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2 de 11 a 17 de setembro de 2014

editorial

O vitorioso Plebiscito Popular da Constituinte!


AS URNAS ESTÃO sendo apura-
das e ainda não é possível saber o to-
acompanhar o ânimo e o esforço mi-
litante nos mais distantes pontos.
O maior resultado oficial, com valor legal, com a mes-
ma pergunta: “Você é a favor de uma
retamente golpista em Honduras e
no Paraguai, nas últimas eleições
tal de votos obtidos. De qualquer for-
ma, os percentuais já apurados per-
Mais uma vez, a força das redes so-
ciais driblou a proposital omissão da
deste plebiscito Constituinte Exclusiva e Soberana do
Sistema Político?” E o Congresso Na-
em que se construíram candidaturas
muito bem patrocinadas nos vários
mitem afirmar a estrondosa vitória
dos que defendem a constituinte ex-
grande mídia. A grande mídia limi-
tou-se a coberturas locais e artigos
popular não cional detém a prerrogativa de con-
vocar um Plebiscito Legal.
países do continente e nos intensos
ataques contra o governo Maduro na
clusiva. E, uma informação é certa, a críticos, desqualificando a campanha será medido Sabemos que sem muita pres- Venezuela. Seria muita ingenuidade
mobilização surpreendeu até os mais e os participantes. Nada impediu que são social, uma vitória que incomo- imaginar que não aproveitariam a
otimistas. a mobilização ganhasse a proporção em números. É da tanto os interesses da classe do- conjunção de uma quadro recessivo
O Plebiscito Popular da Constituin- que tomou. minante é impossível. Recordemos com as eleições brasileiras.
te Exclusiva e Soberana do Sistema O elemento mais original deste ter conquistado que mesmo a campanha das “Diretas Com o atual sistema político em
Político produziu uma unidade en- plebiscito popular, quando compa- Já”, nossa maior mobilização social, que o Parlamento é hegemonizado
tre as forças sociais e populares que rado às experiências anteriores, foi corações e mentes que mais acumulou forças para a lu- por grandes grupos econômicos, ne-
não se via desde a campanha contra a participação dos trabalhadores. ta popular não conseguiu aprovar a nhum avanço social será possível.
a Área de Livre Comércio das Améri- Uma enorme quantidade de urnas da juventude Emenda Dante de Oliveira que resta- Não basta uma mera reforma eleito-
cas (Alca), comprovando a força des- em fábricas e empresas marcaram belecia eleições presidenciais diretas. ral, mudar o sistema político é mudar
ta proposta no atual momento his- o envolvimento do movimento sin- Isso somente será possível se os suas bases constitucionais. Daí por
tórico. dical. Centenas de escolas e univer- mais de 1.800 comitês populares que que a proposta de uma Constituinte
Foram mais de 100 mil militantes e sidades realizaram debates e o te- se conformaram ao longo da prepa- incomoda tanto os conservadores.
ativistas voluntários em todo o país, ma da Constituinte ganhou força ração do Plebiscito Popular forem ca- O maior resultado deste plebisci-
a imensa maioria de jovens, dedican- na juventude. pazes de se manter atuantes, conser- to popular não será medido em nú-
do-se de forma incansável em insta- Hoje, não resta dúvida de que, se vando a preciosa unidade entre as di- meros. É ter conquistado corações e
lar urnas em toda parte. O primei- novas circunstâncias possibilitarem versas forças políticas e novos ativis- mentes da juventude. Esta é a garan-
ro Plebiscito Popular da era das re- novamente grandes mobilizações tas que trabalharam juntos nos últi- tia de que a bandeira da “Constituin-
des sociais produziu uma infinidade da juventude, a bandeira da “Cons- pedagógico construído no Plebisci- mos meses. te já” seguirá ganhando força. E to-
de imagens, gerando a bem-humora- tituinte Já” ganhará as ruas. Não só to Popular. Estamos assistindo a uma ofensi- dos os que trabalharam incansavel-
da modalidade que foi apelidada de porque a unidade consagrada en- A primeira batalha foi vitoriosa. va política conservadora, que aposta mente nesta campanha levarão pro
#PlebiSelfie, envolvendo artistas, in- tre os principais movimentos sociais Porém, a conquista de uma Consti- todas as fichas em derrotar as con- resto da vida o orgulho de terem de-
telectuais, lideranças populares nu- irá assegurar sua presença, como pe- tuinte não será tarefa fácil. Será ne- quistas obtidas nas últimas déca- flagrado o movimento que mudará o
ma campanha onde todos puderam lo resultado do formidável trabalho cessário conquistar um plebiscito das. Assistimos a isso no formato di- curso de nossa história.

