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2 de 4 a 10 de setembro de 2014

editorial

Começa a campanha que vai mudar o destino do Brasil


SÃO MAIS DE 1.700 comitês, mi-
lhares de ativistas em todos os es-
ra democracia é a maior ameaça pa-
ra a classe dominante.
Estamos diante cláusulas pétreas. No caso dos direi-
tos individuais e sociais, não podem
Conceber que é imutável é desco-
nhecer os processos históricos.
tados da federação, mais de 450
das principais entidades, movi-
Quando não conseguem omitir, os
grandes meios de comunicação ten-
de uma nova luta ser suprimidos nem reduzidos, mas
podem ser ampliados. Portanto, na-
É exatamente na luta pela obten-
ção da Constituinte que os setores
mentos e organizações sociais. É a
mais unitária campanha política,
tam vincular a campanha ao PT e às
eleições. Nunca esclarecem que vá-
decisiva, que poderá da temos a perder, somente a ganhar
na possibilidade da ampliação de di-
populares ganharão força para obter
conquistas na sua realização. Temos
desde a luta contra a Área de Livre rios outros partidos e membros de abrir imensas reitos. E se tratando do sistema polí- inúmeros exemplos históricos. Bas-
Comércio das Américas (Alca) e as diversas outras agremiações também tico, alguém duvida que a ampliação ta recordar que quando se começou
“Diretas Já”. estão na campanha. É o caminho que possibilidades para da democracia predominará se ocor- a construir a campanha das “Diretas
Na Semana da Reforma Política encontraram para dividir a luta. rer uma ampla participação popular? Já”, algumas forças, inclusive de es-
Democrática, duas importantes ini- Também repercutem as opiniões um verdadeiro Ora, se a Constituição Federal per- querda, diziam pragmaticamente que
ciativas se somam. O Plebiscito Po- que alertam para o risco de retroces- mite emendas, nada obsta que es- uma eleição direta a ser realizada na-
pular pela Constituinte Exclusiva e so de direitos na conquista de uma projeto popular sas emendas abranjam capítulos e tí- queles anos poderia ser ganha pela
Soberana do Sistema Político e a co- Constituinte. É interessante. A mes- tulos. E, tampouco, havendo a deci- ditadura, que naquele momento con-
leta de assinaturas para o Projeto ma mídia que na década de 1990 de- são legítima e soberana de um Ple- tava com uma imensa máquina parti-
de Lei da Reforma Política, promo- fendeu ardorosamente mudanças biscito Legal, a eleição de represen- dária que era a ARENA, além de con-
vido pela Coalizão Democrática que constitucionais para cumprir a agen- tantes exclusivos para a redação das trolar as regras do sistema político.
conta com a participação da Confe- da neoliberal agora preocupa-se com mudanças. Desprezavam que foi exatamente no
rência Nacional dos Bispos do Bra- a possível redução de direitos. Portanto, a resistência à campa- bojo de construção da campanha pe-
sil (CNBB) e a Ordem dos Advoga- Não é verdade que corremos o ris- nha pela Constituinte é política e las “Diretas Já” que a correlação de
dos do Brasil (OAB). co de perder direitos numa Consti- ideológica e não existe nenhuma im- forças se alterou. Ninguém imagina-
Apesar das crescentes iniciati- tuinte. Uma Assembleia Constituin- possibilidade jurídica. Até mesmo va que Lula chegaria a um segundo
vas – urnas que se multiplicam nas te pode ser originária, quando uma partir dela. Nossa Constituição Fede- por que é a luta que faz a lei. Uma turno (e quase ganharia as eleições),
principais praças e ruas, votações ruptura política ou final de um re- ral permite mudanças derivadas. São Constituição é como uma cristaliza- sem prever todo o acúmulo da cam-
nas fábricas, escolas, sindicatos, as- gime permite o surgimento de uma as emendas constitucionais. Elas po- ção – uma fotografia – de uma cor- panha em 1984 e sua recusa em acei-
sentamentos, paróquias – a gran- força social que vai elaborar um Tex- dem ocorrer, desde que não atinjam relação de forças. E as forças se alte- tar o Colégio Eleitoral.
de mídia se esforça para obscurecer to Constitucional completamen- as chamadas Cláusulas Pétreas (as ram, tornando as constituições ana- Portanto, estamos diante de uma
ou desqualificar a campanha. Não te novo. Ou pode ser derivada. Isto regras de pedra). Os direitos sociais e crônicas e superadas. Nosso siste- nova luta decisiva, que poderá abrir
é para se estranhar. Mudar o siste- é, quando a Constituição prevê e au- individuais e outros itens como a for- ma político, herança da ditadura é imensas possibilidades para um ver-
ma político, conquistar a verdadei- toriza que mudanças sejam feitas a ma democrática e republicana, são o fator que impede avanços sociais. dadeiro projeto popular.

opinião Ademar Bogo crônica Elaine Tavares

Mulheres fortaleza
Norma Bates/CC

MILTON SANTOS ESTAVA CERTO. Não há como escapar


do espaço geográfico. Por isso que, mesmo sendo do mundo,
o lugar onde nascemos segue vivendo em nós, e de uma ma-
neira total. Sinto isso todos os dias. Nasci no Rio Grande, na
barranca do rio Uruguai, fronteira com a argentina, região
da pampa. Da janela de casa – qualquer casa – nossa visão é
sempre a planura, o infinito. Por isso, talvez, que nosso ins-
tinto seja sempre esse, de ir mais longe, e mais longe, e mais
longe. Andar sempre em frente, no rumo daquele horizonte
sempre vislumbrado.
Essa sede de infinitos vejo no filme Anahy de las misiones,
uma produção do cinema gaúcho, que mostra a fortaleza das
mulheres do Rio Grande, sempre às voltas com forças apa-
rentemente maiores do que elas, mas as quais domam com
mão segura. A personagem principal, Anahy, vive em ple-
na revolução farroupilha, nos campos de batalha, e tudo lhe
acontece. Coisas que vergariam os espíritos mais duros. Ela
segura no osso do peito e segue em frente. A cena final é pa-
radigmática. Quando tudo está perdido, todas as dores fo-
ram sofridas, ela ergue o peito e anima os que sobraram: “Na-
da vai nos parar”, desafia, “ainda sobrevivo a muitos desavin-
dos”. A câmera vai subindo, subindo, subindo, e o espectador
vê que o grupo ao qual ela lidera com sua força abissal está
indo na direção de um abismo. Metáfora maravilhosa da geo-
grafia de um forte. Sempre em frente, não importa se lá na
frente há um abismo. Ela saberá vencer. Ela encontrará um

Tudo dó
caminho, porque é da sua natureza enfrentar, seja o que for.
A gente sai do cinema com aquela ânima, com uma alegria
desesperada, uma vontade de gritar, de júbilo, de felicidade.

UMA ONDA “fundamentalista” to-


mou conta da campanha eleitoral.
O futuro é vazias! Este é o detalhe: se há algu-
ma novidade na política é o discurso
Não saltaremos para a morte como
Afirma-se, pregando a “nova políti-
ca”. E eis que de um momento pa-
incerto, vê-se pelo que entra no vazio das cabeças que
comandam as barrigas cheias de as-
Telma e Louise, mas para a vida,
ra outro, as certezas desenvolvimen-
tistas enrijeceram as bocas, murcha-
tom repetitivo sistencialismo despolitizado.
Mas por que as cabeças estão va-
esgrimindo os monstros e rasgando
ram as bochechas e sustentam sor- da campanha zias de conteúdo progressista, so- novos caminhos
risos amarelos. Para compreender- cialista ou revolucionário se grande
mos a situação, o ponto de partida eleitoral; isto parte das forças de esquerda no go-
é percebermos que em política nem verno se sentem vitoriosas? Porque
sempre as coisas acontecem por aca- mostra como disse no Brasil quem ganha as disputas Diferente mensagem passa o filme Telma e Louise, que
so e, assim como os espaços vazios eleitorais são os partidos, mas quem também termina num abismo. A película se passa no espaço
podem ser preenchidos, os espaços Carlos Marighella, governa são os candidatos eleitos. geográfico e cultural dos Estados Unidos, dentro de um con-
ocupados podem ser disputados. Eles distribuem os cargos aos alia- texto em que as mulheres parecem frágeis demais, oprimidas
O fundamentalismo na política que somos o país dos com o entendimento de que o demais. No filme, a morte acidental de um homem que ten-
não é uma novidade, há décadas que partido e o governo não podem ser tava violentar uma das personagens, as leva – amigas – pa-
ouvimos falar dos governos islâmi- de uma nota só: identificados. Por isso o governo se ra uma fuga sem fim. Elas seguem um caminho de evasão,
cos, que ganharam maior evidência transforma em uma empresa, e os sem enfrentar realmente, nem o fato real, da morte do ho-
depois que o bloco socialista soviéti- tudo dó, tudo dó, partidos aguardam o chamado para mem, nem suas dores existenciais de abandono, de solidão,
co se desfez, e o vazio deixado na po- elegerem o gerente. de medos. Ao longo da fuga, novos problemas vão surgindo,
larização mundial com o imperialis- tudo dó Se a institucionalidade ajuda a mas elas não são capazes de olhar de frente para estes mons-
mo estadunidense foi ocupado por transformar a sociedade, os partidos tros. Preferem fugir. No final, quando tudo está perdido, elas
outra força econômica, política e mi- inseridos nela deveriam governar se encontram cercadas pela polícia na beira de um precipí-
litar, motivada pela ideologia religio- através do poder popular e educar o cio. Elas se olham, dão-se as mãos e saltam no abismo, no ru-
sa. Mas no catolicismo, essa inóspita povo dando-lhes tarefas, dentre elas mo da morte.
possibilidade, desde Maquiavel vem a de transformar o Estado e contro- Quanta diferença da gigantesca Anahy, a mulher missionei-
sendo contestada. lar o capital. Mas os partidos dispu- ra da guerra farroupilha, da pampa gaudéria. Cara a cara com
No entanto, desde a antiguida- tam as eleições e se retiram de suas os monstros, todos os dias, ela os enfrenta um a um, sem con-
de e em qualquer parte do mundo, bases porque não acham maneiras cessões à auto-piedade. Uma única vez ela se permite desa-
os Estados não são laicos nem reli- de questionar a ordem, por isso não bar. Mas, ainda assim, é um momento só. Ela berra e se re-
giosos, mas simplesmente Estados. renovam a militância e, na hora que torce no chão, um grito quase animal. Depois, se recompõe
Os governos ao utilizarem os ins- ra aquela que governará o país. É mais precisam dela para fazer a agi- e segue, grávida de horizontes. Nada a detém, nem o abis-
trumentos de dominação é que fa- verdade que há nas ideologias algu- tação nas ruas, obrigam-se a chamar mo que se anuncia. Anahy é meu modelo de vida, Anahy é da
zem a diferença segundo os interes- mas diferenças, além do aventurei- os pobres camponeses que ingenu- mesma carne das minhas avós, das antepassadas charruas,
ses e as crenças que defendem. Aqui rismo, uma acredita que Deus é bra- amente vão prestar socorro, em tro- cruzando o descampado, peito aberto, cabelos ao vento, sem-
também o Estado é capitalista e a sileiro, a outra que o endereço para ca ganham milhares de escolas fe- pre no rumo do infinito. Anahy é o espelho que se apresenta a
disputa não é entre católicos e evan- o céu passa pelos Estados Unidos da chadas e o apoio ao agronegócio ex- nós, mulheres gaúchas, no cotidiano desta vida louca.
gélicos, mas entre os crentes devo- América. portador. Nesse setembro, duas gaudérias que amo completam nova
tos do capital que sustentam a or- Mas por que a suposta pregação O futuro é incerto, vê-se pelo tom volta em torno do sol. Meu presente para elas é essa alma de
dem econômica nacionalista ou mais fundamentalista ganha aceitação po- repetitivo da campanha eleitoral; is- Anahy. Essa coragem, essa fortaleza. “Nada vai nos parar”, eu
entreguista às empresas externas. pular a ponto de desbancar o dis- to mostra como disse Carlos Mari- digo. E, assim, de mãos dadas, seguiremos para os abismos.
Então, o problema não está em sa- curso desenvolvimentista depois de ghella, que somos o país de uma no- Não saltaremos para a morte como Telma e Louise, mas para
ber se o Estado é laico ou religioso mais de uma década de governo com ta só: tudo dó, tudo dó, tudo dó. a vida, esgrimindo os monstros e rasgando novos caminhos.
ou se o discurso é desenvolvimentis- as diversas melhorias apresentadas? Porque é desse barro de que somos feitas!
ta ou fundamentalista, mas com que A resposta é simples: não basta en- Ademar Bogo é filósofo, escritor e
boca o capital emitirá as ordens pa- cher as barrigas e deixar as cabeças agricultor. Elaine Tavares é jornalista.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG),
Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),
Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper
(Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff,
Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Marina Tavares Ferreira • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •
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de 4 a 10 de setembro de 2014 3

instantâneo Leonardo Boff

Carisma e carismáticos:
que energia é essa?
NESTES TEMPOS DE CAMPANHA eleitoral, surgem figuras
de todo tipo. Mas poucos são aqueles que irradiam energia
contagiante, suscitam um novo imaginário e movem as mas-
sas. Esses são os portadores de carisma.
Carisma, carma, Crishna, Cristo, crisma e caritas possuem
a mesma raiz sâncrita kri ou kir. Ela significa a energia cós-
mica que tudo acrisola e vitaliza, tudo penetra e rejuvenesce,
força que faz atrair e fascinar os espíritos. A pessoa não pos-
sui um carisma. É possuída por ele. A pessoa, sem mérito pes-
soal nenhum, vê-se tomada por uma força que irradia sobre
outras, fazendo que fiquem estupefactas; se estão falando, se
calam, se estão se entretendo com alguma coisa, param para
prestar atenção à pessoa carismática.
O carisma é algo surpreendente. Está nos seres humanos,
mas não vem deles. Vem de algo mais alto e superior. Niet-
zsche conta que passeando pelos Alpes, era tomado por uma
força que o fazia escrever. Era outro que se servia dele. Toma-
va seu canhenho e nele escreveu o melhor de suas intuições.
Os antropólogos introduziram um palavra tirada da cultura
de Melanésia: o mana. A personalidade-mana irradia um po-
der extraordinário e irresistível que, sem violência, se impõe
aos demais. Atrái, entusiasma, fascina, arrasta. É o equivalen-
te de carisma na nossa tradição ocidental.
Quem são os carismáticos? No fundo, todos. A ninguém é
negada essa força “cósmica”de presença e de atração. Todos
carregamos algo das estrelas de onde viemos. A vida de cada
um é chamada para brilhar, no dizer de um cantor. É carismá-
tica de uma forma ou de outra. José Marti, pensador cubano
dos mais argutos da América Latina, bem dizia:”Há seres hu-
manos que são como as estrelas: geram sua própria luz, en-
Altamiro Borges quanto outros refletem o brilho que recebem delas”. Alguns
são Sol, outros, Lua. Ninguém está fora da luz, própria, ou re-
fletida. Em fim, estamos todos na luz para brilhar.

