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Mulheres fortaleza
Norma Bates/CC
Tudo dó
caminho, porque é da sua natureza enfrentar, seja o que for.
A gente sai do cinema com aquela ânima, com uma alegria
desesperada, uma vontade de gritar, de júbilo, de felicidade.
Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG),
Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),
Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper
(Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff,
Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Marina Tavares Ferreira • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •
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de 4 a 10 de setembro de 2014 3
Carisma e carismáticos:
que energia é essa?
NESTES TEMPOS DE CAMPANHA eleitoral, surgem figuras
de todo tipo. Mas poucos são aqueles que irradiam energia
contagiante, suscitam um novo imaginário e movem as mas-
sas. Esses são os portadores de carisma.
Carisma, carma, Crishna, Cristo, crisma e caritas possuem
a mesma raiz sâncrita kri ou kir. Ela significa a energia cós-
mica que tudo acrisola e vitaliza, tudo penetra e rejuvenesce,
força que faz atrair e fascinar os espíritos. A pessoa não pos-
sui um carisma. É possuída por ele. A pessoa, sem mérito pes-
soal nenhum, vê-se tomada por uma força que irradia sobre
outras, fazendo que fiquem estupefactas; se estão falando, se
calam, se estão se entretendo com alguma coisa, param para
prestar atenção à pessoa carismática.
O carisma é algo surpreendente. Está nos seres humanos,
mas não vem deles. Vem de algo mais alto e superior. Niet-
zsche conta que passeando pelos Alpes, era tomado por uma
força que o fazia escrever. Era outro que se servia dele. Toma-
va seu canhenho e nele escreveu o melhor de suas intuições.
Os antropólogos introduziram um palavra tirada da cultura
de Melanésia: o mana. A personalidade-mana irradia um po-
der extraordinário e irresistível que, sem violência, se impõe
aos demais. Atrái, entusiasma, fascina, arrasta. É o equivalen-
te de carisma na nossa tradição ocidental.
Quem são os carismáticos? No fundo, todos. A ninguém é
negada essa força “cósmica”de presença e de atração. Todos
carregamos algo das estrelas de onde viemos. A vida de cada
um é chamada para brilhar, no dizer de um cantor. É carismá-
tica de uma forma ou de outra. José Marti, pensador cubano
dos mais argutos da América Latina, bem dizia:”Há seres hu-
manos que são como as estrelas: geram sua própria luz, en-
Altamiro Borges quanto outros refletem o brilho que recebem delas”. Alguns
são Sol, outros, Lua. Ninguém está fora da luz, própria, ou re-
fletida. Em fim, estamos todos na luz para brilhar.
Cartilha eleitoral te. E hoje quase não podendo falar por causa de forte Park-
son, sua escrita ou seus poemas tem a força do fogo. É um
exímio poeta.
Há políticos hábeis e grandes administradores. A maioria
maneja o verbo com maestria. Mas façam o Lula subir à tribu-
A CNBB LANÇOU este mês o documento “Seu voto tem Bolsa-Família. A taxa de desemprego vem caindo regu- na, diante das multidões. Começa baixinho, assume um tom
consequências: um novo mundo, uma nova sociedade”, larmente desde 2003 e ficou em 5,4% em 2013. O Brasil narrativo, vai buscando a trilha melhor para a comunicação.
no intuito de orientar os católicos nas próximas eleições. foi um dos países onde se registrou maior redução da po- E lentamente adquire força, as conexões surpreendentes ir-
Trata-se de um documento apartidário, porém à luz breza nesse período.” rompem, a argumentação ganha seu travejamento adequado,
da doutrina social da Igreja e dos documentos papais e Quanto aos aspectos negativos, diz o documento: “Co- o volume de voz alcança altura, os olhos se incendeiam, os
episcopais. “As eleições deste ano de 2014 são importan- mo apontaram as manifestações, os recursos para a saúde gestos ondulam a fala, num momento o corpo inteiro é comu-
tes, não só porque presidente, deputados, senadores e e para a educação – as principais políticas sociais nicação, argumentação e comunhão com a multidão que de
governadores têm uma incidência muito grande na vida de um país – são bastante limitados e vêm aumentando barulhenta passa a silenciosa e de silenciosa a petrificada pa-
da população, mas porque está em jogo também o proje- muito lentamente.” ra, num momento culminante, irromper em gritos e aplausos
to político, social e econômico para o Brasil”, diz o texto. Quanto aos gastos com a dívida pública: “Se quisermos de entusiasmo. É o carisma fazendo sua irrupção. Pouco im-
Será que a Igreja Católica, ao emitir o documento, esta- saber para quem um governo trabalha, temos de exami- porta a opinião que pudermos fazer de seus 8 anos de gover-
ria “se metendo em política”, como alardeiam os ingênu- nar para onde estão indo os recursos. Atualmente, eles no. Nele não se pode negar a presença do carisma.
