do direito alheio.


Além desse dever geral de respeito, existe também a obrigação de intervenção de modo a garantir o
exercício desse direito de personalidade - dever geral de auxílio.

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Por exemplo, estamos num centro comercial e apercebemo-nos de que há uma criança perto
das escadas rolantes, sem nenhum adulto. A manutenção do direito da criança à integridade física
impõe, não só o nosso respeito por essa integridade, como também impõe que auxiliemos, no
sentido de concretizar a primeira camada da obrigação passiva universal.

Este dever geral de auxílio estende-se de acordo com os limites às nossas capacidades de
intervenção, havendo assim parâmetros de exequibilidade - por exemplo, se eu não sei nadar, não
me pode ser pedido o auxílio a alguém em risco de afogamento. Se eu for nadador salvador,
logicamente que pelas circunstâncias do caso, o meu dever de intervenção é mais qualificado do que
o dos cidadãos.

2.Modelações dos Direitos de Personalidade - estrutura funcional

1. Direitos sobre a Pessoa de Outrem - jura in persona

Ainda dentro dos direitos de personalidade, excecionalmente a pessoa de outrem é objeto


de direito, na medida em que é lógico que no ordenamento jurídico as pessoas não podem ser
objetos. A exceção é o artigo 1887.º CC - “os menores não podem abandonar a casa paterna ou
aquela que os pais lhes destinaram, nem dela ser retirados”.

Este direito à entrega do menor é um direito que tem por objeto a pessoa de outrem, mas
como é exercido no melhor interesse do menor, é admitida essa incidência pelos pais em pessoa
alheia, os filhos.

2. Direitos de Crédito

São direitos relativos, ou seja, possuem uma mera eficácia inter-partes e têm por objeto o
comportamento positivo ou negativo de uma pessoa relativamente a outra ou a outras pessoas. O
objeto é uma prestação que pode ser de dar, fazer ou não fazer, por exemplo:

● A contrata com B a realização de uma empreitada. O objeto deste contrato é uma


obra, logo é uma obrigação de fazer.
● A contrata com B no que estipula que, durante certo período de tempo, B não pode
abrir um estabelecimento concorrente ao de A. A obrigação é de não fazer, é uma
abstenção.
● A vende a B um quadro, logo a prestação de entrega da coisa é de dar.

Em todos estes exemplos, o direito se exerce relativamente a pessoa certa e determinada e


apenas diz respeito aos intervenientes.

3. Direitos Reais (res)

Os direitos reais são poderes diretos e imediatos sobre uma coisa, porque não carecem da
intervenção de ninguém. São direitos absolutos, isto é, impõem-se a todos os membros da
comunidade jurídica - eficácia erga omnes. Contudo, essa eficácia é diferente da eficácia dos direitos
de personalidade, na medida em que temos uma obrigação passiva universal, porque diz respeito a
todos e parte de uma abstenção - todos estão obrigados a abster-se de tudo o que perturbe esse
domínio do direito.

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Por exemplo, A é proprietário de um terreno, todos os que não são proprietários são
obrigados a respeitar a propriedade de A.

Os direitos de gozo permitem que o proprietário extraia do bem todas as possibilidades que
podem advir desse bem e podem subdividir-se ainda em:

1. Direitos Reais de Gozo - permitem ao titular usufruir da coisa com ou maior / menor grau de
gozo (ex.: direito de propriedade)
2. Direitos Reais de Aquisição - constituem uma via verde de acesso ao direito que permite ao
titular adquirir aquele direito por via do direito real de gozo ou de garantia (ex.: direito de
preferência)
3. Direitos Reais de Garantia - visa garantir o cumprimento das obrigações (ex.: direito de
retenção; direito de hipoteca)

Por exemplo, A empresta uma quantia ao Banco B (contrato de mútuo). A só tem interesse
em mutuar a quantia em causa, se tiver a garantia de que vai receber o montante mutuado acrescido
de juros. Essa garantia pode estabelecer-se a partir de uma garantia real, como a hipoteca (para bens
imóveis) ou o penhor (para bens móveis).

Outra Possibilidade a partir de uma Estrutura Institucional

● Direitos da Pessoa - direitos da personalidade e direitos reais


● Direitos das Obrigações - direitos através dos quais se organiza o tráfego dos bens
● Direitos das Coisas - permitem a ordenação do domínio sobre os bens
● Direitos da Família
● Direitos Sucessórios - advém da sucessão mortis-causa.

3.Posição Passiva aos Direitos Subjetivos e Potestativos


Após analisarmos os Direitos Subjetivos e os Direitos Potestativos, estudemos agora qual
posição passiva que lhes corresponde:

1. Dever Jurídico correspondente ao Direito Subjetivo

O direito impõe ao sujeito que este adote um comportamento positivo ou negativo. Se o


sujeito não cumprir, o titular do direito pode recorrer aos mecanismos de efetivação do seu
interesse, previstos na lei.

O obrigado, normalmente, cumpre espontaneamente pois está consciente da sua sanção.


Porém, estando em causa um dever jurídico e não uma sujeição, o obrigado pode optar por não
cumprir com a sua obrigação e impõe-se o recurso à via judicial.

Perante o incumprimento pelo agente, o titular do direito pode recorrer às Linhas de


Efetivação do Direito Subjetivo:

- Responsabilidade civil
- Execução Específica - artigo 827.º e ss CC
- Sanção Pecuniária Compulsória - art 829.º - A CC - independentemente da obrigação
de ressarcir os bens do credor.

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Se este dever jurídico é imposto a uma ou mais pessoas determinadas trata-se de um dever
relativo. Se este dever jurídico se impõe a toda a comunidade jurídica trata-se de um dever geral de
abstenção (decorre da obrigação passiva universal).

2. Sujeição correspondente aos Direitos Potestativos

A sujeição é aquilo que encontramos no lado passivo dos direitos potestativos. Por exemplo,
A decide requerer a anulação do contrato com B. B por não poder evitar esse requerimento,
encontra-se numa posição de sujeição às consequências do exercício do direito potestativo de A, não
havendo margem de incumprimento.

Relações Jurídicas
As Relações Jurídicas podem ainda ser classificadas quanto ao seu tipo e grau de
complexidade:

1. Relações Jurídicas Singulares / Plurais

Nas Relações Jurídicas Singulares, há uma única pessoa a ocupar a posição de sujeito ativo e
apenas uma outra a ocupar a posição de sujeito passivo. Já nas Relações Jurídicas Plurais, há mais do
que uma pessoa na posição de sujeito ativo ou na posição de sujeito passivo.

Vejamos o caso do art. 512.º/1 CC - “a obrigação é solidária, quando cada um dos devedores
responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a
faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles”

Estamos perante um caso de responsabilidade solidária - só podemos verificar a existência


de responsabilidade solidária, se pelo menos num dos lados da relação jurídica, temos uma
pluralidade de sujeitos (vários credores ou vários devedores). Por outro lado, este esquema bilateral
é complicado pelos vários interesses que confluem na relação jurídica.

Acontece com a relação de sociedade - um grupo de pessoas (A, B, C, D) constitui uma


sociedade e cada um desses sócios tem um interesse que pode conflituar com os outros interesses
ou com os interesses da sociedade. Mesmo que só tenhamos dois sócios, a relação jurídica é
plurilateral e não estritamente bilateral, na medida em que conflitua o interesse de A, o interesse de
B e o interesse da sociedade.

2. Relações Jurídicas Instantâneas / Duradouras

Nas Relações Jurídicas Instantâneas, a relação jurídica esgota-se no momento, mesmo que os
seus efeitos perdurem (ex.: doação; compra e venda) - releva aqui o momento da perfeição da
relação jurídica e não o tempo de execução do objeto.

Por exemplo, uma empreitada tem por objeto a realização de uma obra, essa realização é
instantânea, pois perfeciona-se no momento em que a obra é entregue, independentemente do
tempo que a obra demore a construir.

Nas Relações Jurídicas duradouras, a relação jurídica destina-se a perdurar no tempo e


projeta-se toda a vida (ex.: parentesco; casamento; locação).

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3. Relações Jurídicas Autónomas / Não Autónomas

As Relações Jurídicas Autónomas são independentes, isto é, nascem, desenvolvem o seu


programa contratual e extinguem-se independentemente das outras.

Já as Relações Jurídicas Não Autónomas são dependentes, ou seja, existem na dependência


de outra relação anterior (ex.: as relações patrimoniais entre cônjuges que dependem da relação
anterior de casamento entre os mesmos). Outro exemplo, a obrigação de alimentos (art 2009.º CC)
existe porque existiu uma relação anterior, seja de parentesco, casamento etc.

4. Relações Jurídicas Simples / Complexas

Nas Relações Jurídicas Complexas, A é titular de uma série de direitos e há um


desdobramento da posição de prevalência proveniente desse direito - é um compósito de direitos
face a um compósito de deveres. A relação jurídica complexa pode, ainda, compreender o dever
principal de prestação (dever central) e os deveres acessórios de prestação.

Por exemplo, quem paga o preço tem o direito à entrega da coisa vendida, contudo podem
haver deveres acessórios de prestação, como o dever de embalar o objeto para que este mantenha
as características previamente estipuladas - é uma acessoriedade da prestação que está em causa.

Os deveres acessórios de prestação são deveres laterais e são determinantes para a


satisfação do interesse do credor - são todos aqueles deveres reconduzidos ao princípio da boa-fé
(deveres de informação relativamente ao manuseamento do objeto ou ao seu correto tratamento)
que decorrem dos parâmetros de honestidade e lealdade.

Relativamente às Relações Jurídicas Simples, diz-nos o Dr. Carlos Alberto Mota Pinto, que ao
referirmos como conteúdo ou estrutura da relação jurídica o direito subjetivo propriamente dito e o
dever jurídico ou direito potestativo e a sujeição, estamos a considerar a relação jurídica simples ou
singular. Tratando-se de um direito de crédito e da correspondente obrigação fala-se de obrigação
singular, assim o dever de prestar o preço a cargo do comprador de um objeto e o correlativo direito
de o exigir.

1.Combinação de Relações Jurídicas

As relações jurídicas podem operar-se por duas formas primordiais:

1. Acessoriedade

Relação de combinação entre duas relações jurídicas, na qual uma das relações jurídicas é
acessória, meramente instrumental, relativamente à outra (a principal), isto é, há uma situação de
dependência. Há uma combinação vertical de relações jurídicas.

Por exemplo, a relação de penhor com o fiador é subordinada à relação de crédito


pré-existente - artigo 627.º CC - extinguindo-se a relação principal de crédito, extingue-se a relação
do penhor com o fiador.

2. Pertinência

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Não há ordenação hierárquica como vimos supra, mas há convergência das relações
relativamente a um polo comum. Enquanto que a relação de acessoriedade é uma combinação
vertical, na pertinência estamos perante uma situação de irradiação horizontal. Esse polo comum,
em regra, é uma pessoa e a combinação mais lata que podemos ter é a combinação resultante da
esfera jurídica.

A pertinência é, por outras palavras, o conjunto de relações jurídicas que integram a esfera
jurídica do sujeito, sendo este sujeito o polo comum.

2.1 Relações Jurídicas de Pertinência mais Restritas

É o caso do património - o conjunto de relações jurídicas de caráter patrimonial


relativamente a um centro de imputação. Do ponto de vista da afetação, o património pode ser:

● Patrimônios de Afetação Geral - afeto às obrigações gerais do titular do direito.

Se A incorre na obrigação de indemnizar, por essa obrigação, responde todo o seu


patrimônio (é a garantia geral de obrigação). O credor obtém uma sentença declarativa da existência
do direito, e passam-se as coisas através da efetivação desta sentença. Então, responde pela dívida, o
patrimônio do devedor.

● Patrimônio de Afetação Especial - parte do patrimônio do sujeito que se destina a


satisfazer certos encargos.

Por exemplo, é o caso do patrimônio separado (art. 2098.º/ 1 e 2) - os encargos são limitados
à quota. Os herdeiros podem ter interesse em que dos bens que distinguem a herança, alguns
fiquem intocados, e havendo encargos, estes só ficam satisfeitos pelos bens que estes quiserem.

● Património Autónomo

O património é autónomo quando não está determinado quais os ativos ou encargos que o
sujeito quer manter e quais este quer usar para saldar a dívida. Normalmente, a herança é aplicável
por ser suscetível de alienação, usufruto, direito real de preferência e de vindicação.

2. A Dinâmica da Relação Jurídica


A dinâmica da relação jurídica traduz-se na aquisição, modificação e extinção da relação
jurídica que, no fundo, corresponde à perspetiva dos marcos essenciais da vida da relação jurídica.

1. Aquisição de Direitos

Primeiramente, há que distinguir aquisição de constituição do direito. A constituição de um


direito é o seu aparecimento ex novo pela primeira vez na ordem jurídica, que coincide normalmente
com o ingresso do direito numa dada esfera - se há ingresso, há aquisição do direito.

Já a aquisição de um direito é o seu ingresso na esfera jurídica. A constituição e a aquisição,


por norma, intercetam-se, por exemplo, quando há um direito que surge ex novo na esfera jurídica
do sujeito. Só não há esta coincidência quando o sujeito, ou ainda não existe, ou não está
determinado.

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A aquisição não se confunde com sucessão, a sucessão é o sub-ingresso de uma pessoa na
esfera jurídica de outrem, na qual a pessoa adquire direitos e deveres, ao passo que na aquisição
apenas se adquirem direitos. A aquisição pode ser:

● Originária

O direito surge ex novo e não depende de nenhum direito anterior, apenas do facto jurídico
aquisitivo. Vejamos os seguintes exemplos:

Por exemplo, a Usucapião - artigo 1287.º ss CC - se alguém atua como proprietário ou com
poderes de proprietário sem o ser, durante um determinado lapso de tempo, vai adquirir o direito de
propriedade, independentemente, daquilo que está para trás (o direito de outrem).

Imaginemos dois prédios contíguos, um pertencente a A e outro a B e sabemos que A está


emigrada e pede a B que tome conta do seu terreno. Durante certo tempo, isso aconteceu, contudo
eventualmente A deixou de vir definitivamente a Portugal, e B começou a apropriar-se gradualmente
do terreno para não o deixar abandonado. Passaram-se 20 anos e B considerava que o terreno era
dele, reclamando judicialmente o terreno como dele, devido ao esforço que lhe dedicou, e à forma
como, durante tantos anos, atuou como proprietário sobre o terreno.

Logo, adquiriu o direito de proprietário, mas este não surge por causa de direito anterior
nenhum, mas surge apesar do direito de outrem, neste caso o direito de propriedade de A.

Por exemplo, a Ocupação de Coisas Móveis - art 1318.º ss CC - hoje os animais, por exemplo,
são suscetíveis de ocupação quando abandonados, essa ocupação do animal não depende de direito
anterior.

Por exemplo, a Criação seja literária, artística ou científica - o direito de autor surge, apenas,
pela existência da obra e não depende de direito anterior. Também a Adoção - não depende de uma
posição jurídica anterior.

Aqui, releva o Princípio do Tantum Possessum - tanto se possui quanto está prescrito na lei.

● Derivada

O direito, seja novo ou não, que se adquire está dependente da validade do facto aquisitivo e
da existência de um direito anterior. Essa filiação significa que se o direito anterior existe, então o
direito novo também existirá. Essa dependência estende-se ao conteúdo, amplitude e existência - o
conteúdo do direito posterior há de caber no conteúdo do direito anterior, nenhum pode ser mais
vasto.

Em suma, a filiação do direito novo para com o direito anterior consagra-se na sua:

- Existência - se o direito anterior não existe, não pode haver direito novo.
- Amplitude - o direito novo não pode ter um objeto mais vasto que o anterior.
- Conteúdo - o conteúdo do direito novo há de ser absorvível pelo direito anterior.

O direito novo pode sempre coincidir com o direito anterior, mas nunca pode exceder o
direito anterior.

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Por exemplo, A é proprietário e emigra, vendendo o seu terreno a B que o compra. O direito
que B adquire depende da validade do título aquisitivo, e também depende quanto a existência de A
ser proprietário - se A não for proprietário, não pode vender aquele terreno. A propriedade de B tem
o conteúdo da propriedade de A e o mesmo objeto.

Por exemplo, a Sucessão - o direito que ingressa na esfera jurídica do sujeito depende do
direito do de cuius. A cessão da posição contratual, cessão de créditos, aquisições de outros direitos
reais são outras formas de aquisição derivada.

A aquisição derivada pode ser:

- Constitutiva

O direito adquirido filia-se num direito mais amplo do titular, mas com conteúdo diferente.
Por outras palavras, o direito adquirido (direito novo) forma-se à custa do direito pré-existente, que é
mais amplo, daí que possa absorver o direito novo, mesmo com a nuance de que esse direito novo
tenha um conteúdo diferente.

Por exemplo, a Constituição de Direitos reais de Gozo Limitados - formam-se à custa do


direito de propriedade que é o direito real mais amplo.

Imaginemos que A decide alienar a favor de outrem (B), a possibilidade de ele explorar as
virtualidades da coisa - constituição de usufruto (art. 1439.º CC) - A passou de proprietário pleno a
nu proprietario.

B tem uma aquisição derivada constitutiva - esta é derivada porque este direito de usufruto
(direito filial) que não existe autonomamente antes do direito de propriedade (direito progenitor),
mas forma-se à custa dele. É constitutiva, porque o direito de usufruto é mais circunscrito que o
direito de propriedade, contudo tem um conteúdo diferente (usufruto é diferente de propriedade).

A Servidão (art. 1550.º) e as formas de subcontratação, como a Sublocação (art. 1066.º), são
também formas de aquisição derivada constitutiva.

A Sublocação ocorre quando o locatário (arrendatário), arrenda parte ou a totalidade de um


imóvel, que está sob seu contrato de arrendamento, a outra pessoa.

Por exemplo, A e B celebram um contrato de arrendamento. B, arrendatário, vai celebrar


agora um contrato de sublocação com C, no qual arrenda parte do imóvel que este já tinha
arrendado a A. Existe uma parte do direito de propriedade de A que fica limitado, na medida em que
B celebrou outro contrato, ainda que mais restrito ao contrato inicial, sobre essa mesma
propriedade.

Note-se ainda que os Direito Reais de Gozo Limitados são limitados, porque o direito novo
vai sempre comprimir o direito anterior. Nos exemplos acima dados, o facto de B ser usufrutuário da
minha propriedade, limita os meus direitos sobre a mesma, porque alguns desses direitos cabem
agora na esfera jurídica de B.

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No exemplo da servidão de passagem, o meu direito de propriedade fica limitado, na medida
em que, verificadas as condições do artigo 1550.º, eu sou obrigado a permitir que o proprietário do
prédio vizinho passe pelo meu prédio. Inevitavelmente, essa servidão interfere com o meu direito à
propriedade, visto que diretamente o afeta e limita, pois o proprietário do prédio vizinho tem agora
direitos sobre o meu terreno (direito à servidão de passagem).

- Translativa

Há uma translação de um direito para outra esfera jurídica quando esse direito coincide com
o direito anterior. Se na aquisição constitutiva, o direito anterior era mais amplo que o direito novo e
estes tinham conteúdos distintos, na aquisição translativa, o direito novo coincide com o direito
anterior, isto é, têm a mesma amplitude e o mesmo conteúdo. Assim, diz-se que se trata do mesmo
direito, este apenas trocou de esferas jurídicas.

Por exemplo, A vende a B o seu prédio. A perde o seu direito de propriedade e este transfere
para a esfera de B. É uma aquisição translativa com translação total, na medida em que o direito de
propriedade permanece o mesmo, tem o mesmo conteúdo e a mesma amplitude, mas mudou de
esferas jurídicas. A sucessão também é exemplo de uma aquisição derivada translativa.

Há ainda lugar à aquisição derivada translativa com a translação parcial de um direito. Neste
caso, o direito novo continua a ter o mesmo conteúdo do direito anterior, mas a sua amplitude é
menor.

Por exemplo, A vende a B não todo o seu terreno, mas apenas a área cultivada - há uma
menor área de incidência do direito novo no direito anterior, porém o direito e o conteúdo são os
mesmos. A sua amplitude é, todavia, menor.