Artistas rejeitam Israel na Bienal


Mas há carismáticos e carismáticos. Há alguns nos quais es-
ta força de irradiação implode e explode. É como uma luz que
se acende na noite. Atrai os olhares de todos.
Pode-se fazer desfilar todos os bispos e cardeais diante dos
UM MANIFESTO ASSINADO por 55 artistas foi di- dores da mostra, Charles Esche, até manifestou apoio à fiéis reunidos. Pode haver figuras impressionantes em inte-
vulgado dia 28 de agosto exigindo que a fundação res- reivindicação. “Em princípio, apoiamos os artistas”, afir- ligência, capacidde de administração, zelo apostólico. Mas o
ponsável pela 31ª Bienal de São Paulo recuse o apoio mou. Já o presidente da Fundação Bienal, Luis Terepins, olhar de todos se fixa sobre Dom Helder Câmara enquanto es-
e devolva o dinheiro doado pelo governo de Israel ao garantiu à Folha que “não existe a possibilidade de de- tava ainda entre nós. Porque era portador eminente de caris-
evento. “Enquanto o povo de Gaza retorna aos escom- volver o dinheiro – cerca de R$ 90 mil de um orçamento ma. A figura é irrisória. Parece o servo sofredor sem beleza e
bros de suas casas destruídas pelo Exército israelen- total de R$ 24 milhões – a Israel. Nós somos uma insti- ornamento. Mas dele saía uma força de ternura unida ao vi-
se, nós achamos inaceitável receber o apoio de Israel... tuição plural, não tomamos partido”, diz Terepins. gor da palavra que se impunha suavemente a todos.
Ao aceitar esse financiamento, nosso trabalho artístico O cônsul de Israel em São Paulo, Yoel Barnea, também
mostrado na exposição está sendo utilizado para lim- foi procurado pelo jornal e disse que estava ciente do ma-
par as continuadas agressões conduzidas por Israel e nifesto. “A arte é uma linguagem que aproxima os povos. Que cada qual descubra a estrela que
suas violações da lei internacional e de direitos huma- Mas a atitude destes artistas não é construtiva para a paz
nos. Recusamos a tentativa de Israel de normalizar sua no Oriente Médio”, afirmou. No maior cinismo, ele tam- deixou sua luz e seu rastro dentro
presença no contexto deste importante evento cultu- bém alegou que “se os artistas têm críticas ao Estado de
ral”, afirma o texto. Israel, nós também temos críticas às ações terroristas dos dele. E se for fiel à luz, brilhará e
O documento foi assinado por 55 dos 86 artistas par- palestinos”. A Folha, porém, não ouviu os representantes
ticipantes da mostra, entre eles israelenses, palestinos e da comunidade árabe no Brasil e nem as centenas de en- outros o perceberão com entusiasmo
libaneses. Entre os signatários estão artistas influentes, tidades da sociedade civil que denunciam o genocídio em
como o libanês Walid Raad, que liderou boicote à filial Gaza. A 31ª Bienal de São Paulo começa nesta semana e
do museu Guggenheim em Abu Dhabi, e a israelense Ya- ainda não se sabe se vários artistas boicotarão o evento
el Bartana, que já foi à Bienal de Veneza. Um dos cura- bancado pelos terroristas de Israel. Muitos podem falar. E há bons oradores que atraem a
atenção. Mas deixem o bispo emérito de São Felix do Ara-
guaia, Dom Pedro Casaldáliga, falar. A voz é rouca e às vezes
Frei Betto quase desaparece. Mas nela há tanta força e tanto conven-
cimento que as pessoas ficam boquiabertas. É a irrupção do
carisma que faz de um bispo frágil e fraco parecer um gigan-

Cartilha eleitoral te. E hoje quase não podendo falar por causa de forte Park-
son, sua escrita ou seus poemas tem a força do fogo. É um
exímio poeta.
Há políticos hábeis e grandes administradores. A maioria
maneja o verbo com maestria. Mas façam o Lula subir à tribu-
A CNBB LANÇOU este mês o documento “Seu voto tem Bolsa-Família. A taxa de desemprego vem caindo regu- na, diante das multidões. Começa baixinho, assume um tom
consequências: um novo mundo, uma nova sociedade”, larmente desde 2003 e ficou em 5,4% em 2013. O Brasil narrativo, vai buscando a trilha melhor para a comunicação.
no intuito de orientar os católicos nas próximas eleições. foi um dos países onde se registrou maior redução da po- E lentamente adquire força, as conexões surpreendentes ir-
Trata-se de um documento apartidário, porém à luz breza nesse período.” rompem, a argumentação ganha seu travejamento adequado,
da doutrina social da Igreja e dos documentos papais e Quanto aos aspectos negativos, diz o documento: “Co- o volume de voz alcança altura, os olhos se incendeiam, os
episcopais. “As eleições deste ano de 2014 são importan- mo apontaram as manifestações, os recursos para a saúde gestos ondulam a fala, num momento o corpo inteiro é comu-
tes, não só porque presidente, deputados, senadores e e para a educação – as principais políticas sociais nicação, argumentação e comunhão com a multidão que de
governadores têm uma incidência muito grande na vida de um país – são bastante limitados e vêm aumentando barulhenta passa a silenciosa e de silenciosa a petrificada pa-
da população, mas porque está em jogo também o proje- muito lentamente.” ra, num momento culminante, irromper em gritos e aplausos
to político, social e econômico para o Brasil”, diz o texto. Quanto aos gastos com a dívida pública: “Se quisermos de entusiasmo. É o carisma fazendo sua irrupção. Pouco im-
Será que a Igreja Católica, ao emitir o documento, esta- saber para quem um governo trabalha, temos de exami- porta a opinião que pudermos fazer de seus 8 anos de gover-
ria “se metendo em política”, como alardeiam os ingênu- nar para onde estão indo os recursos. Atualmente, eles no. Nele não se pode negar a presença do carisma.
os? Primeiro, nós, cristãos, somos todos discípulos de um são destinados, em primeiro lugar, para o pagamento da Não sem razão Max Weber, o grande estudioso do poder ca-
prisioneiro político. Jesus não morreu doente na cama. dívida pública e de seus juros. Em 2013, quase metade rismático, chamou-o de estado nascente. O carisma como que
Foi preso, torturado e condenado à pena de morte dos ro- do orçamento público (40%) foi destinado para os juros, faz nascer, cada vez que irrompe, a criação do mundo na pes-
manos (a cruz) por dois poderes políticos! amortização e rolagem da dívida, enquanto menos de 5% soa carismática, ou personalidade-mana. A função dos caris-
Segundo, em política ninguém é neutro, seja por omis- foi para a saúde e menos de 4% para a educação. Este ‘sis- máticos é a de serem parteiros do carisma latente dentro das
são, seja por participação. Terceiro, historicamente a Igre- tema da dívida’ é o grande devorador dos recursos públi- pessoas. Sua missão não é dominá-los com seu brilho, nem
ja sempre tendeu a fazer a política dos nobres, dos opres- cos. É o maior gasto do governo, e faz com que faltem re- seduzi-los para que os sigam cegamente. Mas despertá-los da
sores, dos escravocratas e dos poderosos. cursos para o transporte, a saúde, a educação, o sanea- letargia do cotidiano. E, despertos, descobrirem que o coti-
A CNBB elenca as conquistas significativas dos go- mento básico e outras políticas sociais.” diano em sua platitude guarda segredos, novidades, energias
vernos do PT: “Os dados mostram que, nos últimos dez O documento critica ainda a violação dos direitos indí- ocultas que sempre podem acordar e conferir um novo senti-
anos, cerca de 28 milhões de brasileiros deixaram a ex- genas e dos quilombolas; a lentidão da reforma agrária; as do e brilho à vida, à nossa curta passagem por esse universo.
trema miséria e a pobreza e passaram a ter uma renda privatizações; os megaprojetos que afetam as populações Que cada qual descubra a estrela que deixou sua luz e seu
melhor. Este foi um salto significativo na nossa reali- mais pobres. E reforça o apoio ao Projeto de Lei de Inicia- rastro dentro dele. E se for fiel à luz, brilhará e outros o perce-
dade social. Um dos fatores importantes para este resul- tiva Popular, que recolhe assinaturas em prol da reforma berão com entusiasmo.
tado foi o aumento real do salário-mínimo – acima da política, e conclama à participação no plebiscito por uma
inflação. Outra contribuição veio do programa de trans- Constituinte exclusiva pela reforma política, que ocorrerá Leonardo Boff é teólogo e escritor.
ferência de renda para famílias extremamente pobres, o na Semana da Pátria, entre 1 e 7 de setembro. Escreveu Meditação da luz, Vozes 2010.

fatos em foco
da Redação
Tribunal Eleitoral de São Paulo re- Sadia, Perdigão, Batavo e Elegê, foi punida sar da farra no andar de cima, os bancos pri-
tira Paulo Maluf das eleições 2014 por manter trabalhadores em condições vados demitem na casa das máquinas, para
O TRE-SP indeferiu dia 1º de setembro análogas às de escravos em uma fazenda no contratar com salários muito mais baixos.
a candidatura do deputado Paulo Maluf município de Iporã, no Paraná. Segundo o
(PP) para um novo mandato na Câmara dos MPT, os problemas encontrados iam desde Advogado da CPT
Deputados. Ele foi enquadrado na Lei da jornadas excessivas e condições precárias sofre ameaças
Ficha Limpa por uma condenação sofrida no dos alojamentos até a contaminação da água Em nota, a Coordenação Executiva Na-
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo fornecida aos empregados para consumo. cional da CPT afirma o coordenador da CPT
(TJSP). Como ainda cabe recurso ao TSE, Regional Araguaia-Tocantins, Silvano Lima
Maluf pode continuar em campanha, inclu- Executivo do Itaú ganha Rezende, tem sofrido ameaças de pistoleiros
sive no horário eleitoral gratuito de rádio e 318 vezes o Piso bancário a mando de grileiros, na tentativa de inti-
televisão. O tribunal considerou que houve É um escândalo o que revela a Pesquisa midá-lo na sua ação em defesa dos direitos
irregularidades nos contratos para cons- de Emprego Bancário 2014, da Contraf-Cut dos camponeses. Segundo a nota, a entidade
trução do Complexo Viário Ayrton Senna, em parceria com o Dieese, em relação aos solidariza-se com a esposa e filhos do Silva-
quando o deputado era prefeito da cidade. ganhos dos banqueiros. Dados referentes a no e aos outros membros da CPT Araguaia-
2013 mostram que, no Itaú, cada membro -Tocantins que vivem em situação de risco.
Dono da Sadia é flagrado do Conselho de Administração recebeu, Silvano vem contrariando interesses, pois,
por trabalho escravo em média, R$ 15,5 milhões no ano. Isso dá há mais de uma década atua na defesa dos
O Tribunal Regional do Trabalho da 9ª 318,5 vezes o Piso salarial da categoria. Ban- direitos dos camponeses, e nos últimos anos
Região condenou a BRF a pagar indeni- cário que recebe Piso teria de trabalhar 26,5 na defesa jurídica gratuita, em apoio à resis-
zação por dano moral coletivo no valor de anos para chegar ao valor de apenas um ano tência das famílias que tentam permanecer
R$ 1 milhão. A empresa, dona das marcas da remuneração do executivo do Itaú. Ape- nas terras por elas trabalhadas.
6 de 4 a 10 de setembro de 2014 brasil