os? Primeiro, nós, cristãos, somos todos discípulos de um são destinados, em primeiro lugar, para o pagamento da Não sem razão Max Weber, o grande estudioso do poder ca-
prisioneiro político. Jesus não morreu doente na cama. dívida pública e de seus juros. Em 2013, quase metade rismático, chamou-o de estado nascente. O carisma como que
Foi preso, torturado e condenado à pena de morte dos ro- do orçamento público (40%) foi destinado para os juros, faz nascer, cada vez que irrompe, a criação do mundo na pes-
manos (a cruz) por dois poderes políticos! amortização e rolagem da dívida, enquanto menos de 5% soa carismática, ou personalidade-mana. A função dos caris-
Segundo, em política ninguém é neutro, seja por omis- foi para a saúde e menos de 4% para a educação. Este ‘sis- máticos é a de serem parteiros do carisma latente dentro das
são, seja por participação. Terceiro, historicamente a Igre- tema da dívida’ é o grande devorador dos recursos públi- pessoas. Sua missão não é dominá-los com seu brilho, nem
ja sempre tendeu a fazer a política dos nobres, dos opres- cos. É o maior gasto do governo, e faz com que faltem re- seduzi-los para que os sigam cegamente. Mas despertá-los da
sores, dos escravocratas e dos poderosos. cursos para o transporte, a saúde, a educação, o sanea- letargia do cotidiano. E, despertos, descobrirem que o coti-
A CNBB elenca as conquistas significativas dos go- mento básico e outras políticas sociais.” diano em sua platitude guarda segredos, novidades, energias
vernos do PT: “Os dados mostram que, nos últimos dez O documento critica ainda a violação dos direitos indí- ocultas que sempre podem acordar e conferir um novo senti-
anos, cerca de 28 milhões de brasileiros deixaram a ex- genas e dos quilombolas; a lentidão da reforma agrária; as do e brilho à vida, à nossa curta passagem por esse universo.
trema miséria e a pobreza e passaram a ter uma renda privatizações; os megaprojetos que afetam as populações Que cada qual descubra a estrela que deixou sua luz e seu
melhor. Este foi um salto significativo na nossa reali- mais pobres. E reforça o apoio ao Projeto de Lei de Inicia- rastro dentro dele. E se for fiel à luz, brilhará e outros o perce-
dade social. Um dos fatores importantes para este resul- tiva Popular, que recolhe assinaturas em prol da reforma berão com entusiasmo.
tado foi o aumento real do salário-mínimo – acima da política, e conclama à participação no plebiscito por uma
inflação. Outra contribuição veio do programa de trans- Constituinte exclusiva pela reforma política, que ocorrerá Leonardo Boff é teólogo e escritor.
ferência de renda para famílias extremamente pobres, o na Semana da Pátria, entre 1 e 7 de setembro. Escreveu Meditação da luz, Vozes 2010.
fatos em foco
da Redação
Tribunal Eleitoral de São Paulo re- Sadia, Perdigão, Batavo e Elegê, foi punida sar da farra no andar de cima, os bancos pri-
tira Paulo Maluf das eleições 2014 por manter trabalhadores em condições vados demitem na casa das máquinas, para
O TRE-SP indeferiu dia 1º de setembro análogas às de escravos em uma fazenda no contratar com salários muito mais baixos.