É importante não confundir aquisição derivada constitutiva com aquisição derivada


translativa com translação parcial. Em ambos os tipos de aquisição derivada, a amplitude do direito
novo é menor, contudo, na aquisição derivada constitutiva, o conteúdo do direito novo é diferente
do conteúdo do direito anterior, ao passo que na aquisição translativa com translação parcial, o
conteúdo do direito novo é sempre igual ao conteúdo do direito anterior.

Vejamos nos seguintes exemplos:

O contrato de sublocação supramencionado é um caso de aquisição derivada constitutiva, na


medida em que é menos amplo e o conteúdo é diferente do do contrato de arrendamento - apesar
de se referirem ao mesmo objeto, o prédio, são direitos e contratos diferentes.

Um contrato de compra e venda de apenas uma parte do terreno X é um caso de aquisição


translativa com translação parcial, na medida em que é menos amplo que um contrato de compra e
venda, contudo o conteúdo do direito é o mesmo. Seja um contrato de compra e venda do terreno
integral ou parcial, é sempre um contrato de compra e venda e está sempre em causa um direito de
propriedade.

Para além disso, na aquisição constitutiva, apesar da existência de um direito filial (direito
novo), o direito progenitor (direito anterior) subsiste - B pode ser usufrutuário do prédio de X, mas X
continua a exercer o seu direito de propriedade sobre esse prédio. Isto porque o direito não se
transmite, constitui-se apenas e, portanto, nunca saiu da esfera jurídica do proprietário inicial.

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Já na aquisição translativa, o direito anterior deixa de existir, a partir do momento em que se
forma o direito novo - se eu vender o meu prédio a A, eu deixo de poder exercer o meu direito de
propriedade sobre aquele prédio.

- Restitutiva

A aquisição derivada restitutiva é o simétrico da aquisição derivada constitutiva. Por outras


palavras, a extinção do direito filial (direito novo) leva à reexpansão do direito progenitor (direito
anterior), ou seja, à plenitude do direito progenitor que existia antes da constituição do direito filial.

Por exemplo, B é usufrutuário do prédio de A, durante um período de 5 anos. No final desses


5 anos, o direito de usufruto de B extingue-se e A volta a adquirir plenos poderes sobre a coisa -
passa de nu propriterio a proprietário pleno.

Através desta matriz conseguimos avaliar a validade da aquisição do direito, sendo que a
maior dificuldade de apreciação dessa validade centra-se na aquisição derivada devido à
dependência do direito novo para com o direito anterior. Também é difícil essa apreciação na
aquisição originária, porém na usucapião basta avaliar a posse e os seus caracteres.

Ninguém pode transmitir mais do que aquilo que aquilo que o seu direito consente -
Princípio do Nemo Plus Iuris Ad Alium Transfere Potest Quam Ipse Habet.

Até agora vimos casos em que o direito novo ou é menor ou coincide com o direito anterior.
Porém, diz-nos este princípio que, primeiramente, não pode haver direito novo se não houver direito
anterior, e o direito novo nunca pode ser mais amplo ou alargar o conteúdo do direito anterior.

Por exemplo, se eu tenho um direito de usufruto sobre o prédio X, não posso transmitir a B o
direito de propriedade desse prédio, porque eu não o tenho.

Contudo, este não é um princípio absoluto e existem duas exceções, quando em causa estão
proteção de terceiros:

1. Proteção de Terceiros para efeitos de Registos

Nesta exceção, reportamo-nos a um registo predial - o registo existe para dar publicidade aos
atos jurídicos (art. 1.º Código Registo Predial). O registo predial consiste no registo que é feito
quando são feitas transações, que têm por objeto os prédios - se eu compro um terreno a B, eu
devo, porém não sou obrigada, a registar esse ato de compra.

Princípio do Trato Sucessivo - art. 34.º Código Registo Predial - este princípio estabelece que
só pode haver inscrição no registo predial, havendo registo anterior do causante. Quer isto dizer, se A
vende um bem imóvel a B e B regista, segundo este princípio para A ter vendido a B, A tinha que ter
registado o seu direito de propriedade sobre aquele prédio, antes de o vender.

O registo predial é um sistema meramente declarativo - este sistema não pressupõe uma
análise à titularidade do direito e, portanto, não garante que o último adquirente tenha realmente o
direito nem o constitui, garantindo apenas que, se o tiver, é ele que pode valer-se no registo. Por
outras palavras, o sujeito não se torna titular do direito por registo do ato de transmissão, este

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apenas declara quem está inscrito como titular do direito, mas não é condição de validade - o ato de
transmissão é válido, mesmo que não haja registo.

A averiguação da titularidade do direito é feita nos sistemas de registo constitutivo, que é um


regime excecional - aplica-se, por exemplo, na Hipoteca, sendo que esta só é válida se for registada -
art. 4.º Código Registo Predial e artigo 681.º CC.

O registo predial é semi-obrigatório - os artigo 2.º e 3.º Código Registo Predial designam
quais os factos sujeitos a registo e o artigo 8-A Código Registo Predial apresenta ainda quais os
factos que obrigatoriamente têm de ser registados.

Note-se, contudo, que a falta de registo apenas desencadeia inoponibilidade a terceiros, daí
a sua relativa obrigatoriedade. Se o sujeito não registar um facto de registo obrigatório, apenas não
pode fazer valer o seu direito a terceiros, mas a relação jurídica mantém-se validamente. Funciona
como um ónus.

O registo é feito em relação a aquisições – não se registam os bens (prédios), mas as


transmissões relativas ao prédio - se eu compro um prédio a C, eu vou registar o ato de compra do
prédio e não o prédio.

Temos três tipos de efeitos quanto ao registo:

● Efeito Imediato / Automático

Já vimos que o registo não garante a titularidade do direito e, portanto, pode acontecer que
o sujeito registe o ato de transmissão, enquanto titular de um direito de propriedade, por exemplo,
mas que não o tenha.

Existe, então, uma presunção iuris tantum da titularidade do direito - art. 7.º Código de
Registo Predial - presume-se que o sujeito é titular do direito.

Se A regista um ato de transmissão do seu direito de propriedade, presume-se que A é


efetivamente titular desse direito. Contudo, é uma presunção ilidível, ou seja, pode ser afastada em
prova em contrário.

● Efeito Central

Inoponibilidade a terceiros de factos não registados - art. 5.º/1 Código de Registo Predial -
enquanto o adquirente não registar o seu direito, não o pode opor a terceiros. Imaginemos que A
vende um terreno a B, mas B não regista essa venda, assim sendo B só pode opor o seu direito a A,
mas não a terceiros.

Aqui releva ainda mencionar o Princípio da Consensualidade que nos diz que a transmissão
dos direitos reais dá-se em princípio por mero efeito / consenso do contrato. Portanto, se eu vendo a
B, B não precisa de registo para me opor a venda a mim, porque não existe oponibilidade inter
partes, porém precisa de registo para ser oposto a terceiros, segundo o artigo 4.º Código de Registo
Predial.

● Efeitos Laterais

Os efeitos laterais são todos os efeitos que advém do registo independentemente do efeito
central e do efeito automático. Exemplos:

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- Prazos da usucapião - art. 1294.º e 1298.º CC - prazos que variam consoante haja ou
não registo
- Artigo 291.º CC

Finitos os efeitos, releva agora entender, de que forma é que o registo protege terceiros,
enquanto exceção ao princípio nemo plus iuris. Primeiramente, quem são esses terceiros?

Os terceiros para efeitos de registo são aqueles que, do mesmo autor ou disponente,
recebem direitos, total ou parcialmente, conflituantes sobre o mesmo objeto segundo o art. 5.º/4
Código Registo Predial - esta é uma definição restritiva dada pelo Dr. Manuel Andrade.

Vejamos o seguinte exemplo:

Por exemplo, A é titular do direito de propriedade sobre um prédio e vende-o a B,


posteriormente A vendeu o mesmo prédio a C, depois de o ter vendido a B. Ora, B e C são terceiros
para efeitos de registo, porque recebem do mesmo causante (A) direitos que são incompatíveis.

Ora, se A vendeu o prédio a B, transferiu-lhe o direito de propriedade sobre aquele prédio,


logo deixou de ser titular desse direito. Portanto, a venda entre A e C não poderia ter ocorrido,
porque quando A vendeu o prédio a C, este já não era titular de um direito de propriedade sobre o
mesmo, pelo que não o poderia ter transmitido a C.

De acordo com o princípio nemo plus iuris, ninguém pode transferir a outrem um direito do
qual não é titular. Em termos práticos, o prédio nunca teria sido de C, mas de B. Todavia, isto levaria a
uma grande frustração das expectativas de C, na medida em que este considerou durante muito
tempo que era titular de um direito sobre aquele prédio, quando na verdade não o era. Seria
também muito oneroso para C, supondo que este já tivesse investido muito dinheiro naquele prédio.

O registo predial aparece, então, como uma exceção, visando afastar o regime regra do nemo
plus iuris, e a proteção de terceiros, neste caso C. Que efeitos práticos é que isto tem?

Já vimos que os sujeitos não são obrigados a proceder ao registo dos atos de transmissão, ou
seja, ainda no exemplo anterior, nem B nem C seriam obrigados a registar a compra do prédio. Tanto
B como C consideram-se os titulares do direito de propriedade sobre aquele prédio, e aqui releva
perceber quem procedeu ao registo, para efeitos de determinar quem é o titular do direito de
propriedade - artigo 6.º Código de Registo Predial. Assim sendo, podemos formular um conjunto de
hipóteses:

1. Se B registou o ato de transmissão, e C não, prevalece o direito de propriedade de B


sobre aquele prédio - o prédio é de B.
2. Se C registou o ato de transmissão, e B não, prevalece o direito de propriedade de C
sobre aquele prédio, mesmo que a compra de B tenha sido válida - prédio é de C.
3. Se ambos registaram o ato de transmissão, prevalece o direito daquele que registou
primeiro, neste caso B (art. 6.º/1 Código de Registo Predial) - o prédio é de B.
4. Se nenhum registou o ato de transmissão, então vale a regra do nemo plus iuris - o
prédio pertence a B e nunca pertenceu a C.

Ainda nesta última hipótese, admitindo que há um bem imóvel sujeito a registo, mas que
não o foi nem por B nem por C, apenas leva a que C não possa opor o seu direito de propriedade a B.
Contudo, a validade do negócio permanece intocável, pois esta determina-se no momento da

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escritura pública ou documento particular autenticado (art.º 875.º CC). O registo acontece
posteriormente e, portanto, o negócio é válido, pois verificaram-se os requisitos de forma, mas é
ineficaz porque não foi registado.

Note-se, ainda, que a proteção de terceiros só ocorre se a única coisa de anómala for a
ilegitimidade do causante, assim sendo se houver outros vícios, por exemplo formais, não se pode
operar esta proteção de terceiros.

Por exemplo, o causante é ilegítimo para celebrar o contrato com B, mas para além desse
vício, o contrato viola o requisito de forma do artigo 875.º, e devia ter sido celebrado através de
escritura pública e não o foi - é nulo o negócio.

Neste caso, a proteção de terceiros não seria possível de efetuar, na medida em que temos
um vício de forma, para além de um vício de ilegitimidade, que não é passível de fazer seguir o
contrato. Retroativamente, destruir-se-iam os efeitos do contrato com B.

Nota: esta regra vale para outros bens que não prédios, como os automóveis.

2. Proteção de Terceiros de Boa-Fé

Quando falamos aqui de boa-fé falamos no seu sentido objetivo, mas quem são os terceiros
de boa-fé?

Os terceiros de boa-fé são terceiros que se encontram na mesma cadeia de transmissões, e


que, por força de uma invalidade anterior, veem o seu direito em risco, porque o causante /
transmitente não tem legitimidade para transmitir o seu direito. Contempla-se aqui duas situações:

1. Primeira Situação - Artigo 243.º CC

Neste caso, a Simulação é o que desencadeia a invalidade do negócio. A Simulação é uma


divergência intencional entre a vontade real e a vontade declarada das partes - 1º requisito - ,
decorrente de um acordo simulatório (concilium fraudis), entre o declarante e o declaratário,
celebrado com o intuito de enganar terceiros - 2º requisito - (artigo 240º/1 CC).

Por outras palavras, é um negócio celebrado, no qual as partes querem uma coisa - vontade
real -, mas declaram outra - vontade declarada. É um acordo entre um declarante e um declaratário -
3º requisito.

Um negócio simulado é um negócio nulo de acordo com o artigo 240.º/2 do CC.

Comecemos agora por entender que efeitos práticos é que o artigo 243.º tem, enquanto
exceção ao Princípio Nemo Plus Iuris:

“1 - A nulidade proveniente da simulação não pode ser arguida pelo simulador contra
terceiro de boa fé”

Por exemplo, A e B celebram um contrato de compra e venda, contudo a vontade real das
partes e a vontade declarada é divergente - as partes queriam uma doação e celebraram um contrato
de compra e venda do terreno X. O contrato de compra e venda é, por conseguinte, nulo. B, anos
mais tarde, vendeu o terreno X a C, que o vendeu, posteriormente, a D.

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Os terceiros de boa-fé aqui são C e D, pois são os únicos sujeitos que não sabem da
Simulação. Ora, o contrato de compra e venda inicialmente celebrado entre A e B é nulo, porque é
um contrato simulado. Se é um negócio nulo, o terreno X nunca foi de B, porque a venda nunca
produziu efeitos, e assim B nunca o poderia ter vendido a C, e C nunca o poderia ter vendido a D,
porque nenhum deles tinha o direito de propriedade sobre aquele terreno.

De acordo com o princípio nemo plus iuris, ninguém pode transferir a outrem um direito do
qual não é titular, e assim em termos práticos, o terreno X nunca teria sido de B, C ou D, mas sempre
foi de A. Isto teria um efeito devastador, em termos da confiança e da expectativa depositada na
celebração dos diferentes negócios jurídicos, pois C e D acreditaram ter posse de um terreno que
nunca foi efetivamente deles, e até podem ter investido no mesmo, o que seria muito oneroso.

Assim, o artigo 243.º, enquanto exceção, visa afastar o regime regra do nemo plus iuris, e a
proteção dos terceiros C e D. Existe uma cadeia de transmissões do direito de propriedade entre A, B,
C e D, e o que este artigo nos diz é que se, no contrato, os terceiros C e D agiram de boa-fé, então
sana-se a nulidade do negócio e confere-lhe efeitos jurídicos.

Por outras palavras, se quando C e D compraram o terreno X, estes não sabiam que o
negócio inicialmente celebrado entre A e B era nulo, então presume-se que eles agiram de boa-fé, e
o negócio ocorre como se fosse válido. Portanto, o terreno X estaria agora na posse de D.

“2 - A boa fé consiste na ignorância da simulação ao tempo em que foram constituídos os


respectivos direitos”

“3 - Considera-se sempre de má fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo


da ação de simulação, quando a este haja lugar”

Releva, de acordo com os números 2 e 3 deste artigo, fazer uma distinção entre boa-fé e
má-fé. Assim, sendo um sujeito age de boa-fé quando não sabe que o negócio tem vício, sendo que
esta boa-fé pode ainda ser:

● Boa-fé sem culpa: os sujeitos não sabem que o negócio tem vício e não era exigível que
soubessem.
● Boa-fé com culpa: os sujeitos não sabem que o negócio tem vício, mas era exigível que
soubessem.

Vamos supor que se prova que A e B falaram da Simulação do negócio em frente de C e D,


mas estes estavam distraídos e não ouviram. Efetivamente não sabem da simulação e, portanto,
continuam a agir de boa-fé, contudo, era exigível que soubessem, porque lhes foi dito. A culpa é
deles, porque se não estivessem distraídos, saberiam do negócio nulo.

Um sujeito age de má-fé quando sabe que o negócio tem vício e mesmo assim celebra-o. Por
outras palavras, C e D imaginemos que sabiam que o negócio entre A e B era simulado e, mesmo
assim, celebraram contrato com B.

O que distingue a má-fé da boa-fé é que na má-fé, o sujeito sabe do vício (simulação), ao
passo que na boa-fé, os sujeitos não sabem desse vício. Esta é sem culpa, se os sujeitos não têm
culpa de não saber do vício, mas é com culpa se é da culpa dos sujeitos que estes não saibam do
vício.

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Neste caso, o artigo 243.º diz-nos que a proteção de terceiros só ocorre se estes agiram de
boa-fé (com ou sem culpa), ou seja, C e D não sabiam da simulação entre A e B, mesmo que fosse
exigível que soubessem.

Um terceiro age de má-fé sempre que este adquiriu o seu direito, depois do registo de ação
de simulação. Ainda no exemplo anterior, A e B celebraram o negócio simulado em 2020, e em 2021,
B resolve invocar a simulação do negócio e, declarar a nulidade do negócio - essa simulação é
sempre registada. Em 2022, C compra o terreno X a B, e assim C atua de má-fé, porque adquiriu o
seu direito de propriedade sobre aquele terreno depois de haver registo da simulação.

Se o sujeito celebra um contrato simulado e nunca houve declaração dessa simulação, não é
exigível que esse sujeito soubesse da simulação e, portanto, presume-se que age de boa-fé.

Neste caso, não só houve simulação, como houve registo dessa simulação por B, e se o
principal objetivo do registo é dar a conhecer a simulação, então C sabia da simulação e mesmo
assim celebrou contrato com B. Quando se diz que C sabia da simulação está em causa uma
presunção iuris et de iure - presume-se que ele sabe que o contrato é simulado e essa presunção
não é passível de prova em contrário.

Se C atuou de má-fé, não há lugar à sua proteção e destrói-se o negócio - o terreno X é, em


última instância, de A.

Existem dois tipos de simulação:

1. Simulação Absoluta - as partes celebram um contrato, mas não há contrato nenhum


- eu celebro uma compra e venda, mas não há sequer compra e venda de um imóvel.
2. Simulação Relativa (art. 241.º CC) - as partes querem celebrar um tipo de contrato,
mas celebram outro tipo de contrato, ex: uma das partes quer realizar uma doação à
contraparte, mas celebram um contrato de compra e venda.

Note-se então o artigo 241.º CC:

“1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é
aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a
sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.

Entendamos que o negócio simulado é o negócio que as partes celebraram, e o negócio


dissimulado é o negócio que as partes queriam ter celebrado. Um negócio simulado é um negócio
nulo e, portanto, incapaz de produzir efeitos jurídicos, contudo, já vimos que verificadas dadas
condições, este pode dar continuidade aos seus efeitos jurídicos.

Diz-nos este artigo que quando invocada a simulação, esse negócio simulado transforma-se
no negócio dissimulado, ou seja o negócio que as partes realmente queriam ter celebrado, se não
tivesse havido simulação. Neste caso, elas realizaram uma doação, quando na verdade realizaram
uma compra e venda e, por conseguinte, doravante o negócio versará sobre compra e venda.

2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido
observada a forma exigida por lei”

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O negócio dissimulado só é passível de aplicação se for válido, ou seja, mesmo que o
contrato de compra e venda tenha sido o contrato dissimulado que as partes verdadeiramente
quiseram celebrar, este tem que ser válido, à luz do direito.

2. Segunda Situação - Artigo 291.º CC

Neste caso, não é a Simulação que desencadeia a invalidade do negócio, mas a Declaração
de Nulidade ou Anulabilidade do Negócio, respeitante a bens móveis/imóveis.

“1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis,
ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título
oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade
ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio”

“2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a ação for proposta e registada
dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio”

“3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia,


sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”

Por exemplo, A vende a B uma casa por mensagem de correio, em 2020. Em 2021, B vende
essa casa a C, que posteriormente a vende a D. Este negócio é nulo desde o início, por inobservância
da forma legal (artigo 875.º).

Entretanto C, em 2024, invoca a nulidade do negócio. Neste exemplo, os terceiros de boa-fé


são C e D, porque tanto A como B sabem que inobservam a forma.