opinião Guilherme C. Delgado crônica Luiz Ricardo Leitão


Joan Mas/CC

A economia política Eleições em


da sucessão Bruzundanga – versão 2014
presidencial O NOSSO VINHO é de banana; e se for azedo, é o nosso vinho! –
eis uma das metáforas mais conhecidas de Martí, o revolucionário-
-poeta que liderou a 2ª Guerra de Independência de Cuba (1895-
98), a quem Fidel Castro qualificou de “mentor intelectual do as-
ECONOMIA POLÍTICA trata – se- salto ao Quartel Moncada”, em 1953, marco do processo que cul-
gundo uma linguagem de compreen- minou com a Revolução Cubana, em 1º de janeiro de 1959. Na de-
são geral – das questões da produ- fesa da soberania nacional e na luta anti-imperialista, a imagem
ção e repartição do “bolo” econômi- não poderia ser mais didática: sem desdém pelas riquezas alheias,
co entre diversos grupos e classes so- é preciso valorizar a nossa cultura e tudo aquilo que nos confere
ciais de um país determinado. Pres- identidade própria.
supõe alianças de poder econômico O cronista sabe que a política oficial está longe de representar
e poder político para repartir a ren- um fruto legítimo do nosso povo, mas não pode ignorar a versão
da social, para o que conta principal- 2014 da “farra da democracia” tupiniquim, um vinho que já nas-
mente com o manejo dos meios re- ce com sabor de vinagre. Para começar, a conjuntura não ajuda:
gulatórios, tributários, orçamentá- em meio ao visível refluxo do movimento social no limiar desta dé-
rios e monetários que o Estado mo- cada, a mídia e o grande capital ainda são os maiores cabos eleito-
derno detém em sua íntima relação rais na campanha presidencial (apenas três empresas respondem
com os mercados. por 39% dos recursos captados pelos três principais candidatos).
Na atual campanha presidencial,
vêm se delineando – de forma de-
A bem da verdade, plo no Banco Central norte-america-
no. A isso e a todas as prerrogativas
Em suma: MPL, MST, MTST e as forças populares mais combati-
vas continuarão a ser interlocutores menores do Planalto a partir
clarada ou implícita – estratégias de
economia política dos três princi-
é preciso dizer que de um Banco Central – de fiscaliza-
ção do sistema financeiro, de contro-
de 2015; já as empreiteiras, a banca e o agronegócio seguirão de-
certo com muito espaço na imprensa e no Congresso para defender
pais candidatos presidenciais, segun-
do as pesquisas eleitorais, que uma
os dois candidatos le e aplicação das reservas externas,
de gestão do câmbio, de gestão da
suas bandeira$ cívica$.
A própria “batalha de ideias” que se acirrou na América Latina
vez decifradas pelos eleitores, pro- mais cotados nas moeda e principalmente de produção desde o início do século 21 (após a falência do projeto neoliberal e
vavelmente gerariam muito mais in- da taxa básica de juros, que remune- a vitória nas urnas de Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e Tabaré
quietação que generosa preferência e pesquisas eleitorais ra os detentores da dívida pública – Vásquez, entre outros) acusa certa arritmia. Tio Sam, que não é bo-
adesão. Vou me restringir a dois as- dona Marina promete absoluta inde- bo, investe tudo na “nova política”, a fim de capitalizar o desencan-
pectos muito relevantes na reparti- – Dilma e Marina – pendência em relação aos cidadãos to das massas com a “velha política”. As duas são farinha do mes-
ção do bolo econômico, que de cer- brasileiros. Estamos falando de mais mo saco, mas nada como um bom padrinho e uma boa propaganda
ta forma exprimem a relação capital fazem e prometem de 2 trilhões de Dívida Pública Inter- para iludir o subcidadão-consumidor.
trabalho no processo político, com na; de Reservas internacionais da or-
direta incidência sobre a repartição o caminho inverso dem de 350 bilhões de dólares e da
da renda social: o trato da riqueza fi-
nanceira, da riqueza fundiária e dos do que se deveria
fiscalização do imenso patrimônio do
sistema financeiro, que a candida-
A democracia burguesa de Bruzundanga
direitos sociais no debate sucessório.
Aos três candidatos principais – esperar no jogo
ta propõe independentes do contro-
le do Estado.
continuará “azeda” ou será que ainda dá
Dilma, Marina e Aécio parece ‘na-
tural’ que os proprietários da rique- democrático Observe-se que, com a estratégia
de novos milionários e bilionários
tempo de preparar outro vinho?
za financeira e da riqueza imobiliá- alavancados pelos recursos públicos,
ria (urbana e rural) continuem a usu- da candidata Dilma ou com a estra-
fruir benesses pela posse desses ati- o jogo sucessório. No primeiro caso, tégia neoliberal de Marina e Aécio, Desmascarar essa farsa é uma luta árdua, sobretudo em uma so-
vos, tanto mais elevados quanto mais a candidata Dilma continuaria sua sobram às políticas sociais e aos di- ciedade conservadora e despolitizada como a nossa, em que a Pai-
ricos forem, cada vez mais isentos de política de produção de novos milio- reitos sociais e às exigências de con- deia audiovisual da era pós-moderna logra tamanho êxito. Sim, ca-
responsabilidades sociais. Nenhum nários e bilionários com recursos pú- dicionalidades que incidam sobre o ro leitor, aqui não se discute a reforma agrária, nem a unidade da
deles, nos seus programas publica- blicos (do sistema BNDES, do Sis- direito de propriedade – a função so- Pátria Grande; o Estado laico ainda é acossado pelas piores versões
dos, cogita estabelecer limites ou tema Nacional de Crédito Rural, do cial e ambiental da propriedade fun- do fundamentalismo religioso e o nevoeiro do atraso faz muito po-
condicionalidades à concentração do sistema Petrobras e do sistema Ele- diária, por exemplo, um lugar abso- lítico pipocar na hora de defender a lei contra a homofobia, o casa-
capital e do dinheiro nas mãos dos trobras), ainda bafejados por deso- lutamente periférico e residual. Saú- mento gay e a ampliação do direito ao aborto. Assim, não estranhe
detentores dessas riquezas. Ao con- nerações de contribuições sociais, de de, Educação, Previdência Social, As- se, na mesma semana em que o Estado de Israel assassina dezenas
trário, banqueiros, usineiros e em- que tanto se jacta. Nenhuma condi- sistência Social e Reforma Agrária de crianças palestinas, houver várias matérias com figuras “notá-
preiteiros comparecem como gran- cionalidade social e ambiental à ex- etc., enquanto direitos sociais one- veis” do mundo judaico na imprensa, reivindicando seu cínico “di-
des doadores de campanha de todos ploração excessiva de recursos natu- rosos ao Estado ou regulamentáveis reito de autodefesa”.
os candidatos principais e graciosa- rais, que é o caminho perseguido co- pela aplicação dos critérios constitu- O mais irritante, porém, é a forma infantilizada e idiota com que
mente ocupam um lugar de destaque mo eixo do crescimento econômico cionais têm lugar subalterno na eco- essa gente careta – e ainda mais imbecil – trata o público, em espe-
prévio nas estratégias programáticas. que persegue no seu governo, diga-se nomia política da sucessão. E as con- cial a legião de internautas que filtra o mundo pelas telas dos seus
A bem da verdade, é preciso dizer de passagem – com insucesso evi- dicionalidades do Estado democráti- artefatos eletrônicos. Veja-se o caso do Rio: na página virtual do
que os dois candidatos mais cotados dente para fazer o ‘bolo” crescer. co para a posse e propriedade de re- glorioso Pezão, herdeiro da quadrilha de Little Boy, Little Rose e
nas pesquisas eleitorais – Dilma e No segundo caso, Marina da Silva, cursos naturais, que são mandamen- Playboy (Rosinha, Garotinho e Cabral, para os íntimos), o eleitor
Marina – fazem e prometem o cami- que não estando no governo, apres- to constitucional, somem nos pro- devia escolher qual o seu doce preferido – pé-de-moleque, pudim
nho inverso do que se deveria espe- sa-se em anunciar a concessão de in- gramas dos candidatos, até mesmo ou goiabada com queijo? Atual governador de um estado em que
rar no jogo democrático: mais con- dependência ao Banco Central, re- no da ambientalista Marina. Isto tu- Saúde, Educação e Segurança são um desastre, o fanfarrão brinca
centração econômica e privilégios tirando das mãos de Aécio Neves o do, sob obsequioso silêncio da gran- nas ‘redes sociais’, enquanto disputa com o bispo Crivella (!) e com
para os do andar de cima, com o que bastão neoliberal, para uma mano- de mídia e dos três principais presi- Little Boy (!!) uma vaga no 2º turno...
condicionam o que fariam aos direi- bra que os mais experimentados ope- denciáveis. Sim, amigo, esta é a “eleição” para o governo do segundo estado
tos sociais com sentido claramente radores da política econômica, como O meu limite físico chega ao final mais importante do país... A democracia burguesa de Bruzundan-
residual. O terceiro candidato, Aécio o ex-ministro Delfin Neto, conside- neste artigo. Mas não a perplexida- ga continuará “azeda” ou será que ainda dá tempo de preparar ou-
Neves, seguidor assumido do recei- ram absolutamente desnecessária. de com os rumos que nos esperam, a tro vinho? Haverá melhor cepa na disputa entre Dona Dilma, a ir-
tuário neoliberal, critica a forma “es- O ordenamento jurídico do Ban- prevalecer o jogo político sucessório mã Marina e o playboy Aécio? Daqui a 15 dias, entre uvas e bana-
tatizante” de garantir os privilégios co Central brasileiro confere de fa- que ora está desenhado. nas, voltaremos a esta insípida versão da metáfora de Martí.
econômicos, isentos de responsabili- to e de direito uma irresponsabilida-
dade social, mas não o sentido dessa de absoluta ao Banco Central, segun- Guilherme Costa Delgado Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ.
estratégia, que seguiria com mais li- do os critérios da Lei de Responsabi- é doutor em Economia pela Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana,
berdade aos mercados. lidade Fiscal, para criação de dívida Unicamp e consultor da Comissão é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de
Dois exemplos concretos ilustram pública nova, inexistente por exem- Brasileira de Justiça e Paz. Lima Barreto – o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG),
Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),
Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper
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Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Marina Tavares Ferreira • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •
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de 11 a 17 de setembro de 2014 3

instantâneo Frei Betto

O voto ingênuo
CANDIDATO, VOCÁBULO que deriva de cândido, pu-
Pedro Nathan ro, íntegro. Quem dera a maioria correspondesse a es-
sa etimologia... A ingenuidade de muitos candidatos se
desfaz quando, convidado a concorrer às eleições, acre-
dita que, se eleito, não será “como os outros” (quantos
não disseram isso no passado; e hoje...) e prestará exce-
lente serviço à nação.
O que poucos candidatos desconfiam é que servem de
escada para a vitória eleitoral de políticos que eles criti-
cam. Para se eleger é preciso obter quociente eleitoral -
aqui reside o pulo do gato.
Cândidos eleitores imaginam que são empossados os
candidatos a deputados que recebem mais votos. Ledo
engano. João pode ser eleito ainda que receba menos
votos do que Maria. Basta o partido de João atingir o
quociente eleitoral.

O que poucos candidatos


desconfiam é que servem de
escada para a vitória eleitoral de
políticos que eles criticam

É muito difícil um único candidato obter, sozinho, vo-


tos suficientes para preencher o quociente eleitoral. Ca-
sos como o do palhaço Tiririca, em São Paulo, são raros.
A Justiça Eleitoral soma os votos de todos os candidatos
do mesmo partido, mais os votos dados apenas ao parti-
do, sem indicação de candidato.
Se você pensa em votar em tal candidato, fique de
olho. Pode ser que ele sirva de degrau para a ascensão
de candidatos cuja prática política você condena, como
a falta de ética. Enquanto não houver reforma política,
Beto Almeida o sistema eleitoral funciona assim: muitos novos candi-
datos reelegem os mesmos políticos de sempre!
Se você é, como eu, apenas eleitor, saiba que escolher

Clube Militar e o desarmamento o partido é mais importante que escolher o candidato.