a candidatura do deputado Paulo Maluf município de Iporã, no Paraná. Segundo o
(PP) para um novo mandato na Câmara dos MPT, os problemas encontrados iam desde Advogado da CPT
Deputados. Ele foi enquadrado na Lei da jornadas excessivas e condições precárias sofre ameaças
Ficha Limpa por uma condenação sofrida no dos alojamentos até a contaminação da água Em nota, a Coordenação Executiva Na-
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo fornecida aos empregados para consumo. cional da CPT afirma o coordenador da CPT
(TJSP). Como ainda cabe recurso ao TSE, Regional Araguaia-Tocantins, Silvano Lima
Maluf pode continuar em campanha, inclu- Executivo do Itaú ganha Rezende, tem sofrido ameaças de pistoleiros
sive no horário eleitoral gratuito de rádio e 318 vezes o Piso bancário a mando de grileiros, na tentativa de inti-
televisão. O tribunal considerou que houve É um escândalo o que revela a Pesquisa midá-lo na sua ação em defesa dos direitos
irregularidades nos contratos para cons- de Emprego Bancário 2014, da Contraf-Cut dos camponeses. Segundo a nota, a entidade
trução do Complexo Viário Ayrton Senna, em parceria com o Dieese, em relação aos solidariza-se com a esposa e filhos do Silva-
quando o deputado era prefeito da cidade. ganhos dos banqueiros. Dados referentes a no e aos outros membros da CPT Araguaia-
2013 mostram que, no Itaú, cada membro -Tocantins que vivem em situação de risco.
Dono da Sadia é flagrado do Conselho de Administração recebeu, Silvano vem contrariando interesses, pois,
por trabalho escravo em média, R$ 15,5 milhões no ano. Isso dá há mais de uma década atua na defesa dos
O Tribunal Regional do Trabalho da 9ª 318,5 vezes o Piso salarial da categoria. Ban- direitos dos camponeses, e nos últimos anos
Região condenou a BRF a pagar indeni- cário que recebe Piso teria de trabalhar 26,5 na defesa jurídica gratuita, em apoio à resis-
zação por dano moral coletivo no valor de anos para chegar ao valor de apenas um ano tência das famílias que tentam permanecer
R$ 1 milhão. A empresa, dona das marcas da remuneração do executivo do Itaú. Ape- nas terras por elas trabalhadas.
6 de 4 a 10 de setembro de 2014 brasil
Patricia Fachin
de São Leopoldo (RS)
A luneta do tempo de
INFÂNCIA RESGATADA
Alceu Valença Divulgação
ra Olinda onde ficava filmando os caras,
me exercitando com a câmara, com os
Cantor estreia no cinema planos, os “plongê” e “contraplongê”. Eu
contando “inacreditáveis só pensava no filme. Foram 14 anos de-
dicados a ele. De noite, eu sonhava com
histórias verdadeiras” de o filme, acordava cheio de ideias. Minha
mulher (a produtora Yanê Montene-
cangaceiros, aboiadores, gro) implorava para eu voltar a dormir.
Quando senti que o roteiro estava pron-
rabequeiros e artistas de to, voltei à fazenda do meu pai, vesti a
circos mambembes roupa do Lampião da Manchete e pedi a
Sérgio Cri-Cri, que está no filme, e à mi-
nha mulher que me filmassem num laje-
do. Aí eu delirava, fazia as falas de todos
Maria do Rosário Caetano os personagens, imitava a voz de Lam-
de São Paulo (SP) pião, de Maria Bonita, do Antero Tenen-
te, dos pássaros, dos cachorros, aboia-
QUINZE ANOS atrás, Alceu Valença per- va... Meus amigos me diziam: guarde o
deu o pai. Ao levar o corpo do Sr. Décio roteiro, não mostre para ninguém. Eu
(ex-prefeito de São Bento do Una, ter- mostrei pra todo mundo que passou na
ra natal dos Valença) para que fosse en- minha frente. Do Rio Grande do Sul, de
terrado onde nascera, o autor de Anun- Santa Catarina ao Ceará, aonde eu che-
ciação começou a repensar a vida e a re- gasse eu mostrava, contava, recontava.
memorar histórias de infância. Em suas Teve amigo que escutou a história deze-
lembranças, a presença do pai ganhava nas de vezes.
imenso relevo.