Ora, o contrato de compra e venda da casa, inicialmente celebrado entre A e B é nulo,


porque inobserva a forma. Se é um negócio nulo, a casa nunca foi de B (ilegítimo proprietário),
porque a venda nunca produziu efeitos. Se a casa nunca foi de B, este nunca a poderia ter vendido a
C, e C nunca a poderia ter vendido a D, porque nenhum deles tinha o direito de propriedade sobre
aquele terreno.

De acordo com o princípio nemo plus iuris, ninguém pode transferir a outrem um direito do
qual não é titular. Em termos práticos, a casa nunca teria sido de B, C ou D, mas sempre foi de A. Isto
teria um efeito devastador, em termos da confiança e da expectativa depositada na celebração dos
diferentes negócios jurídicos, pois C e D acreditaram ter posse de uma casa que nunca foi
efetivamente deles, adquiriram direitos à luz de um negócio nulo e até podem ter investido na
mesma, o que seria muito oneroso.

Assim, o artigo 291.º apresenta-se como exceção, visando afastar o regime regra do nemo
plus iuris, dizendo que sempre que se verifiquem as suas condições, é possível dar continuidade ao
negócio jurídico e consolidar legitimamente os direitos adquiridos à luz daquele contrato, mesmo
que nulo.

Se no artigo 243.º a sanação do vício, ou seja, a proteção de terceiros exigiam apenas que
estivesse em causa uma simulação e que os terceiros estivesse de boa-fé, o artigo 291.º exige a
verificação de um leque maior de condições. Vejamos quais são:

1. O terceiro age de boa-fé sem culpa

78
O artigo 243.º salvaguardava os direitos adquiridos por terceiros, mesmo que estes agissem
de boa-fé com culpa. Já no artigo 291.º, a continuidade do negócio exige que os terceiros não saibam
do vício, mas não é culpa deles essa ignorância, ou seja, só protege terceiros de boa-fé sem culpa.
Portanto, se os terceiros não sabiam do vício, mas era exigível que soubessem, tratando-se da boa-fé
com culpa, não há lugar à proteção dos seus direitos, neste caso.

No exemplo acima dado, C e D estavam de boa-fé sem culpa, visto que não sabiam da
nulidade do negócio entre A e B e não era exigível que soubessem.

2. A transmissão diz respeito a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo

O artigo 243.º protege terceiros envolvidos em relações jurídicas, cujo objeto fosse qualquer
bem. Já o artigo 291.º só protege terceiros envolvidos em relações jurídicas, cujo objeto são bens
imóveis ou bens móveis sujeitos a registo. Sendo que a consagração de quais os bens móveis estão
sujeitos a registo encontra-se no artigo 2.º e 3.º Código Registo Predial, no Código de Registo
Automóvel, quando em causa estão automóveis, entre outros.

Portanto, se em causa não estiver um bem imóvel ou bem móvel sujeito a registo, as
condições do artigo 291.º não se verificam e aplica-se o nemo plus iuris.

3. Tem de ser uma transmissão a título oneroso

A título oneroso, significa que no ato de transmissão, houve lugar a contraprestações. O Dr.
Orlando de Carvalho alega, contudo, que esta onerosidade deve ser económica.

No exemplo acima dado, C e D quando compraram a casa, pagaram por ela. Teria sido a
título gratuito, se a casa fosse oferecida e estes não tivessem pago nada por ela - nesse caso não há
necessidade de proteção do terceiro.

4. Tem de haver registo da aquisição anteriormente ao registo de ação de nulidade

Já vimos que o artigo 291.º só tutela bens sujeitos a registo (bens imóveis são sempre
sujeitos a registo) e, portanto, esse registo da aquisição tem de ocorrer antes do registo da ação de
nulidade, caso haja ação de nulidade. Aqui, se houve registo da nulidade daquele negócio (quando
há registo da ação, ela torna-se pública) presume-se (iuris et de iure) que os terceiros, que adquirem
o seu direito após esse registo de nulidade, sabem da nulidade do negócio, porque ela é pública. É
uma presunção iuris et de iure pelo que não está sujeita a prova em contrário.

No exemplo acima dado, C e D registaram a aquisição da casa em 2021, e B só invocou a sua


nulidade em 2024, portanto eles não poderiam saber da nulidade.

5. Tem de decorrer um período de carência de 3 anos

As partes integrantes do negócio nulo inicialmente celebrado, só podem propor a ação de


invalidade do negócio dentro dos três anos após a conclusão do negócio celebrado entre os terceiros
- se isso acontecer, aplica-se a regra geral do nemo plus iuris e o artigo 291.º perde efeito (o negócio
é destruído). Após esses três anos, se nenhuma das partes iniciais intentou uma ação de nulidade,
então, verificadas as condições acima, o direito consolida-se na esfera jurídica dos terceiros.

79
O ato nulo decorreu em 2020 e, portanto, A e B só poderiam ter proposto a ação de nulidade
decorridos 3 anos, em 2023. Contudo, a ação de nulidade foi proposta por C em 2024, 4 anos depois
do ato nulo, verificou-se então o período de carência de 3 anos, pelo que esta condição se verifica.

Finitas as condições, C e D foram considerados terceiros de boa-fé, pelo que o negócio é


válido e tendo D sido o último adquirente do direito de propriedade sobre a casa, a casa é de D.

Em suma, em ambas as situações do 243.º e do 291.º, o causante não tem legitimidade para
transferir o seu direito, mas o que difere são as causas dessa ilegitimidade. No artigo 243.º, a
ilegitimidade advém do negócio inválido por simulação, ao passo que no artigo 291.º, a ilegitimidade
advém do negócio inválido por declaração de nulidade ou anulabilidade.

Vejamos agora em que situações é que acontece a:

● Aplicação exclusiva do artigo 243.º

A e B celebraram um contrato de compra e venda, quando na verdade A emprestou o seu


carro a B (contrato de comodato). O contrato simulado é a compra e venda e o contrato dissimulado
é o de comodato. Anos mais tarde, B doou o carro a C, sendo que C não registou a doação e ignorou
a simulação entre A e B com culpa.

C é um terceiro de boa-fé, porque se verificam todas as condições do artigo supra. Vejamos


que C não sabia da simulação entre A e B, mesmo que fosse exigível que soubesse - o artigo 243.º
protege também a boa-fé com culpa. C também não registou a doação com B, apesar do carro ser
um bem móvel sujeito a registo - o artigo 243.º protege os bens não sujeitos a registo e, ainda, os
bens sujeitos a registo não registados.

Desta forma, verificam-se todos os requisitos do artigo 243.º, pelo que se aplica
exclusivamente o mesmo.

● Aplicação exclusiva do artigo 291.º

A e B celebraram um contrato de compra e venda de um prédio, simulado, em 1981. Em


1982, B vendeu o prédio a C e em 1985, C vende o prédio a D. D regista essa aquisição em 1985 e, em
1986, B invoca e regista a nulidade do negócio. C e D desconheciam a nulidade do negócio inicial,
sem culpa.

C e D são terceiros de boa-fé, porque se verificam todas as condições do artigo supra.


Vejamos que:

1. O prédio é um bem imóvel sujeito a registo e, neste caso, foi registado.


2. Foi a título oneroso, porque houve contraprestações na compra do prédio.
3. Estavam ambos de boa-fé, sem culpa, pois não sabiam do vício de nulidade.
4. O registo de aquisição ocorreu em 1985 e o registo de nulidade ocorreu em 1986, portanto
foi posterior.
5. B só invocou a nulidade do negócio 5 anos depois da celebração do negócio inicial, pelo que
passou o período de 3 anos.

Desta forma, verificam-se todos os requisitos do artigo 291.º, pelo que se aplica
exclusivamente o mesmo.

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Neste caso estão presentes tanto as hipóteses do artigo 243.º como do artigo 291.º, mas
porque é que apenas se aplica o artigo 291.º? Ora isto acontece porque o artigo 291.º confere uma
tutela mais protecionista e maior difícil verificação do que o artigo 243.º, pelo que o artigo 291.º
acaba por absorver o 243.º.

O artigo 291.º é de maior difícil verificação do que o 243.º, no sentido em que


primeiramente, o artigo 243.º protege terceiros quando estes são vítimas de negócios simulados
mesmo que atuem de boa-fé com culpa, ao passo que o artigo 291.º só protege a boa-fé sem culpa.
Também o artigo 291.º abrange todas as causas de invalidade, inclusive a simulação, ao passo que o
artigo 243.º só abrange a simulação.

O artigo 243.º protege a aquisição de móveis não sujeitos a registo, ou sujeitos a registo mas
não registados - já o artigo 291.º só protege bens sujeitos a registo e, efetivamente, registados. Por
último, a ação de nulidade, no artigo 243.º, não está sujeita à quarentena dos 3 anos.

● Aplicação cumulativa do artigo 243.º com o artigo 291.º

Em 1980, A e B celebraram um contrato de compra e venda de uma casa, por escritura


particular - negócio jurídico nulo por força da inobservância da forma exigida pelo artigo 875.ºCC. A
venda da casa foi uma translação registada. Em 1982, B celebra um contrato de compra e venda com
C, a quem na realidade não vende, mas doa a casa negócio jurídico nulo por simulação. Em 1983, C
vende a casa a D, por escritura pública.

Imaginemos que D desconhece o primeiro vício de forma sem culpa e desconhece o segundo
vício da simulação, com culpa, e em 1984, é registada a ação de simulação do negócio entre B e C.

Para que se apliquem cumulativamente os dois artigos tem de acontecer que:

● O terceiro de boa-fé desconhece a simulação com / sem culpa, mas desconhece o vício de
nulidade sem culpa.
● Está em causa uma simulação e outra causa de invalidade, sendo que a simulação é a última
causa de invalidade.
● O registo da ação de simulação fez-se dentro do período de 3 anos, referido no artigo
291.º/2 ou, pelo menos, foi proposta e registada dentro desses três anos, após o registo da
aquisição do direito.5
● Verificam-se os pressupostos do artigo 291.º, quanto à sua causa de nulidade.
● Verificam-se os pressupostos do artigo 243.º, quanto à simulação.

Neste caso concreto, está em causa um vício de forma e um vício de simulação, sendo que a
simulação é a última causa de invalidade. D desconhece o vício da simulação com culpa (o artigo
243.º protege a boa-fé com culpa) e desconhece o vício de forma sem culpa . Verificam-se todos os
pressupostos de ambos os artigos e, por último, a ação de simulação ocorreu em 1982, D registou a
aquisição do seu direito de propriedade em 1983 e o registo da ação de simulação fez-se em 1984.
Portanto, o registo da simulação fez-se dentro dos três anos após a ação de simulação, mas depois
do registo de aquisição por D.

5
Note-se que aqui os três anos começam a contar a partir do momento em que foi celebrado o negócio
simulado.

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3. Acidentes na Relação Jurídica
Podem, ainda, surgir acidentes de percurso, ao que designamos de acontecimentos
acidentais da vida da relação jurídica. Estes são sempre acidentais e podem ser de:

1. Pendência

A relação jurídica não pode funcionar em pleno e fica impedida de produzir efeitos jurídicos,
porque o sujeito ativo não existe ou não está determinado - está num estado de pendência (in
pendenti). É o caso clássico dos nascituros, estes já foram concebidos, contudo ainda não nasceram,
portanto não há ainda um sujeito ativo que titule aqueles direitos.

Em muitos negócios jurídicos, as partes podem fazer depender os efeitos desse negócio, da
existência de uma condição - art. 270.º CC. A condição pode ser:

- Suspensiva

Se o começo dos efeitos do negócio fica dependente desse acontecimento incerto. Por
exemplo, A acorda com B que lhe vende a sua casa se conseguir um emprego algures que implique a
mudança de residência. Não sabe se o conseguirá, porém irá atribuir o direito de propriedade a B
quando a condição se verificar. Não se produzem efeitos jurídicos, porque isso só acontece quando B
for titular do direito de propriedade e este só o é quando a condição se verificar.

É um acontecimento futuro (vai-se projetar no futuro) e incerto (não sabemos se a condição


se verificará).

- Resolutiva

Se o acontecimento cessar os efeitos jurídicos do negócio. Por exemplo, A vende a B com


efeitos imediatos, mas verificado o acontecimento incerto e futuro, esse negócio cessa os seus
efeitos.

2. Quiescência

Quando a relação jurídica está quiescente, ou seja, já funcionou em pleno, mas por
obstáculo análogo deixa de ter o seu funcionamento normal, ficando como que adormecida.

Acontece por exemplo, nos casos das relações jurídicas do ausente, em curadoria definitiva,
quando este morre e, portanto, extingue-se essa relação jurídica. Houve, no passado, uma relação
jurídica que funcionou em pleno, mas porque o sujeito morreu, a relação jurídica deixou de
funcionar.

3. Revivescência

Quando a pendência ou na quiescência, o sujeito se torna determinado ou o obstáculo cessa


e a relação jurídica funciona de novo, em pleno - desperta a relação.

4.Elementos da Relação Jurídica


Como é que se organizam os elementos da relação? Existem quatro elementos da relação
jurídica:

1. Sujeitos

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Este elemento corresponde às pessoas entre as quais a relação jurídica se estabelece, sendo
que a relação jurídica exige pelo menos 2 sujeitos que são os pólos (positivo e negativo). A todo o
direito subjetivo corresponde um sujeito ativo e essa é uma ligação que pode ser direta / indireta e
incindível ou cindível.

- Ela é direta quando o direito subjetivo é inato e indireta quando o direito subjetivo é nato.
- É incindível quando o direito subjetivo é indisponível e cindível quando o direito subjetivo é
disponível.

2. Objeto

De acordo com o Dr. Carlos Alberto Mota Pinto, o objeto da relação jurídica é aquilo sobre
que incidem os poderes do titular ativo da relação. Então, o objeto da relação jurídica é o objeto do
direito subjetivo propriamente dito que constitui a face ativa da sua estrutura.

Por outras palavras, este elemento corresponde àquilo sobre o que se incide a relação
jurídica, podendo ser uma coisa, pessoa, prestação etc. Veremos mais abaixo que o direito subjetivo
pode ser um mecanismo de tutela, na medida em que confere ao sujeito ativo uma vantagem face ao
sujeito passivo.

O objeto é precisamente o bem que constitui essa vantagem, é o conteúdo do direito - se eu


tenho um direito de propriedade sobre o prédio Y, o objeto e o conteúdo desse direito é o prédio Y.

O objeto é muito heterogéneo, pode ser uma pessoa, dimensões da pessoa, uma coisa
(corpórea ou incorpórea), direitos sobre direitos (art 668.º) ou a pessoa de outrem, no caso da
entrega de menor.

Existem, ainda, os direitos potestativos que não têm este problemas dos direitos sobre
direitos, porque estes não têm objeto, mas apenas conteúdo - não há distinção entre o resultado real
e o resultado jurídico. Quando este se exerce, produz o seu efeito imediatamente.

3. Facto Jurídico

Este elemento corresponde àquilo que desencadeia a relação jurídica, à causa e fundamento
da existência da mesma. Por exemplo, o contrato de arrendamento desencadeia uma relação
locatícia; um contrato de trabalho inicia uma relação de emprego.

4. Garantia

É o conjunto das providências sancionatórias que se destinam a tornar efetivo o poder do


titular do direito, é o que permite fazer valer a sua situação de prevalência.

O principal instrumento desta garantia é a responsabilidade civil, que tem como princípio
axial, a reconstituição in natura do lesado ou a sua indemnização. Temos ainda outros instrumentos
no artigo 70.º/2 e no artigo 829.º-A do CC.

Este último artigo consagra a sanção pecuniária compulsória por cada infração/por cada dia,
aplicável ao devedor, tendo assim como principal objetivo, constranger o devedor ao cumprimento
da sua obrigação.

83
Todos estes institutos são formas de heterotutela, competindo ao Estado, através dos
tribunais, determinar estas providências coercitivas. Existem, ainda, formas de autotutela, como a
ação direta e a solutio retentio (não repetição do indivíduo).

A garantia pode, ainda, ser mais ou menos perfeita ou imperfeita:

- Nos direitos potestativos, a garantia é perfeita porque, encontrando-se o sujeito numa


posição de sujeição, não há sequer possibilidade de violação do direito.
- Nas obrigações naturais, a garantia é imperfeita, porque não se pode impor coercitivamente
o cumprimento de dada obrigação.

Modificação de Direitos
Dizemos que há modificação quando a identidade do direito se mantém, mas há uma
mudança num elemento do direito.

1. Modificação Subjetiva

A modificação é subjetiva quando a alteração se dá no elemento “sujeito”.

- Modificação Subjetiva Por Multiplicação

A modificação subjetiva ocorre por multiplicação quando o sujeito ativo se substitui por
vários outros sujeitos. Vejamos os 3 exemplos abaixo:

● É o caso da sucessão mortis-causa - a posição jurídica de A (de cuius) é ocupada


pelos herdeiros B e C.
● É o caso da sucessão inter vivos - A vende um terreno a B e C. O direito que estava na
esfera jurídica de A passa a estar na esfera jurídica de dois sujeitos.
● É ainda o caso da adjunção que ocorre quando, a uma posição jurídica é agregada
outro sujeito - A é proprietário único do terreno Y e vende uma parte desse terreno a
B. O direito que estava unicamente na esfera jurídica de A, passou a estar na esfera
jurídica de A e B; B agregou-se.

- Modificação Subjetiva por Substituição

A modificação subjetiva ocorre por substituição quando o titular do direito é substituído por
outro sujeito. Por exemplo, A celebra com B um contrato de mútuo, mas cede o seu crédito a C.
Existe uma modificação subjetiva do credor que inicialmente era A, mas passa a ser C.

- Modificação Subjetiva por Concentração

A modificação subjetiva ocorre por concentração quando a vários sujeitos ativos sucede um
único titular. Por exemplo, A e B são comproprietários de um terreno e vendem as suas quotas a C -
concentraram a sua titularidade em C.

- Modificação Subjetiva na Obrigação

A modificação subjetiva pode ainda ocorrer, não no sujeito, mas na obrigação. É o caso
clássico da Assunção de Dívida - art. 595.º CC. Percebamos em que consiste a assunção:

84
O que garante uma obrigação em geral é o património do devedor, pois o credor, quando
empresta, confia que o património do devedor seja suficiente para, em caso de ele faltar ao
cumprimento, poder ser acionado e ser ressarcido. Ora, se se substitui o devedor, substitui-se
também a garantia da obrigação, isso é o que acontece no artigo 595.º em que há uma transmissão
de dívida, ou seja, se o devedor A é substituído pelo devedor B, então a garantia da obrigação
(património de A) é substituída pela garantia de obrigação de B (o seu patrimônio).

É lógico que ao credor não seja indiferente que o devedor seja A ou seja B, porque a garantia
de obrigação pode variar de devedor para devedor. É por isso que, neste artigo, a lei protege os
interesses do credor e diz que a transmissão só exonera o antigo devedor se houver declaração
expressa do credor a concordar.

Ou seja, a menos que haja uma declaração expressa do credor que estipule que este liberta o
devedor novo da responsabilidade, este continua vinculado à mesma obrigação do devedor antigo.

Há que analisar aqui ainda o artigo 577.º CC - “O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a
totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não
seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria
natureza da prestação, ligado à pessoa do credor”. Como é que estes artigos se distinguem?

Volta a estar em causa a Cessão da Posição Contratual, contudo é o credor que substitui a
sua posição contratual e pode fazê-lo, em termos distintos daqueles a que está sujeito o devedor.
Portanto, se a cessão da posição contratual do devedor depende do consentimento expresso do
credor, a cessão da posição contratual do credor não depende do consentimento do devedor, este
apenas deve ser avisado.

2. Modificação Objetiva

A modificação é objetiva quando a alteração incide sobre o conteúdo ou o objeto do direito.

- Modificação Objetiva por Alteração do Conteúdo

A modificação objetiva ocorre por alteração do conteúdo, quando o elemento modificado é o


conteúdo do direito. Por exemplo, é o caso do artigo 1470.º CC - este artigo diz-nos que se o
usufrutuário não prestar a caução ou fizer mau uso da coisa que é objeto do seu direito, o direito não
se extingue, mas deixa de ter o conteúdo que tinha, para passar a ter o regime supletivo previsto no
artigo 1482.º.