Votar de olho somente no candidato pode resultar, ca-
so ele não seja eleito, na eleição de outro candidato do
partido.
NA FOTO DA PRIMEIRA página do Correio Brazilien- guete movido a etanol) e , obviamente, a exploração Como alerta o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira,
se de 8 de setembro, há uma metralhadora sobre um tan- do Pré-Sal, sem falar, evidentemente, de seguir a recu- “mais frequente, porém, é a derrota e a frustração de
que, na Parada Militar, apontada diretamente para a ca- peração da indústria naval. Nos últimos 12 anos, está pessoas bem-intencionadas, mas desinformadas. Ao se
beça de Dilma Roussef. Certamente, uma exigência da di- sendo implementada cooperação militar com a Rússia apresentarem como candidatas, elas mobilizam fami-
reita midiática, expressando, quem sabe, um desejo de (desfilaram na Esplanada, em Brasília, carros de com- liares, amigos e vizinhos para a campanha. Terminadas
ideias, consciência e políticas. Desejo não realizado quan- bates russos de última geração), e também com o exér- as eleições, percebem que sua votação só serviu para
do tiveram a presidenta no pau-de-arara. cito do Vientã, para técnicas em guerra de selva, por ra- engordar o quociente eleitoral do partido ou da coliga-
Similar a este desejo de demolir a Era Lula-Dilma é no- zões óbvias. ção... Descobrem, tarde demais, que eram apenas ‘can-
ta oficial do Clube Militar apoiando Marina Silva. A ago- As diretrizes programáticas de Marina colocam e ris- didatos alavancas’”.
ra candidata verde-oliva tem no seu programa diretrizes co tudo isto. O império sempre sabotou o desenvolvi-
apontando para a desativação da exploração petroleira mento tecnológico brasileiro. Quer impedir que o Bra-
Pré-Sal, e para o Programa Nuclear brasileiro, ambos, co-
mo se sabe, exigências imperiais, que aqui aparecem dis-
sil entre no fechado clube das potências espaciais. Che-
gou a sequestrar turbinas atômicas brasileiras na Era
Se você é, como eu, apenas
farçadas de ambientalismo.
Para ter verdadeira soberania sobre o petróleo e a
Vargas. Certamente, desejam romper todos os acordos
de cooperação militar e tecnológica entre Brasil, Chi-
eleitor, saiba que escolher o
Amazônia, o Brasil precisa continuar desenvolvendo
seu Programa Nuclear (incluindo o submarino nucle-
na,Vietnã, Índia, Unasul. O desejo é o desamamento
unilateral brasileiro. Por isso, a candidata verde-oliva
partido é mais importante que
ar), o Programa Espacial (que acaba com sucesso fo- tem apoio do Clube Militar. escolher o candidato
Vito Giannotti
Convém ter presente que o nosso voto vai, primeiro,

Eleição e mídia
para o partido e, depois, para o candidato.
Hoje, devido aos vícios de nossa estrutura política,
muitos partidos não seguem os programas que adotam,
e raros candidatos conhecem as propostas contidas nos
documentos dos partidos que lhes dão apoio. E nem to-
dos candidatos são tão sinceros como um de Goiás que,
NA SEMANA PASSADA, as três maiores revistas do país melhoras aos de baixo. Derrotar quem diminuiu o de- candidato a deputado estadual, declarou sem o menor
saíram com a mesma capa: uma enorme foto da Mari- semprego e aumentou o salário mínimo. Derrotar quem constrangimento: “Quero mesmo é melhorar a minha
na e quase um hino à nova candidata. Difícil ver as três quer mais médicos para todos os municípios e garantir vida pessoal.”
capas e não se perguntar se isso foi combinado. O pior é alguns direitos às trabalhadoras domésticas.
que não foi combinado. Foi o resultado lógico da saída Como conseguir fazer os trabalhadores esquecerem
que toda a “grande mídia”, a mídia patronal, empresarial
estava procurando. Como esta mídia está sempre do la-
estas melhoras concretas na vida deles e votar em qual-
quer coisa tipo Marina? Como fazer esquecer o bolso e
Convém ter presente que o
do dos empresários, dos patrões, e não da sociedade co-
mo costumam alardear, e estes senhores estavam à pro-
seguir o que nos os jornalões e as revistas querem nos
vender?
nosso voto vai, primeiro, para
cura de uma alternativa à candidatura da Dilma, estava
aí a solução para derrotar uma tradição de 12 anos de go-
Há anos a mídia faz campanha de desmoralização de
política e do próprio governo. E quem poderia mostrar
o partido e, depois, para o
verno do PT, mesmo que usem para isso alguém que te- o outro lado da moeda, não mostra. A comunicação de candidato
nha suas origens no mesmo PT. quem está do lado dos trabalhadores é fraquíssima, qua-
Parece até engraçado, mas não é. Banqueiros, donos se não existe. Cadê jornais, rádios e televisões que mos-
do agronegócio, exportadores, empresários de minera- trem outra coisa que a Veja, Época e Istoé? Outra coi-
doras e de grandes obras privatizada ganharam muito sa que O Globo, a Folha e o Estadão? Cadê um único São muitos os candidatos que, na verdade, não se im-
dinheiro nos governos Lula e Dilma. Do ponto de vista jornal DIÁRIO de esquerda? Enquanto isso, a Globo, a portam, uma vez eleitos, em representar os eleitores.
econômico, nada perderam. Mas simbolicamente, per- Bandeirantes, a Record e todas elas recebem milhões de Tornam-se representantes das empresas que os elege-
deram. E nunca aceitaram isso. Nunca aceitaram um propaganda oficial do Governo para fazer sua política. ram canalizando recursos financeiros à campanha. Diz
governo oriundo das classes populares, dos pobres, de Nós da esquerda, sem nossa comunicação diária por o ditado que, no Brasil, quem vota é a pessoa física, mas
quem mora na periferia. É um ódio de classe. todos os meios, rádio, TV, jornais e revistas ficaremos quem elege é a pessoa jurídica...
Fariam de tudo para ter um presidente da turma de- sempre na beira da estrada choramingando que “eles, os Portanto, vote sem ingenuidade. Vote consciente!
les. Apostaram no Aécio, mas não ficaram satisfeitos. Aí outros” enganam o povo, eles mentem. E nós? Ficamos
apareceu a Marina que topa qualquer parada. Logo subi- esperando a cegonha trazer o nené, ou Papai Noel trazer Frei Betto é escritor, autor de A mosca azul – reflexão sobre
ram na sela da Marina para derrotar quem trouxe várias seu presente. o poder (Rocco), entre outros livros.

fatos em foco
da Redação
FUP e movimentos sociais farão em Audiência Pública na Assembleia Le- na hidrelétrica de Belo Monte. O projeto
ato dia 15 em defesa do Pré-Sal gislativa, dia 4. A solenidade lembrou os chegou a receber licença prévia da Se-
Os petroleiros, junto com as centrais 24 anos passados desde a exumação de cretaria de Meio Ambiente do Estado do
sindicais, movimentos sociais e estudantis, 1.049 ossadas no cemitério. A decisão é Pará (Sema) e a licença foi suspensa por
definiram a realização de um grande ato resultado de pressão política feita durante ordem judicial por ter ignorado impactos
em defesa do Pré-Sal, da Petrobras e do seguidos anos por familiares de mortos sobre indígenas. Agora, o MPF quer que o
Brasil, no próximo dia 15, às 10h, na Cine- e desaparecidos políticos durante a dita- licenciamento seja feito na esfera federal,
lândia, no Rio de Janeiro, com a presença dura civil-militar (1964-1985) no Brasil. pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambien-
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Depositados no Ossário Geral do Cemité- te (Ibama).
O objetivo do ato é alertar a sociedade para rio Araçá desde 2002, os restos mortais
os riscos que sofre o projeto de desenvol- encontrados na vala clandestina serão Grito dos excluídos cobra
vimento em curso no país, em função dos analisados por especialistas em antropolo- convocação de Constituinte
ataques contra o Pré-Sal e a Petrobras. gia forense do Brasil e do exterior. O Grito dos Excluídos completou 20
anos e o tema esse ano foi “Ocupar Ruas
Identificação das ossadas da vala MPF quer transferir licenciamento e Praças por Liberdades e Direitos”. As
clandestina de Perus será retomada da Belo Sun para o Ibama manifestações, que ocorreram em todo
Os trabalhos de análise das ossadas da O Ministério Público Federal entrou o país durante a Semana da Pátria e o
vala clandestina do cemitério de Perus, com ação na Justiça Federal em Altamira feriado de 7 de Setembro, denunciaram a
na Zona Norte de São Paulo, serão reto- (PA) para afirmar a competência federal repressão contra protestos e reforçaram a
mados. O anúncio foi feito pela ministra no licenciamento do projeto Belo Sun, campanha do Plebiscito Popular por uma
Ideli Salvatti, da Secretaria de Direitos de extração de ouro na Volta Grande do Constituinte Exclusiva e Soberana do Sis-
Humanos da Presidência da República, Xingu, mesmo local de construção da usi- tema Político.
6 de 11 a 17 de setembro de 2014 brasil