Marina Silva, a que veio? Glaucon Fernandes/Folhapress


ELEIÇÕES Cada vez Teflon e mistificação
Para o cientista político Paulo Kra-
mais favorita na corrida mer, também da UnB, Marina Silva es-
tá se tornando uma “candidata teflon”,
presidencial, ex-senadora em referência ao polímero usado em pa-
encanta, mas não nelas e frigideiras, que tem a virtude de
não permitir que outras substâncias gru-
convence nas propostas. dem nele.
“Nada cola contra ela. É um privilé-
Talvez não precise, nada gio de poucos candidatos. O eleitor de
Marina, em sua maioria, não leu as 242
‘cola’ contra ela páginas do seu programa de governo,
em que ela própria recuou em direitos
LGBT. Quem vai votar na Marina não
está preocupado nem quer saber exata-
Pedro Rafael Vilela mente quais são as propostas dela. Tá
de Brasília (DF) votando no símbolo, na imagem de an-
ti-Congresso, antipartido que ela encar-
O FENÔMENO político chamado Mari- na”, aponta.
na Silva (PSB) vem desfilando com de- É o caso do episódio da compra do
senvoltura nas eleições 2014. A seu fa- avião que transportava Eduardo Cam-
vor, contribuem dois fatores cruciais: a pos. Investigações da Polícia Federal, re-
surpresa e o chamado ‘nada pega’. veladas ao longo da última semana, indi-
Cabeça de chapa há apenas duas se- cam o envolvimento de laranjas na aqui-
manas, ela entrou na disputa somen- sição do jato. Os beneficiados são empre-
te na reta final do primeiro turno, em sários ligados ao ex-governador, morto
meio a um forte impacto emocional de- em acidente no dia 13 de agosto.
corrente da morte de Eduardo Campos Marina Silva chegou a usar o avião
e sem que seus principais adversários em julho, que pode ter sido objeto de
estivessem minimamente preparados caixa 2 de campanha, o que é crime
para enfrentá-la. eleitoral e poderia até ensejar a impug-
“Marina teve a sorte de entrar no final nação da chapa.
da campanha, foi poupada das críticas e Em entrevista ao Jornal Nacional (TV
da estratégia eleitoral que os candidatos Globo), na semana passada, a candidata
montam. A Dilma, por exemplo, mon- foi confrontada sobre o tema incômodo
tou toda a sua estratégia para se contra- e despistou o quanto pôde, terceirizando
por ao Aécio e, complementarmente, ao a responsabilidade aos empresários que
Eduardo Campos. Por isso, até agora, os adquiriram o avião.
ataques contra a Marina não têm surtido O assunto, porém, embora permaneça
efeito, são periféricos”, analisa o profes- nos noticiários, parece não ter abalado a
sor Ricardo Caldas, diretor do Centro de imagem de paladina da ética que envol-
Estudos Avançados da Universidade de ve a ex-senadora. “Pelo jeito, vai ser mui-
Brasília (UnB). to difícil de conseguir um tema que der-
rube a Marina”, prevê o professor Ricar-
do Caldas, da UnB.
Paulo Kramer vai além na avaliação
“Marina teve a sorte de do cenário eleitoral. Apesar de uma si-
entrar no final da campanha, tuação relativamente favorável na vida
dos trabalhadores, em geral, com pleno
foi poupada das críticas e da emprego e aumento real de salário mí-
nimo, o sentimento de mudança é for-
estratégia eleitoral que os te na população. E fica mais evidente
ainda na rejeição à classe política, o que
candidatos montam” abre espaço para visões superficiais do
processo político brasileiro.
“Nós sabemos que, em todas as de-
Caldas se refere, por exemplo, à tenta- mocracias avançadas, há e deve haver
tiva de Dilma em exigir mais clareza das um sistema partidário, com negocia-
intenções de Marina Silva, especialmen- ção política, conflitos. Mas, muitas ve-
te em temas como economia, pré-sal e zes, para o público que não tem um ní-
investimentos públicos em educação e vel de educação política mais apura-
saúde. do, os maus exemplos acabam geran-
No mais recente debate entre os candi- do uma indignação perigosa e isso dá
datos, organizado pelo SBT em parceria um certo plus para a candidatura Mari-
com Folha de S. Paulo e UOL, na última na. Se ela falasse, por exemplo, que fe-
segunda-feira (1º de setembro), a presi- charia o Congresso Nacional, se eleita,
denta pressionou a adversária, afirman- seria uma consagração, ela sairia carre-
do que “não se governa apenas com fra- gada, tamanho é esse sentimento anti-
ses de efeito”. A candidata à presidência Marina Silva em campanha no Rio de Janeiro -política”, ironiza o analista.

Nova velha política


Neoliberalismo com pitadas de verde
Senado Federal de Brasília (DF)
Programa de governo
Outro ponto polêmico na candidatura Mari-
de Marina Silva retoma na Silva é o discurso da “nova política”. Para
cientistas políticos e professores ouvidos pelo
retrocesso dos tempos Brasil de Fato, trata-se de uma narrativa arti-
de FHC. Para analistas ficial diante do atual quadro do sistema políti-
co do país.
políticos, discurso de “nova “Eu vejo [esse discurso] como uma farsa. O
predomínio absoluto do lugar-comum. Dizer
política” é artificial que vai governar com os melhores é algo cínico,
como se os outros não quisessem governar com
seus melhores. Não dá para fazer um leilão en-
tre PT e PSDB para fazer um governo”, aponta
de Brasília (DF) José Carlos de Assis, professor da UEPB.

Nas Eleições de 2010, o então candi-


dato pelo PSOL, Plínio de Arruda Sam- “Ela vai precisar do PSDB, do DEM, do
paio, popularizou uma pecha contra Ma-
rina Silva. Ela seria, segundo Plínio, uma PMDB como eles existem. O máximo
“ecocapitalista”. Marina cumprimenta Temer: para Kramer, Marina fará governo de coalizão
Com propostas travestidas de susten- que pode tentar fazer por conta própria é
táveis, o eixo da política econômica da haverá uma política especulativa sem dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, Chi- aumentar o padrão ético do seu governo,
então candidata pelo PV, hoje no PSB, controle. Numa situação de valorização na e África do Sul). Para José Carlos de
seria uma volta à agenda neoliberal dos do dólar, nossa indústria, já fragilizada, Assis (UEPB), trata-se de um “suicídio que não temos visto nos últimos governos”
anos 1990, que aprofundou o processo será completamente destruída”, anali- econômico”.
de privatização das empresas estatais e sa o professor de Economia Internacio- “Eles acham que o Brasil tem que dis-
aplicou receita de altíssimas taxas de ju- nal da Universidade Estadual da Paraíba pensar blocos como Brics e Mercosul e
ros, controle estrito dos gastos públicos (UEPB), José Carlos de Assis. fazer acordos bilaterais com Europa e Es- Para o cientista político Paulo Kramer (UnB),
e forte presença do capital financeiro no Os assessores de Marina Silva perten- tados Unidos. Isso vai condenar a nossa Marina Silva, se eleita, não teria como escapar
controle da economia. cem ao mesmo grupo dos economistas li- economia a um atraso excepcional”, ar- da lógica de presidencialismo de coalizão, sis-
Segundo o programa de governo apre- gados ao PSDB. O próprio Gianetti decla- gumenta José Carlos de Assis (UEPB) tema que organiza o cenário político do país.
sentado na última semana pela agora fa- rou, recentemente, que não vê “diferen- Segundo ele, o quadro internacional é “Enquanto no parlamentarismo a maioria se
vorita Marina Silva, a economia deverá se- ças substanciais” entre as propostas de terrível, com os países avançados e in- forma a partir do parlamento, no presidencia-
guir esse mesmo alinhamento. A ex-sena- Aécio Neves e Marina Silva para a econo- dustrializados como Japão, EUA e Euro- lismo de coalizão, o governo é quem constrói
dora tem entre seus mais íntimos interlo- mia. O próprio Aécio tem cutucado Ma- pa vivendo uma economia emperrada. a maioria no parlamento. Como? Distribuin-
cutores no campo da economia a herdeira rina de estar se apropriando da agenda “Um acordo nessas condições destrui- do cargos e emendas parlamentares. Como ela
do banco Itaú, Neca Setúbal, e o professor que pertence originalmente aos tucanos. ria nossa indústria, que não competiria tem grande capacidade de manipulação simbó-
Eduardo Gianetti da Fonseca, da Univer- “É por isso que aquela parte mais sen- com a desses países, nos tornando ainda lica, pode tentar esconder que está negociando
sidade de São Paulo (USP). Ambos ajuda- sível e volátil da economia, o capital fi- mais agroexportadores e, por isso, muito a ‘velha moda’ ou então partir para uma postu-
ram a redigir a polêmica promessa de es- nanceiro, está adorando as propostas da mais dependentes”, afirma. ra mais maquiavélica, que seria usar seu capi-
tabelecer autonomia formal, via projeto Marina, de recuperação do tripé macro- Para Assis, os setores industriais do tal político para rachar os partidos, o que po-
de lei, ao Banco Central (BC). econômico de controle da inflação, câm- Brasil que apostam nessa linha é porque de ser um caminho extremamente perigoso”,
“O que eles propõem é aplicação do bio flutuante e superávit primário”, con- sabem que deixarão de produzir e suas aponta.
consenso de Washington. Nós temos firma o cientista político Paulo Kramer. indústrias serão compradas pelo capital “Ela vai precisar do PSDB, do DEM, do PM-
uma situação de flutuação no câmbio e internacional. DB como eles existem. O máximo que pode
cabe ao Banco Central conter esse pro- Brics e Mercosul “Se tornarão apenas grandes comer- tentar fazer por conta própria é aumentar o pa-
cesso, quando ocorre a desvalorização do Outro ponto do programa de Mari- ciantes, se contentam com isso, com suas drão ético do seu governo, que não temos vis-
real frente ao dólar, por exemplo. Nesse na Silva é desacelerar a prioridade que empresas atuando na forma de subsidi- to nos últimos governos”, avalia o professor
caso, o BC age disponibilizando dólar no o governo do PT tem dado para o for- árias de grandes conglomerados estran- Ricardo Caldas, diretor do Centro de Estudos
mercado. Se o BC passa a ter autonomia, talecimento do Mercosul e do grupo geiros”, argumenta. (PRV) Avançados da UnB. (PRV)
brasil de 4 a 10 de setembro de 2014 7

Justiça quer despejar 170


indígenas Kaingang de área no PR Carolina Fasolo
INDÍGENAS Procurador jar os índios de um lugar onde estão vi-
vendo há tanto tempo em uma área que
da AGU considera inclusive já foi demarcada por profissio-
nal competente! É um absurdo”, comple-
reintegração ilegal. Aldeia ta Sebastião.
existe há mais de 18 anos e O recurso da Funai foi negado pela
Justiça de Guarapuava, mas a decisão de
território foi declarado em reintegração de posse encontra-se sus-
pensa, aguardando manifestação da par-
2007 pelo Ministério da te autora da ação contra os indígenas.
Justiça como de ocupação
Histórico
tradicional indígena A ocupação da TI Boa Vista é imemo-
rial para os Kaingang. Foram expulsos
de suas terras entre 1950 e 1962, quan-
do, em parceria com o governo Esta-
Carolina Fasolo dual, as Companhias de Colonização
de Brasília (DF) e os processos de grilagem – intensifi-
cados na gestão do governador Moisés
FAMÍLIAS KAINGANG de uma aldeia Lupion* (1947-1951), provocaram o fim
da Terra Indígena Boa Vista, próxima ao das aldeias na região.
município de Laranjeiras do Sul, no Pa- “No ano de 1969 foram retirados os
raná, podem ser despejadas da área de últimos indígenas que lá habitavam,
dois hectares que ocupam há mais de 18 mas conseguiram voltar em 1996. Ho-
anos, por conta de uma decisão da Jus- je cerca de 170 indígenas vivem naque-
tiça Federal em Guarapuava, que deter- la aldeia”, conta o procurador Andriola.
minou cumprimento de ordem de rein- “A Justiça toda sabe que aqui é do ín-
tegração de posse contra a comunidade. Aldeia Kaingang na Terra Indígena Boa Vista, próxima ao município de Laranjeiras do Sul, no Paraná dio, mas muitos usam essa questão polí-
Na aldeia existe um posto de saúde, a tica para não entregar de vez nossa ter-
Escola Estadual Indígena Kogmu José res em 2007 como de posse permanen- “Os indígenas não podem sair de ra. Hoje os agricultores dizem que sem
Olibio, reservatório de água e rede elétri- te dos indígenas, por meio da Portaria nº a homologação ainda tem como tirar os
ca. “A escola atende 60 alunos, até o 9º 1794, de 29 de outubro, assinada pelo en- uma área já declarada pelo Ministério índios daqui”, preocupa-se o vice-caci-
ano. Na saúde, tem uma enfermeira da tão ministro da Justiça, Tarso Genro. que Claudio Rufino.
Sesai, dois agentes que visitam as famí- No entanto, de acordo com a Funai, o
da Justiça como de ocupação Rufino conta que as ameaças aumen-
lias, um técnico de enfermagem, um car- procedimento demarcatório está parali- tradicional. Essa propriedade é que taram depois da ordem de reintegração.
ro oficial e dois motoristas. É tudo pro- sado desde então e o decreto de homo- “Sábado à noite, quando um índio vol-
visório, mas aqui é nossa terra, tem in- logação não foi expedido pela presidên- está dentro da TI Boa Vista” tava pra aldeia, três rapazes num car-
vestimento até do governo, não podem cia porque foram interpostas cerca de 24 ro Monza chegaram perto e disseram:
mandar a gente embora”, diz Claudio ações contrárias à demarcação, a maioria ‘se vocês passarem pela nossa fazenda
Rufino, vice-cacique da aldeia. já julgada improcedente. O Mandado de nós vamos pegar todo mundo na bala’. A
“A meu ver essa reintegração é ilegal”, Segurança 28.667, por exemplo, impe- “A Funai está pagando indenizações e as gente pede a homologação há sete anos,
ressalta o procurador Federal da Advoca- trado no Supremo Tribunal Federal para benfeitorias para os agricultores de boa estamos no que é nosso por direito, mas
cia Geral da União (AGU) em Guarapua- anular a demarcação, foi indeferido em fé. Só no ano passado oito famílias fo- parece que a Justiça e os órgãos do go-
va, Carlos Alexandre Andriola. “Os indí- 2010 pelo ministro Marco Aurélio Melo. ram reassentadas pelo Incra. Na última verno estão esperando a gente morrer
genas não podem sair de uma área já de- Uma Apelação Cível buscando a nulidade semana outras duas receberam os paga- pra tomarem providências”. (Cimi)
clarada pelo Ministério da Justiça como da Portaria Declaratória também foi ne- mentos e novos lotes”, explica Sebastião
de ocupação tradicional. Essa proprieda- gada pela 3ª Turma do Tribunal Regio- Aparecido Fernandes, sertanista da Fu- *Moisés Lupion é avô de Abelardo Lupion,
de é que está dentro da TI Boa Vista”. nal Federal da 4ª Região. nai e um dos responsáveis pelas negocia- deputado federal pelo DEM do Paraná por
A propriedade em questão tem 140 A Funai deu continuidade ao procedi- ções de indenização. seis mandatos consecutivos e fundador
hectares, dos quais apenas dois ocupa- mento e os pequenos proprietários que Os indígenas da aldeia que é objeto da da União Democrática Ruralista, grupo
dos pelos indígenas. A fazenda fica no ocupavam áreas dentro da TI começa- decisão correm o risco de ser despejados de direita reacionária que luta contra a
coração da TI Boa Vista, identificada pe- ram a ser indenizados e reassentados pe- nas próximas semanas. “Com 45 anos de aprovação, no Congresso Nacional, de
la Fundação Nacional do Índio (Funai) lo Instituto Nacional de Colonização e Funai nunca tinha visto uma coisa des- projetos de lei a favor da reforma agrária e
desde 2004 e declarada com 7344 hecta- Reforma Agrária (Incra) ainda em 2013. sas! Conceder uma liminar para despe- dos direitos indígenas.
8 de 4 a 10 de setembro de 2014 brasil