- Modificação Objetiva por Alteração do Objeto

A modificação objetiva ocorre por alteração do objeto, quando o elemento modificado é o


objeto do direito. Por exemplo, é o caso da acessão - art 1325.º CC - suponhamos o seguinte
exemplo:

Existem dois prédios contíguos e há um arrastamento de terras do prédio A para o prédio B,


então há uma incorporação do terreno do prédio A relativamente ao terreno do prédio B, ou seja há
uma agregação de terrenos.

Existem dois tipos de acessão:

● Acessão Natural - resulta das forças da natureza

85
● Acessão Industrial - resulta da ação do Homem

São ainda exemplos de modificação objetiva por alteração do objeto, os arts. 701.º e o 678.º
CC.

3. Extinção de Direitos

A extinção dá-se quando um direito deixa de existir na esfera jurídica de uma pessoa, do seu
titular, sendo assim o inverso da aquisição. Esta extinção pode acontecer no plano:

- Subjetivo - extinção com perda

Aqui o direito não desaparece, apenas deixa de estar na esfera jurídica, onde se encontrava,
ou seja há uma mudança de titular. Esta difere da modificação, pois na modificação há uma alteração
do titular, ou este multiplica-se, ou suprime-se, etc. Pelo contrário, na extinção, o direito desaparece
naquela esfera jurídica, e vai para outra.

Esta mudança pode acontecer:

● Por vontade do titular – ex. A vende a B (perde o seu direito de propriedade).


● Sem a sua Vontade – ex: sucessão intestada (sem testamento).
● Contra a sua Vontade – ex: expropriação; execução de bens; sucessão legitimária.

- Objetiva

Diz respeito não ao sujeito, mas ao conteúdo ou objeto do direito. O direito deixa de existir,
ou seja, este não muda de esfera jurídica, mas antes não sobrevive em nenhuma esfera jurídica.
Modalidades da extinção objetiva:

● Destruição do Objeto - se o objeto desaparece, desaparece o direito. Por exemplo, A


é titular de um direito de propriedade de uma obra de arte, supondo que esta cai e
parte - o objeto desaparece e esse direito de propriedade também.
● Decadência - o direito extingue-se por formação de um direito posterior
incompatível. Por exemplo, quando o direito do terceiro se sobrepõe a um direito já
existente - é o caso de terceiros para efeitos de registo. Imaginemos que A vende um
prédio a B e, posteriormente, B vende o mesmo prédio a C que o regista. Assim,
apesar de B ter sido titular do direito de propriedade sobre aquele prédio, deixou de
o ser, a partir do momento em que C adquiriu um direito de propriedade posterior e
registou, portanto é um direito oponível a B.
● Abandono do objeto - é o caso da Ocupação. Por exemplo, se A abandona o objeto,
há extinção do direito de A. Ocorre principalmente no abandono de imóveis, pois
estes sem dono conhecido, pertencem ao estado.
● Não exercício do direito – é o caso do artigo 1476.º CC - se o usufruto é constituído
para que alguém tire as potencialidades de um bem, e o usufrutuário não o faz, o
direito de usufruto extingue-se por não uso desse direito.

Ainda dentro do Não Exercício de Direito podemos encontrar submodalidades,


nomeadamente:

86
● Renúncia Abdicativa - é o abandono de situação de prevalência do direito subjetivo.
Note-se ainda que nem todos os direitos são irrenunciáveis (ex.: direitos de
personalidade).
● Procuração (art. 262.ºCC) - é o ato através do qual alguém atribui poderes a outrem
para o representar, voluntariamente atribuição de poderes representativos.
● Prescrição (art. 304.º CC) - a prescrição é uma forma de extinção de direitos de
crédito que, a partir de um lapso de tempo, deixam de ser exigíveis. O que era uma
obrigação civil, passa a ser uma obrigação natural (art. 402.º CC). Existem diferentes
prazos de prescrição que as partes podem acordar no contrato, contudo se nada
estabelecerem, o prazo supletivo geral da prescrição é de 20 anos (art. 309.º CC).

- Caducidade - refere-se essencialmente ao direito de acionar.

Por exemplo, decorre do artigo 287.º CC, que apenas durante o período de tempo de um ano
subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, é que a anulabilidade pode ser
arguida. Sendo que após o termo desse ano, o direito a arguir a anulabilidade caduca. É de notar
que os direitos potestativos preferencialmente extinguem-se por caducidade, enquanto que os
direitos subjetivos em sentido estrito extinguem-se preferencialmente por prescrição.

Teoria Geral dos Sujeitos da Relação Jurídica


São sujeitos de direito todos aqueles que podem ser titulares de relações jurídicas, sendo
que para se ser titular de uma relação jurídica, é necessário ter personalidade jurídica - qualidade de
pessoa ou sujeito de direito.

Definimos a personalidade jurídica através da suscetibilidade de receber os efeitos da norma


jurídica e concretizamos esta noção de personalidade, através da capacidade jurídica de gozo do
direito. Não se pode, portanto, ter personalidade e não ter capacidade de gozo, essa capacidade é o
estatuto atuante da personalidade (art. 66.º) - são inerentes.

Existe ainda outra aceção da capacidade - capacidade de exercício, que é a idoneidade de


exercer em concreto direitos e cumprir obrigações, voluntariamente. Por outras palavras, se o titular
da capacidade de gozo contrai direitos e obrigações, é através da capacidade de exercício que este
vai atuar.

Distinção na Operacionalidade das Noções da Capacidade Gozo e Capacidade de Exercício


Na capacidade de gozo, não pode haver incapacidades, pois se é um estatuto inerente à
personalidade, não podemos sujeitar a pessoa a uma verificação da idoneidade - é um estatuto
absoluto. Pode haver restrições, em função das características da pessoa, mas não incapacidade.

Na capacidade de exercício, podemos ter incapacidades, pois se esta é a capacidade para


estar autonomamente na vivência jurídica, pode faltar essa aptidão. Para além disso, a capacidade de
exercício é reconhecida a todos os indivíduos que atingem a maioridade (art. 130.ºCC). Portanto, até
à maioridade a ordem jurídica reconhece-se uma incapacidade de exercício.

Pessoas Coletivas

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As pessoas coletivas têm a capacidade que resulta da existência de pessoas individuais que
preencham os órgãos da pessoa coletiva, de modo a que ela possa atuar. Assim, não podemos falar
de incapacidades da pessoa coletiva, porque o estatuto atuante da pessoa coletiva é igual ao
estatuto abstrato da sua personificação.

Por exemplo, ao admitirmos a constituição de uma sociedade comercial, esperamos que ela
atue através dos seus órgãos, com os limites que lhes são impostos.

1 . Direitos sem sujeito


Assim, serão concebíveis direitos sem sujeito? Por exemplo, na conceção de nascituros,
existe um direito que ainda não tem sujeito, visto que um nascituro foi concebido, mas ainda não
nasceu - art 952.ºCC. Daí que este artigo tenha gerado uma querela: será um estado de vinculação
ou um direito sem sujeito?

O Problema dos Nascituros Concebidos

Um nascituro nascituro é alguém que já foi concebido, mas que ainda não nasceu. O artigo
66.º CC diz que a personalidade jurídica surge com o nascimento, mas nascituro que já foi concebido
ainda não nasceu, será terá personalidade jurídica? Ou seja, pode ser titular de direitos e obrigações,
abstratamente?

Para haver personalidade jurídica tem que haver personalidade humana e para haver
personalidade humana tem que haver nascimento. O problema surge porque um nascituro ainda
nasceu, logo não poderia ter personalidade jurídica e ser titular de direitos e obrigações.

O artigo 66.º/2 diz-nos que – “os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do
seu nascimento” - a partir daqui podemos efetivamente perceber que há direitos reconhecidos aos
nascituros.

Tanto nos nascituros como naqueles que ainda não foram sequer concebidos, como refere o
Dr. Orlando Carvalho, temos uma personalidade jurídica ficta e provisória, que não encontra o seu
fundamento na personalidade humana e está dependente da verificação de uma condição - o
nascimento.

Alguns autores defendem ainda que está em causa retroação da personalidade jurídica - esta
não existe até ao nascimento do sujeito, porém quando se adquire, age retroativamente, cobrindo
todos os direitos que o nascituro e o não concebido adquiriram.

Outros autores defendem também que os direitos do nascituro são uma espécie de centro
autónomo de relações jurídicas não personalizadas e ainda estados de vinculação de certos bens,
visto que há uma premissa de não haver direitos sem sujeito.

O Dr. Orlando de Carvalho entende que se devem perspetivar estes direitos como núcleos de
interesses para cuja tutela se pode usar o direito subjetivo, sendo que já vimos atrás a forma como
estes protegem os interesses daqueles que os titulam. Se o nascituro é titular de direitos subjetivos,
este pode opô-los a todos e fazer-se proteger pelos mesmos, isto, porque a existência de um direito
subjetivo na esfera jurídica do sujeito não pressupõe a necessidade de existência humana desse
sujeito.

88
Entende-se ainda que a personalidade humana surge, não do nascimento ex abrupto, mas do
termo do processo biológico. O direito não pode desconhecer tal formação progressiva e deixar de
tutelar as infra-estruturas da personalidade que se vão formando nessa fase embrionária. - Então
existe tutela ainda que não exista personificação.

Por último, sobre estes rege ainda o princípio importante do nasciturus pro iam natus
habetur, quotiens de commodis eius agitur - o nascituro tem-se por nascido, quando se trata do seu
interesse.

Problema dos Nascituros Não Concebidos (Conceturos)

Até aqui falamos de nascituros que já foram concebidos, mas que ainda não nasceram,
falemos agora de nascituros que ainda não foram sequer concebidos e que, logicamente, não
nasceram. Estes também são passíveis de titular direitos. Contudo, de que direitos estamos a falar?

No caso dos nascituros não concebidos, falamos essencialmente de direitos patrimoniais, na


medida em que não faz sentido atribuir-lhes direitos de personalidade. Esses direitos são:

● A receber doações - art. 952.º CC - ex: alguém doa um terreno ao filho da sua irmã, sendo
que a sua irmã não tem filhos, mas se ela vier a ter um filho, este tem uma doação a seu
favor.
● Que se defiram sucessões testamentárias e contratuais - art. 2033.º/2 CC.

No caso dos nascituros já concebidos, falamos tanto de direitos patrimoniais como pessoais.

Nos direitos patrimoniais:

● Que se defiram qualquer espécie de sucessão - art. 2033.º/1 CC.


● A receber doações, por maioria de razão - art. 952.º CC.

Nota: para efeitos de administração de bens dos nascituros, relevam os artigos 2238.º e
2240.º CC.

Nos direitos pessoais:

● Direito à Integridade Física

Este é apenas um exemplo, mas o facto do nascituro ser titular deste direito, dá-lhe a
possibilidade de exigir uma indemnização que vê a sua integridade física afetada, na fase
embrionária.

Do ponto de vista prático, é útil perceber se estamos perante um nascituro concebido ou não
concebido - o artigo 1798.º CC estabelece o momento da conceção, ou seja, define quem está ou
não concebido.

Supondo que houve uma doação a favor do nascituro ou conceturo, ele é conceturo se
nasceu 300 dias depois da doação e é nascituro se nasceu dentro dos 300 dias subsequentes à
doação. Caso haja morte, há ainda que saber se houve ou não vida antes desse momento, isto é, se
morreu um feto ou uma pessoa, o que releva para fins sucessórios.

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2. Personalidade Jurídica
A personalidade é uma noção central dos aspetos operativos que apresenta, do ponto de
vista social, mas o que é a personalidade jurídica?

A personalidade jurídica traduz-se numa subjetividade jurídica, que é qualidade de quem é


sujeito de direito, ou seja, de quem tem a suscetibilidade abstrata de ser titular de direitos e deveres.
Aqui trata-se de uma titularidade abstrata, na medida em que eu posso ser titular de qualquer
direito ou obrigação por ter personalidade jurídica, pelo contrário, na capacidade jurídica, eu sou
titular de um direito ou obrigação concretos. Esta é uma distinção feita pelo Dr. Orlando de Carvalho.

A personalidade jurídica é o reflexo da personalidade humana, em toda a sua riqueza,


tratando-se assim de conceito evolutivo e dinâmico - a pessoa que eu sou hoje, não é a pessoa que
eu vou ser amanhã. A personalidade humana exige ao direito que este compreenda toda essa
riqueza e complexidade, o que se traduz em três reivindicações:

A primeira reivindicação é a essencialidade, ou seja, logo que haja personalidade humana,


tem que haver personalidade jurídica. Não pode haver assincronia entre a personalidade humana e o
seu reconhecimento pelo Direito - a personalidade jurídica é então essencial porque pressupõe
personalidade humana. E quanto às pessoas coletivas? Estas têm uma personalidade analógica à
personalidade humana, não convergem, ou seja, também são passíveis de ser sujeitos de direito,
contudo por serem uma imagem das pessoas individuais, não se confundem com estas.

A segunda reivindicação é a indissolubilidade da personalidade jurídica da personalidade


humana, sendo inseparáveis – uma existe tanto e quanto existe a outra.

Estas duas reivindicações impõe vários corolários à personalidade jurídica:

● A personalidade jurídica é irrecusável.


● A personalidade jurídica é inexpropriável.
● A personalidade jurídica é indisponível.

A terceira reivindicação é a ilimitabilidade da personalidade jurídica que tem de ser


apreendida pelo seu direito em toda a sua extensão - se esta é evolutiva, o direito tem de proteger
essa evolução. A personalidade jurídica é tão ilimitada quanto a personalidade humana.

Responsabilidade

A vida é protegida através da proteção dispensada à mãe, ex.: se uma grávida sofre uma
agressão que provoca lesões à mãe e ao feto, e o feto vem a adquirir personalidade jurídica, este tem
direito à reparação dos danos, porque se este tem personalidade humana, tem personalidade
jurídica e, consequentemente, direito à reparação do dano.

Termo da Personalidade - art. 68.º/1 CC

Diz-nos este artigo que a personalidade cessa com morte - a esfera jurídica desprende-se da
pessoa - extinguem-se os direitos de natureza pessoal e os direitos patrimoniais que se transmitem
aos sucessores.

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No entanto, há que ter em atenção que há direitos de personalidade que gozam de proteção
após a morte do titular - art. 71.º/1 CC → os direitos de personalidade, existem alguns aspectos da
tutela da personalidade que perduram após a morte.

Em tempos, houve uma controvérsia em torno deste artigo porque houve quem entendesse
que este artigo tutelava a personalidade pos mortem e, portanto, uma exceção à regra do artigo 68.º.
Contudo, a corrente predominante entende que, o facto de se atribuir legitimidade aos direitos do
de cuius visa proteger as pessoas próximas do de cuius e, portanto, essa é uma proteção pos mortem
atribuída em função do interesse dessas pessoas vivas e não do de cuius, não havendo motivo de
controvérsia. Entendem então que não há uma exceção ao artigo 68.º cc, mas antes uma extensão ao
mesmo.

Indemnização do Dano Mortem

Se alguém é privado do direito à vida por facto ilícito de outrem, há, de acordo com os
pressupostos de obrigação de indemnizar, direito ao ressarcimento daquele dano - art. 496.º/2 CC.
Mas se o sujeito morreu, como é que exige essa indemnização?

O dano mortem é indemnizável, porque a vítima já morreu, logo não é possível reparar esse
dano, assim sendo a indemnização ainda vai entrar na sua esfera jurídica e difere-se como direito
patrimonial aos seus sucessores - não derroga o artigo 68.º CC.

A morte é um facto sujeito a registo civil, e este tem de ser feito com a apresentação de um
certificado de óbito que não pode ser feito sem um certificado médico. Inclui-se também a
identificação do falecido, as circunstâncias da morte e o destino do cadáver.

Quando se desconhece a causa da morte ou quando aparece um cadáver de pessoa


desconhecida, o registo civil coloca o máximo de informações disponíveis - são situações anómalas.

Após esse registo civil, o cadáver passa a ser designado de coisa extra commercium - artigo
202.º/2 CC - o cadáver não é suscetível de apropriação, daí ser fora do comércio. Isto suscita algumas
questões relativamente ao destino do cadáver, nomeadamente para fins científicos e terapêuticos -
na nossa ordem jurídica, o destino normal do cadáver é ser consumido por inumação em cemitério
público ou por meio de incineração e depósito das cinzas. A lei protege esse destino, estabelece
prazos mínimos e preocupa-se em preservar aquilo que foi o invólucro de uma personalidade
jurídica.

Problemas no Seio da Extinção da Personalidade Jurídica

1. Morte conjunta de várias pessoas - art. 68.º/2 CC

O direito presume a morte simultânea - por exemplo, A é pai de B e têm um acidente.


Quando chegam ao socorro é impossível determinar quem morreu primeiro, presume-se que
morreram ao mesmo tempo. Temos uma presunção de comoriência, contudo se houver
possibilidade de determinar a precedência de uma morte relativamente à outra, desaparece a
presunção.

2. Desaparecimento - art. 68.º/3 CC

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As causas mais frequentes do desaparecimento são os acidentes rodoviários, aéreos ou
naufrágios - art. 247.º e ss CC. Após verificação do desaparecimento, abre-se um processo de
justificação judicial do óbito a cargo do Ministério Público, previsto no código do registo civil.

Nos termos deste processo, é elaborado um certificado de óbito, com casos especiais nos
naufrágios. Se houver equívoco da morte não ter acontecido ou ter acontecido em circunstâncias
diferentes, a sua personalidade volta, a pedido de requerentes - art. 299.º e ss CC.

3 .Tutela da Personalidade Jurídica


Os direitos de personalidade são direitos inerentes à pessoa, que formam a sua esfera
jurídica e são relativamente recentes, sendo, atualmente, tutelados de forma mais sistemática.

Hoje, o nosso ordenamento jurídico é dotado de uma tutela multinível, onde a


personalidade humana e jurídica estão indissociavelmente ligadas e, por essa importância central e
axiológica resultante desta ligação existe uma tutela que se estrutura em vários planos. Por ordem de
importância, podemos organizar os tipos de tutela da personalidade jurídica da seguinte forma:

1. Direitos Fundamentais (CRP)


2. Código Penal
3. Código Civil
4. Código do Trabalho

Estes 3 códigos estão praticamente no mesmo plano, porque o código do trabalho constitui
um complemento ao código civil, pelo que não pode ser lido isoladamente deste.

Tutela Constitucional

A tutela constitucional é uma tutela assente na consagração dos direitos fundamentais e


existe uma relação entre estes e os direitos da personalidade - é necessário que trabalhem em
conjunto para a proteção eficiente dos bens jurídicos em causa. Esta tutela protege os direitos de
personalidade amplamente e tem mecanismos de proteção como os DESC que gozam da mesma
tutela que os direitos fundamentais.

Tutela Civil

Em primeira linha de defesa dos bens da personalidade, temos a tutela geral - direito geral
da personalidade - este tem como objeto o direito à personalidade no seu todo, ou seja, incide sobre
a personalidade sem distinção da faceta que está em questão.

É um direito que abrange as manifestações previsíveis e imprevisíveis da personalidade


humana, englobando o livre desenvolvimento da personalidade. Esta categoria tem tido particular
importância na proteção da personalidade, porque acompanhando o desenvolvimento tecnológico,
existem situações de potencial prejuízo para a tutela individual da personalidade.

Por exemplo, com o surgimento da videovigilância houve a preocupação de tutelar a reserva


individual que passou a estar em causa. Perante a evolução do uso da tecnologia, frequentemente
não temos um sistema jurídico preparado para uma resposta efetiva e a primeira linha de defesa é
constituída pelo livre desenvolvimento da personalidade - é um direito dinâmico.

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Também aqui incluímos todas as proteções que derivam da aprendizagem, da formação, etc,
ou seja tudo aquilo que serve para estruturar a personalidade no futuro. Hoje, este livre
desenvolvimento da personalidade é mobilizado com alguma frequência nas questões ambientais.
Por exemplo, o prejuízo que advém dos danos ambientais não prejudica a personalidade atual, mas
sim a sua projeção futura.