Mal crônico da saúde, falta de


recursos exige tratamento intensivo Antônio Cruz/ABr
SAÚDE Falta de uma das principais fontes de informação
do setor, morto em julho.
comprometimento da Entre tantas fórmulas para demons-
União com aumento de trar o constante desfinanciamento fede-
ral, como costumava dizer nas palestras
investimentos, incentivos a que ministrou até o fim da vida, mostra-
va que o gasto federal per capita caiu en-
planos privados que não dão tre 1997 e 2008, e só aumentou depois,
conta do atendimento e até diante da ameaça da gripe suína. Em
1997 eram R$ 294 per capita. Em 2003,
preconceito afetam o maior R$ 234, e em 2008, R$ 289.
Outra de suas fórmulas demonstra que
sistema de saúde do mundo entre 1995 e 2011 o gasto percentual caiu
em relação à receita da União. Em 1995 o
Ministério da Saúde teve disponível para
suas atividades 11,72% da receita corren-
Cida de Oliveira e te bruta. Em 2011, esse percentual caiu
Sarah Fernandes para 7,3%.
de São Paulo (SP)
“Bolsa banqueiro”
ESTRATÉGIAS como Samu, cirurgias Apesar da melhora, o baixo financia-
avançadas, transplantes e diversos ou- mento se mantém como um problema
tros tratamentos caros e o Programa que, segundo Noronha, se deve à eco-
Nacional de Imunizações (PNI) – refe- nomia que o governo federal precisa fa-
rência no mundo todo. Por trás de tu- zer para pagar o que ele chama de “bolsa
do isso, há um complexo sistema que re- banqueiro”, ou seja, os encargos da dívi-
gula, fiscaliza, controla e executa ações da. “Em 2013 o governo federal investiu
de saúde em todo o país: o SUS, que só Gastos do Brasil com saúde ainda são menores que a média mundial, mas valor quadriplicou entre 2000 e 2010 no setor 6% de seu orçamento, enquan-
em 2012 realizou 3,9 bilhões de procedi- to 10% foi para pagar encargos da dívida
mentos em todo o país, sendo 11 milhões mentos específicos, como hemodiálise E, de acordo com a Organização Mun- pública e 8% para sua amortização.”
de internações, 3,3 milhões de cirurgias, e quimioterapia. dial de Saúde (OMS), que comparou nú- Indicadores do subfinanciamento não
2 milhões em obstetrícia e 6 milhões de A qualidade do serviço também é uma meros de 2010, os gastos públicos do faltam. Entre os clássicos estão os do es-
internações clínicas. Exames foram 887 barreira a ser superada: para 70% dos Brasil estavam abaixo da média mundial. pecialista e consultor em financiamen-
milhões, incluindo os bioquímicos e os que buscaram o SUS a avaliação do aten- Conforme dados apresentados pelo or- to da saúde, o médico Gilson Carvalho,
de imagem. Ações de promoção e pre- dimento varia entre péssima e regular, ganismo em maio de 2013, em Genebra, uma das principais fontes de informação
venção, 583 milhões. em especial os atendimentos de urgên- durante a Assembleia Mundial de Saúde, do setor, morto em julho.
Pelo princípio constitucional, esse sis- cias e emergências e nos prontos-socor- enquanto o gasto anual mundial per ca- Entre tantas fórmulas para demons-
tema deve garantir a todos os brasileiros, ros e nas Unidades de Pronto Atendi- pita no setor ficava em 571 dólares, o Bra- trar o constante desfinanciamento fede-
sem quaisquer formas de distinção, o mento (UPAs). sil somou 466 dólares. Apesar de baixo, ral, como costumava dizer nas palestras
acesso a uma cobertura integral. Ao com- Entre os 2.418 entrevistados pelo Da- o valor investido quadruplicou nos últi- que ministrou até o fim da vida, mostra-
pletar 26 anos, porém, o SUS ainda não tafolha, das cinco regiões do país, pelo mos dez anos. Em 2000, o governo des- va que o gasto federal per capita caiu en-
conseguiu articular universalidade, inte- menos 30% aguardam ou têm familiares tinava apenas 170 dólares à saúde de ca- tre 1997 e 2008, e só aumentou depois,
gralidade e equidade conforme foi cria- aguardando marcação de consulta ou re- da cidadão. diante da ameaça da gripe suína. Em
do, com a Constituição de 1988. alização de procedimento no SUS. Ape- 1997 eram R$ 294 per capita. Em 2003,
É bem verdade que o atendimento nas 24% dos entrevistados conseguiram R$ 234, e em 2008, R$ 289.
na rede pública, legalmente garantido realizar consultas, exames, internações A qualidade do serviço também é Outra de suas fórmulas demonstra que
a qualquer pessoa, é oferecido sem que ou cirurgias em menos de um mês. Do entre 1995 e 2011 o gasto percentual caiu
se tenha de pagar. Porém, nem todos os total, 47% esperam até seis meses e 29% uma barreira a ser superada: para em relação à receita da União. Em 1995,
brasileiros têm serviço de saúde no mu- aguardam há mais de seis meses, sendo o Ministério da Saúde teve disponível pa-
nicípio em que moram; nem todas as que pelo menos metade desse grupo está 70% dos que buscaram o SUS a ra suas atividades 11,72% da receita cor-
unidades têm profissionais; e consultas, na fila há mais de um ano. avaliação do atendimento varia rente bruta. Em 2011, esse percentual
principalmente com especialistas, assim caiu para 7,3%.
como exames, cirurgias e demais pro- Diminuição entre péssima e regular No começo de 2013, a professora do
cedimentos podem demorar meses pa- Sem uma lei que o obrigue a investir Instituto de Saúde Coletiva da Universi-
ra ocorrer. determinado percentual, o governo tem dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Apesar do sucesso do SUS em muitas diminuído sua participação no financia- Ligia Bahia e o professor do Departa-
áreas, o atendimento geralmente – e não mento, conforme aponta o pesquisador Em 2010, ao todo, 15,1% do orçamen- mento de Medicina Preventiva da Facul-
em todos os casos, diga-se de passagem – da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e to público do mundo ia para a saúde. No dade de Medicina da USP Mario Scheffer
está distante do ideal em termos de qua- conselheiro do Centro Brasileiro de Estu- Brasil eram 10,7%, contra uma média publicaram na Folha de S.Paulo um ar-
lidade e resolutividade – a capacidade de dos de Saúde (Cebes), José Noronha. “A dos países emergentes de 11,7%. Há dez tigo em que criticavam duramente uma
resolver o problema de saúde. redução é sistemática. Passou de 72,70% anos o governo brasileiro investia apenas proposta que estaria sendo estudada pe-
O subfinanciamento está na raiz de ta- da receita bruta, em 1990, para 45% em 4,7% dos recursos públicos no setor. lo governo, de mais subsídios à saúde
manho descontentamento. Consenso en- 2011”, disse. Apesar da melhora, o baixo financia- privada. Nesse caso, para novos planos
tre especialistas, profissionais e ativistas, Dados mais recentes do Conselho Fe- mento se mantém como um problema populares, com cobertura pífia.
o diagnóstico da saúde aponta para di- deral de Medicina (CFM), em parceria que, segundo Noronha, se deve à eco- Além disso, reforçaram críticas à es-
versos tratamentos, a maioria deles ba- com a ONG Contas Abertas, coletados nomia que o governo federal precisa fa- treita ligação que coloca na direção da
seada no mesmo remédio: mais recur- em 2013, reiteram o subfinanciamento: zer para pagar o que ele chama de “bolsa Agência Nacional de Saúde Suplementar
sos. Ou, na sua fórmula genérica, mais União, estados e municípios aplicaram banqueiro”, ou seja, os encargos da dívi- (ANS) representantes de empresas do se-
dinheiro no caixa do SUS. R$ 220,9 bilhões no SUS, o que totalizou da. “Em 2013 o governo federal investiu tor que deveriam regular – e não repre-
Nesses 26 anos, o maior sistema públi- um gasto de R$ 1.098,75 por brasileiro, no setor 6% de seu orçamento, enquan- sentar os interesses. A repercussão foi tal
co de saúde do mundo, que atende a 75% valor considerado baixo pela entidade. to 10% foi para pagar encargos da dívida que o então ministro da Saúde, Alexan-
da população brasileira, é negligenciado. Os problemas de caixa são notórios. pública e 8% para sua amortização.” dre Padilha, foi a público negar o caso.
Para que os municípios possam manter Tanto que, para 60% dos entrevistados Indicadores do subfinanciamento não O que acabou vazando na época é que
seus postos de saúde, equipes de saúde pelo Datafolha, o SUS não tem recursos faltam. Entre os clássicos estão os do es- a presidenta Dilma Rousseff teria recebi-
da família e hospitais, a lei manda inves- para atender a todos os usuários de for- pecialista e consultor em financiamen- do, entre o final de 2012 e o começo de
tir pelo menos 15% de suas receitas. Os ma igualitária e com qualidade. to da saúde, o médico Gilson Carvalho, 2013, representantes de seguradoras e
estados, no mínimo 12%. administradoras de planos de saúde.
A legislação, porém, não determina o O “pacote” debatido incluiria medi-
percentual que a União, ente que mais das de estímulo financeiro ao setor, co-
arrecada, deve aplicar para custear des- mo redução de impostos, linha de finan-
pesas com pessoal, com hospitais uni- ciamento para infraestrutura hospitalar,
versitários, programas do Ministério da solução para dívida das Santas Casas, em
Saúde e ainda redistribuir aos governa- troca de redução de preços para facilitar
dores e prefeitos para ajudar a pagar a acesso de pessoas aos planos privados e a
conta do Samu, comprar medicamentos, melhora no atendimento.
construir, reformar e equipar postos de De acordo com a pesquisa do Datafo-
saúde, por exemplo. lha para a Associação Paulista de Medici-
Determina apenas que tem de ser o va- na, divulgada dia 19, 22% dos entrevista-
lor aplicado no ano anterior acrescido dos que aguardam atendimento na saúde
da correção do Produto Interno Bruto pública possuem convênio médico. Em
(PIB). Essa obrigatoriedade foi definida geral, são pessoas que pagam pela saúde
com a aprovação da regulamentação da privada, mas acabam recorrendo ao SUS
Emenda Constitucional 29. devido a negativas de atendimento ou
Em janeiro de 2012, a presidenta Dil- serviços de qualidade ruim. Nestes casos
ma Rousseff vetou dispositivo da Lei as operadoras de planos de saúde devem
Complementar 141, de 2012, que obri- ressarcir o governo federal, repassando
gava a União a elevar os gastos em caso a verba para o Fundo Nacional de Saú-
do ajuste do PIB. A regulamentação da de (FNS) e investindo em ações e progra-
emenda, com definição de percentual pa- mas estratégicos.
ra a União, aliás, era a esperança dos mo- Mesmo ganhando tanto, o setor priva-
vimentos em defesa do SUS, que acaba- do ainda devolve para o SUS o atendi-
ram frustrados. mento complexo, caro, que deveria co-
brir e não cobre, impondo duplo prejuí-
Importância zo ao sistema público.
Para a maioria dos brasileiros (87%), a Só em São Paulo, um em cada três
saúde é a área de maior importância na usuários de planos de saúde teve de re-
gestão pública e deve ser a grande prio- correr a atendimento público ou a profis-
ridade do governo federal (57%), como sionais particulares devido à demora, a
aponta uma pesquisa de opinião sobre o problemas ou à negativa de atendimento
tema realizada pelo Instituto Datafolha, da rede credenciada entre 2012 e 2013,
a pedido do Conselho Federal de Medi- de acordo com um levantamento da As-
cina e da Associação Paulista de Medi- sociação Paulista de Medicina, divulgada
cina, divulgada no último dia 19. Apesar em outubro passado.
da prioridade, os serviços são mal avalia- “São pessoas que pagaram e deixaram
dos: para 93% dos eleitores as saúdes pú- de usar serviço e foram ao SUS. Os pla-
blica e privada são péssimas, ruins ou re- nos lucraram indevidamente e o ressar-
gulares. O SUS, em particular, deixou a cimento deles à saúde pública é muito
desejar para 87% dos entrevistados. demorado. Com certeza, o poder públi-
O ponto mais crítico é o tempo de es- co não está reavendo tudo o que gastou
pera para atendimento. Mais da me- para atender a usuários do sistema pri-
tade dos entrevistados relatou ser “di- vado”, afirmou na época o presidente da
fícil” ou “muito difícil” realizar cirur- Associação Paulista de Medicina, Floris-
gias, atendimento domiciliar e procedi- val Meilão. (RBA)
brasil de 11 a 17 de setembro de 2014 7