Uso dos recursos genéticos Norway UN Mission/Martin Fossum

ENTREVISTA Para Nilo


Luiz Saccaro Junior,
técnico de Planejamento
e Pesquisa da Diretoria
de Estudos e Políticas
Regionais, Urbanas e
Ambientais (Dirur), do
Ipea, é necessário um novo
marco regulatório dos
recursos genéticos, aliado
a uma correta política de
fomento à pesquisa, que
traga o bioprospector
para perto dos órgãos
responsáveis

Patricia Fachin
de São Leopoldo (RS)

APESAR DE TER sido um dos países


pioneiros” entre os que participaram Cerimônia de assinatura do Protocolo de Nagoya, em 2011
da Convenção da Diversidade Biológica
(CDB), ao instituir um Marco Legal Na- les gerados ao longo de muito tempo pe- dessem fazer sentido no contexto de ais de tráfico de espécies silvestres. Su-
cional referente à biodiversidade biológi- la interação entre populações tradicio- sua edição, mostraram-se contrapro- põe-se que alguns deles poderiam se
ca e aos recursos genéticos, o Brasil tem nais, indígenas ou quilombolas e as espé- ducentes ao longo dos últimos 14 anos, destinar a pesquisas, e não à decoração
uma legislação que “impõe medidas rígi- cies que as cercam. O conhecimento so- incapazes de fomentar o uso dos recur- ou outros fins, mas não há como saber.
das de proteção e controle, pelo governo bre propriedades medicinais de certas sos genéticos de acordo com os precei- Supõe-se, uma vez que a fiscalização é
federal, relativas à pesquisa sobre os re- plantas, transmitido ao longo de gera- tos da CDB. praticamente impossível, que já possam
cursos genéticos em território brasileiro, ções em comunidades ribeirinhas ama- existir pesquisas e produtos com base
como, por exemplo, a necessidade de au- zônicas, é um exemplo. A CDB determi- Como vê, nesse sentido, a na biodiversidade, sem conhecimento
torização prévia do governo federal para na que as comunidades tradicionais, in- atuação do Conselho de Gestão do governo ou repartição de benefícios.
que a pesquisa possa iniciar”, critica Nilo dígenas e quilombolas, devem ter poder do Patrimônio Genético – CGEN? Algumas ONGs fazem reivindicações
Saccaro, técnico de Planejamento e Pes- de decisão sobre o uso de seu conheci- Como tem ocorrido a relação sobre patentes específicas já concedidas
quisa da Diretoria de Estudos e Políticas mento, além de compartilharem, de ma- do Conselho com as empresas em outros países, mas as controvérsias
Regionais, Urbanas e Ambientais (Di- neira justa, dos benefícios econômicos que desenvolvem pesquisas em são grandes, pois não há como determi-
rur), do Ipea. porventura gerados com ele. relação aos recursos genéticos? nar o momento da coleta, além de ou-
Segundo ele, as regras que determinam O CGEN promoveu tentativas de flexi- tras complicações. De qualquer forma,
a repartição dos benefícios oriundos dos As regras atuais continuam bilização das regras, mas sua liberdade até pela natureza presumidamente ile-
recursos genéticos “também são rígidas, não favorecendo os objetivos de ação é limitada pela Medida Provisó- gal, é impossível contabilizar de manei-
difíceis de serem aplicadas em muitas si- da Convenção da Diversidade ria. Esta prevê uma burocracia que tem ra confiável qualquer atividade que po-
tuações. Empresas ou instituições es- Biológica, conforme o senhor sido criticada por empresas e outros ato- deria ser classificada como biopirataria.
trangeiras só podem realizar a biopros- apontou em artigo publicado res envolvidos com o uso da biodiversi-
pecção se associadas a instituições brasi- em 2011? dade. Como essa burocracia fica em gran- Qual seria a melhor proposta
leiras com o intuito de tornar mais fácil Sim, pelo menos no que diz respeito às de parte centralizada no CGEN, é natural para garantir a preservação e o
o controle e favorecer a transferência de regras nacionais. A legislação brasilei- que todos esses atores vejam o órgão co- uso sustentável da Amazônia,
tecnologia”. ra não mudou, embora se tenha avança- mo um obstáculo a seus interesses e não considerando a extensão e a
Na entrevista a seguir, concedida por do na discussão de projetos de lei que po- como um parceiro capaz fomentar rela- diversidade da floresta?
e-mail à IHU On-Line, Saccaro enfati- dem vir a substituir a tão criticada Medi- ções de cooperação entre eles. Não há uma fórmula única, capaz de
za que os recursos genéticos são uma ri- da Provisória 2.186-16. ser imposta de cima. Essa é uma ques-
queza do Brasil e podem ser aproveita- tão complexa, que depende de decisões
dos “tanto para o desenvolvimento eco- O que é e em que consiste a “A bioprospecção é uma forma não tomadas de maneira participativa, com o
nômico quanto para o financiamento bioprospecção? Qual seu papel empoderamento das populações amazô-
das atividades voltadas à conservação na administração dos recursos consumptiva de uso da biodiversidade, nicas. É comum ouvirmos que “não exis-
da natureza. A bioprospecção é uma for- genéticos? ou seja, não implica a possibilidade de te uma Amazônia, mas muitas Amazô-
ma não consumptiva de uso da biodi- Bioprospecção é a busca de inovações nias”. A heterogeneidade biológica e so-
versidade, ou seja, não implica a possi- com base na biodiversidade, capazes de degradação de ecossistemas” ciocultural é a regra para a região. Qual-
bilidade de degradação de ecossistemas. gerar produtos que possam ser comer- quer proposta, portanto, tem que ser fle-
Além disso, uma vez que as regiões mais cializados. A pesquisa de uma empresa xível o bastante para acomodar as pecu-
pobres do país tendem a possuir gran- sobre o princípio ativo presente no ve- liaridades e potencialidades regionais,
de biodiversidade e populações tradi- neno de uma cobra, com o fim de produ- Quais empresas estão atuando no democraticamente. De forma geral, acre-
cionais, o fomento adequado ao uso eco- zir um fármaco, é um exemplo dessa ati- Brasil e são beneficiadas de algum dito que a única forma de manter a Flo-
nômico dos recursos genéticos e do co- vidade. Se realizada de maneira adequa- modo pela Medida Provisória nº resta Amazônica em pé é ir além das po-
nhecimento tradicional pode promover da, a bioprospecção pode ser fonte de re- 2.186-16? líticas de comando e controle, construin-
o desenvolvimento regional e reduzir a cursos financeiros para a conservação da É praticamente impossível saber quais do políticas efetivas de fomento à ocupa-
desigualdade social”. biodiversidade e, portanto, dos próprios empresas são, de alguma forma, influen- ção e uso adequados.
recursos genéticos que tornam a ativida- ciadas pela MP. Qualquer empresa que
IHU On-Line – Quais são as de possível. pretenda pesquisar uma espécie brasilei- Quais são as demais políticas
principais normas nacionais e ra sofre seus efeitos, ainda que esse efei- propostas e desenvolvidas pelo
internacionais que regulamentam Quais são as principais diretrizes to seja, simplesmente, escolher não pes- Brasil no sentido de proteger a
o acesso aos recursos genéticos da Medida Provisória 2.186-16, quisar. Muitas empresas farmacêuticas, biodiversidade?
e a repartição de benefícios aos de 2001, referente às discussões por exemplo, sejam nacionais ou estran- O Brasil possui um grande número de
países membros da Convenção da Convenção da Biodiversidade geiras, que em princípio teriam interes- políticas voltadas à biodiversidade, seja
da Diversidade Biológica, que Biológica, em relação ao acesso ao se em pesquisar moléculas oriundas de no âmbito federal, estadual ou munici-
resultou no Protocolo da Nagoya? patrimônio genético existente no nossa biodiversidade, podem escolher pal. Algumas funcionam muito bem, ou-
Nilo Saccaro – O principal acordo in- território nacional e à repartição pesquisar espécies de outros países, pa- tras nunca saíram do papel. Destaco uma
ternacional é a Convenção sobre a Diver- dos benefícios derivados da ra evitar as restrições. Algumas podem iniciativa federal de sucesso, relativa à
sidade Biológica – CDB, assinada no Rio exploração do patrimônio até escolher fazer sua pesquisa à margem manutenção da biodiversidade: o Pla-
de Janeiro em 1992. No âmbito da CDB, genético e ao acesso à tecnologia? da lei. De qualquer forma, é difícil dizer no de Prevenção e Controle do Desma-
foram criadas algumas resoluções sobre A citada medida provisória impõe me- que alguma empresa tenha sido benefi- tamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
o tema, mas o maior avanço veio com o didas rígidas de proteção e controle, pe- ciada, ao menos dentre aquelas preocu- Esse plano foi capaz de mobilizar, de ma-
Protocolo de Nagoya em 2011. Em rela- lo governo federal, relativas à pesquisa padas em agir dentro das leis. neira coordenada, ações de diversos Mi-
ção a legislações nacionais, há uma va- sobre os recursos genéticos em territó- nistérios, órgãos federais e governos es-
riedade de situações, com alguns países rio brasileiro, como, por exemplo, a ne- O uso de recursos genéticos é taduais e municipais, encabeçados pe-
regulamentando o acesso a recursos ge- cessidade de autorização prévia do go- vantajoso para o Brasil tanto do lo Ministério do Meio Ambiente. Consi-
néticos de diferentes formas. O Brasil foi verno federal para que a pesquisa pos- ponto de vista ambiental quanto dera-se que o plano teve um papel cru-
pioneiro nesse sentido, quando criou, no sa iniciar. As regras relativas à reparti- econômico? cial na significativa redução do desmata-
início da década passada, ainda que por ção de benefícios também são rígidas, Sem dúvida. Os recursos genéticos mento que o Brasil experimentou nos úl-
meio de Medida Provisória, uma regula- difíceis de serem aplicadas em muitas constituem uma riqueza do país, que po- timos anos.
mentação interna específica. Muitos paí- situações. Empresas ou instituições es- de ser aproveitada tanto para o desen-
ses ainda não têm normas nacionais rela- trangeiras só podem realizar a biopros- volvimento econômico quanto para o fi- Deseja acrescentar algo?
tivas ao tema. pecção se associadas a instituições bra- nanciamento das atividades voltadas à Na relação entre biodiversidade e ino-
sileiras com o intuito de tornar mais fá- conservação da natureza. A bioprospec- vação, o incentivo a atividades desejáveis
Quais serão os principais cil o controle e favorecer a transferência ção é uma forma não consumptiva de uso é mais efetivo que a repressão das inde-
impasses entre os países no de tecnologia. A MP também cria o Con- da biodiversidade, ou seja, não implica a sejáveis, levando a um cenário muito me-
sentido de definir as regras do selho de Gestão do Patrimônio Genético possibilidade de degradação de ecossis- lhor do que o atual, considerado negativo
Protocolo de Nagoya? – CGEN, órgão federal vinculado ao Mi- temas. Além disso, uma vez que as re- por todas as partes envolvidas. Para tan-
Há um grupo de países detentores da nistério do Meio Ambiente, responsável giões mais pobres do país tendem a pos- to, é necessário um novo marco regulató-
maior parte da biodiversidade mundial pelo controle do uso dos recursos gené- suir grande biodiversidade e populações rio dos recursos genéticos, aliado a uma
(em sua maioria países em desenvolvi- ticos brasileiros. tradicionais, o fomento adequado ao uso correta política de fomento à pesquisa,
mento) e um grupo de países detento- econômico dos recursos genéticos e do que traga o bioprospector para perto dos
res da capacidade técnica para explo- Concorda que o Marco Legal conhecimento tradicional pode promo- órgãos responsáveis. Isso permitirá que
rar a biodiversidade (países desenvolvi- Nacional brasileiro em relação ver o desenvolvimento regional e reduzir o Brasil utilize uma das maiores riquezas
dos). Os diferentes interesses desses gru- à biodiversidade biológica e aos a desigualdade social. de seu território na busca pelo desenvol-
pos caracterizam os impasses. Enquan- recursos genéticos precisa ser vimento econômico e redução das desi-
to os primeiros querem regras mais rígi- revisto? Por quais razões? Quais Há muitos casos de biopirataria gualdades regionais. (IHU On-Line)
das para a repartição dos benefícios ad- são as principais limitações do de recursos genéticos no Brasil?
vindos da biodiversidade, os últimos não Marco Legal? É possível contabilizar essa
querem que tais regras dificultem a bio- Concordo. Principalmente porque as questão em dados? QUEM É
prospecção. regras atuais impõem uma rigidez tão É difícil falar em biopirataria. Esse Nilo Luiz Saccaro Junior possui gradua-
grande que isso inviabiliza a geração de não é um termo técnico ou jurídico. Não ção e mestrado em Ciências Biológicas pelo
Qual é a proposta da Convenção benefícios, dificulta que sejam compar- é usado na CDB ou na MP 2.186-16. Em Instituto de Biociências da Universidade de São
sobre a Diversidade Biológica tilhados de maneira justa e não exige o sentido estrito, nem se pode falar em Paulo – USP. É técnico de Planejamento e Pes-
em relação aos conhecimentos investimento na conservação da biodi- biopirataria antes de 1992, pois não ha- quisa da Diretoria de Estudos e Políticas Regio-
tradicionais? O que se entende versidade. As limitações da MP consis- via regras. Ainda hoje não há qualquer nais, Urbanas e Ambientais (Dirur), do Instituto
por conhecimentos tradicionais? tem principalmente em tentativas exa- tipificação penal para biopirataria no de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Conhecimentos tradicionais são aque- geradas de controle que, embora pu- Brasil. O que há são muitos casos anu-
cultura de 4 a 10 de setembro de 2014 9