O artigo 70.º CC consagra uma tutela genérica que não é limitada nem limitar. Contudo,
temos que considerar as possibilidades reais de efetivação do direito, já que os direitos de
personalidade funcionam numa escala que têm como limite inferior as considerações de adequação
social

Por exemplo, se num transporte público, à hora de ponta, alguém é involuntariamente


pisado intensamente, essa situação contende com o invólucro físico do outro. Contudo, temos que
tornar esta situação irrelevante para o direito porque ela resulta de uma outra situação também
importante, designada da vida social - a pisadela acontece porque nós vivemos em sociedade e faz
parte da livre socialização com os outros. A lesão só releva para o direito quando ultrapassa essa
atuação social, então há aqui um condicionamento que resulta das exigências da vida social.

Então, se a conduta é involuntária mas está em causa um dano gravoso, a conduta é


considerável para o direito. Mas se este é o patamar mínimo da atuação dos direitos de
personalidade, qual será o topo?

A manutenção da vida - é no intervalo que projetamos a tutela da personalidade. Neste


intervalo, pode acontecer que o direito de personalidade de alguém contenda com o direito de
personalidade do vizinho.

Por exemplo, se num prédio mal insonorizado, um dos condóminos é pianista e precisa de
praticar a sua arte, isso pode contender com o direito do vizinho ao repouso, que também é ele um
direito de personalidade porque é essencial à manutenção da integridade física - colisão entre o
direito à criação e livre desenvolvimento da criação artística e o direito ao repouso.

Como resolvemos a questão? Através do artigo 335.º CC - o nosso exemplo, segundo o


critério deste artigo, devem estabelecer-se períodos de tempo dedicados ao repouso e à criação
artística, de forma a harmonizar as duas práticas.

Contudo, os direitos de personalidade não têm todos o mesmo valor axiológico, porque há
bens jurídicos mais vitais do que outros - por exemplo, o direito à vida sobrepõe-se ao direito à
criação. Esta categorização leva-nos a uma solução, nomeadamente prevalece o direito que se
considera superior segundo o art. 335.º/2 CC. Esta é uma consideração casuística e que se dirige ao
valor jurídico em causa.

Temos uma tutela geral da personalidade, contudo temos ainda tutelas respeitantes a
aspetos parcelares que nunca constituem um elenco fechado, ou seja, mesmo não prevista, a
proteção geral existe sempre porque temos aquela proteção central constituída pela proteção geral.

Os direitos de personalidade são circunscritos a determinadas manifestações da


personalidade, contudo, nem todos os direitos de personalidade têm uma norma específica a
protegê-los. Temos a tutela geral do artigo 70.º complementada por uma série de proteções
específicas a que se junta uma tutela particular no Código do Trabalho.

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Ao direito central da personalidade, junta-se uma tutela descentralizada, especial, em que só
determinados bens jurídicos são considerados. Para além desta, existe uma tutela ainda mais
especial, que tutela por exemplo a reserva da intimidade da vida privada profissional no caso do
teletrabalho, ou seja, formas cada vez mais específicas e voltadas para situações concretas.

A tutela é evolutiva e não estática.

4. Direitos Especiais de Personalidade


Estes são direitos que constituem a tutela especial - teoria da forma descentralizada da
tutela jurídica - e têm arrumações possíveis muito diferenciadas, segundo critérios muito variados.

● Direito à Vida

No topo do intervalo funcional da atuação da personalidade, está o Direito à Vida - é o


direito à conservação da vida, à sua existência biológica, tal como ela existe, e não um direito a obter
a vida (tal seria contra a legalização do aborto).

É um direito tutelado pela tutela civil (art. 70.º e art. 337.º CC), penal (art. 131.º e ss. CP) e
constitucional (art. 24.º CRP), sendo absolutamente indisponível, a não ser nos casos de aceitação de
morte medicamente assistida ou nos casos de legítima defesa, ação direta ou estado de necessidade.
Esse é o estrito quadro em que pode funcionar a vontade e apenas nesse quadro é possível aceitação
da vontade para disponibilidade do direito.

O artigo 496.º CC prevê o instituto da compensação em caso de violação do direito à vida


(morte) - essa compensação ingressa na esfera jurídica do titular e é, posteriormente, transferida
mortis causa aos convenientes da vítima - jure hereditario.

Esta é uma compensação pelos danos causados à vítima e uma compensação pelo
sofrimento causado às pessoas mais próximas da vítima. Além destes danos não patrimoniais, pode
ainda haver lugar ao ressarcimento de danos patrimoniais indiretos - art. 495.º CC.

O direito à vida tem sido objeto de discussão devido à wrongful life / birth - direito a ser
ressarcido por problemas congénitos. Esta questão foi inicialmente discutida a propósito do
nascimento com problemas congénitos profundos, onde o lesado, bebé que nasceu com
determinada deficiência, exigiu uma indemnização da mãe por esta não ter feito uma interrupção
voluntária da gravidez, mesmo sabendo o estado em que o bebé ia nascer.

Não temos precedente nesta área e a questão coloca-se referentemente aos EUA que
introduziram, no ano passado, uma emenda que impede a interrupção voluntária da gravidez.

No nosso ordenamento jurídico, é possível a interrupção voluntária da agravidez. Além disso,


temos tutelas específicas para determinadas situações, como acontece na lei do testamento vital.

● Direito à Integridade Física

É o direito a não ser lesado na integridade físico-psíquica tal como se possuiria se não se
verificasse tal lesão, portanto, não se circunscreve à fisicalidade da pessoa externa. Também aqui
temos tutela civil (art. 70.º CC), penal (art. 142.º e ss. CP) e constitucional (art. 25.º CRP),
relativamente a estes regimes, o direito penal só sanciona os ataques à integridade física se estes

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foram praticados com dolo, ao passo que o direito civil, em princípio, sanciona sempre um ataque à
integridade física.

Abrange também o direito a não sofrer lesões na fase intra-uterina, ou seja, o nascituro
quando nascer, tem direito a exigir ressarcimento pelos danos que lhe foram causados quando este
se encontrava nessa fase. Atenção, essa é uma ação contra o lesante, não contra os pais - se os pais
sofrem um acidente e o nascituro sofre lesões, caberá o ressarcimento dos danos a quem se imputa
a culpa pelo acidente e não aos pais.

Qualquer agressão à integridade é ilícita desde que ultrapasse o patamar inicial da atuação
social, isto porque o corpo do outro é um espaço de reserva, intransponível. Evidentemente, existem
comportamentos sociais que podem ser ambíguos quanto a essa transposição, por exemplo, no que
concerne a formas de saudação entre pessoas - existem pessoas mais expressivas com tendência a
ser mais efusivas nas manifestações físicas. O limite aqui é muito ténue porque esse espaço de
reserva é um espaço que cada um tem o direito de remarcar, isto é, existem sensibilidades táteis,
mas também podem não haver.

Isto só começa a ser um problema jurídico nas hipóteses de assédio e bullying, porque aí
passamos nitidamente a fronteira da vida social. Contudo, este direito à integridade física tem
também implicações noutros domínios como os domínios de colheita de transplantes de órgãos,
tecidos e células de origem humana para fins terapêuticos ou de transplante, na procriação
medicamente assistida etc.

Assim, está em causa a gradação do bem jurídico em causa - do direito à vida, enquanto
direito mais importante, segue-se o direito à integridade física.

● Liberdade Física e Moral

Tanto num caso como no outro, o direito à liberdade envolve duas facetas:

1. Liberdade Positiva - poder da pessoa se conformar pessoalmente, pela sua


autodeterminação individual:
a. Liberdade física - o direito de se deslocar e todas as liberdades de movimento
b. Liberdade Moral - dão expressão à sensibilidade pessoal, direito de defender ou não
defender, acreditar ou não acreditar.
2. Liberdade Negativa - consiste no direito a dizer Não. Esta vai mesmo ao ponto de recusar
comportamentos que podem constituir situações de incumprimento, daí que não exista
execução específica no âmbito dos direitos de personalidade - art. 827.º ss CC. - sendo que a
execução específica consiste na substituição do devedor por outrem.

Por exemplo, A aceita celebrar com B um contrato para fazer a figuração num filme.
Compromete-se a executar as diretivas da produção, e chega ao momento da execução do contrato e
há diretivas do desagrado da pessoa, e ela não cumpre - há um incumprimento da obrigação inicial,
mas como há um direito da liberdade negativa, esta pode incumprir mesmo sujeitando-se às sanções
do incumprimento contratual, mas não pode haver execução específica, o produtor não pode dizer
que haverá substituição de A por outra pessoa.

Este direito à liberdade negativa é agudo relativamente à liberdade sexual, no que diz
respeito às liberdades físicas, e à coercibilidade que essa liberdade tem.

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Temos ainda o artigo 4.º Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital - o veículo da
comunicação digital veio abrir a frente de potenciais agressões, porque as pessoas atualmente
entram em contacto com mais pessoas do que acontecia anteriormente e, portanto, abrem a porta a
mais potenciais lesões.

● Direito à Inviolabilidade Pessoal

Este corresponde ao direito a não transpor o espaço de reserva individual, tendo


manifestações ao nível físico, vital e moral.

- Projeção Física
-
a) Direito à Imagem

Concretiza-se no artigo 79.º CC - quando falamos de imagem falamos do retrato da pessoa,


mas também de outros elementos que podem reconduzir à imagem da pessoa. É o direito a
controlar a captação e divulgação dos elementos visuais da pessoa.

O número 2 deste artigo diz ainda que há uma flexibilidade nas fronteiras da proteção do
direito à imagem, de acordo com a pessoa e as suas circunstâncias. Portanto, se o sujeito detiver um
cargo de grande notoriedade e se encontrar num espaço público, é lícita a captação da sua imagem.
Evidentemente, o conceito de espaço público é indeterminado → o espaço é público se for acessível
a qualquer pessoa, ou seja, não sujeito a qualquer forma de identificação ou preço.

Assim, este número 2 apresenta-se como uma justificação da violação do direito à imagem,
perante dois tipos de circunstâncias: as relativas a dados subjetivos e as relativas a elementos
objetivos.

São elementos objetivos que justificam a violação do direito à imagem, por exemplo, as
finalidades da justiça, mas tem que haver um interesse legítimo. E, para além disso, é justificável se a
imagem for captada em espaços públicos. São elementos subjetivos a notoriedade e o cargo
desempenhado.

O número 3 deste artigo cruza a tutela do direito à imagem com a tutela do direito à honra,
ou seja, não só protegemos o retrato da pessoa, como protegemos o direito à sua projeção nos
outros, a sua honra. Portanto, é ainda ilícita a captação da imagem quando essa vise atentar contra a
honra do sujeito, mesmo que cumpra os requisitos do nº 2 e nº3. É de notar que o direito à imagem
é violado pela captação e divulgação da imagem, porque com essa captação abre-se a possibilidade
de divulgação, ou seja esta violação não se consuma apenas com a divulgação.

Este é um direito disponível, ou seja, pode ser limitado voluntariamente pelo titular - é o
caso das influencers e modelos, que vivem da divulgação da sua imagem, diretamente ou através de
terceiros. O consentimento para dispor do direito à imagem é muito lato, pois este pode ser objeto
de contrato e se o é, diz-se um consentimento vinculante.

Os problemas mais recentes do direito à imagem são diferentes daqueles que existiam
quando este artigo foi pensado - na altura prendia-se com a fotografia, mas agora com a invasão

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tecnológica, é mais fácil captar imagens ilegalmente e a questão das redes sociais, principalmente
relativamente a imagens de menores nas mesmas.

Neste último caso, ele é em princípio proibido, porque aqui o consentimento teria de ser
dado no interesse do menor pelos representantes legais, mas a sua divulgação não visa concretizar
nenhum interesse do menor, pode até ser adverso ao livre desenvolvimento, daí a restrita
jurisprudência neste domínio.

b) Direito à Palavra

Este é um direito que incide sobre a expressão oral da pessoa, contudo pode dizer respeito a
outros elementos como os sons - ex.: quando as pessoas têm uma gargalhada muito característica.
Aqui não está em causa a proteção do conteúdo discursivo, mas a proteção do reconhecimento da
sua voz - ex.: gravações de conferências, aulas, escuta.

Além da violação associada ao conteúdo discursivo, há desde logo violação do direito à


palavra, pois há uma captação ilícita da expressão oral de alguém. Aplica-se o artigo 79.º do direito à
imagem por analogia ao direito à palavra e, portanto, se estivermos em espaço público, a captação
da voz é lícita.

A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos da Era Digital também contempla este bem da
personalidade, assim como no direito à imagem.

- Projeção Vital

A projeção vital tem a ver com aquilo que diz respeito ao modo de viver do indivíduo, seja
individualmente ou socialmente.

a) Direito ao caráter

Este direito diz respeito à personalidade da pessoa, aqui já não se fala em personalidade
jurídica, isto é, aquilo que a pessoa é, proveniente de dados genéricos, comportamentais, culturais,
entre outros. Este direito impõe que as pessoas não possam ser objeto de indagação pelos outros,
por exemplo o direito a não ser sujeito a análises de caráter.

b) Direito à História Pessoal

É um direito relativo a dados do percurso pessoal, à história e percurso pessoal de cada um


de nós e manter em reserva essa história. Nós somos gestores daquilo que queremos que os outros
conheçam e, nessa gestão, temos o direito de manter a nossa história pessoal em reserva, portanto
só damos a conhecer aquilo que queremos dar a conhecer.

Perante este princípio, será que são lícitas as biografias não autorizadas? Em princípio, estas
contendem com este espaço de inviolabilidade pessoal, e mesmo que tenha um caráter lisonjeante,
retira à pessoa a capacidade de esta gerir essa informação. Essa fricção entre a curiosidade social e a
curiosidade dos outros tem, hoje, contornos difusos, porque às vezes são as próprias pessoas que
fornecem os elementos para a difusão dessa história (ex.: através das redes sociais).

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Contudo, nesses casos há intervenção do conhecimento. A violação deste direito é, ainda,
agravada se houver divulgação de dados de outra pessoa - ex.: divulgação de relações afetivas entre
duas pessoas e ambas são afetadas.

c) Direito à intimidade da vida privada - art. 80.º CC

Este direito é o direito sobre a gestão de informação. Todos nós, na interação social,
podemos deparar-nos com factos que dizem respeito à intimidade de outrem, mas temos um direito
de reserva sobre isso. Contudo, esse é um direito flexível quanto à sua extensão e tem duas
coordenadas essenciais - a natureza do caso e a condição das pessoas (art. 80.º/2).

Em relação à natureza do caso, a violação é mais gravosa no caso de ter sido procurada pelo
lesante, do que se ele tiver conhecimentos sobre a informação de forma acidental. Em relação à
condição das pessoas, isto é, a notoriedade de alguém faz encolher o espaço privado, porque há
muitos aspetos da vida privada que podem ter relevo na vida pública (por exemplo, em aspetos
eleitorais) e ser nosso objeto da curiosidade alheia.

Temos ainda considerações diferenciadas consoante estejamos perante a esfera em que


estamos integrados - teoria das esferas concêntricas - esta teoria é muito importante na dogmática
deste direito, porque contribuiu para a sua afirmação.

Na verdade, este é um direito recente, de luxo, porque até finais do século XIX, o espaço
individual era delimitado pela propriedade, a partir do momento em que não se entrava nos limites
da propriedade, respeitava-se o direito de reserva das pessoas. Contudo, aí foi declamado o “right to
be alone”, que transferiu o âmbito da tutela da propriedade para o âmbito da personalidade.

É um direito de luxo, porque só se desenvolve num ambiente de recorte muito exigente


quanto à defesa da personalidade, por exemplo a individualidade e privacidade no meio rural e no
meio urbano, há claras diferenças - no meio rural seria legítimo interrogar os outro sobre aspetos da
vida privada, por ser um meio mais pequeno, enquanto que no meio urbano, as exigências são mais
agudas, por ser um estilo de vida urbano.

A concretização deste direito faz-se, então, através:

1. Da esfera privada, que abrange os aspetos privados não pessoais (ex.: espaços que
frequentam, que animais têm,..), ou seja, são aspetos privados das pessoas que são não
pessoais.
2. Da esfera pessoal, que diz respeito aos gostos, preferências, relacionamentos, etc, existem
independentemente do estatuto relacional da pessoa - existem quer dentro do casamento,
união de facto, meras relações afetivas, porque simplesmente dizem respeito à
personalidade.
3. Da esfera de segredo, que engloba aquilo que nós queremos que seja segredo, mesmo que
seja trivial para os outros. A própria pessoa pode gerir o seu campo de segredo e se eu
quiser que determinada coisa seja segredo, ela é segredo.

Coisas secretas por natureza (ex natura) - há, ainda, coisas que pela sua natureza e função
são secretas, como as password, códigos de multibanco, etc. Aqui não cabe ao titular definir se estas
coisas são segredo ou não, elas são-no por natureza.

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Coisas secretas por vontade do titular (ex voluntate) - Aqui quem é o juiz do caráter secreto,
é a própria pessoa. Há coisas que têm mais apetência para serem segredo do que outras, como os
diários, dados de saúde, fichas escolares, etc, mas é o seu titular que decide se estas são segredo ou
não.

Regime comum das coisas secretas - há um regime comum das coisas secretas - estas são
impenhoráveis, insuscetíveis de execução específica. Contudo, esta dupla definição entre coisas
secretas ex natura ou ex voluntate releva porque, apesar de haver um regime comum, estas diferem
num aspeto: ónus da prova.

Regime diferenciado das coisas secretas - nas coisas secretas ex natura, a pessoa que tem
interesse na manutenção do segredo, não tem de demonstrar a sua natureza secreta, por exemplo, o
titular do código de multibanco não tem que provar que este é secreto. Portanto, o ónus da prova -
art. 572.º CC - cai sobre a pessoa que está interessada em desfazer o segredo.

Já nas coisas secretas por ex voluntate, o ónus da prova recai o titular, isto é, é o titular quem
tem que justificar, porque é que manteve aquela coisa na sua esfera secreta.

d) Direito à proteção de dados

Este direito começou por ser uma emanação do direito à reserva da intimidade da vida
privada, contudo, construiu-se uma proteção respeitante aos dados pessoais, porque elas incluem
informações da esfera pessoal, ou seja, é uma tutela que resulta da tutela da reserva da intimidade
da vida privada.

A rápida evolução tecnológica permitiu que se acumulassem problemas específicos da


proteção de dados e, hoje, este não é um direito centrado na tutela da reserva da intimidade da vida
privada, até porque nem todos os dados dizem respeito à vida privada. Além disso, a evolução de
dados ocorreu de tal forma, que este já constitui um sub-ramo que tem uma nomenclatura própria.

Hoje, múltiplos diplomas cruzam-se nesta proteção - Pilar Europeu dos Direitos Sociais,
CDFUE, Regulamento 2016/679 e a Diretiva 2016/680. Foi desde o RGPD (Regulamento Geral da
Proteção de Dados) que a proteção de dados ganhou importância - este ocupa-se de dados pessoais
relativos a pessoas singulares, identificavéis ou inidentificavéis.

A identificabilidade pode ser complexa do ponto de vista técnico, ou seja, a complexidade


para chegar à identificação não é relevante para efeitos desta classificação, porque o regime aplica-se
tanto a pessoas identificavéis ou inidentificavéis. Existem alguns tipos de Dados Sensíveis,
nomeadamente:

● Dados sensíveis pela ligação que têm à pessoa


● Dados sensíveis pelo seu pontecial discriminatório - o conhecimento desse dado pode dar
origem a discriminação, como por exemplo:
➔ Dados Genéticos
➔ Dados Biométricos - resultantes de um processo técnico que procede à comparação
de dadas características da pessoa com uma reserva de dados pré-existente.

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➔ Dados relativos à saúde (física ou mental)
➔ Princípios que subordinam o RGPD - licitude, lealdade e transparência; limitação da
finalidade; minimização dos dados; limitação da conservação; integridade e
confidencialidade; responsabilidade.

Este regulamento visou, essencialmente, a proteção pessoal e a comodificação dos dados.