Cantor e compositor da linha de frente Um musical brasileiro
da MPB, ator em raras oportunidades Me indicaram uma equipe que traba-
(no filme A noite do espantalho, de Sér- lhou no filme Vinho de Rosas, da mi-
gio Ricardo, e na novela Mandacaru, da neira Elza Cataldo, fotografado por Luis
Manchete), o pernambucano Alceu foi Abramo. Convoquei esta turma para tra-
somando tantas memórias, que elas re- balhar comigo. Do Abramo vi outros fil-
sultaram em imenso livro, ainda inédito, mes, incluindo o Proibido Proibir, do
pois “perdido”. Jorge Durán. Eu já tinha o ritmo do fil-
Por sugestão do cineasta e fotógra- me inteiro na cabeça. Gravei a trilha so-
fo Walter Carvalho, o compositor resol- nora, não a definitiva, claro, e as falas
veu estrear na direção cinematográfica. de todos os personagens. E também os
Concluiu sua tarefa aos 68 anos, muitos sons dos bichos [imita pássaros, cachor-
deles (14 anos) de muito trabalho pa- ro, boi]. Quando chamava um ator, mos-
ra levar o roteiro às telas. O resultado trava aquela gravação. Queria que ouvis-
– de nome evocativo e poético: A lune- sem/captassem o “ritmo” que eu queria
ta do tempo – é um filmusical nordesti- dar à luneta do tempo. O Irandhir Santos
no em ritmo de cordel. O primeiro lon- O ator Irandhir Santos, como Lampião, em cena de A luneta do tempo (Lampião) adorou a ideia. Já a Hermi-
ga de Alceu teve sua primeira sessão pú- la Guedes (a Maria Bonita) achou aqui-
blica no Festival de Gramado. E recebeu le bate-boca. Aí, um dos bêbados pegou dá um filme”, ele me disse. Pois então va- lo meio estranho, ficou reticente, mas de-
dois prêmios: melhor trilha sonora (do o chapéu e cortou-o ao meio para acabar mos fazê-lo juntos, propus. Ele topou. E pois entrou no clima e tudo saiu bem. Eu
próprio Alceu) e melhor direção de arte com aquela discussão que não tinha fim. me indicou o Tuinho Schwartz para pro- queria fazer um musical brasileiro. Não
(Moacyr Gramacho). E voltaram para a farra do Carnaval. duzir, pois o cara é bom. Aí começou a queria fazer uma ópera italiana, nem
A Luneta do tempo se passa em dois fase da captação de grana e dos editais. um musical da Broadway. A influência
momentos históricos. Nos anos de 1930, Cinema de vivências Como não gosto de pedir, não pedi nada quando ela é muito visível transforma-se
quando as volantes perseguiam os can- Eu nasci e cresci em São Bento do Una, a Eduardo Campos, que era meu amigo, em cópia. E eu não gosto de cópia, gos-
gaceiros, e 30 anos depois, quando Lam- uma cidade de uns 5 mil habitantes, que nem a Demian Fiocca, do BNDES, tam- to do que busca a originalidade. Então,
pião e Maria Bonita haviam se transfor- tinha uma vida cultural maravilhosa: bém meu amigo. Aliás, um dia encon- com a equipe técnica montada, tomamos
mado em tema recorrente de folhetos de dois cinemas, cinco grupos de teatro e trei Demian e perguntei a ele: o que você o rumo da fazenda do meu pai. Tinha
cordel e matéria-prima de montagens uma feira onde se apresentavam sanfo- faz no BNDES? Sou o presidente do ban- que filmar na região onde passei minha
dramáticas dos circos mais mambembes. neiros, tocadores de viola, emboladores, co, me respondeu. Ah, pois não faça na- infância. Destas locações eu não abria
Em Gramado, quando foi convocado a cegos rabequeiros. Havia o alto-falante da para me ajudar, estou inscrito no Edi- mão. Aí me avisaram: “Você tem que se
trocar ideias com a imprensa especializa- do Cine Rex, que tocava música, inclusi- tal de Produção do Banco e meu roteiro é fazer respeitar pelos técnicos, diretor que