A luneta do tempo de
INFÂNCIA RESGATADA
Alceu Valença Divulgação
ra Olinda onde ficava filmando os caras,
me exercitando com a câmara, com os
Cantor estreia no cinema planos, os “plongê” e “contraplongê”. Eu
contando “inacreditáveis só pensava no filme. Foram 14 anos de-
dicados a ele. De noite, eu sonhava com
histórias verdadeiras” de o filme, acordava cheio de ideias. Minha
mulher (a produtora Yanê Montene-
cangaceiros, aboiadores, gro) implorava para eu voltar a dormir.
Quando senti que o roteiro estava pron-
rabequeiros e artistas de to, voltei à fazenda do meu pai, vesti a
circos mambembes roupa do Lampião da Manchete e pedi a
Sérgio Cri-Cri, que está no filme, e à mi-
nha mulher que me filmassem num laje-
do. Aí eu delirava, fazia as falas de todos
Maria do Rosário Caetano os personagens, imitava a voz de Lam-
de São Paulo (SP) pião, de Maria Bonita, do Antero Tenen-
te, dos pássaros, dos cachorros, aboia-
QUINZE ANOS atrás, Alceu Valença per- va... Meus amigos me diziam: guarde o
deu o pai. Ao levar o corpo do Sr. Décio roteiro, não mostre para ninguém. Eu
(ex-prefeito de São Bento do Una, ter- mostrei pra todo mundo que passou na
ra natal dos Valença) para que fosse en- minha frente. Do Rio Grande do Sul, de
terrado onde nascera, o autor de Anun- Santa Catarina ao Ceará, aonde eu che-
ciação começou a repensar a vida e a re- gasse eu mostrava, contava, recontava.
memorar histórias de infância. Em suas Teve amigo que escutou a história deze-
lembranças, a presença do pai ganhava nas de vezes.
imenso relevo.
Cantor e compositor da linha de frente Um musical brasileiro
da MPB, ator em raras oportunidades Me indicaram uma equipe que traba-
(no filme A noite do espantalho, de Sér- lhou no filme Vinho de Rosas, da mi-
gio Ricardo, e na novela Mandacaru, da neira Elza Cataldo, fotografado por Luis
Manchete), o pernambucano Alceu foi Abramo. Convoquei esta turma para tra-
somando tantas memórias, que elas re- balhar comigo. Do Abramo vi outros fil-
sultaram em imenso livro, ainda inédito, mes, incluindo o Proibido Proibir, do
pois “perdido”. Jorge Durán. Eu já tinha o ritmo do fil-
Por sugestão do cineasta e fotógra- me inteiro na cabeça. Gravei a trilha so-
fo Walter Carvalho, o compositor resol- nora, não a definitiva, claro, e as falas
veu estrear na direção cinematográfica. de todos os personagens. E também os
Concluiu sua tarefa aos 68 anos, muitos sons dos bichos [imita pássaros, cachor-
deles (14 anos) de muito trabalho pa- ro, boi]. Quando chamava um ator, mos-
ra levar o roteiro às telas. O resultado trava aquela gravação. Queria que ouvis-
– de nome evocativo e poético: A lune- sem/captassem o “ritmo” que eu queria
ta do tempo – é um filmusical nordesti- dar à luneta do tempo. O Irandhir Santos
no em ritmo de cordel. O primeiro lon- O ator Irandhir Santos, como Lampião, em cena de A luneta do tempo (Lampião) adorou a ideia. Já a Hermi-
ga de Alceu teve sua primeira sessão pú- la Guedes (a Maria Bonita) achou aqui-
blica no Festival de Gramado. E recebeu le bate-boca. Aí, um dos bêbados pegou dá um filme”, ele me disse. Pois então va- lo meio estranho, ficou reticente, mas de-
dois prêmios: melhor trilha sonora (do o chapéu e cortou-o ao meio para acabar mos fazê-lo juntos, propus. Ele topou. E pois entrou no clima e tudo saiu bem. Eu
próprio Alceu) e melhor direção de arte com aquela discussão que não tinha fim. me indicou o Tuinho Schwartz para pro- queria fazer um musical brasileiro. Não
(Moacyr Gramacho). E voltaram para a farra do Carnaval. duzir, pois o cara é bom. Aí começou a queria fazer uma ópera italiana, nem
A Luneta do tempo se passa em dois   fase da captação de grana e dos editais. um musical da Broadway. A influência
momentos históricos. Nos anos de 1930, Cinema de vivências Como não gosto de pedir, não pedi nada quando ela é muito visível transforma-se
quando as volantes perseguiam os can- Eu nasci e cresci em São Bento do Una, a Eduardo Campos, que era meu amigo, em cópia. E eu não gosto de cópia, gos-
gaceiros, e 30 anos depois, quando Lam- uma cidade de uns 5 mil habitantes, que nem a Demian Fiocca, do BNDES, tam- to do que busca a originalidade. Então,
pião e Maria Bonita haviam se transfor- tinha uma vida cultural maravilhosa: bém meu amigo. Aliás, um dia encon- com a equipe técnica montada, tomamos
mado em tema recorrente de folhetos de dois cinemas, cinco grupos de teatro e trei Demian e perguntei a ele: o que você o rumo da fazenda do meu pai. Tinha
cordel e matéria-prima de montagens uma feira onde se apresentavam sanfo- faz no BNDES? Sou o presidente do ban- que filmar na região onde passei minha
dramáticas dos circos mais mambembes. neiros, tocadores de viola, emboladores, co, me respondeu. Ah, pois não faça na- infância. Destas locações eu não abria
Em Gramado, quando foi convocado a cegos rabequeiros. Havia o alto-falante da para me ajudar, estou inscrito no Edi- mão. Aí me avisaram: “Você tem que se
trocar ideias com a imprensa especializa- do Cine Rex, que tocava música, inclusi- tal de Produção do Banco e meu roteiro é fazer respeitar pelos técnicos, diretor que
da, Alceu preferiu fazer palestra (ou cole- ve de Luiz Gonzaga. E havia os doidos na muito bom. Eu me garanto. Eita, lasquei- não é respeitado pelos técnicos está las-
tiva-espetáculo), em tudo semelhante às feira. Por isto no meu filme tem um doi- -me. Saiu o resultado e não fui contem- cado”. Quando vi a turma da técnica a
magníficas e bem-humoradas aulas-es- do, o Mateus Encrenqueiro, interpretado plado. Arrombei-me. Foi aquela dificul- postos, joguei verde para colher madu-
petáculo de seu quase conterrâneo, Aria- pelo Hélder Vasconcelos. dade. Não saía nada para financiar o fil- ro. Fui logo dizendo: “Estou pensando
no Suassuna (paraibano que fez carrei- Faço cinema de autor, cinema com mi- me. O Walter viabilizou o Budapeste e eu em fazer uma ‘pan’ (uma panorâmica),
ra em Pernambuco). Barroco, falastrão nhas próprias vivências. Então tinha que ali, sem dispor dos recursos necessários. depois quero um plano, aquele com um
dos mais convictos, apaixonado por seus falar do cangaço, das feiras, dos sanfo- Fui atrás do Andrucha (Waddington). cavalo correndo, em zenital...”. [Indaga-
ofícios e grande contador de estórias, ele neiros e rabequeiros. E dos doidos. Ah, Ele ficou entusiasmado com meu proje- ram eles:] “Genital?”. Disse eu: “Não, ze-
ainda cantou e imitou vozes de bichos e havia também o Cabo Arino, que era bra- to. Mas aí foi filmar Casa de Areia. Las- nital, que é um plano de cima para bai-
de gente. Neste caso, de dois colegas de bo e botava medo nas crianças. Ele nos quei-me de novo. A peste de Budapeste xo, que muitos chamam de plano pica-
trabalho: Cauby Peixoto e Nelson Gon- causava tanto medo, quando fazíamos al- se abateu sobre mim e atolei-me na areia do”. Ganhei os caras. Os técnicos cario-
çalves. Como tinha muitos shows agen- guma coisa errada, que um dia nos deu da casa do Andrucha. cas diziam [imita a marra da moçada do
dados Brasil afora, passou como um uma carreira tão grande, que eu, criança, Rio] :“Pô, o cara é foda, entende tudo de
cometa pela Serra gaúcha. Partiu sob fui parar no cemitério, único lugar que plano zenital, sabe o que querrr”. Com
aplausos, deixando saudades. Abaixo, al- encontrei para me esconder. No meu fil- “Em frente ao chapéu de cangaceiro, o Luis Abramo, o diretor de fotografia,
guns trechos de sua divertida e bem in- me, ele, o Cabo Arino, está representado o diálogo foi fácil. Ele levou uma paleta
formada “coletiva-espetáculo”. como reflexo da repressão. guardado com zelo em nossa casa, uma de cores para orientar nossas escolhas. A
  E não podemos nos esquecer dos cir- parceria foi total. Ele fala baixo e aceitou
Memórias do cangaço cos que povoaram nosso imaginário.
discussão: Lampião era herói? Era bem todas as minhas ideias.
Meu pai, Décio de Souza Valença Por São Bento passavam aqueles cir- bandido? Foi aquele bate-boca. Aí, um  
(1914-1999), estudava Direito na Uni- cos mambembes, de lona rasgada, com Atores com cara de povo
versidade Federal de Pernambuco (on- aqueles palhaços que nos encantavam dos bêbados pegou o chapéu e cortou-o ao O filme tem muitos personagens. E na
de também estudei Direito). No tempo com seus improvisos. Dos circos que trilha sonora há umas 57 músicas. Eu
em que ele era estudante, um dos nomes passaram pela cidade, só o Nerino tinha meio para acabar com aquela discussão compus umas 200. Vou colocar tudo nos
mais discutidos nos cursos jurídicos era qualidade para chegar ao Recife. Então, extras do DVD! Há, no elenco, além de
o de Cesare Lombroso (1835-1909), um o circo tem um espaço fundamental no profissionais como Irandhir, Hermilla
criminalista italiano que dizia que o as- meu filme. Quando meu pai morreu, fui   e Servílio de Holanda (o terrível Ante-
sassino já nascia assassino pelo seu tipo levá-lo do Recife para São Bento, para Tempo de estudos ro Tenente), gente que trabalha na fa-
físico. Meu pai não concordava com es- enterrá-lo na sua terra. Na fazenda de- Vi que eu tinha que aprender a me vi- zenda do meu pai, amigos meus de Re-
ta ideia, mas alguns dos colegas dele con- le, mexi e remexi para ver as coisas que rar sozinho. Vou estudar cinema, é o jei- cife e Olinda, e meus filhos Ceceu e Ra-
cordavam. Num dia de julho de 1938, um ele guardava. Entre elas estava a roupa to. Comprei de cara o livro de roteiro do fael. Eu também estou no filme, na pe-
funcionário dos correios chegou com um que usei, quando interpretei Lampião, Doc Comparato. Um dia, fui à casa de le do Véio Quiabo. Ceceu, que faz o do-
telegrama que dava conta da morte de na novela Mandacaru, da Manche- meu filho, Ceceu Valença, e ele namora- no do circo, aquele que seduz todas as
Lampião, Maria Bonita e bando, na gruta te. Foi uma participação pequena. Eles va uma moça gaúcha, Alessandra Lessa, mulheres, é ator profissional, fez escola
de Angicos, em Sergipe. nem me pagaram. Então eu disse: “Vou que tinha estudado cinema em Los An- de Arte Dramática. No meu filme, ele ti-
Meu pai e vários colegas dele alugaram levar esta roupa para mim, ora se vou”. geles. Pedi para ela me dar uma ajuda. nha que interpretar Nagib Mazola, pois
um pequeno ônibus, cruzaram Alagoas e Levei e ela ficou pendurada na fazenda Ela me deu umas dez aulas, me ensinou a é mesmo um grande sedutor, tem fama
chegaram a Angicos para ver os cangacei- do meu pai, que gostava muito dela. Foi gramática básica do cinema, os planos... de tarado, puxou ao pai (risos). Na tra-
ros de perto. Encontraram só os corpos, naquele momento da dor pela perda pa- Quem sabe o que é um plano zenital? Eu ma ele é argelino. Na legenda em inglês
sem as cabeças. Cortaram umas madei- terna, que me senti motivado a relem- sei, aprendi... Mas eu vi que se eu fosse ele aparece como turco. Mas isto não tem
ras, abriram umas valas e deram sepul- brar as histórias da minha infância. Co- um aluno aplicado demais, ia perder a nenhuma importância, pois os caras que
tura aos mortos. Naquela praça de guer- mecei a escrever o livro Inacreditáveis criatividade. Deixei as lições da Alessan- trabalhavam nos circos mambembes de
ra, onde se dera o embate entre a volan- Histórias Verdadeiras. Fiz uma narra- dra. Comprei mais livros, vi e revi filmes São Bento do Una mentiam suas origens.
te e os cangaceiros, havia alguns objetos. tiva em ritmo de cordel. De repente, eu para analisar a gramática de cada um. Aí Diziam que vinham do país que lhes pa-
Meu pai pegou um chapéu de cangacei- tinha reunido muitas histórias, muitas peguei uma câmara digital e comecei a recesse causar melhor impressão. Inven-
ro. Um colega dele pegou um broche no lembranças, muitos poemas. Mas perdi andar com ela e a filmar o que me pas- tavam uns sotaques mixurucas. Fiz A lu-
qual se via um galo e uma galinha. Leva- os originais do livro num táxi. Mas já me sava pela frente. Parecia um Glauber Ro- neta do tempo para mostrar o Nordes-
ram aqueles objetos para Recife. Cresci garantiram que ele será resgatado no cha com sua câmera na mão. Mas o “câ- te profundo, o Nordeste dos cangacei-
ouvindo esta história, contada inúmeras HD do computador, pois isto é possível. mera na mão” do Glauber era o Dib Lu- ros, de Luiz Gonzaga, dos rabequeiros,
vezes por meu pai. Me lembro que eu ti-   tfi, irmão do Sérgio Ricardo. Eu havia fei- um Nordeste que conheço muito bem.
nha uns 5 anos, quando um grupo de bê- “Isto dá um filme” to um filme com os dois irmãos: fui ator Nenhum ator faz caricatura no meu fil-
bados invadiu a minha casa. Eram ami- Um certo dia, estava eu assistindo a em A noite do espantalho (1973). O Sér- me, nem fala com sotaque nordestino de
gos de meu pai que queriam levá-lo pa- um show do grupo Cabruêra, da Paraí- gio dirigindo, o Dib fotografando e eu in- novela. Na minha cidade tinha um alto-
ra brincar o Carnaval. Chegaram a rasgar ba, no Teatro Rival, centro do Rio, e, sen- terpretando (e cantando) na pele do es- -falante na praça, que tocava muito Luiz
a roupa do meu pai nas muitas tentativas tado ao meu lado estava o Walter Carva- pantalho. Depois de cada jornada de fil- Gonzaga, Nelson Gonçalves, Cauby...
para levá-lo. Foram. Quando voltaram, lho. Ele me perguntou o que eu andava magem, eu ficava ali rodeando, prestan- [Já de pé, pronto para partir rumo ao
muito bêbados, iniciaram, em frente ao fazendo. Contei que estava escrevendo do atenção na parte prática, sempre fui aeroporto de Porto Alegre, Alceu aceita
chapéu de cangaceiro, guardado com ze- muito. Fomos para o Amarelinho, ali na muito interessado em cinema. provocação de um amigo e imita Cauby
lo em nossa casa, uma discussão: Lam- Cinelândia, e contei tudo que tinha pro- Depois das aulas e de muitos livros li- e Nelson. A plateia se diverte, ele acena e
pião era herói? Era bandido? Foi aque- duzido, de forma desordenada. “Mas isto dos e filmes vistos e analisados, fui pa- parte sob aplausos calorosos.]
12 de 4 a 10 de setembro de 2014 cultura