Este é portanto um direito fundamental e um direito de personalidade que tem com direitos
derivados, os direitos ARCO (acesso, retificação, cancelamento, oposição). O regulamento mudou
ainda, o eixo principal desta situação de uma centralização de heterotutela para a autotutela, através
do encarregado de proteção de dados, ou seja, o responsável pelo tratamento de dados.

e) Direito à Verdade Profunda

É um direito de administração e circunscrição do espaço pessoal face ao outro, assim, o


objeto é a própria verdade da pessoa, o direito de gerir a sua própria verdade. Tem conteúdo
negativo porque diz respeito à liberdade negativa de não revelar dados confidenciais. Não é um
direito à mentira, a divulgar ou transmitir dados ou informações que não sejam verídicos, daí ser um
direito que assenta numa liberdade negativa, pois não deve dar a conhecer a sua própria verdade.
Este entra em causa quando alguém pretende sujeitar outrem a uma deteção da verdade - ex:. testes
de polígrafo.

- Projeção Moral

A projeção moral corresponde ao espaço do indivíduo, face aos outros, no que diz respeito à
sua dimensão moral.

a) Direito à Honra - art. 79.º/3

A honra pode ter muitas aceções e conotações, contudo aqui interessa-nos como a
reputação ou honra extrínseca à pessoa, ou seja, ao modo como os outros nos percecionam. Tem a
ver com o reflexo da imagem do eu e existe violação deste direito quando temos factos que
contendem com esta perceção do eu nos outros.

É lesado quando se divulgam fatos que afetam essa projeção do indivíduo nos outros, sejam
esses factos verdadeiros ou falsos, porque a lesão aqui acontece na projeção do indivíduo, que pode
ser feito por factos verdadeiros ou falsos. Assim, é irrelevante a exceção da verdade, para haver
direito à honra.

O direito penal lida com este problema através de dois tipos legais de crime - a Injúria e a
Difamação. Relativamente à tutela penal e civil do direito à honra podemos dizer que na
consideração da lesão de bens jurídico penais, a exceção da verdade (excessio veritatis) é
considerada na determinação da medida da pena - por outras palavras, se alguém divulgou factos
verdadeiros, tal tem um peso diferente na determinação da medida da pena.

Já no direito civil, não existe essa distinção, porque existe lesão do direito à honra, sejam os
factos alegados verdadeiros ou falsos. Para além disso, se no direito penal, para haver lesão do
direito à honra tem de haver “vontade de injuriar” (animus injuriandi), no direito civil não há
investigação à intenção da pessoa quando ocorrem os factos - atende-se ao efeito e não à intenção.

100
A honra extrínseca contrapõe-se à honra interna, a que está associada à dignidade da pessoa
e aqui, recorremos à teoria das esferas, e é necessário considerar as várias camadas deste direito:

➔ Esfera mais superficial

Esta esfera consagra o direito à honra pessoal, invariável de indivíduo para indivíduo, porque
está associada à conceção de pessoa e portanto é igual em todos os indivíduos, independentemente
da sua profissão, notoriedade e posição pessoal. Aqui podemos incluir aspetos pessoais e
características básicas que associamos à humanidade, o facto de sermos seres humanos.

Essas características são as qualidades básicas que reconhecemos socialmente às pessoas,


como a honestidade, celeridade, equidade, retidão. Esta é uma camada essencial ligada à dignidade
humana com todas as características que imputamos a esse bem jurídico. Apesar de não haver
invariabilidade, existem ciclos da honra que podem variar, como é o caso do bom nome no sentido
de reputação.

Incluímos aqui a honra deontológica ou profissional e isso já varia de acordo com a profissão,
ocupação ou atividade da pessoa em causa (art. 484.º CC) - se a ofensa ao bom nome e à reputação
for de gravidade qualificada, atingimos uma esfera que vai para além dos limites da honra, passamos
da honra profissional para a honra pessoal.

Por exemplo, se alguém diz que A é um mau médico, temos ofensa à reputação profissional
de A. Se alguém diz que é mau médico, ladrão e vigarista, passamos os limites da reputação, da
honra e atingimos a pessoa na sua dignidade externa. Claro que se alguém efetivamente for um mau
médico, os outros podem ter iniciativa no sentido de pôr termo a essas condutas, mas pelos canais
juridicamente estabelecidos e de denúncia próprios para o efeito.

➔ Subesfera da Esfera Superficial

Falamos do Direito ao Crédito - art. 484.º CC - aqui falamos de um crédito, enquanto forma
específica de reputação que tende a ver com as qualidades econômicas e financeiras da pessoa. É
uma honra económica, que tem a ver com a capacidade de resolver problemas financeiros. O direito
ao crédito varia consoante as circunstâncias e é importante quando se quer recorrer a um
empréstimo bancário.

➔ Esfera Interior

Falamos do Direito ao Decoro - este é um direito muito variável, porque está relacionado
com a idiossincrasia do indivíduo, já que, por exemplo, existem pessoas mais extrovertidas,
introvertidas, tímidas.

Existem, evidentemente, traços gerais e comuns como os hábitos sociais, padrões de


comportamento, mas mesmo aí com uma grande variabilidade. Decoro, no fundo, consiste na
contenção dos costumes e o que varia é esse grau de contenção.

Se é variável de individuo para individuo, a determinação da esfera fica muito dependente da


própria pessoa, daí que esta zona do direito à honra seja aquela em que há uma maior
disponibilidade do direito - através do consentimento, é possível dispor do direito ao decoro, ao
passo que a honra é indisponível.

101
Também a gravidade da lesão depende da camada em causa, se alguém violar o direito ao
decoro de outrem é diferente da violação à honra essencial - o direito à honra tem uma intensidade
axiológica acrescida.

As próprias pessoas jurídicas coletivas também detém alguma manifestações do direito à


honra - não se fala do direito ao decoro de uma sociedade comercial, mas tem todo o sentido falar
do direito ao crédito / reputação.

A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital tem, ainda, uma tutela que
salvaguarda o bom nome e a reputação, na era digital.

b) Direito à Identidade Pessoal

Este é um direito inato, isto é, nasce com a pessoa - a pessoa nasce com uma identidade
oponível aos outros, o seu direito a ser reconhecida face aos outros. Faz também parte da essência
da personalidade, o facto de existir uma identidade que permita que a pessoa não seja confundida
com outra. Este direito tem dois desdobramentos:

1. Direito aos Meios de Identificação Pessoal - direito ao nome - art. 72.º/1 CC

Este é um direito adquirido e não inato, já que só se adquire quando lhe é atribuído o nome.
É possível que a pessoa tenha o mesmo nome que outrem (homonímia), contudo um indivíduo não
pode usar o seu nome de modo a ser confundido com outra pessoa, fazendo crer ser a mesma
pessoa - art. 72.º/2. Normalmente, é a pessoa que nasce depois, que deve adaptar o nome de modo
a não suscitar essa confusão.

Além disso, o pseudónimo encontra-se tutelado no artigo 74.º CC, que confere uma
proteção forte ao pseudónimo, contudo, este tem de ter notoriedade. Esta é também uma proteção
paradoxal, na medida em que por ser um nome de escolha, já não se permite a adoção de
pseudônimos já existentes.

Nota: não há nenhum registo de pseudônimos, pois funciona no universo do


reconhecimento social, ou seja, se alguém quiser tutelar o seu pseudónimo, tem de fazer prova da
sua notoriedade, pelo menos, no âmbito de um círculo social.

Este direito ao nome estende-se às pessoas coletivas, como é o caso da firma - firma é o
nome da sociedade e, portanto, não se pode fazer um mau uso dessa designação.

Existem ainda outros elementos de identificação pessoal para cidadãos com menos projeção
pública, que podem ser igualmente protegidos, para além do pseudônimo, como os títulos
nobiliárquicos.

2. Direito à Verdade Pessoal - Aqui, a mentira é relevante, já que se trata do direito a conservar
a fidedignidade dos dados. É ainda um direito lesado se forem divulgadas informações de
conteúdo não verídico, ainda que não atinjam a honra.

A Carta Portuguesa também protege o direito à identidade pessoal em ambiente digital, e


certas designações identificativas desde que tenham projeção, notoriedade e individualidade.

Ainda no direito à identidade pessoal, está patente o:

➔ Direito à História Genética da Pessoa

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É um direito a conhecer e a ceder à história genética da pessoa, principalmente quando não
resulta de dados biológicos imediatos.

➔ Direito à Criação Pessoal

É o direito de criar qualquer coisa que expresse personalidade, seja uma obra de artesanato,
literária, uma performance. Aqui as manifestações e corporizações deste direito são múltiplas, sendo
que é violado quando se impede alguém de criar.

Este transpõe a questão da liberdade de expressão e opinião, quando há códigos de conduta


que impedem a expressão de determinadas posições políticas, ideológicas, religiosas - quando tal
acontece, então esta liberdade é questionada. É um direito inerente a todos os seres humanos, ainda
que ele nunca venha a criar nada, o que dificilmente acontece pois faz parte do ser humano criar.

Quando há criação, passamos a ter uma tutela distinta, porque passamos para o domínio dos
Direitos de Autor. Quando surge a obra, e qualquer obra depende dos domínios científicos,
artísticos, etc no sentido de obra de engenho, passamos a ter um Direito de Autor.

A obra é um nóvulo porque é algo que não existia e passa a existir, neste sentido o direito à
criação, é um direito de personalidade, é um direito adquirido. O direito de autor tem duas
vertentes:

1. Direito Moral de Autor - vertente pessoal

É o direito da personalidade, em que o objeto é a obra, em si mesma, e tal como o autor a


quis. Essa obra é uma expressão da personalidade, daí que se desdobre às seguintes faculdades
jurídicas, sendo que é violado o direito de autor se alguma das seguintes for atinginda:

➔ Direito a ser reconhecido pela obra


➔ Direito ao inédito (controlo da divulgação ou retirada da obra)
➔ Direito à dignidade da obra (que esta não seja deformada)
➔ Direito de sequência (direito de beneficiar das valorizações especiais da obra)

Este direito moral pertence ao autor, mas também se transfere mortis-causa, após 50 anos.
Há violação deste direito nos casos em que há falsa imputação de autoria ou violação da sua
intangibilidade, daí que uma adaptação de um livro ao cinema, por exemplo, pressuponha a
autorização do autor, porque essa adaptação deforma a obra.

O direito moral de autor difere do direito à criação pessoal: enquanto que o direito moral de
autor é um direito adquirido, porque resulta da criação, o direito à criação pessoal é um direito inato,
que está na esfera jurídica da pessoa independentemente do ato de criação.

Este direito encontra a sua tutela específica no art. 16.º da Carta Portuguesa dos Direitos
Humanos na Era Digital, no art. 1.º/2 DL 252/94 e no art. 9 Código dos Direitos de Autor e dos
Direitos Conexos.

Nota: a obra tem de ser objetivada, ou seja, tem que ter, ainda que pequena, uma radicação
fora do sujeito e tem que estar circunscrita à mente do criador, ou seja, é autónoma. Se assim não
for, o direito não será suscetível de proteção ou tutela.

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2. Direito Patrimonial do Autor - vertente patrimonial

É um direito real e não de personalidade, é o direito de expressão patrimonial que incide


sobre a obra, enquanto objeto suscetível de exploração econômica. O autor tem direito a explorar
economicamente a obra e esse é um direito real, segundo o Código dos Direitos de Autor. A tutela da
autoria existente advém da necessidade de proteger a propriedade intelectual e a propriedade
industrial.

5. Consentimento
Muitos destes direitos são disponíveis, isto é, através do consentimento do titular do direito,
é possível comprimir o seu conteúdo útil. Já vimos também que existem direitos indisponíveis (ex.:
direito à vida). Que expressão prática terá esse consentimento?

O ofendido não extingue o seu direito de personalidade, continua a ser seu titular, contudo,
o direito é comprimido no seu conteúdo útil, entre o direito à vida e os limites da ocupação social
que já vimos. Tem ainda de se conformar com os princípios da ordem pública, dos bons costumes e
respeitar o artigo 31.º CP.

Nota: a falta de consentimento origina a lesão do direito.

Existem três graus de consentimento:

1. Consentimento Vinculante

Origina um compromisso jurídico autêntico, designadamente um contrato. Por exemplo, A


contrata com uma produtora para a publicação de uma revista de fotografias de moda - o seu direito
à imagem é objeto de compressão por via de contrato. Se A mudar de ideias, incumpre o contrato.

É vinculante, porque o consentimento é prestado por declaração negocial, ou seja, o


resultado deste consentimento é um negócio jurídico.

2. Consentimento Autorizante - art. 81.º/2 CC

Este consentimento é constitutivo de um compromisso jurídico sui generis, que atribui a


outrem o poder de agressão. Este é autorizante, porque apenas atribui um poder de facto, não é
vinculante e, portanto, ao contrário do que vimos acima, se o sujeito mudar de ideias, não há lugar à
violação de um contrato. Há, contudo, lugar a uma situação de indemnização das expectativas
frustradas por outrem.

3. Consentimento Tolerante - art. 340.º

Não atribui um poder de agressão, mas justifica implicitamente a mesma. Por exemplo, se
alguém entrar nos serviços de urgência do hospital ferido, sem possibilidade de se pronunciar sobre
os tratamentos que lhe serão administrados, há lugar a um consentimento presumido, pois dá-se no
próprio interesse da pessoa. Não existe lugar à indemnização aqui pelo médico, apenas justificação
de ação pelos profissionais de saúde.

Por exemplo, A dispõe-se a doar um rim a B e estão em causa problemas de integridade


física de ambos. Para que a relação seja possível, o doador tem que atribuir ao médico poder fático

104
de agressão, isto é, tem que prestar um consentimento autorizante, na medida em que por não ser
em interesse próprio, não se pode presumir. Já o recetor precisa do rim, daí que o consentimento
aqui seja um consentimento tolerante. Se o doador mudar de ideias e não doar, não há nenhum
instrumento que possa demovê-lo dessa sua decisão. Pode, contudo, ter de indemnizar o recetor
pela frustração de expectativas criadas e despesas que poderão ter ocorrido, por ter criado uma
convicção que não se concretizou.

Consentimento por Menores

O consentimento levanta problemas nos casos dos menores, no sentido de quem é que deve
consentir nesses casos? Regra geral, são os representantes a consentir pelos menores, excepto no
consentimento autorizante, este é sempre prestado pelo menor.

Todavia, há situações em que quando os menores já têm alguma maturidade, eles podem ser
chamados a prestar o seu consentimento juntamente com os representantes legais. A doutrina
entende que essa maturidade para avaliar o sentido e o alcance, do futuro ato praticado, atinge-se
aos catorze anos - isto só acontece no consentimento tolerante.

Nunca poderia acontecer no consentimento vinculante, porque o menor não tem capacidade
para celebrar negócios jurídicos.

Nota: o consentimento é sempre revogável, mesmo que seja vinculante, claro está que essa
revogação poderá desencadear sanção.

Consentimento no Âmbito do Desporto

Há práticas desportivas que implicam a disponibilidade do direito à integridade física como o


boxe - se se atribui um poder de agressão, este é um consentimento autorizante. Pode ainda ser
vinculante quando o combate de boxe, por exemplo, é objeto de contrato.

O consentimento de direitos de personalidade nunca pode ser suprido ou objeto de


execução específica.

Consentimento no Âmbito Médico

A questão do consentimento é importante no âmbito dos tratamentos médicos e cirúrgicos,


pois é um espaço de inviolabilidade, mas que, por vezes, tem que ser aberto a um espaço de
intervenção de outrem.

Por exemplo, um médico para intervir, seja quanto à prescrição de tratamentos ou


intervenções cirúrgicas, têm de obter o consentimento do paciente. Evidentemente, o
consentimento do paciente só é válido e eficaz se for devidamente esclarecido, isto é, o paciente tem
de conhecer: o tratamento, a sua extensão, possíveis efeitos benéficos e nefastos, e só assim pode
formar livremente a sua decisão para consentir na realização da intervenção cirúrgica.

Para a tomada desta decisão, pressupõe-se um discernimento e uma capacidade de


ponderação que só existe a partir de um grau de maturidade. Atualmente, o consentimento deve ser
prestado por quem tiver mais do que 14 anos e tenha as informações necessárias.

Fator de ponderação no esclarecimento e na tomada de decisão:

105
Os tratamentos médicos ou cirúrgicos não têm todos a mesma finalidade, intensidade e
prudência, pelo que o dever de esclarecimento do pessoal clínico é mais exigente e deve ser mais
rigoroso nas intervenções de procedimento de natureza não vitais.

Por exemplo, as estéticas, por não serem vitais convém que quem tome a decisão conheça
ao pormenor todas as complicações. Por outro lado, quem está numa situação de dependência vital,
não precisa de saber de forma tão rigorosa e exigente pois a alternativa não é a melhor, portanto
basta o conhecimento essencial das implicações positivas e negativas de um tratamento.

O consentimento é irrelevante sempre que haja desproporção entre o benefício e o risco


associado, porque nestas circunstâncias é atentatório aos bons costumes. Por exemplo, se alguém faz
uma pequena intervenção corretiva, a desproporção entre o benefício e o risco é tão acentuada que
este consentimento não é suficiente para justificar a ação e, portanto, é contrário aos bons
costumes.

Se o direito é disponível, através do consentimento podemos ter:

● Contrato - atribui um poder jurídico de agressão


● Poder fático de agressão
● Ação justificada

Em qualquer uma destas circunstâncias deixamos de ter lesão, há uma compressão do


direito de acordo com a intensidade do consentimento. Quando o consentimento não é válido,
eficaz ou inexistente (por falta de informação) mantém-se a lesão do direito e, portanto, significa a
lesão do direito à integridade física, mas isto é válido para todo e qualquer direito de personalidade.

Assim, se o consentimento for inválido, ineficaz ou inexistente, a intervenção é ilícita. Pelo


contrário, se o consentimento for válido, ou seja, o direito é disponível e, de alguma forma, o agente
consentiu, então a intervenção é lícita.

Mesmo que o médico respeite as regras, aplique todos os conhecimentos, atue


tecnicamente sem erros, e o paciente até melhora, mas não houve consentimento, mantém-se a
lesão ao direito. Isto porque a lesão não é a deterioração do estado de integridade física existente,
mas a violação do espaço de inviolabilidade que é o corpo, mesmo que o paciente fique melhor.

Aqui ganha relevância o Consentimento Presumido (art. 340º/3 CC), de que já falamos acima
- a intervenção dá-se no interesse da vítima e de acordo com a sua vontade presumida, logo o
consentimento presume-se (art. 150.º CP).

Caso não haja consentimento, nem presumido, nos tratamentos médicos e cirúrgicos há
sempre dano, há sempre lesão do direito, mas a diferença é:

● Se o paciente melhora com a intervenção mesmo sem consentimento, o dano cinge-se ao


facto de ter havido transposição da zona de inviolabilidade, que é o corpo - é a violação da
liberdade pessoal;
● Mas se para além da inviolabilidade, o estado do paciente piora, então o dano é agravado.

106
Intervenções de benefício alheio

O consentimento nunca se presume numa concreta situação - no caso do benefício alheio


(transplante de órgãos) - isto porque, o tratamento não se dá para interesse próprio do doador e não
dá para transferir o consentimento para o representante legal.

Por exemplo, a colheita e transplante de órgãos cujo regime é o da lei 12/93, nas doações de
órgãos e tecidos em benefício de outrem, há que ponderar dois fatores:

1. Compatibilidade com a manutenção do direito à vida


2. Natureza dos materiais a ceder - se se trata ou não de elementos caducados, regeneráveis ou
não regeneráveis. Nos materiais humanos não caducados, não há particulares problemas tal
como aos regeneráveis porque a biologia encarrega-se de repor aquilo que foi dado, se assim
não fosse não havia dádivas de sangue.

A questão jurídica torna-se mais complicada quando os órgãos não são regeneráveis (ex.
rins), a solução está em fazer o balanço do risco para o dador e o benefício para o recetor, tal como
o risco dos tratamentos técnicos envolvidos. O limite aqui é que não há cedência, não há
possibilidade de doação de elementos indispensáveis à vida, que comprometam ou possam
comprometer a vida humana (direito indisponível).