Dinheiro de volta
SAÚDE O valor já supera do Brasil (OAB), centrais sindicais e di-
versos outros setores reuniram mais
o que foi pago pelas de 2 milhões de assinaturas. Conheci-
operadoras privadas ao do como Saúde + 10, o projeto entregue
em agosto do ano passado à presidên-
longo de todo o ano de cia da Câmara permanece parado.
A julgar por um levantamento sobre
2013: R$ 183,2 milhões as propostas dos candidatos à presidên-
cia da República, publicado recentemen-
te pela professora da UFRJ e por Mario
Scheffer, a saúde continuará relegada
Cida de Oliveira e aos últimos planos, apesar de ser a prin-
Sarah Fernandes cipal preocupação do eleitorado.
de São Paulo (SP) De acordo com os pesquisadores, o
SUS é defendido em todos os programas
ENTRE JANEIRO e julho deste ano, o registrados no Tribunal Superior Eleito-
Ministério da Saúde foi ressarcido pelos ral. No entanto, esse consenso é vazio, já
planos de saúde em R$ 184 milhões. O que todos os políticos, sem exceção, são
valor já supera o que foi pago pelas ope- incoerentes na maneira de discorrerem
radoras privadas ao longo de todo ano de sobre o tema e nada definem sobre como
2013: R$ 183,2 milhões, segundo dados dar sustentabilidade financeira ao siste-
apresentados pelo ministro da Saúde, ma público de saúde.
Arthur Chioro, em 1º de setembro. Além de deixarem de tratar o SUS co-
“É um recurso importante e que pre- mo um projeto político vivo, exigente de
cisa ser priorizado para a população que questionamentos, articulações e inova-
depende do SUS. Esse dinheiro vai dire- ções técnicas e institucionais, não pro-
tamente para o FNS, compondo o orça- põem compromisso para enfrentar as
mento do Ministério da Saúde e os re- necessidades e as demandas de saú-
cursos de que dispomos para, junto com de. Os candidatos também são evasivos
estados e municípios, atender a popula- quanto ao financiamento, que é men-
ção em diversas áreas e ações. Para se cionado apenas nos programas do tu-
ter uma noção do que estamos falando, cano Aécio Neves. Eduardo Campos,
esse volume de recursos que a ANS ar- morto em agosto, também menciona-
recadou nos primeiros sete meses des- va. Entretanto, ninguém assume o com-
te ano é capaz de garantir a compra de promisso de elevar os investimentos no
600 ambulâncias do tipo UTI do Samu, setor e de reduzir os benefícios à saú-
ou construir 65 Upas completas ou 350 de privada.
Unidades Básicas de Saúde”, ressaltou A vinculação dos 10% da receita bruta,
o ministro. mote do Saúde + 10, aparece apenas nos
Caso as operadoras não paguem, são planos de Aécio Neves e de Marina Sil-
encaminhadas para a inscrição em dí- va. O de Dilma Rousseff não diz nada a
vida ativa da ANS e para o Cadastro In- respeito. E nenhum dos programas, en-
formativo de Créditos (Cadin), do Ban- tretanto, aponta para propostas de novas
co Central. Até julho deste ano os valo- fontes de recursos. O tucano Aécio, po-
res inscritos na dívida de planos de saú- rém, sinaliza a “implementação do siste-
de já tinham atingido R$ 104,43 mi- contrário deles, que adiaram a decisão cial abrangente, com mais recursos”, ma de Parcerias Público-Privadas Sociais
lhões. Ao todo, 462 operadoras estão de ampliar os investimentos federais, defende. “Mas não vejo nessa opção – criando meios para que o Estado e o se-
devendo para o Ministério da Saúde. O ela prometeu fazer isso e não fez. Foi de- uma demonstração de más intenções, e tor privado possam financiar projetos e
valor total em cobrança judicial chega a cepcionante”, diz. sim de uma confusão que se faz com po- programas sociais e ambientais de inte-
R$ 579,24 milhões. De acordo com ela, o governo de Dil- lítica social e assistencial.” resse público.”
ma trabalhou sobre programas isola- Na luta contínua por um percentu- E a candidata do PSB se limita a afir-
Promessas de campanha dos, quando a ampliação dos investi- al para a União, os movimentos saíram mar que a injeção orçamentária virá do
Na opinião de Ligia Bahia, da UFRJ, mentos no sistema como um todo per- em busca de assinaturas para um pro- crescimento econômico, dos ganhos de
a explicação do subfinanciamento do mitiria maior alcance de todas as políti- jeto de lei de iniciativa popular para de- eficiência e de uma decisão política de
SUS é a visão equivocada de ter sistema cas. “Levar médicos à população é im- terminar que a União passe a investir dar prioridade à saúde no orçamen-
público de saúde pobre para os pobres. portante, assim como as políticas de no setor 10% de suas receitas brutas. A to geral da União. Forte indício de que
“Assim como seus antecessores, Dilma transferência de renda. Mas isso tudo Confederação Nacional dos Bispos dos o SUS, para sobreviver, precisa de UTI
não priorizou a saúde pública. Mas, ao deveria estar inserido numa política so- Brasil (CNBB), Ordem dos Advogados urgente. (RBA)