Meu pequeno crime Reprodução

CRÔNICA Ninguém se mexeu. Eu podia ter


mostrado. Nem precisaria conversar, arriscar meu
inglês. Bastaria fazer “Ei!” bem alto, erguendo o braço,
e, quando ele olhasse, apontar o pacotinho no chão

Braulio Tavares

EU TINHA PEGADO um daqueles voos que saem da Paraíba de ma-


drugada e aterrissam no Galeão ao amanhecer, um voo cansativo, e
a coluna me incomodando. Desci apressado, cruzei o saguão e en-
trei na fila do táxi, na calçada do desembarque. Tinha umas oito ou
dez pessoas na minha frente. Os carros vinham chegando de um em
um, enchendo e partindo. Quase no começo da fila tinha um gringo.
Um cara de 30-e-poucos anos, rosto sério de gringo, roupas desajei-
tadas de gringo, duas malas enormes e algumas sacolas. Quando o
táxi foi se aproximando, ele moveu a posição das sacolas e eu vi al-
guma coisa cair no chão.
Era um pacotezinho de plástico com algumas coisas dentro, pare-
cia um saquinho com cartões, um ou outro documento, a ponta de
plástico enrolada e dada um nó. Quando aquilo caiu no chão o ca-
ra estava preocupado com o equilíbrio das sacolas em cima da ma-
la enorme (nisso o táxi dele já vinha encostando no meio-fio), e não
viu. Esperei que as pessoas atrás dele, mais próximas, mostrassem
a queda do objeto. Ninguém se mexeu. Eu podia ter mostrado. Nem
precisaria conversar, arriscar meu inglês. Bastaria fazer “Ei!” bem
alto, erguendo o braço, e, quando ele olhasse, apontar o pacotinho
no chão.

Quando o táxi foi se aproximando, ele moveu a


posição das sacolas e eu vi alguma coisa cair no chão

Não o fiz. Fiquei somente olhando enquanto ele e o motorista bo-


tavam a bagagem na mala do carro, ele se acomodava com suas sa-
colas no banco traseiro e o táxi ia embora. O pacotinho ficou no
chão. Ninguém viu. As pessoas seguintes passaram as rodinhas de
suas malas por cima dele. Quando chegou minha vez, embarquei
também e fui embora.
Por que não ajudei o cara? Não me custava nada. “Ei!” – e apon-
tar o chão. Podia não ser nada, podia ser algum comprimido para
enjoo, sem maior valor. E podia ser um documento, um cartão, algo
essencial quando se está em terra estranha. Não avisei porque fiquei
esperando que as pessoas mais próximas o fizessem. E depois não
o fiz porque estava cansado, impaciente, doido pra meu táxi chegar Karma, instalação de 2003 do artista plástico sul-coreano Do-ho Suh
logo. O cara foi embora com o problema dele, e eu vim embora com
os meus. A pior coisa, quando a gente faz uma desatenção
A pior coisa, quando a gente faz uma desatenção assim, é que o
mundo não se acaba. E você começa a achar que já que o mundo não assim, é que o mundo não se acaba. E você
se acabou, nunca mais vai se acabar. E aí tome a fazer o que dá na te-
lha; tudo é permitido. Era bom que, cada vez que a gente praticasse
começa a achar que já que o mundo não se
uma maldade omissa ou forçosa sobre alguém, pelo menos alguma acabou, nunca mais vai se acabar
pequena catástrofe ocorresse em seguida, para se saber que aqui-
lo ali incomodava o Universo, era uma desarmonia, desequilibrava
tudo em volta e requeria compensação. Todo pequeno gesto conta.
Toda pequena gentileza casual conta. Toda chance que fez vapt e de-
pois fez vupt, os quatrocentos golpes de cada dia. Tudo conta. (Tex­
to publicado em sua coluna diária no Jornal da Pa­raíba – Campi­
na Grande-PB)

Braulio Tavares é escritor, poeta e compositor de Campina Grande (PB).

www.malvados.com. br dahmer

PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais – 1.Nome dado ao Brasil, pelos indígenas, antes da invasão de Cabral, que
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
significa “terra das palmeiras” – “Você”, em alemão. 2.A resistível ascensão de Arturo (?), 1
peça de Bertolt Brecht – Vestimenta “excludente” do carnaval de Salvador que identifica
o folião para que seja protegido da “pipoca” por um cordão.3.Coito – Novo nome do PFL. 2
4.Termo que é duplicado no nome de um pássaro que ficou famoso na voz de Carmen
3
Miranda 5.Um dos cinco sentidos – Palavra hebraica comum no final das orações que
significa “assim seja” – Antes de Cristo – 6.Prefixo que indica ‘dois’ – Aplicação de subs-
4
tâncias oleosas – Igual, semelhante – “Bunda”, em inglês.7.Nome que indica a introdução
de líquido no ânus para lavagem – “Costela”, em inglês. 8.Fazer o bebê dormir – Interjei- 5
ção associada aos mineiros. 9.Ponto de interconexão – Árvore típica do Nordeste brasi-
leiro, cujo fruto é rico em vitamina C. 10.“Veneno”, em inglês – Bairro do Rio de Janeiro 6
onde morou Machado de Assis. 11.“Avó”, em alemão.
7

Verticais – 1.“(?) Bella”, líder da independência da Argélia, aliado de Che Guevara na


8
década de 60, falecido aos 96 anos em 2012. 2.São Paulo de (?), nome original da cidade
por causa dos peixes secos resultantes das vazantes dos seus rios. 3.Marca de sal de fru- 9
tas. 4.Pelado – Romeu (?), falecido em 2010, ex-chefe do Serviço Secreto do DOPS. 5.O
chamado “pai dos burros”. 7.“Descanse em paz”, em inglês - “Grande”, em tupi. 8.Nome 10
antigo da nota musical dó - “Uma (?)”, interjeição usada para negar o que foi afirmado
imediatamente antes – interjeição de saudação no Brasil. 9.País africano que tem como 11

capital a cidade de Bamako. 10.Da gordura de sua fruta, rica em vitamina E, pode ser
feito até sabão. 11.Pequeno país situado na Península Arábica, que tem como capital
a cidade de Mascate – Tipo de peixe. 12.Poesia própria para canto – O artigo “o”, em
espanhol. 13.“Ligado”, em inglês – Fiel. 15.Os rins a extraem do sangue e a concentram 18.Villas Bôas.
9.Mali. 10.Abacate. 11.Omã – Atum. 12.Ode – El. 13.On - Leal. 15.Ureia – Pá. 16.Carajás. 17.Si.
na urina – Utensílio agrícola. 16.O massacre de “Eldorado dos (?)” completou 18 anos Verticais –1.Ben. 2.Piratininga. 3.Eno. 4.Nu – Tuma. 5.Dicionário. 7.Rip – Ussu. 8.Ut – Ova – Oi.
em 2014. 17.Sétima nota musical. 18. Irmãos (?), responsáveis pela criação do Parque Bi - Unção - Tal - Ass. 7.Enema - Rib. 8.Ninar - Uai. 9.Nó - Juá. 10.Poison - Lapa. 11.Oma.
Nacional do Xingu.
Horizontais –1.Pindorama – Du. 2.Ui - Abadá. 3.Cópula - DEM. 4.Tico. 5.Tato - Amén - AC. 6.
américa latina de 4 a 10 de setembro de 2014 13