A lei nº12/93 exclui do âmbito de aplicação as transfusões de sangue, transferência de


embriões, óvulos e esperma, pois existe uma lei especial. Todo o regime da lei é subordinado ao
princípio da gratuitidade.

Há dois grandes tipos de disposições:

1. Colheita indevida

Em princípio só são admitidas colheitas de substâncias regeneráveis, no entanto, pode


anuir-se à dádiva de órgãos ou substâncias não regeneráveis, como o rim, quando houver uma
relação de parentesco até ao 3º grau.

São sempre proibidas as dádivas feitas por menores ou incapazes e nunca é admitida
quando, com grande probabilidade, possa haver diminuição grave da integridade física do dador. Há
um dever de informação naturalmente acrescido para estas situações, como os riscos para o dador e
o dador pode especificar o beneficiário.

Para garantia da liberdade de consentimento não pode haver a possibilidade de qualquer


conflito de interesses, ou seja, o médico que recolhe o consentimento não pode pertencer à equipa
que faz a extração ou a implementação.

Apesar do princípio da gratuitidade, o dador tem direito a ser indemnizado pelos danos
sofridos, independentemente de culpa, através de uma responsabilização objetiva do hospital. Os
estabelecimentos hospitalares que efetuem estas intervenções têm um seguro obrigatório à
ressarcibilidade dos danos.

107
2. Colheita em cadáveres

Somos todos potenciais doadores, a não ser que se manifeste uma vontade em contrário, daí
a existência do registo nacional de não dadores. O facto de a regra existir não significa que todos
possam ser doadores para efeitos não terapêuticos, ou seja, científicos ou investigação.

A existência de consentimento pode ter alguma influência na fixação do montante da


indemnização (art. 570º CC) - mesmo que o consentimento seja inválido, pode indiretamente
influenciar a fixação do montante indemnizatório, no quadro deste artigo. Em suma, eis as condições
para que a intervenção seja lícita:

- Não pode afetar direitos indisponíveis.


- A decisão de quem consente é bem ponderada e o sujeito foi bem informado (dever de
informação).
- Quem prestou o consentimento tem mais de 14 anos.
- O benefício de intervir é superior ao risco.
- Se estiver em causa intervenções de benefício alheio, o consentimento é expresso e nunca
presumido.
- Nas doações de órgãos, o risco não pode ser maior para o doador do que o benefício do
recetor.
- Na colheita indevida, se estiver em causa um órgão não regenerável, pode acontecer se a
relação de parentesco não passar do 3º grau.
- Na colheita de sangue, o menor ou incapaz só pode doar, se a sua integridade física não for
gravemente afetada.

6 .Situações de Incapacidade
Já falamos da capacidade de gozo e de exercício no âmbito negocial. Para o direito é
relevante a incapacidade, porque só quando falta algo é que o direito é chamado a intervir.

A incapacidade de gozo conduz à nulidade dos negócios jurídicos, é insuprível, ou existe ou


não existe - se não existe, não há nenhum instituto jurídico que possa contornar esta situação.

Já a incapacidade de exercício tem como consequência natural a anulabilidade do negócio.

A invalidade tem duas submodalidades - arts. 285.º e ss. CC:

1. Nulidade - forma mais radical de invalidade - insuprível a incapacidade de gozo. Quando falta
a capacidade de gozo (são poucos os casos), verdadeiramente não são incapacidades no
sentido estrito, porque as capacidades não são estatutárias, apenas existem limitações da
capacidade.
2. Anulabilidade - forma mais mitigada de invalidade - suprível - pode ser contornada através
da intervenção de outra pessoa, através da representação do incapaz.

Por exemplo: o menor por via de regra não tem capacidade de exercício, mas há alguém que
pode atuar por ele, no universo jurídico, os representantes legais. Portanto, há uma possibilidade de
suprir a incapacidade de exercício.

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Assim, a representação legal é um meio de suprir a anulabilidade, o que significa que outra
pessoa pode agir no nome e em interesse do incapaz.

Nota: não confundir representação legal com a representação voluntária, isto é, de um


procurador para aquele efeito. Aqui é a representação legal a que está associada a uma situação de
incapacidade que decorre da necessidade de suprir uma incapacidade.

Uma outra forma de poder suprir a incapacidade é a figura da assistência, há autores que
afirmam que desapareceu do nosso ordenamento jurídico. Trata-se de um instituto que permite que
o incapaz atue, mas acompanhado do consentimento de certa pessoa ou entidade, isto é, uma
espécie de acompanhamento para a prática de determinados atos.

Diretivas antecipadas da Vontade / Testamento vital - Lei 44/2018

Esta diretiva tem uma importância individual no que diz respeito à projeção da vontade da
pessoa mesmo quando já não se encontra capaz de a excluir - art. 1 Lei 44/2018. Os procuradores
têm que ser maiores e encontrar-se capazes de dar o seu consentimento livre e esclarecido.

Capacidade

A regra é a capacidade, isto é, partimos sempre da premissa de que a regra é a capacidade -


art. 67.º CC. Na prática, isto significa que qualquer incapacidade tem que estar prevista na lei, mas
que se efetue como tal, ou seja, não podem ser criadas ad hoc. No entanto, há restrições à
capacidade que podem conduzir a incapacidades de gozo ou a compressões da capacidade de gozo.
Dentro das restrições à incapacidade de gozo, temos as:

1. Incapacidades / Impedimentos
● Incapacidade nupcial dos menores - impedimentos dirimentes, obstando ao
casamento da pessoa com idade inferior a 16 anos.
● Impedimentos dirimentes relativos (art. 1602.º CC) - não são impedimentos gerais,
mas são impedimentos que contendem com a relação jurídica das pessoas (ex.:
incapacidade de casamento entre pessoas ligadas por parentesco).
2. Em matérias Sucessórias
● Artigo 2189.º - trata-se da incapacidade ativa dos menores que não podem realizar
testamentos.
● Artigo 1850.º - trata-se da incapacidade ativa dos menores, com menos de 16 anos,
que não podem perfilhar.

Estas são todas restrições à capacidade de gozo em função das próprias capacidades naturais
do sujeito. Existem como ultima ratio, e visam proteger a personalidade e o seu livre
desenvolvimento, ou seja, são, assim, estabelecidas em função dos interesses da pessoa. No caso dos
menores, cabe ao direito proteger o menor, considerando a sua idade e maturidade, proibindo,
assim, a adoção de determinados atos.

Não se confundem incapacidades com indisponibilidades relativas - art. 953.º CC

O artigo 953.º remete para as indisponibilidades provenientes da posição relativa dos


sujeitos, isto é, porque o sujeito se encontra em determinada posição, não pode adotar

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determinados atos. Não há situação de incapacidade, mas uma necessidade de assegurar o não
condicionamento da vontade, ou seja, todos os atos praticados aconteceram por vontade plena do
sujeito.

É o caso, por exemplo, do artigo 2194.º CC que estabelece que o testador não pode dispor a
favor do seu médico, enfermeiro ou sacerdote, se estes cuidaram dele durante a sua doença, sob
pena de nulidade. Aqui visa-se proteger tanto o de cuius com os seus herdeiros legitimários, na
medida em que se tenta garantir que há uma vontade plena na realização do testamento e que esta
não foi manipulada. Por haver um vínculo suscetibilidade entre o testador e as outras figuras, não
podem haver deslocações patrimoniais.

Há, no entanto, um traço comum a todas as causas de incapacidade de exercício sejam elas
de causa automática ou ponderada - são sempre estabelecidas no interesse do incapaz, pois o
estatuto de incapacidade é um estatuto protetor.

Capacidade Jurídica das Pessoas Coletivas


Quanto às pessoas coletivas, estas têm uma personalidade jurídica instrumental e a sua
capacidade acompanha essa personalidade - art. 160.º CC - isto é, elas só têm as capacidades que
seu fim justifica, daí que não se restrinja a sua capacidade de atuação. Estas não têm processos
biológicos de maturação e portanto não se justificam restrições à sua capacidade, daí o disposto no
presente artigo - Princípio da Especialidade do Fim.

Contudo, as pessoas coletivas só podem estar no tráfego jurídico pela existência dos seus
órgãos. Caso um destes não exista, não estamos perante incapacidade, mas uma situação de
impossibilidade de exercício, porque logo que retomem os órgãos a pessoa jurídica pode atuar
autonomamente

7. Menoridade
A menoridade vem prevista no artigo 130.º CC. Até há pouco tempo, tínhamos um quadro
de figuras, para além da menoridade, que detinham uma incapacidade de causalidade automática.
Hoje, apenas existe a menoridade enquanto causa automática, pois o menor é sempre incapaz até
atingir os 18 anos. Em todos os outros casos, há que proceder a uma avaliação pontual, mas, por
regra, o maior é capaz.

Em suma:

➔ Os menores são sempre incapazes, exceto quando a lei a prevê em contrário - art. 127.ºCC.
➔ Todos os outros são sempre capazes, excepto quando a lei prevê em contrário - em direito
privado, tudo o que não é proibido, é permitido.

Para além disso, a menoridade é, ainda, uma incapacidade geral, isto é, abrange todos os
indivíduos e todos os negócios jurídicos, quer de natureza pessoal quer de natureza patrimonial - art.
123.º CC.

Como referido acima, a regra, na menoridade, é a incapacidade de exercício, mas a lei pode
prever exceções (art. 127.º):

110
1ª exceção - “administração ou disposição de bens que o maior de dezasseis anos haja
adquirido por seu trabalho”

O menor pode trabalhar a partir dos 16 anos (art. 55.º Código Trabalho), de forma
subordinada. Este pode também trabalhar autonomamente em prestação de serviços e, neste
âmbito, não há idade mínima. São os representantes do menor, ou seja, aqueles a quem incumbe a
responsabilidade parental, que determinam se é no interesse do menor a prestação do serviço.

2ª exceção - “os negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor que, estando ao
alcance da sua capacidade natural, só impliquem despesas, ou disposições de bens, de pequena
importância (negócios da vida corrente)”

Esta é uma exceção evolutiva, pois vai alargando à medida que a idade vai progredindo e a
sua personalidade se vai desenvolvendo. Contudo, a vida corrente do menor e pequena importância
são conceitos indeterminados, que dependem da vivência social do menor, pois no meio rural a vida
corrente do menor é logicamente diferente da vida corrente do menor no meio urbano. Assim, há
que fazer uma avaliação casuística e uma consideração subjetiva desse conceito.

Um exemplo desta exceção, é a compra dos títulos de transporte pelo menor que se desloca
de autocarro para a escola. É um contrato de compra e venda, mas está ao abrigo da capacidade
natural do menor de entender as implicações do seu ato.

3ª exceção - “os negócios jurídicos relativos à profissão, arte ou ofício que o menor tenha
sido autorizado a exercer, ou os praticados no exercício dessa profissão, arte ou ofício.”

Refere-se àqueles que têm atinência como profissão, arte ou ofício. Um exemplo desta
exceção são os hobbies dos quais é possível extrair rendimentos, como, por exemplo, os vendedores
de roupa nas lojas em segunda mão online. O menor pode validamente fazê-lo, desde que
autorizado a praticar os atos jurídicos provenientes dos negócios jurídicos.

Casamentos entre Menores


A menoridade acaba, exclusivamente, através de dois fatores (art. 132.º CC):

➔ O menor atinge os 18 anos


➔ O menor casa-se

Estes são os únicos fatores de emancipação do menor. No caso do casamento, a capacidade


de gozo permite que os menores entre os 16 e os 18 anos possam casar segundo o art. 1601.º CC,
carecendo de autorização dos pais ou do tutor.

Se o menor, entre os 16 e os 18 anos, casar sem autorização dos pais ou do tutor, a


consequência é que este continue a ser considerado menor, quanto à administração dos bens - art.
1649º CC.

Efeitos gerais da Incapacidade dos Menores


Se a regra é a incapacidade, os atos praticados do menor fora do quadro do artigo 127.º são
atos anuláveis - art. 125.º/1 CC. Por exemplo, o menor recebe uma consola no Natal que não é
aquilo que ele pretendia e vende-a no ebay. Prima facie, o menor não tem capacidade para vender a
consola, é a regra, há que posteriormente perceber se essa venda se enquadra no artigo 127.º.

111
Portanto, a venda pode ser anulada mas por quem? (art. 125.º/2)

A pessoa a quem couber a responsabilidade parental do menor pode requerer a


anulabilidade no prazo de um ano a contar desde o momento em que essa pessoa teve
conhecimento do ato praticado pelo menor. Contudo, esse prazo extingue-se se, entretanto, o menor
atingir a maioridade. Nesse caso, só o maior ou herdeiros podem fazê-lo.

A requerimento do próprio menor, no prazo de um ano a contar da sua maioridade ou


emancipação. Também a requerimento de qualquer herdeiro do menor, no prazo de um ano a contar
da morte deste, ocorrida antes de expirar o prazo referido na alínea anterior

Por outras palavras, o menor tem um ano após a maioridade, ou seja, até aos 19 anos, para
arguir a anulabilidade. Contudo, se nesse prazo de um ano, o menor morrer, os seus herdeiros
podem requerer a anulabilidade, mas apenas até ao momento em que o menor teria completado 19
anos. Atribui-se ao herdeiro, o direito do menor no requerimento.

Esta anulabilidade pode ser invocada por:

1. Via de ação (ataque)

Quando alguém tem iniciativa de requerer ou contrapor o fundamento para anulabilidade do


negócio. Por exemplo, A requer a anulação do negócio jurídico que celebrou com B, porque era
menor à data da celebração do negócio. Esta é uma invocação direta.

2. Via de exceção (defesa)

Ainda no exemplo anterior, o negócio que A celebrou com B era um contrato de compra e
venda, às prestações. B não paga as últimas duas prestações, então A interpela B para o pagamento
das prestações, mas B é menor.

O objeto da pretensão da iniciativa de A é o pagamento do preço. Contudo, B defende-se,


invocando a sua incapacidade de menoridade, no momento da celebração do negócio, arguindo a
sua invalidade.

Em ambos os casos, os sujeitos requereram a anulabilidade do negócio jurídico, contudo A


fê-lo por ataque a B (via de ataque) e B fê-lo para se defender de A (via de exceção).

Ambas as vias são válidas para qualquer fundamento invocado, não são exclusivas da
menoridade. Estas vias relevam, porque enquanto o negócio não estiver cumprido, pode a
anulabilidade ser requerida, sem dependência de prazo, tanto por via de ação como por via de
exceção (art. 287.º/2 CC).

Exceção ao Requerimento da Anulabilidade

O direito a invocar a anulabilidade pelo menor é afastado, se houver dolo do menor de


acordo com o art. 126.º CC. Tem que haver uma atuação proativa do menor - por exemplo, A, menor,
vende um relógio a C por 200 euros. No mesmo ano, D propõe dar 300 euros pelo mesmo relógio e
A, com a intenção de lucrar, argui a anulabilidade do negócio que celebrou com C, para o ter de volta
para o conseguir vender a D.

112
A agiu de má-fé, uma vez que sabia que não tinha capacidade para celebrar aquele negócio e
mesmo assim criou a convicção oposta na contraparte, C. A lei aqui só tutela a parte mais fraca e,
portanto, por ter agido com dolo, o menor não pode invocar a anulabilidade do negócio.

Nota: se o menor perder o seu direito de invocar a anulabilidade, os seus herdeiros também
o perdem porque o seu direito não é autônomo, mas apenas visa a tutelar o direito do menor.

Meios de Suprimento da Incapacidade - art. 124.º CC

As responsabilidades parentais permitem suprir a incapacidade dos menores, existem assim


três meios de suprimento da incapacidade dos menores:

1. Responsabilidade Parental - art. 1877.º e ss. CC


2. Tutela - art. 1921.º CC

Recorre-se ao meio da tutela, quando não é possível recorrer ao exercício das


responsabilidades parentais, que acontece:

- Se os pais houvessem falecido.


- Se estiverem inibidos do poder paternal quanto à regência da pessoa do filho.
- Se estiverem há mais de seis meses impedidos de facto de exercer a responsabilidade
parental.
- Se forem incógnitos.

Nestas quatro situações, o menor fica sujeito a tutela, visto que está impossibilitado o
exercício das responsabilidades parentais.

3. Administração dos Bens - art. 1992.º CC

Devido a circunstâncias específicas, os pais podem ficar inabilitados de administrar os bens


dos menores e, estes ficam sujeitos ao regime deste artigo, tendo como consequências:

- Os pais são inibidos de administrar os bens do menor.


- Os pais designam outrem para o caso.

Nota: só se recorre à administração de bens se não for possível recorrer à tutela e só se


recorre à tutela se não for possível recorrer à responsabilidade parental.

A violação dos deveres parentais é sancionada para proteção dos interesses do menor. Esta é
uma incapacidade de exercício geral que atinge todas as pessoas nesta fase do desenvolvimento.
Todavia, há outras pessoas que para além da maioridade têm circunstâncias naturalistas que podem
contender com a sua autodeterminação.

Acompanhamento de Maiores

Hoje em dia, temos o instituto designado de acompanhamento de maiores - art. 138.º e ss


CC. É um instituto flexível que pode ou não conduzir à incapacidade, devido às tendências mais
recentes de compreensão da personalidade, isto é à perceção do desenvolvimento da personalidade
do que constitui ou não a capacidade dos indivíduos

113
O menor pode pedir o acompanhamento a partir dos 17 anos (art. 142.º CC), mas antes disso
não faria sentido, visto que a menoridade, em si, é um regime protetor.

Pode surgir de uma causalidade psíquica ou de situações comportamentais, que


impossibilitam o sujeito de assegurar o pleno exercício dos seus direitos, da sua recuperação e do
seu bem-estar (art. 140.º/1 CC). A lógica é de moldar o estatuto do acompanhamento às
necessidades e riscos pessoais do indivíduo, protegendo-o da forma que ele se apresenta - por
exemplo, um sujeito que se mobilize através de uma cadeira de rodas, à partida precisará de
acompanhamento.

Estes são os três princípios que regem o estatuto do acompanhamento:

1. Princípio da supletividade - o estatuto do acompanhamento não se atribui, se for possível


atingir o mesmo objetivo por meios de cooperação e assistência (art. 140.º/2 CC).
2. Estrita necessidade do acompanhamento - (art. 145.º/1 CC)
3. Princípio do contacto permanente - (art. 146.º/2 CC)

O acompanhamento faz-se por decisão judicial, ou seja, só através de um processo judicial é


que é possível adquirir o estatuto de acompanhamento. Tem legitimidade para requerer o
acompanhamento (art. 141.º/1 CC):

- O próprio.
- O cônjuge, unido de facto ou parente sucessível, mediante autorização do próprio.
- O ministério público, independentemente de autorização. Pode ainda acontecer que o
próprio não consiga prestar a sua declaração, ou autorizar a declaração de outrem e, nesses
casos, o tribunal pode suprir essa declaração (art. 141.º/2).

Tem legitimidade para escolher o acompanhante, o próprio acompanhado (art. 143.º/1), mas
caso o acompanhado não preste declarações nesse sentido, por ordem, podem escolher:

- Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto.


- Ao unido de facto.
- A qualquer dos pais.
- À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em
testamento ou em documento autêntico ou autenticado.
- Aos filhos maiores.
- A qualquer dos avós.
- À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado.
- Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação.
- A outra pessoa idónea.

Se há uma moldagem do acompanhamento às necessidades individuais, isso significa que o


acompanhamento não é sempre uma situação de necessidade e não provém sempre de uma
situação de incapacidade do acompanhado. Nesses casos, o tribunal decreta o acompanhante como
representante legal do acompanhado.

Contudo, trata-se de uma última ratio, já que decretar o acompanhante enquanto


representante legal consagra-se na completa incapacidade de exercício do acompanhado, pelo que
só acontece, se for mesmo necessário.

114
A regra, na maioridade, é a capacidade de exercício, portanto, o tribunal terá que recorrer
aos meios que menos restrinjam a liberdade do acompanhado. O acompanhante pode ser decretado
apenas para administração dos bens do acompanhado ou para a mera prática de determinados atos,
mediante autorização do tribunal (art. 145.º/2).