HOMENAGEM

Chico de Assis, uma vida dedicada ao


desenvolvimento da cultura brasileira
Reprodução
OPINIÃO Um bom dando o título para Xandú Quaresma –
com grande sucesso, ficando muitos me-
momento para se escrever ses em cartaz com casa cheia.
um pouco sobre esse É convidado, em 1989, pelo diretor e
autor Fauzi Arap, para montar um curso
homem que participou de dramaturgia no Teatro de Arena, no
Projeto Tarô dos Ventos. Terminado o
e participa ativamente projeto, Chico de Assis conserva o semi-
nário, então denominado Projeto Semda
da vida cultural e política – Seminário de Dramaturgia do Arena.
desse país há 60 anos Desde então, com seu método formou
inúmeros novos dramaturgos.
Este histórico é parcial; Chico tem
dezenas de peças de teatro, escritas em
Márcio Boaro diversos estilos e formas. Sua atuação
é ampla.
NO DIA 15 de setembro, o dramaturgo e Conheci Chico de Assis em 2000,
diretor Chico de Assis terá lançada gran- O dramaturgo e diretor Chico de Assis quando ele assistiu a uma montagem
de parte de sua obra dramatúrgica em li- nossa (da Cia. Ocamorana). A partir de
vros editados pela Funarte, no Teatro de Em 1959, atua em Chapetuba Futebol José Renato para o Teatro Nacional de então nos aproximamos dele e logo deci-
Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo. Clube, de Oduvaldo Vianna Filho e Gente Comédia (TNC); e Farsa com Canga- dimos montar uma peça de sua autoria.
Portanto, é um bom momento para se es- como a Gente, de Roberto Freire. Neste ceiro, Truco e Padre, que é montado pe- Ficamos muito felizes quando ele aceitou
crever um pouco sobre esse homem que período é um dos fundadores do 1º Semi- lo Núcleo 2 do Arena, em 1967, fechan- a direção.
participou e participa ativamente da vida nário de Dramaturgia do Teatro de Are- do uma trilogia sobre a literatura popular Montamos uma peça sua escrita em
cultural e política desse país há 60 anos. na, que leva à cena textos escritos pelos de cordel do Brasil. Nesta trilogia, Chico 1966, que havia sido censurada pouco
Apesar de ter trabalhado com destaque membros da companhia, num expressi- une a tradição popular brasileira com o antes de sua estreia e era, portanto, iné-
em diversas atividades (rádio, TV e cine- vo movimento de nacionalizar o palco, teatro épico de Brecht, um trabalho de dita até aquele momento: As Aventuras
ma) acredito que a melhor definição para difundir os textos e politizar a discussão grande relevância que ainda precisa de- e Desventuras de Maria Malazartes du-
Chico de Assis é que ele é um homem de da realidade nacional. Surge no seminá- batido com mais profundidade. rante a construção da Grande Pirâmide.
teatro (um termo que há muito não ou- rio uma grande geração de autores que, Volta a trabalhar como ator em Tom Por meio de uma fabula épica (a constru-
ço, mas que cabe resgatar para falar de- nos anos seguintes, tiveram destaque em Paine, de Paul Foster, dirigido por Ade- ção da pirâmide), Chico descreve como o
le). Sob a ribalta, exerceu as funções de teatro e na teledramaturgia. mar Guerra, em 1970. No mesmo ano, capital cria próteses para se desenvolver.
ator, compositor, diretor e dramaturgo Em 1960, Chico e Vianinha, que eram sua peça O Auto do Burrinho de Belém é A peça serve ainda como uma alegoria
com brilhantismo. É um dos mais desta- militantes marxistas, resolveram apro- interditada pela censura. Escreve Missa sobre a construção de Brasília, perma-
cados de um a geração brilhante e conti- fundar o debate com um texto que trou- Leiga, peça polêmica dirigida por Ade- necendo atual ainda hoje, 48 anos após
nua a ser hoje um autor produtivo, além xesse o debate ideológico para a cena de mar Guerra, com produção de Ruth Es- ter sido escrita. Fizemos duas tempora-
de um grande mestre de dramaturgia. forma mais direta. Assim, durante a tem- cobar, que é proibida de ser apresentada das da peça no Teatro de Arena Eugênio
Nascido Francisco de Assis Pereira, co- porada das peças do Teatro de Arena no na Igreja da Consolação. Acaba por apre- Kusnet. Tive o prazer de fazer assistência
meçou sua carreira como ator de rádio Rio de Janeiro, eles montam A Mais-Va- sentar-se numa fábrica abandonada, em de direção para ele, além de ter participa-
em 1953 (aos 19 anos) e depois de dois lia Vai Acabar, seu Edgar (texto de Via- 1972, fazendo enorme sucesso e viajando do por anos do Semda.
anos foi para TV, com a intenção de co- ninha e direção de Chico de Assis, com para Portugal e África. Chico escreveu para a companhia um
nhecer esse novo meio de comunicação, música de Carlos Lyra). A peça, de for- Durante os anos de 1970, escreveu vá- texto infantil que ainda é inédito, mas
tornando-se cameraman. Logo passou a te caráter didático, foi encenada no Tea- rias novelas para Globo e para Tupi, fa- que está nos nossos planos: Quebra-ven-
trabalhar como ator e assistente de dire- tro da Faculdade Nacional de Arquitetu- zendo parte do grupo de militantes de es- to e Dorminhoco ou o Triunfo da Ami-
ção; na Tupi teve sua primeira peça mon- ra, no Rio. Os debates ocorridos entre os querda que para sobreviver à ditadura zade.
tada, uma adaptação de Machado de As- artistas e o público deu origem ao Centro foram trabalhar na TV (juntamente com Chico de Assis tem uma vida dedica-
sis: Os Óculos de Pedro Antão. Na mes- Popular de Cultura (CPC), grupo de mili- Dias Gomes, Vianna Filho e outros). Pa- da ao desenvolvimento da cultura brasi-
ma Tupi, escreve seu primeiro texto ori- tância política e cultural que teve grande ra os que cresceram nos anos de 1970, é leira. Seu companheiro de ofício, Brecht,
ginal: Na Beira da Várzea. importância nacional nos anos que ante- curioso saber que Chico de Assis era um dizia que “os homens que lutam por toda
Em 1958 entrou para o Teatro de Are- cederam a ditadura. dos responsáveis pela edição brasileira vida são imprescindíveis” – tenho certe-
na, atuando em A Mulher do Outro, de Em 1961 surge O Testamento do Can- de Vila Sésamo, primeiro na TV Cultura za que ele admiraria o trabalho de Chi-
Sydney Howard, com direção de Augus- gaceiro, de sua autoria, dirigida por Bo- depois na Globo. Em 1983, Antônio Fa- co de Assis.
to Boal, e Eles Não Usam Black-Tie, de al, tendo Flávio Império como cenógrafo gundes, que havia participado da primei-
Gianfrancesco Guarnieri, dirigido por e figurinista. Em 1963, escreve A Aven- ra montagem de Farsa com Cangaceiro, Márcio Boaro é diretor da Companhia
José Renato, em 1958. tura de Ripió Lacraia, que é dirigida por Truco e Padre, remonta o texto – mu- Ocamorana de Teatro.
8 de 11 a 17 de setembro de 2014 brasil