“Os interesses da saúde são


substituídos pelos do mercado” Reprodução
ENTREVISTA para a produção intensiva de etanol ou
açúcar. Há vinculação direta entre o mo-
Para o médico delo de produção que busca a extração
venezuelano Oscar Feo, máxima do lucro e a deterioração do am-
biente e da vida. Hoje estamos diante de
a indústria que produz um nível de deterioração do mundo que
nos obriga a pensar em um novo mode-
sementes transgênicas e lo de desenvolvimento, de produção e de
consumo. Precisamos uma mudança de
agrotóxicos é a mesma paradigma.
que está produzindo
Esse paradigma seria
medicamentos o Bem Viver?
Sim, o novo paradigma é o Bem Viver,
um modelo de produção baseado não na
acumulação de riquezas, mas na satisfa-
Maíra Mathias e ção das necessidades coletivas, em equi-
André Antunes líbrio com o meio ambiente. Essa é a di-
do Rio de Janeiro (RJ) ferença entre o modelo de desenvolvi-
mento capitalista e um modelo de desen-
EXPOENTE do pensamento da Medici- volvimento alternativo, que [o presiden-
na Social latino-americana, o médico ve- te] Evo Morales na Bolívia chama de so-
nezuelano Oscar Feo visitou a Escola Po- cialismo comunitário, na Venezuela cha-
litécnica no dia em que a instituição com- O médico venezuelano Oscar Feo mamos de socialismo do século 21, em
pletou 29 anos. Coordenador nacional outros países recebe outros nomes, mas
da Universidade de Ciências da Saúde mentos do grande capital. São essas or- mo o Brasil, que tem um desenvolvimen- para nossos povos originários era sim-
da Aliança Bolivariana para os Povos da ganizações – que constroem a proposta to científico e técnico avançado, têm um plesmente o ‘viver bem’. Viver bem é sa-
Nossa América (Alba), Feo tem um pro- da Cobertura Universal em Saúde para papel importantíssimo. Nós precisamos tisfazer as necessidades de todos e todas
fundo conhecimento da dinâmica da co- propiciar o asseguramento privado como construir em nossos países soberania sa- em harmonia com o ambiente. Mas vive-
operação internacional em saúde e alerta instrumento fundamental de lucro desse nitária. E isso se faz com investigação, mos num mundo individualista, consu-
que o interesse privado tem tido partici- complexo industrial e financeiro. Não sei com inovação tecnológica convertida em mista, cravado pela necessidade do di-
pação crescente na elaboração das políti- bem se em português acontece o mesmo, instrumento que vise à saúde das pesso- nheiro, e estamos defendendo algo que
cas de saúde em nível global. mas em espanhol cobertura é uma pala- as e não o lucro do mercado. Lamenta- rompa com esses interesses. Algo muito
Nessa entrevista, ele explica o que en- vra que diz respeito à quantidade de ser- velmente há muitas denúncias sobre is- mais simples: produzir aquilo que pre-
tende por Complexo Industrial Médico e viços cobertos, profundamente vincula- so. Hoje a indústria farmacêutica está cisamos para viver. Hoje, ao contrário, a
Financeiro da Saúde, fala sobre o lobby da à indústria seguradora. Nós dizemos pouco interessada em curar as enfermi- produção tem em vista o consumo supér-
em torno da construção da proposta de que esse foi um ato falho. Nós da Vene- dades, ela quer clientes. E, para isso, es- fluo, massivo para o intercâmbio comer-
Cobertura Universal em Saúde recente- zuela e do Brasil nos opomos à proposta tá promovendo políticas para mudar os cial lucrativo. O melhor exemplo é o que
mente criticada pelo Centro Brasileiro de da cobertura universal da saúde e defen- padrões de diagnóstico de algumas doen- acontece com os alimentos. O mundo
Estudos de Saúde (Cebes) em manifesto demos o acesso universal através de sis- ças ou mesmo inventando doenças que produz alimentos que poderiam nutrir
publicado em seu site. temas de saúde públicos e universais. não existem. Isso permite com que con- toda a população mundial, até mais. Im-
Feo defende que é necessário resgatar vertam gente sadia em gente enferma ou peram a desnutrição e a fome. Por quê?
a potência do pensamento contra-hege- O senhor relembrou Alma-Ata, pré-enferma, angariando mais clientes. Os alimentos se converteram em merca-
mônico da Medicina Social e adotar um uma conferência da Organização É uma indústria interessada em cronifi- dorias, em commodities que se vendem e
novo modelo de desenvolvimento. Mundial da Saúde. Este ano, na car as doenças ao invés de curá-las, ga- se compram. O alimento não é para ali-
67ª Assembleia Mundial da Saúde rantindo consumo permanente de seus mentar, compra quem pode. É um mo-
Eu gostaria que o senhor falasse da OMS, vemos o lançamento de medicamentos. delo absolutamente falido e fracassado.
um pouco sobre a influência um documento que monitora o
do que chama de Complexo progresso da adoção global da O senhor, juntamente com Asa
Industrial Médico e Financeiro Cobertura Universal em Saúde “Nós precisamos construir em Cristina Laurell, Nila Heredia,
sobre as políticas de saúde globais. assinado conjuntamente pela dentre outros, construiu sua
Oscar Feo – Entender o que acontece OMS e pelo Banco Mundial. Existe nossos países soberania sanitária. trajetória dentro desse movimento
hoje no cenário das políticas internacio- um rebaixamento do papel dos que ficou conhecido na América
nais da saúde implica compreender que organismos internacionais hoje?
E isso se faz com investigação, com Latina como Medicina Social. O
a saúde passou a ser um espaço funda- Os organismos internacionais são um inovação tecnológica convertida em senhor define a Medicina Social
mental da economia. Hoje, a saúde é o grande espaço de confronto hoje. Neles fundamentalmente como um
local onde se jogam os interesses do lu- se dão as mesmas contradições que ve- instrumento que vise à saúde das “pensamento contra hegemônico”
cro e da acumulação de um setor funda- mos no conjunto das sociedades, pois os em oposição ao que seria o
mental da economia mundial que é a in- organismos também foram penetrados pessoas e não o lucro do mercado” pensamento que dominou a saúde
dústria farmacêutica e a indústria técni- pelos interesses do capital e do mercado. pública. Como essa hegemonia se
co-médica. Trata-se da segunda indús- O Parlamento Europeu move um proces- dá hoje?
tria que mais lucra no mundo e isso faz so contra a OMS em razão de a Organi- Na década de 1990 houve uma mudan-
com que as políticas de saúde sejam in- zação ter mudado os critérios de decla- Atualmente assistimos ao quadro ça fundamental: desapareceu a bipola-
fluenciadas pelos interesses do que es- ração de uma pandemia mundial a partir lamentável da epidemia de Ebola ridade que existia e que cindia o mundo
tamos chamando na América Latina de da [Gripe A] H1N1. São exemplos concre- nos países africanos e alguns em capitalista e socialista. A partir desse
Complexo Médico-Industrial e Financei- tos de como muitas vezes os interesses da analistas argumentam que essa momento, falamos de algo que se chama
ro da Saúde, conformado pelas grandes saúde são substituídos pelos do mercado. epidemia foi potencializada, de um hegemonia planetária do capital. O que é
corporações privadas. Essas empresas A publicação no ano 2000 de um docu- lado, pela adoção de um modelo hegemonia, segundo Gramsci? É quando
não têm como interesse a saúde da po- mento da OMS que classifica os sistemas de desenvolvimento baseado a classe dominante faz com que as clas-
pulação e, sim, a acumulação de capital de saúde e coloca o Brasil em um dos úl- na expansão da agroindústria ses subordinadas da sociedade assumam
e realização do lucro. O melhor exemplo timos lugares, enquanto que eleva a Co- exportadora, que, ao desmatar suas concepções – as da classe dominan-
disso é a criação da proposta de Cobertu- lômbia – onde a saúde é totalmente pri- a savana, contribuiu para que os te – sem coerção. O que é mais eficaz: do-
ra Universal da Saúde. vada – é um claro sinal de como o mer- animais silvestres que transmitem minar alguém pela força ou pelo pensa-
cado está penetrando nos organismos de o vírus se aproximassem das mento? Hoje a hegemonia planetária do
Em sua conferência, o senhor saúde. Essa é uma briga que temos que populações humanas; por outro, capital faz com que as pessoas pensem
resgatou o histórico de construção comprar. Os organismos internacionais pela falta de interesse da indústria segundo sua lógica através dos meios de
da proposta de Cobertura são formados pelos Estados nacionais, farmacêutica em pesquisar comunicação. Há de se compreender que
Universal em Saúde, que está então devem seguir as políticas que esses sobre uma doença que atinge uma tarefa fundamental é quebrar essa
sendo assumida pela Organização países defendem, e não as políticas advo- principalmente populações hegemonia. Por isso falamos da neces-
Mundial da Saúde (OMS). Essa gadas pela Fundação Rockefeller ou pe- empobrecidas. Hoje há, sidade de construir pensamento e ação
proposta foi construída com lo Banco Mundial. Agora mesmo, na reu- inclusive, indústrias que atuam contra-hegemônicos. Que diz a hegemo-
uma participação importante de nião do Conselho Diretivo da Opas, mar- tanto no fomento ao modelo nia? Ela defende que as funções dos sis-
fundações filantrópicas privadas cada para o final de setembro, vai haver agroexportador, produzindo temas de saúde são a gestão, o assegu-
como a Fundação Rockefeller uma discussão sobre Cobertura Univer- agrotóxicos e fertilizantes, quanto ramento, o financiamento e a prestação
e organismos financeiros sal onde países como Brasil, Equador e na produção de medicamentos, de serviços. Isso se estuda nas Escolas
internacionais, como o Banco Venezuela contestarão essa proposta e caso da Bayer. O que essas de Saúde Pública. Nós dizemos não. Não
Mundial. Baseado na sua visão defenderão os sistemas universais de ‘ligações perigosas’ nos dizem aceitamos essa abordagem. Para nós, a
sobre o papel da saúde na saúde. Os organismos internacionais se- sobre o mundo hoje? função fundamental do sistema de saú-
economia hoje, o que faz com que guirão sendo cooptados pelos interesses Essa é uma clara demonstração da in- de é a garantia do direito à saúde, e pa-
essas organizações se articulem do capital e do mercado na medida em tegração de interesses. Hoje já não é ra garantir o direito à saúde nós não de-
em torno desse tema agora? que nós não sejamos capazes de defender mais é possível diferenciar os interesses vemos ter somente a gestão. Temos que
A proposta de cobertura universal é com força – e ganhar – nossas posições. do capital financeiro daqueles interesses ter o controle total do sistema de saúde.
funcional ao mercado e ao capital. Ela foi do capital industrial, ou dos interesses
assumida pela OMS [Organização Mun- Agora e na conferência o senhor dos donos dos meios de comunicação, Qual é o papel da educação nesse
dial da Saúde] e Opas [Organização Pan- cita a questão da H1N1 e a pressão por exemplo. A General Electric é dona processo?
-Americana da Saúde] depois de ser de- para que a OMS a reconhecesse da NBC [emissora de rádio e TV baseada Boa parte dos centros de formação está
senhada nos grandes centros financei- como pandemia para alavancar nos Estados Unidos], a Westinghouse cooptada pelo pensamento hegemônico.
ros internacionais. A Fundação Rocke- a venda de medicamentos que por sua vez, é dona da CBS [idem]. A in- A Escola Politécnica, por exemplo, é uma
feller tem uma longa história na saúde e ficaram encalhados, sem uso. dústria que produz sementes transgê- escola que nasce como parte do pensa-
temos que relembrá-la. A Fundação Ro- Neste caso mais uma vez os nicas e agrotóxicos é a mesma que está mento contra-hegemônico. Quando vou
ckefeller é o braço filantrópico da Exxon- Estados nacionais se viram produzindo medicamentos. E, em mui- ao pátio, leio nas paredes frases de Paulo
Mobil, indústria petrolífera fundada por enfraquecidos frente ao lobby tos casos, o dono da indústria farmacêu- Freire, Antonio Gramsci, Karl Marx, Jo-
John Rockefeller. Ela é o instrumento fi- da indústria farmacêutica. Como tica é o mesmo dono dos meios de comu- sé Saramago. Gramsci diz que uma esco-
lantrópico para concretizar os interesses o senhor vê essa indistinção nicação que alertam sobre possíveis en- la politécnica não deve ser um local pa-
econômicos da Exxon. Em 1978, em uma entre interesses de mercado e de fermidades criando na população ma- ra se aprender técnicas, mas para apren-
cidade da extinta União Soviética [Alma- Estado? trizes de opinião, às vezes simplesmente der a vida. Resgatar esses elementos é
-Ata, no Cazaquistão], se realizou uma Há muitas epidemias que são vistas difundindo o pânico nas pessoas que fundamental, fazer com que o ensino não
reunião que postulou a ‘Atenção Primá- pelo mercado como oportunidades pa- prontamente pressionam seus governos se conforme em torno do positivismo, do
ria em Saúde para todos no ano 2000’. ra a comercialização de seus produtos. a comprar coisas desnecessárias. O atual academicismo, do cientificismo e, sim,
Que fez a Fundação Rockefeller? No ano É ai que temos que ter cuidado, porque modelo de desenvolvimento capitalista vise o mais importante: formar homens
seguinte, reuniu um grupo de especialis- se surge uma epidemia, os interesses do propala o extrativismo intensivo, que de- e mulheres livres para a transformação
tas em seu centro de formação em Bella- Complexo Médico Industrial podem fa- teriora profundamente o meio ambiente, social. Esse é o desafio que temos pela
gio, na Itália, e converteu a Atenção Pri- zer como terminemos fazendo para a o agronegócio, que também deteriora o frente. O que fazemos hoje? Formamos
mária, que era uma concepção integral epidemia de H1N1 comprando medica- ambiente e tem um impacto totalmente médicos ou enfermeiras para o setor pri-
da saúde, em uma APS seletiva, voltada mentos e vacinas que depois nunca uti- nocivo sobre a saúde e a vida. Há locais vado, profundamente desumanizados,
para a prestação de um pequeno pacote lizamos. Os governos terminam se trans- em nosso continente em que o aumento mercantilizados. O desafio é romper com
de serviços para os pobres, como imuni- formando em instrumentos para satisfa- da incidência de câncer está diretamen- esse modelo de formação que visa o mer-
zação, orientação à amamentação, etc. É zer as necessidades de lucro da indústria. te vinculado a esse modelo agroexporta- cado, para o uso excessivo da tecnologia,
isso o que querem fazer com a cobertu- E, para isso, é preciso ter ciência e conhe- dor intensivo. Há alguns anos na Améri- e construir um novo modelo de formação
ra universal. E ainda por cima nos rou- cimento independentes. Implica que não ca Central, ocorreu uma epidemia de in- de profissionais para a vida, profunda-
bam a palavra universal. O mesmo pode- podemos permitir que a indústria far- suficiência renal crônica terminal, vincu- mente humanos e solidários. (Escola Po-
ríamos dizer da Fundação Bill e Melinda macêutica siga determinando o que deve lada fundamentalmente às condições de litécnica de Saúde Joaquim Venâncio –
Gates ou do Banco Mundial: são instru- ser investigado. Nesse sentido, países co- trabalho nos plantios da cana-de-açúcar EPSJV/Fiocruz)
16 de 4 a 10 de setembro de 2014 internacional