Nesta última hipótese, não chegamos a ter uma tutela do acompanhado, mas apenas uma
situação de assistência ao acompanhado.

Capacidade do Acompanhado

Independentemente da situação do acompanhado, este é sempre livre de realizar negócios


da vida corrente e exercer os seus direitos pessoais, salvo disposição em contrário, sob observação
das medidas decretadas pelo tribunal (art. 147.º). Relativamente ao regime do acompanhamento é
de notar que este segue a seguinte ordem: anúncio do processo, decisão final e registo do
acompanhamento.

Quais as consequências jurídicas atribuídas à inobservância das medidas decretadas pelo tribunal, na
prática de atos pelo acompanhado?

O artigo 154.º CC diz que são atos anuláveis, desde que:

- Praticados posteriormente ao registo do acompanhamento - anulabilidade de efeito geral.


- Praticados depois de anunciado o início do processo, mas antes da decisão e só caso se
mostrem prejudiciais, patrimonialmente por exemplo, ao acompanhado - anulabilidade
diferida condicionada ao prejuízo e à condição final (é este anúncio que prevê a existência de
um processo de acompanhamento).

Nesta última hipótese, já se sabe que vai existir um processo de acompanhamento, mas não
se sabe se, no processo, o sujeito vai ser acompanhado. Assim, os atos praticados nesse período de
tempo são anuláveis, mas condicionalmente, pois está condicionada à existência de uma condição
final e ao prejuízo do acompanhado.

- Praticados depois da decisão, mas antes do registo de acompanhamento - anulabilidade


condicionada ao prejuízo do acompanhado. Aqui já não há anulabilidade sujeito à condição
final, porque já houve decisão de acompanhamento e, portanto, a condição já se verificou.

Nota: o acompanhamento é registado para efeitos de condição de eficácia relativamente a


terceiros. Também o prazo para a ação de anulação começa a contar a partir do registo da sentença.

Em suma, as consequências jurídicas diferem consoante o momento em que o ato é


praticado, sendo que o acompanhamento cessa por decisão judicial quando cessam ou modificam as
causas que o justificaram.

Na revisão periódica das medidas de acompanhamento, as pessoas têm desenvolvimentos


que nem sempre são antecipáveis, daí que o artigo 155.º CC imponha a revisão periódica das
medidas do acompanhamento de 5 em 5 anos.

Ao terminar a menoridade, acontece uma de duas situações:

1. Há processo pendente ao acompanhamento - o indivíduo fica sujeito ao acompanhamento.

115
2. Não há processo processo pendente ao acompanhamento - incapacidade incidental (art.
154.º/3 CC).

Vejamos, o instituto do acompanhamento visa proteger o acompanhado quando este é


incapaz de exercer plenamente os seus direitos, devido a uma determinada condição. Este só será
necessário após o menor atingir a maioridade, porque o próprio regime da menoridade é protetor.

Contudo, e se o sujeito atinge a maioridade, ainda não lhe foi atribuído o regime do
acompanhamento e este também já não goza do regime da menoridade? À partida não haveria
problema, mas supondo que o agente, devido a determinada condição, pratica um ato, o qual não
quis e não entendeu? O regime protetor aqui aplicável é a incapacidade acidental.

Incapacidade Acidental

Este regime encontra-se consagrado no artigo 257.º do CC:

“1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava
acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua
vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário”

“2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar”

Este artigo diz-nos que é anulável qualquer ato praticado por quem celebrou um negócio
jurídico, o qual não conseguiu consentir. Contudo, só é anulável se o declaratário, com quem o
incapaz celebrou o negócio, soubesse do estado de incapacidade do declarante e aproveitou-se
dessa incapacidade. Se o declaratário estava ciente da declaração negocial, não tem que ser
protegido, deve antes tutelar-se a posição do declarante incapaz.

Por exemplo, A vai a uma festa com B e consome substâncias psicotrópicas. Ao sair da festa
onde se encontram, A vende a B um relógio de herança de família. Aqui B age de má-fé e o ato é
anulável, e considera-se que age de má-fé, porque sabe do estado de incapacidade de A e
aproveita-se disso para comprar o relógio. Note-se que, se B não soubesse do estado de
incapacidade de A, a venda do relógio seria válida.

Esse conhecimento ou desconhecimento avalia-se consoante critérios de diligência (art.


257.º/2 CC) - se a pessoa diligente pudesse aperceber-se do estado de incapacidade do declarante A,
então B também se poderia aperceber (presunção iuris et de iure).

E mesmo que B, efetivamente, não se tivesse apercebido, mas fosse exigível que tivesse,
porque era notório para a pessoa diligente, agiu de boa-fé com culpa. Sendo o ato anulável, A pode
sempre sanar o vício, mediante confirmação, quando reestabelecer o seu estado de capacidade e o
negócio torna-se válido (art. 288.º).

O regime deste artigo não é exclusivamente desenhado para proteção do incapaz, concilia
estas duas realidades e pode aplicar-se a qualquer pessoa, independentemente das suas
características pessoais e estruturais. Assim, este artigo tem uma solução que se dirige tanto à
situação de privação de vontade como a situações estruturais.

116
Para este artigo, releva o resultado e não o motivo da incapacidade acidental, por exemplo
não interessa se o motivo da incapacidade deriva da incapacidade pelo consumo de substâncias
psicotrópicas. Apesar de ser exigível diligência por parte do sujeito que não deveria ter consumido
essas substâncias, é muito mais exigível que ninguém se tivesse aproveitado do seu estado.

É um estado de incapacidade transitório, mas aplica-se a quem também tem qualquer


privação da sua vontade - a partir do momento em que há celebração de uma declaração negocial, e
o sujeito não conseguiu consentir essa declaração, devido ao seu estado de incapacidade, há lugar à
anulabilidade do negócio, independentemente da causa da incapacidade.

Mandato

O artigo 156.º CC estabelece o direito à constituição do mandato (art. 1157.º CC) - pode
acontecer que o acompanhado preveja a possibilidade de vir a necessitar de acompanhamento que o
pode privar da sua autonomia, pelo que constitui um mandato, com ou sem representação, para
gestão dos seus interesses.

1. Mandato com representação (art. 1178.º) - os atos que o representante pratique vão
produzir efeitos jurídicos na esfera do representado.
2. Mandato sem representação (art. 1180.º) - não há representação, ou seja, os direitos e
obrigações entram na esfera jurídica do mandatário, e não do representante, que os faz
passar para o mandante.

Nem todo o acompanhamento leva a incapacidade de exercício porque é a própria sentença


que estabelece as fronteiras da autonomia do maior. Contudo, pode chegar ao ponto de determinar
a representação legal, caso em que há uma tutela do maior acompanhado e por conseguinte
incapacidade de exercício.

Situações de Ilegitimidade Conjugais

Até agora vimos algumas situações de incapacidade que surgem como forma de tutela do
indivíduo, tanto dos menores como dos acompanhados onde está em causa um interesse próprio.
Analisemos agora essa incapacidade ao nível do interesse externo:

➔ Artigo 1682.º - os cônjuges não podem autonomamente per si alienar ou onerar móveis
utilizados conjuntamente pelos cônjuges ou móveis pertencentes exclusivamente ao cônjuge
que não os administra.
➔ Artigo 1682.º-A - se sob os cônjuges vigorar o regime de comunhão geral de bens, a
alienação, oneração, constituição ou locação de direitos pessoais de gozo sobre imóveis ou
sobre a casa de morada de família e do estabelecimento comercial carece de consentimento
do cônjuge.
➔ Artigo 1682.º-B - A resolução, a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de
arrendamento pelo arrendatário, a revogação do arrendamento por mútuo consentimento, a
cessão da posição de arrendatário e o subarrendamento ou o empréstimo carecem de
consentimento do cônjuge.
➔ Artigo 1683.º - o repúdio da herança só pode ser feito com o consentimento do cônjuge, se
entre eles vigorar o regime de comunhão geral de bens.
➔ Artigo 1684.º - o suprimento da legitimidade do ato aqui é feito pelo consentimento do
outro. Pode acontecer, contudo, que haja um impasse no suprimento desse consentimento,

117
se o outro cônjuge se recusar a prestá-lo e essa for uma recusa injusta. Nestes casos, pode o
tribunal suprir oficiosamente esse consentimento.

Nota: trata-se de um consentimento pontual, isto é, nunca pode ser dado genericamente.

➔ Artigo 1687.º
- O número 1 consagra que se um dos cônjuges praticar um ato que careça do
consentimento do outro e este não tenha, efetivamente, prestado esse
consentimento, o ato é anulável.
- O número 2 consagra que o requerente da anulabilidade (cônjuge cujo
consentimento não foi prestado) pode fazê-lo nos 6 meses subsequentes à data em
que o mesmo teve conhecimento da prática do ato. Contudo, o direito a arguir a
anulabilidade caduca se já tiverem ocorrido 3 anos desde a prática do ato, mesmo
que o requerente só tenha tido conhecimento do ato agora.

Note-se que esta é uma norma especial face ao artigo 287.º que estabelece que a
anulabilidade por ser invocada no ano subsequente à data em que o requerente teve conhecimento
do ato. Porquê a redução para 6 meses? Justifica-se que este prazo acordado seja mais curto, porque
a prática do ato acontece num universo próximo, em que há contacto relativamente próximo entre o
requerente e o requerido dos bens em causa.

A título de nota final, realce-se apenas que todas estas restrições são introduzidas no
interesse da proteção do núcleo conjugal, daí o seu interesse externo - vai para além do interesse do
sujeito.

8. Proteção da Pessoa no seu Estatuto Pessoal


No âmbito do estatuto pessoal, há ainda outras considerações relevantes para a proteção da
pessoa. Na organização das sociedades modernas e urbanizadas, o modo de localização das pessoas
faz-se através de um centro de imputação das suas relações jurídicas, ou seja, quando precisamos de
enquadrar alguém, a primeira diligência a fazer é a sua localização no domicílio.

A localização espacial das pessoas tem, por lei, várias implicações positivas ou negativas.

Manifestações do Relevo Positivo

O domicílio tem um relevo positivo porque serve de determinante para uma série de
decisões jurídicas:

1. A determinação do foro competente passa, em muitas circunstâncias, pelo domicílio do réu.


O domicílio da pessoa determina qual o tribunal competente para o decorrer da ação para
que possa efetivar de forma eficiente o direito ao acesso à justiça.
2. O artigo 772.º CC supletivamente estabelece que a prestação deve ser feito no lugar do
domicílio do devedor.
3. O artigo 774.º CC estabelece que o domicílio é o critério fixado em função dos melhores
interesses da pessoa envolvida.
4. O artigo 2031.º CC diz que a sucessão abre-se no lugar do último domicílio do de cuius.

118
Manifestações de Relevo Negativo

Se o domicílio é o ponto de contacto quando se quer comunicar com determinado sujeito,


uma quebra dessa ligação é problemática. Essa quebra acontece quando a pessoa se ausenta, isto é,
temos um domicílio, mas não temos um sujeito, logo não existe ligação. O domicílio tem várias
aceções consoante a sua finalidade:

1. Domicílio voluntário geral (art. 82.º CC) - parte-se do princípio que o sujeito tem uma
residência habitual e, portanto, o domicílio é na residência habitual. O número dois deste
artigo consagra que, na eventualidade de não haver um uma residência habitual,
considera-se domicílio a residência ocasional do sujeito. Caso a residência ocasional também
não possa ser identificada, considera-se domicílio, o lugar onde a pessoa se encontra -
paradeiro (este adquire relevo jurídico no quadro do artigo 225.º CC).
2. Domicílio profissional (art. 83.º CC) - o domicílio profissional corresponde ao lugar onde o
sujeito exerce a sua profissão (se o mesmo trabalha num domicílio diferente daquele em que
vive, nas relações profissionais, considera-se o domicílio profissional e nas relações pessoais,
considera-se o domicílio habitual / ocasional / paradeiro).
3. Domicílio dos menores e dos maiores acompanhados (art. 85.º CC) - existem regras de
fixação do domicílio especiais para os menores e os maiores acompanhados.
4. Domicílio necessário (art. 87.º CC) - o local onde os empregados públicos, civis e militares
exerçam os seus cargos, é necessariamente o seu domicílio.
5. Os agentes diplomáticos portugueses que invoquem a extraterritorialidade, encontram-se
domiciliados em Lisboa.

Ausência

Devido ao fenômeno da ausência (art. 89.º e ss. CC), o domicílio tem um relevo mais
negativo do que positivo, sendo que ausência corresponde à quebra da pessoa com o seu conhecido,
isto é, uma ignorância do seu paradeiro e impossibilidade de a contactar.

Nota: a ausência não se confunde com desaparecimento (art. 68.º/3 CC)

Se o sujeito se encontra ausente, há necessidade de prover a administração dos seus bens e


cuidar da sua esfera jurídica. Para que não se paralise o exercício de direitos e obrigações da esfera
jurídica, é necessário suprir a ausência, existindo assim 3 hipóteses de suprimento:

1. Curadoria Provisória - arts. 89.º e ss. CC.


2. Curadoria Definitiva - arts. 99.º e ss. CC.
3. Morte Presumida - arts. 114.º e ss. CC.

Estas são as três fases que decorrem a partir da ausência do sujeito, note-se que estas não
estão ligadas por um nexo necessário, ou seja, cada uma delas não leva necessariamente à seguinte e
pode chegar-se a qualquer uma delas, sem ter passado pelas anteriores, mediante verificação dos
seus requisitos.

Curadoria Provisória

A curadoria provisória justifica-se quando haja ausência sem notícias do sujeito, mas uma
necessidade de prover a administração dos seus bens e não haja representante legal ou procurador,

119
ou no caso de haver, estes renunciaram às suas funções. Nestes casos, o Tribunal deve nomear um
curador provisório.

Pode ser nomeado curador, o cônjuge do ausente, algum herdeiro presumido, ou algum ou
alguns dos interessados na conservação dos bens; na eventualidade, de haver um conflito de
interesses entre o ausente e o curador, designa-se um curador especial (art. 92.º CC).

O curador não é só in bonis, mas também ad litem, como refere o Dr. Orlando de Carvalho,
ou seja, este tem que pagar uma caução, após a entrega dos bens do ausente ao curador. Se o
curador não prestar a caução, será nomeado outro em lugar dele (art. 93.º CC).

O curador, no âmbito dos seus direitos e obrigações, está muito limitado, na medida em que
apenas pode agir para fins defensivos e conservativos (art. 94.º/2 CC).

O curador é ainda obrigado a prestar contas relativamente à prática dos seus atos (art. 95.º
CC) e pode ser substituído, como já vimos, se se mostrar inconveniente para o cargo (art. 97.º CC). A
curadoria provisória cessa nos seguintes termos:

1. Regresso do ausente
2. Apesar de afastado, o ausente nomeia alguém que administre os seus bens. Há um ato do
próprio ausente que restabelece a conexão com o centro de imputação da sua vida.
3. Comparência da pessoa que represente legalmente o ausente ou do procurador, que
inicialmente não se sabia que existia
4. Passamos para a curadoria definitiva
5. Morte do ausente

Na curadoria provisória, presume-se (ius tantum) que o ausente está vivo. O ausente, a partir
do momento em que entra em curadoria provisória, está inibido de exercer as suas
responsabilidades parentais. Por maioria de razão, o mesmo acontece na curadoria definitiva e na
morte presumida.

Curadoria Definitiva

A lei chama-lhe a justificação da ausência. O ausente entra na curadoria definitiva quando


ocorrem dois anos sem representante legal / procurador bastante ou 5 anos com representante legal
/ procurador bastante (art. 99.º CC).

Na curadoria definitiva, há lugar à abertura dos testamentos e à distribuição dos bens do


ausente pelos herdeiros da sucessão mortis causa ou por todos aqueles que têm algum direito aos
bens dependente da morte do ausente (art. 101.º, art. 102.º, art. 103.º). Contudo, note-se que não
há sucessão, pois ainda não existe indício de que houve morte, assim os bens passam para os
sucessores que os administram como bens alheios e não como bens próprios. São estes os
nomeados curadores definitivos, mas não os proprietários (art. 104.ºCC).

A abertura da sucessão determina este interesse de prover à administração dos bens mas,
simultaneamente, antecipar a possibilidade de não haver regresso por parte do ausente. Todas as
obrigações que o ausente contrarie, em vida, ficam suspensas - quiescência (art. 106.º CC).

Note-se que se na curadoria provisória, o tribunal era obrigado a exigir o pagamento da


caução pelo curador, aqui ele apenas pode fazê-lo se achar necessário - é facultativa (art. 107.ºCC).

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Se o ausente for casado, pode o cônjuge requerer partilha dos bens para não ficar numa
situação indefinida quanto à gestão patrimonial (art. 108.ºCC). A curadoria definitiva cessa, nos
seguintes termos (art. 112.ºCC):

1. Regresso do ausente
2. Pela notícia da sua existência e do lugar onde reside;
3. Morte do ausente
4. Passamos para a morte presumida

Se o agente regressa ou há notícia de que está vivo, os bens do ausente, que estavam a cargo
dos curadores definitivos, retomam à sua esfera jurídica se ele assim o quiser. Se nada fizer,
continuam na esfera jurídica dos curadores (art. 113.º). Na curadoria definitiva, a presunção de vida
e de morte equilibra-se.

Morte Presumida

Há lugar à morte presumida quando decorreram dez anos desde a última vez que o ausente
deu notícias ou cinco anos, se o ausente houver completado oitenta anos de idade (art. 114.º/1). A
morte presumida nunca será declarada se o ausente ainda não tiver completado vinte e três anos
(art. 114.º/2)

A morte presumida produz os mesmos efeitos que a morte (art. 115.º CC). Este artigo tem de
se ler em termos hábeis, porque apesar do descrito, há que considerar que o ausente pode sempre
regressar, pode efetivamente morre, mas a data da morte real não coincide com a data da morte
presumida e, ainda, não desaparecem os seus direitos de personalidade.

Não há dissolução ipso facto da temática do casamento pela morte presumida, mas se o
cônjuge do ausente quiser casar novamente, pode fazê-lo e se regressar o ausente, considera-se o
primeiro casamento dissolvido por divórcio (art. 116.ºCC). Todavia, é lógico que havendo regresso do
ausente e não tendo havido segundas núpcias, o casamento volta ao seu pleno vigor - fica apenas
numa situação de quiescência, revivescendo logo que haja notícias.

Na curadoria provisória, a caução é obrigatória, na curadoria definitiva, a caução é facultativa


e na morte presumida, não há lugar à caução (art. 117.º). Se se concluir que a data da morte real
diverge da data da morte presumida, o direito à herança compete àqueles a quem deveria suceder, à
data da morte real. No entanto:

- Se os sucessores anteriores (aqueles a quem competia a herança à data da morte presumida)


adquiriram direitos de usucapião sobre determinada coisa, a coisa pertence-lhes.
- Os novos sucessores recebem os bens da herança, nos termos em que recebe o ausente em
caso de regresso.

Na eventualidade do ausente regressar, este tem direito à devolução dos seus bens, contudo
esta só tem a extensão que tiver a boa-fé dos sucessores (art. 119.º). Os herdeiros ou outros
sucessores ficam na titularidade dos bens, podendo usar e dispor deles livremente. Assim, apesar de
serem obrigados a devolver os bens, não são obrigados a devolvê-los da forma que os receberam.
Por exemplo, C recebe o bem X, mas vende-o por 50 000 euros; o ausente tem direito aos 50 000
euros, mas não ao bem X.

121
Há, contudo, direito a indemnização do ausente, se houver má-fé que resulte em prejuízo
para o mesmo (art. 119.º/2) - a má-fé aqui resulta do conhecimento de que o ausente sobreviveu à
data da morte presumida (art. 119.º/3 CC).

Na morte presumida, presume-se a morte do ausente - o interesse que prevalece é o dos


sucessores ou habentes causam, isto é, o interesse na regularização do destino de um património
cuja chefia se resume extinta.

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