“EUA apostam em Marina”


ENTREVISTA
Para Samuel Pinheiro
Guimarães, embaixador
e ex-secretário-geral do
Itamaraty os estrategistas
dos EUA estão de acordo
com as diretrizes da
política externa defendida
por Marina Silva

Darío Pignotti
de Brasília (DF)

“OS ESTRATEGISTAS dos Estados Uni-


dos seguramente estão de acordo com as
diretrizes da política externa defendida
pela candidata Marina Silva. Se ela for
eleita, será a vitória de um modelo diplo-
mático similar ao que tivemos nos anos
1990”, declarou à Carta Maior o embai-
xador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-
-secretário-geral do Itamaraty no gover-
no de Luiz Inácio Lula da Silva.
Junto do ex-chanceler Celso Amorim
e do assessor Marco Aurélio Garcia, Pi-
nheiro Guimarães integrou a troika res-
ponsável por planejar de diplomacia com
sotaque nas relações Sul-Sul aplicada en-
tre 2003 e 2010. Premissas que “tiveram
continuidade a partir de 2011 durante o
mandato da presidenta Dilma Rousseff,
que adotou medidas muito corretas so- não conseguiram derrubar, é uma cláu- o pacto UE-Mercosul, no outro dia, Wa- Dilma será reeleita. Acredito que, ao lon-
bre o Mercosul e contra a Inteligência sula que vem desde o Tratado de Assun- shington vai querer igualdade de condi- go destes dois meses, as ideias da ex-se-
norte-americana no escândalo da NSA, ção (assinado em 1991, na formação do ções comerciais que europeus conquista- nadora vão ficar em evidência.
e resistiu às pressões para a compra de Mercosul). ram, exigindo de nós um acordo de livre
aviões de guerra norte-americanos”, afir- comércio. Os Estados Unidos nunca se Neste caso, quais seriam os
mou Pinheiro Guimarães. E depois de terminada esta esqueceram do espírito da Área de Livre objetivos de sua política externa
No programa de governo apresenta- limitação, o que aconteceria?  Comércio das Américas (ALCA). em um segundo mandato?
do uma semana atrás por Marina, foram Uma vez eliminada essa cláusula, o ca- Em primeiro lugar, deve-se mencionar
formuladas propostas em alguns casos minho estará aberto para a assinatura de que sua política externa não teve diferen-
antagônicas às dos governos de Dilma e acordos do Brasil com a União Europeia, “A candidata parece estar ças coma de Lula, apesar de Dilma não
Lula, além de formular críticas enreda- sem a participação dos outros quatro in- ter o mesmo estilo de fazer política exter-
das ao que define como uma diplomacia tegrantes do Mercosul. Mas se a cláusu- muito aberta a essas ideias. na. Trabalho para reforçar os BRICS, im-
“ideologizada” e “partidarizada” durante la continuar em pé, seria igualmente pe- pulsionou o banco dos BRICS, foi firme a
as três gestões petistas. rigoso um pacto entre todo o Mercosul e
Mas o interessante é que ela favor da entrada da Venezuela no Merco-
a União Europeia. E essa negociação, que não está sozinha” sul, apesar de os Estados Unidos terem
Embaixador, estamos diante já se iniciou mas avança lentamente, pro- manifestado abertamente seu interes-
do risco de serem restaurados vavelmente será acelerada durante o go- se em substituir o governo venezuelano,
princípios diplomáticos que verno de Marina. postura que encontra eco na grande im-
dominaram a segunda metade A tese da ALCA pode ser recriada prensa brasileira, no FHC e nos dirigen-
dos anos de 1990? Quais consequências um acordo com outro nome. É possível que tes tucanos
Samuel Pinheiro Guimarães – Con- com a UE traria? a Marina, FHC e a inteligência No segundo mandato, a presidenta de-
sidero que a candidata Marina Silva en- Muitas, uma delas é a redução consi- neoliberal reciclem o projeto? veria ter como objetivo reduzir a vulne-
carne a anulação do progresso conquis- derável das tarifas [de importações] in- Tudo me leva a pensar que o projeto rabilidade externa do país, a dependên-
tado nestes 12 anos. Ela e os setores que dustriais europeias afetando nossas fá- norte-americano de integração hemisfé- cia de capitais especulativos para o paga-
representa buscam outro modelo de in- bricas. Defendo faz tempo que esta apro- rica comercial, de eliminação de barrei- mento da dívida e tudo isto cria um cír-
serção internacional. Um pensamento ximação, que agrada os economistas da ras, de sanção de um sistema de leis que culo vicioso que aumenta as taxas de ju-
que se traduz no propósito de enfraque- Marina, é o passo inicial rumo ao fim do privilegiam suas multinacionais etc con- ros. É falso, é um mito que as taxas so-
cer o Mercosul com o pretexto de torná- Mercosul. tinua em vigor. É preciso prestar atenção bem para combater a inflação.
-lo aberto ao mundo. Vou resumir assim: a assinatura de na Aliança do Pacífico (México, Colôm-
um acordo entre os dois blocos signifi- bia, Peru e Chile).
Será o fim de qualquer cará uma extraordinária vantagem pa- Entendo que os Estados Unidos se pre- “Entendo que os Estados
aspiração de uma diplomacia ra empresas europeias que poderão ex- parem para retomar essa proposta em
independente? portar para cá sem que cobremos ta- caso de a Marina ganhar. Porque suas Unidos se preparem para
Até agora, a única vez que escutei Mari- xas, enquanto não haverá grandes be- posições sobre política externa refletem retomar essa proposta (da Alca)
na falar de independência foi para men- nefícios para os exportadores sul-ame- as aspirações se setores empresariais, de
cionar a independência do Banco Central ricanos. banqueiros e grandes meios de comuni- em caso de a Marina ganhar”
(risos). E acrescento que se este acordo acon- cação que demonstraram certa saudade
tecer, afetará outra instituição funda- da dependência colonial.
mental do Mercosul, que é a Tarifa Ex-
“Quando o Aécio fica terna Comum, fixada para terceiros paí- Com Marina voltaremos ao Ou seja, as alianças diplomáticas
ses. Se isto acontece, a união aduaneira é passado anterior ao encontro de devem continuar, mas são
fora do jogo, os Estados pulverizada, qualidade central do Merco- Mar del Plata? necessárias mudanças
sul. E uma vez que chegarmos à hipotéti- A candidata parece estar muito aberta na estratégia econômica
Unidos se inclinam para a ca assinatura do pacto de livre comércio a essas ideias. Mas o interessante é que internacional?
Marina, por pragmatismo com os europeus, os Estados Unidos re- ela não está sozinha. Sim, e está completo o comentário di-
aparecerão. No seu entorno, se expressa esse espí- zendo que em um segundo governo a
e porque ela representa o rito anterior à reunião de Mar del Pla- presidenta Dilma terá que trabalhar para
De que maneira? ta. Eu me refiro ao professor André Lara diversificar nosso comércio exterior, pa-
oposto ao PT” Os meios e os grupos de interesses bra- Rasende, ao professor Eduardo Giannet- ra reduzir nossa vulnerabilidade comer-
sileiros que se sentirem representados ti da Fonseca, à senhora Maria Alice Se- cial devido ao crescimento das exporta-
pela Marina só falam de um acordo com túbal (Banco Itaú). Além disso, me pare- ções de produtos primários cujos preços
a União Europeia por oportunismo, pe- ce natural que depois do primeiro turno não somos nós quem decidimos. Quan-
Washington aposta em Marina la boa imagem dos europeus, que seriam (5 de outubro) se somem outras pessoas do digo diversificar penso em base pa-
ou Aécio? maravilhosos, educados, que nos abri- com pensamento similar e que hoje estão ra reforçar exportações industriais por-
Não estou em Washington para dizer riam as portas do primeiro mundo. Uma junto do candidato Aécio. Estou falando que o Brasil corre o risco de seguir rumo
o que pensam. Agora, há interesses dos retórica para ocultar que o acordo se- o professor Armínio Fraga, do professor a uma especialização regressiva na pro-
Estados Unidos que foram prejudicados rá prejudicial para nós. Quem quiser sa- Pedro Malán. dução agropecuária e mineral, acompa-
durante os governos de Lula e Dilma, e é ber o que nos espera com esse acordo que nhada de uma contração do setor indus-
claro que o candidato de que mais gosta- pergunte aos gregos e aos espanhóis co- O senhor acredita que, apesar da trial, aliada a uma atrofia de sua capaci-
vam era o Aécio. mo a velha Europa é tratada. subida de Dilma, a Marina será a dade tecnológica. (Carta Maior)
A Embaixada norte-americana ado- Agora tudo isso nos leva ao começo futura presidenta?
tou um perfil muito discreto nas eleições, desta conversa, que são os Estados Uni- Não, pelo contrário, acredito que, ape-
mas isso não deve se confundir com o fa-
to de estarem alheios ao que acontece.
dos. Por quê? Porque uma vez assinado sar de toda esta comoção, a presidenta
Mar del Plata,
Quando o Aécio fica fora do jogo, os Es-
novembro de 2005
Wilson Dias/ABr