União Europeia planeja


mais sanções contra a Rússia European Council

GUERRA NA UCRÃNIA Rebeldes


reconquistam aeroporto de Lugansk,
obrigando os batalhões do exército
ucraniano a se retirar. Depois de
Donetsk, essa é a quarta “retirada
estratégica” que os generais de Kiev
ordenam a suas tropas para não
ficarem cercadas pelos rebeldes

Achille Lollo
de Roma (Itália)

DIANTE DOS INSUCESSOS políticos


do novo presidente ucraniano Petro Po-
roshenko, que se viu obrigado a licenciar
o governo chefiado pelo então primeiro-
-ministro direitista Arseny Yatsenyuk e
a proclamar eleições extraordinárias pa-
ra o próximo dia 25 de outubro e devi-
do também à incapacidade tática e ope-
rativa do exército ucraniano em derro-
tar os rebeldes da autoproclamada Repú-
blica da Novarossia, as excelências “ocul-
tas” da Casa Branca decidiram acirrar as
medidas que os EUA e, sobretudo, os 28
países da União Europeia (UE) deveriam O presidente ucraniano, Petro Poroshenko, em encontro do Conselho Europeu
aplicar contra a Rússia com novas san-
ções. o PIB alemão em 12,5% e que o primei- Além disso, Merkel conseguiu conven- dividida em três grandes setores regio-
Nesse âmbito, o presidente dos EUA, ro-ministro italiano, Matteo Renzi, su- cer a maioria dos primeiros-ministros nais, dos quais apenas o menor apoia a
Barack Obama, anunciou aos jornalistas blinhou lembrando que ao endurecer o europeus que o envio de armas à Ucrâ- política de limpeza étnica praticada pe-
que os aliados europeus deveriam endu- relacionamento financeiro e comercial nia significava que a União Europeia es- lo então primeiro-ministro direitista Ar-
recer as sanções contra a Rússia atingin- com a Rússia, certamente, ocorrerá uma taria apostando em uma solução militar seny Yatsenyuk.
do, sobretudo, as instituições financeiras resposta desse país no setor energéti- que ninguém decidiu e, sobretudo, nin- Nesse contexto, a formação da chama-
e os grandes grupos que apoiam o presi- co, tal como aconteceu no mês de julho, guém votou e, por isso, deveria ser rejei- da República de Novarossia seria a solu-
dente Putin. quando o governo russo, em represália tada – uma posição que Obama, bem co- ção ideal, inclusive porque é neste terri-
Em segundo lugar, Obama pretendia às sanções dos EUA, suspendeu todas as mo todo o staff do Departamento de Es- tório que deve transitar o novo megaga-
que fosse votada na reunião dos primei- importações dos produtos agro-alimen- tado não esperavam de Merkel, que, des- soduto South Stream, com o qual a Rús-
ros-ministros dos 28 países da UE uma tares europeus. ta forma, se vingou da espionagem que o sia pretende exportar gás para os países
moção em favor do rearmamento da pessoal da NSA/CIA havia montado em europeus sem ter de atravessar as regiões
Ucrânia, tal como foi feito em favor dos Berlin e em Bonn para conhecer com an- da Ucrânia do Norte.
curdos no Iraque. O ministro das Relações Exteriores tecedência o que ela decidia. É evidente que o presidente ucrania-
Em terceiro lugar, os falcões da Casa no não poderá aceitar logo essa condi-
Branca queriam que o Comando Geral da da Rússia argumentou que a Rússia A posição da Rússia ção já que o futuro financeiro da Ucrâ-
Otan preparasse uma força-tarefa de 10 não tem a mínima ideia e, também, O ministro das Relações Exteriores da nia depende da boa vontade do FMI e
mil soldados – todos originários dos paí- Rússia, Serghey Lavrov, logo após a reu- do BCE europeu enquanto a Ucrânia
ses da Europa do norte – com o objetivo não tem vontade de invadir a nião, durante conferência de impren- ainda não ingressou oficialmente na
estratégico de estacionar ao longo das re- sa em Moscou, argumentou que a Rús- União Européia.
giões fronteiriças “potencialmente amea- Ucrânia: “Nós acreditamos que ainda sianão tem a mínima ideia e, também, Além disso, os compromisso geoestra-
çadas pela Rússia”. não tem vontade de invadir a Ucrânia, tégicos que o governo transitório e de-
O arrogante pronunciamento de Oba- é tempo de realizar uma negociação como também não aposta na solução mi- pois o do direitista Yatsenyuk assumiram
ma, na realidade, fez lembrar os discur- séria sobre o futuro daquela região e, litar. “Nós acreditamos que ainda é tem- com os EUA e com a Otan não podem ser
sos do presidente francês Giscard D’Es- po de realizar uma negociação séria so- cancelados de imediato. Será necessário
taing no auge do chamado “neocolonia- assim, restabelecer a paz” bre o futuro daquela região e, assim, res- criar as condições para que a eventual se-
lismo”, isto é, quando todas as decisões tabelecer a paz.” paração da Ucrânia Oriental seja institu-
políticas, econômicas, diplomáticas e mi- Porém, se por um lado o ministro La- cionalmente válida e reconhecida pelos
litares das antigas colônias africanas, ofi- vrov foi enfático em aceitar o diálogo parceiros políticos do governo do presi-
cialmente independentes, eram tomadas Na prática, a Casa Branca fez voz gros- proposto por Merkel, por outro, profe- dente Petro Poroshenko, isto é, a União
em Paris por meia dúzia de ministros do sa, mas quem sofreu as consequências riu um alerta explícito contra as provo- Europeia e os Estados Unidos.
governo francês. foram os produtores agrícolas europeus cações do secretário-geral da Otan, An-
De fato, não há dúvida de que, hoje, os que perderam contratos no valor de qua- ders Fogh Rasmussen, notoriamente
Estados Unidos acreditam que podem se 4 bilhões de euros. porta-voz dos generais dos EUA. A esse Ninguém pode negar
dominar em termos político e militar Renzi, que na reunião exercia a função propósito o ministro das relações exte-
a UE, mantendo relações privilegiadas de presidente dos países da União Euro- riores da Rússia qualificou como autên- que a situação no Leste
com os principais países economicamen- peia, lembrou que no “dossiê” da Ucrâ- tica provocação a criação de uma força- da Ucrânia atingiu
te mais ricos (Alemanha, França, Grã- nia a questão do pagamento atrasado do -tarefa especial, com comandos e aquar-
-Bretanha, Bélgica, Holanda e Suécia) fornecimento do gás por parte da Rússia telamentos deslocados ao longo das níveis de conflitualidade
e ter uma “corte” de países virtualmen- – avaliado em quase 13 bilhões de dóla- fronteiras com a Rússia, achando que
te submetidos que sempre dizem sim aos res – ainda permanece sem resposta por essa seria uma forma de garantir a segu- incontroláveis que
chamados dos EUA por conta da depen- parte do novo governo da Ucrânia e da rança dos países membros da Otan. Dei-
dência financeira. Desse grupo, os mais mesma UE. xando no ar a pergunta: “E a segurança dificilmente podem ser
serventes são: Polônia, Romênia, Lituâ- “Afinal quem vai pagar essa dívida da Rússia, quem a garante? apagados com simples
nia, Estônia, Letônia, Dinamarca, Portu- quando a Ucrânia for membro efetivo da Mais contundente foi a entrevista de
gal, Itália e Grécia. União Europeia, tendo em conta que a Putin sobre as próximas negociações em eleições
Rússia já ameaçou cortar o fornecimen- Minsk com o homólogo ucraniano Petro
to, atingindo assim 18 países da UE?”, Poroshenko. De fato, ninguém pode ne-
O posicionamento político de Merkel, questionou Renzi gar que a situação no Leste da Ucrânia
É claro que diante desse dilema, polí- atingiu níveis de conflitualidade incon- O grande problema disso tudo é que os
na realidade, não é de oposição aos tico e, sobretudo, financeiro ninguém te- troláveis que dificilmente podem ser apa- rebeldes da República de Novarossia não
EUA. Porém, no atual contexto, a ve a coragem de continuar a sustentar as gados com simples eleições, inclusive por estão dispostos a esperar muito tempo
posições da Casa Branca e foi nesse parti- culpa do exército ucraniano que praticou para uma definição negociada. Por outro
Alemanha pretende reconquistar certos cular momento político que a posição de uma efetiva limpeza étnica, provocando lado, a maior parte dos membros do go-
Merkel tornou-se majoritária, pedindo a fuga de quase 470 mil ucranianos para verno russo, em particular o presidente
parâmetros de autonomia política e ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, a Rússia e mais de 270 mil em direção a Putin, acha que na Casa Branca e na Otan
de decisão que a UE perdeu desde a que finalize nos próximos sete dias, em outras cidades do centro do país. hoje se diz uma coisa e o dia seguinte se
Minsk, as negociações com o presidente É evidente que o apoio popular e, so- opta por outra, que contraria tudo o que
invasão da Líbia, em 2011 da Ucrânia, Petro Poroshenko – negocia- bretudo, os sucessos militares que os foi já decidido.
ções que, além de estabelecer um perma- milicianos das duas repúblicas popula- A demonstração disso tudo ficará evi-
nente cessar-fogo, devem providenciar res (Lugansk, Donetsk), depois unifica- dente na próxima reunião da Otan em
uma geral desmilitarização na Ucrânia das na República de Novarossia, jogam Cardiff, onde a agenda do debate e das
Alemanha discorda Oriental, sobretudo, ao longo das fron- um papel preponderante nas negocia- decisões que deverão ser tomadas é, pra-
Entretanto, algo aconteceu em Bruxe- teiras com a Rússia. ções, já que a Ucrânia está praticamente ticamente, o contrário do que foi decidi-
las, na reunião do dia 1º de setembro, já do na última reunião.
que até países “serventes”, como a Itália, De fato, a eventual aprovação do Plano
World Economic Forum

por exemplo, rejeitaram o “diktat” da Ca- de Intervenção Rápida (Readiness Ac-


sa Branca, apoiando a posição interme- tion Plan, em inglês) é o capítulo que a
diária da primeira-ministra da Alema- Rússia considera uma mera provocação
nha, Angela Merkel, que, de fato, deses- à sua segurança visto que seu relator, An-
truturou o plano das “excelências” da Ca- ders Fogh Rasmussen, afirma que o mes-
sa Branca. mo deve assegurar que a Aliança Atlânti-
O posicionamento político de Merkel, ca, Otan, esteja sempre preparada e ca-
na realidade, não é de oposição aos pacitada para defender todos os seus
EUA. Porém, no atual contexto a Alema- aliados contra qualquer tipo de ataque.
nha pretende reconquistar certos parâ- Pois, não é preciso ser um estrategista de
metros de autonomia política e de deci- profissão para entender que, hoje, o ini-
são que a UE perdeu desde a invasão da migo potencial da Otan é a Rússia.
Líbia, em 2011. Em poucas palavras, o que, hoje, o se-
De fato, com a explosão da crise na Sí- cretário-geral da Otan afirma é o mesmo
ria, a UE, praticamente, ficou a rebo- que se dizia na década de 1980, quando
que das decisões da Casa Branca. Em a Guerra Fria e as medidas estratégicas
segundo lugar, Merkel acredita que, ao da Otan e, sobretudo, dos EUA contra a
acirrar as relações políticas com a Rús- URSS chegaram a ameaçar uma guerra
sia, o grande perdedor, em termos eco- nuclear.
nômicos e financeiros, seriam a indús-
tria e os bancos alemães que, na reali- Achille Lollo é jornalista italiano, correspon-
dade, são os grandes parceiros europeus dente do Brasil de Fato na Itália e editor do
da Rússia. Uma relação que influencia A primeira ministra alemã, Ângela Merkel programa TV “Quadrante Informativo”.

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