da, Alceu preferiu fazer palestra (ou cole- ve de Luiz Gonzaga. E havia os doidos na muito bom. Eu me garanto. Eita, lasquei- não é respeitado pelos técnicos está las-
tiva-espetáculo), em tudo semelhante às feira. Por isto no meu filme tem um doi- -me. Saiu o resultado e não fui contem- cado”. Quando vi a turma da técnica a
magníficas e bem-humoradas aulas-es- do, o Mateus Encrenqueiro, interpretado plado. Arrombei-me. Foi aquela dificul- postos, joguei verde para colher madu-
petáculo de seu quase conterrâneo, Aria- pelo Hélder Vasconcelos. dade. Não saía nada para financiar o fil- ro. Fui logo dizendo: “Estou pensando
no Suassuna (paraibano que fez carrei- Faço cinema de autor, cinema com mi- me. O Walter viabilizou o Budapeste e eu em fazer uma ‘pan’ (uma panorâmica),
ra em Pernambuco). Barroco, falastrão nhas próprias vivências. Então tinha que ali, sem dispor dos recursos necessários. depois quero um plano, aquele com um
dos mais convictos, apaixonado por seus falar do cangaço, das feiras, dos sanfo- Fui atrás do Andrucha (Waddington). cavalo correndo, em zenital...”. [Indaga-
ofícios e grande contador de estórias, ele neiros e rabequeiros. E dos doidos. Ah, Ele ficou entusiasmado com meu proje- ram eles:] “Genital?”. Disse eu: “Não, ze-
ainda cantou e imitou vozes de bichos e havia também o Cabo Arino, que era bra- to. Mas aí foi filmar Casa de Areia. Las- nital, que é um plano de cima para bai-
de gente. Neste caso, de dois colegas de bo e botava medo nas crianças. Ele nos quei-me de novo. A peste de Budapeste xo, que muitos chamam de plano pica-
trabalho: Cauby Peixoto e Nelson Gon- causava tanto medo, quando fazíamos al- se abateu sobre mim e atolei-me na areia do”. Ganhei os caras. Os técnicos cario-
çalves. Como tinha muitos shows agen- guma coisa errada, que um dia nos deu da casa do Andrucha. cas diziam [imita a marra da moçada do
dados Brasil afora, passou como um uma carreira tão grande, que eu, criança, Rio] :“Pô, o cara é foda, entende tudo de
cometa pela Serra gaúcha. Partiu sob fui parar no cemitério, único lugar que plano zenital, sabe o que querrr”. Com
aplausos, deixando saudades. Abaixo, al- encontrei para me esconder. No meu fil- “Em frente ao chapéu de cangaceiro, o Luis Abramo, o diretor de fotografia,
guns trechos de sua divertida e bem in- me, ele, o Cabo Arino, está representado o diálogo foi fácil. Ele levou uma paleta
formada “coletiva-espetáculo”. como reflexo da repressão. guardado com zelo em nossa casa, uma de cores para orientar nossas escolhas. A
E não podemos nos esquecer dos cir- parceria foi total. Ele fala baixo e aceitou
Memórias do cangaço cos que povoaram nosso imaginário.
discussão: Lampião era herói? Era bem todas as minhas ideias.
Meu pai, Décio de Souza Valença Por São Bento passavam aqueles cir- bandido? Foi aquele bate-boca. Aí, um
(1914-1999), estudava Direito na Uni- cos mambembes, de lona rasgada, com Atores com cara de povo
versidade Federal de Pernambuco (on- aqueles palhaços que nos encantavam dos bêbados pegou o chapéu e cortou-o ao O filme tem muitos personagens. E na
de também estudei Direito). No tempo com seus improvisos. Dos circos que trilha sonora há umas 57 músicas. Eu
em que ele era estudante, um dos nomes passaram pela cidade, só o Nerino tinha meio para acabar com aquela discussão compus umas 200. Vou colocar tudo nos
mais discutidos nos cursos jurídicos era qualidade para chegar ao Recife. Então, extras do DVD! Há, no elenco, além de
o de Cesare Lombroso (1835-1909), um o circo tem um espaço fundamental no profissionais como Irandhir, Hermilla
criminalista italiano que dizia que o as- meu filme. Quando meu pai morreu, fui e Servílio de Holanda (o terrível Ante-
sassino já nascia assassino pelo seu tipo levá-lo do Recife para São Bento, para Tempo de estudos ro Tenente), gente que trabalha na fa-
físico. Meu pai não concordava com es- enterrá-lo na sua terra. Na fazenda de- Vi que eu tinha que aprender a me vi- zenda do meu pai, amigos meus de Re-
ta ideia, mas alguns dos colegas dele con- le, mexi e remexi para ver as coisas que rar sozinho. Vou estudar cinema, é o jei- cife e Olinda, e meus filhos Ceceu e Ra-
cordavam. Num dia de julho de 1938, um ele guardava. Entre elas estava a roupa to. Comprei de cara o livro de roteiro do fael. Eu também estou no filme, na pe-
funcionário dos correios chegou com um que usei, quando interpretei Lampião, Doc Comparato. Um dia, fui à casa de le do Véio Quiabo. Ceceu, que faz o do-
telegrama que dava conta da morte de na novela Mandacaru, da Manche- meu filho, Ceceu Valença, e ele namora- no do circo, aquele que seduz todas as
Lampião, Maria Bonita e bando, na gruta te. Foi uma participação pequena. Eles va uma moça gaúcha, Alessandra Lessa, mulheres, é ator profissional, fez escola
de Angicos, em Sergipe. nem me pagaram. Então eu disse: “Vou que tinha estudado cinema em Los An- de Arte Dramática. No meu filme, ele ti-
Meu pai e vários colegas dele alugaram levar esta roupa para mim, ora se vou”. geles. Pedi para ela me dar uma ajuda. nha que interpretar Nagib Mazola, pois
um pequeno ônibus, cruzaram Alagoas e Levei e ela ficou pendurada na fazenda Ela me deu umas dez aulas, me ensinou a é mesmo um grande sedutor, tem fama
chegaram a Angicos para ver os cangacei- do meu pai, que gostava muito dela. Foi gramática básica do cinema, os planos... de tarado, puxou ao pai (risos). Na tra-
ros de perto. Encontraram só os corpos, naquele momento da dor pela perda pa- Quem sabe o que é um plano zenital? Eu ma ele é argelino. Na legenda em inglês
sem as cabeças. Cortaram umas madei- terna, que me senti motivado a relem- sei, aprendi... Mas eu vi que se eu fosse ele aparece como turco. Mas isto não tem
ras, abriram umas valas e deram sepul- brar as histórias da minha infância. Co- um aluno aplicado demais, ia perder a nenhuma importância, pois os caras que
tura aos mortos. Naquela praça de guer- mecei a escrever o livro Inacreditáveis criatividade. Deixei as lições da Alessan- trabalhavam nos circos mambembes de
ra, onde se dera o embate entre a volan- Histórias Verdadeiras. Fiz uma narra- dra. Comprei mais livros, vi e revi filmes São Bento do Una mentiam suas origens.
te e os cangaceiros, havia alguns objetos. tiva em ritmo de cordel. De repente, eu para analisar a gramática de cada um. Aí Diziam que vinham do país que lhes pa-
Meu pai pegou um chapéu de cangacei- tinha reunido muitas histórias, muitas peguei uma câmara digital e comecei a recesse causar melhor impressão. Inven-
ro. Um colega dele pegou um broche no lembranças, muitos poemas. Mas perdi andar com ela e a filmar o que me pas- tavam uns sotaques mixurucas. Fiz A lu-
qual se via um galo e uma galinha. Leva- os originais do livro num táxi. Mas já me sava pela frente. Parecia um Glauber Ro- neta do tempo para mostrar o Nordes-
ram aqueles objetos para Recife. Cresci garantiram que ele será resgatado no cha com sua câmera na mão. Mas o “câ- te profundo, o Nordeste dos cangacei-
ouvindo esta história, contada inúmeras HD do computador, pois isto é possível. mera na mão” do Glauber era o Dib Lu- ros, de Luiz Gonzaga, dos rabequeiros,
vezes por meu pai. Me lembro que eu ti- tfi, irmão do Sérgio Ricardo. Eu havia fei- um Nordeste que conheço muito bem.
nha uns 5 anos, quando um grupo de bê- “Isto dá um filme” to um filme com os dois irmãos: fui ator Nenhum ator faz caricatura no meu fil-
bados invadiu a minha casa. Eram ami- Um certo dia, estava eu assistindo a em A noite do espantalho (1973). O Sér- me, nem fala com sotaque nordestino de
gos de meu pai que queriam levá-lo pa- um show do grupo Cabruêra, da Paraí- gio dirigindo, o Dib fotografando e eu in- novela. Na minha cidade tinha um alto-
ra brincar o Carnaval. Chegaram a rasgar ba, no Teatro Rival, centro do Rio, e, sen- terpretando (e cantando) na pele do es- -falante na praça, que tocava muito Luiz
a roupa do meu pai nas muitas tentativas tado ao meu lado estava o Walter Carva- pantalho. Depois de cada jornada de fil- Gonzaga, Nelson Gonçalves, Cauby...
para levá-lo. Foram. Quando voltaram, lho. Ele me perguntou o que eu andava magem, eu ficava ali rodeando, prestan- [Já de pé, pronto para partir rumo ao
muito bêbados, iniciaram, em frente ao fazendo. Contei que estava escrevendo do atenção na parte prática, sempre fui aeroporto de Porto Alegre, Alceu aceita
chapéu de cangaceiro, guardado com ze- muito. Fomos para o Amarelinho, ali na muito interessado em cinema. provocação de um amigo e imita Cauby
lo em nossa casa, uma discussão: Lam- Cinelândia, e contei tudo que tinha pro- Depois das aulas e de muitos livros li- e Nelson. A plateia se diverte, ele acena e
pião era herói? Era bandido? Foi aque- duzido, de forma desordenada. “Mas isto dos e filmes vistos e analisados, fui pa- parte sob aplausos calorosos.]
12 de 4 a 10 de setembro de 2014 cultura
Braulio Tavares
www.malvados.com. br dahmer
PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais – 1.Nome dado ao Brasil, pelos indígenas, antes da invasão de Cabral, que
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
significa “terra das palmeiras” – “Você”, em alemão. 2.A resistível ascensão de Arturo (?), 1
peça de Bertolt Brecht – Vestimenta “excludente” do carnaval de Salvador que identifica
o folião para que seja protegido da “pipoca” por um cordão.3.Coito – Novo nome do PFL. 2
4.Termo que é duplicado no nome de um pássaro que ficou famoso na voz de Carmen
3
Miranda 5.Um dos cinco sentidos – Palavra hebraica comum no final das orações que
significa “assim seja” – Antes de Cristo – 6.Prefixo que indica ‘dois’ – Aplicação de subs-
4
tâncias oleosas – Igual, semelhante – “Bunda”, em inglês.7.Nome que indica a introdução
de líquido no ânus para lavagem – “Costela”, em inglês. 8.Fazer o bebê dormir – Interjei- 5
ção associada aos mineiros. 9.Ponto de interconexão – Árvore típica do Nordeste brasi-
leiro, cujo fruto é rico em vitamina C. 10.“Veneno”, em inglês – Bairro do Rio de Janeiro 6
onde morou Machado de Assis. 11.“Avó”, em alemão.
7
capital a cidade de Bamako. 10.Da gordura de sua fruta, rica em vitamina E, pode ser
feito até sabão. 11.Pequeno país situado na Península Arábica, que tem como capital
a cidade de Mascate – Tipo de peixe. 12.Poesia própria para canto – O artigo “o”, em
espanhol. 13.“Ligado”, em inglês – Fiel. 15.Os rins a extraem do sangue e a concentram 18.Villas Bôas.
9.Mali. 10.Abacate. 11.Omã – Atum. 12.Ode – El. 13.On - Leal. 15.Ureia – Pá. 16.Carajás. 17.Si.
na urina – Utensílio agrícola. 16.O massacre de “Eldorado dos (?)” completou 18 anos Verticais –1.Ben. 2.Piratininga. 3.Eno. 4.Nu – Tuma. 5.Dicionário. 7.Rip – Ussu. 8.Ut – Ova – Oi.
em 2014. 17.Sétima nota musical. 18. Irmãos (?), responsáveis pela criação do Parque Bi - Unção - Tal - Ass. 7.Enema - Rib. 8.Ninar - Uai. 9.Nó - Juá. 10.Poison - Lapa. 11.Oma.
Nacional do Xingu.
Horizontais –1.Pindorama – Du. 2.Ui - Abadá. 3.Cópula - DEM. 4.Tico. 5.Tato - Amén - AC. 6.
américa latina de 4 a 10 de setembro de 2014 13
Achille Lollo
de Roma (Itália)