tados Unidos se inclinam para a Marina,


por pragmatismo e porque ela represen-
ta o oposto ao PT. Além disso, é alguém No começo da década passada,
sem quadros próprios e, segundo dizem, FHC sancionou Pinheiro Guimarães
tem bons contatos nos Estados Unidos,
e que demonstrou estar aberta para des- por ter se oposto publicamente à as-
montar o Estado, reduzir sua capacida- sinatura da ALCA, que seria enterra-
de e autonomia internacional. Interessa
aos Estados Unidos que o Mercosul se- da durante a Cúpula das Américas,
jam desmontado e que projetos da era celebrada em novembro de 2005 no
tucana sejam retomados, não nos enga-
nemos: nestas eleições, está em jogo a re- balneário argentino de Mar del Pla-
tomada do processo privatizador, parcial ta, graças a uma frente formada pe-
ou total, da Petrobras, do Banco do Bra-
sil e do BNDES. los presidentes Lula, Néstor Kir-
chner, Hugo Chávez e Evo Morales,
Como a Marina implementaria
esse desmantelamento do apoiados por outros líderes sul-ame-
Mercosul? ricanos diante de um atônito George
Avalio que possa começar com a eli-
minação da cláusula que obriga os paí- Walker Bush e de seu aliado, o mexi-
ses do Mercosul a negociar conjunta- cano Vicente Fox, ex-gerente da Co-
mente acordos de livre comércio com
outros blocos. Este ponto, que até agora O professor e embaixador Samuel Pinheiro Guimarães
ca Cola com um grande bigode.
cultura de 11 a 17 de setembro de 2014 9

Mulheres negras sempre


vivas da serra do Espinhaço Fotos: Thiago Almeida
OPINIÃO Projeto independente falir. Curiosamente, o ciclo produtivo do
chá não parou em Ouro Preto, mas pro-
documenta as histórias de vida curou se arranjar frente as novas divi-
sões do trabalho em nossos dias. O mes-
e paisagens do cotidiano de mo chá é atualmente cultivado por crian-
filhas e netas de escravizados ças na índia.

em comunidades da serra do As montanhas que subimos nos


verões passados
Espinhaço, em Minas Gerais A pesquisa documental, até o momen-
to independente, é resultado da relação
afetiva e científica de mais de uma dé-
cada dos pesquisadores com a região da
Marina Moss e serra do Espinhaço. Até o presente mo-
Thiago Almeida mento foram realizados dois trabalhos
de campo:
A ESCRAVIDÃO foi abolida oficialmente – O primeiro, com duração de 21 dias,
no Brasil no dia 13 de maio de 1888, de- em novembro de 2013, teve como propó-
pois de três séculos e quatro milhões de sito fazer o reconhecimento da paisagem,
seres humanos transportados em porões apresentar a pesquisa para as comunida-
de navios negreiros. Porém, o proces- des locais e estimar os custos e necessi-
so de abolição da escravatura no Brasil dades técnicas para finalizar o projeto.
atendeu apenas aos interesses de produ- – O segundo durou 45 dias, entre os
tores rurais e de uma nascente classe in- meses de março e abril de 2014, e buscou
dustrial. Uma massa de negros e negras construir os primeiros registros da paisa-
foi jogada nas ruas, negligenciada pela gem, entrevistar as primeiras mulheres
recém-proclamada República, à mercê “sempre vivas” identificadas no primei-
da própria sorte. Nenhuma compensa- Dona Tereza segura folha de chá-preto da índia ro campo, identificar novas personagens
ção ou política pública foi pensada a fim e construir o embrião dos textos e crôni-
de inserir os negros libertos na sociedade cas da pesquisa.
que acabava de ser instaurada.
Nos anos iniciais do século 20 e espe- Por onde queremos navegar?
cialmente durante a ditadura do Estado A pesquisa documental do Projeto Mu-
Novo (1937-1945), as manifestações reli- lheres Sempre Vivas é uma ação destina-
giosas, a capoeira e tantos outros aspec- da a contribuir com as memórias de co-
tos imateriais da cultura afro-brasilei- munidades afrodescendentes em territó-
ras  foram renegados, perseguidos e cri- rio brasileiro, de grande relevância his-
minalizados pelo aparato repressivo do tórica no processo de ocupação minei-
Estado brasileiro. Esse cenário se man- ra e importância vital para a construção
teve pelos anos seguintes, salvo algu- e o fortalecimento das identidades locais
mas ações progressistas como a liberda- da serra do Espinhaço. O projeto busca
de de culto promulgada pela Constituinte guardar, para as gerações futuras da re-
de 1946, por iniciativa do então deputa- gião, a oportunidade de conhecer parte
do federal Carlos Marighella. O golpe de importante de sua história.
1964 abafou as crescentes mobilizações e A importância maior do projeto con-
pressões das organizações civis em torno siste em preservar e (re) conhecer o pa-
de melhorias e conquistas sociais. Pro- trimônio cultural imaterial em vias de
cesso retomado apenas no final da déca- desaparecimento, e pede urgência, uma
da de 1980, com a Constituinte de 1988. vez que realizamos uma corrida con-
Passados mais de um século da aboli- tra o tempo para registrar essas memó-
ção da escravatura, muitos aspectos per- rias. Atualmente, as comunidades in-
manecem pouco conhecidos pela socie- vestigadas têm sofrido intenso proces-
dade brasileira. De que modo e onde vi- so de sufocamento decorrente de trans-
veram os negros recém-libertos? Como formações socioespaciais, e seus saberes
ocorreram as inserções dos filhos e ne- e manifestações culturais correm o ris-
tos na sociedade da época? Essas e mui- co de desaparecer junto com o desapa-
tas outras perguntas estão presentes no recimento dessas mulheres, sem que te-
desenvolvimento do fotodocumentário nham sido registrados e investigados de
Mulheres Sempre Vivas. forma organizada.
Dona Miúda caminha por São João da Chapada, em Diamantina (MG) Dessa forma, é preciso realizar ações
que contribuam para a continuidade da
Todas têm em comum o fato existência de bens culturais imateriais,
como as músicas, danças e cantos de co-
de terem nascido, crescido e munidades quilombolas, deixando regis-
trado o universo de bens culturais que
sobrevivido na região da serra do são referência para jovens (alvos diretos
Espinhaço, eixo colonizador das dos impactos decorrentes das mudanças
sociais), que ignoram suas raízes, e para
Minas Gerais e do sertão brasileiro as gerações futuras.
O Projeto Mulheres Sempre Vivas car-
rega, portanto, uma dupla missão: dar
voz às mulheres da serra do Espinhaço
As sempre vivas do Espinhaço que estão às margens da história oficial
O Projeto Mulheres Sempre Vivas, ini- (uma geração em vias de desaparecimen-
ciativa da pesquisadora Marina Moss e to), e transmitir, às gerações futuras, as
do jornalista e fotógrafo Thiago Almei- memórias daquelas que com trabalho e
da, procura, por meio de um livro docu- determinação abriram as trilhas por on-
mental, (re) construir e contribuir para a de agora caminhamos.
salvaguarda de parte da memória coleti- A pesquisa, que envolve reflexões so-
va do povo brasileiro. Lançando mão da bre a paisagem cultural, fotografia docu-
metodologia de imersão, baseada na ob- mental e as artes, adota uma metodolo-
servação participante, e através da capta- gia cujo objetivo é tentar construir uma
ção de histórias orais e construção de re- reflexão que clareie a relação existente
gistros fotográficos, a iniciativa procura entre os patrimônios imaterial, material,
narrar a épica, ainda que negligenciada cultural e natural. O registro das memó-
pela historiografia oficial, saga das mu- rias dessas mulheres pode desempenhar
lheres filhas e netas de negros escraviza- um papel educativo, através da conscien-
dos no contexto da Reserva da Biosfera tização e informação voltadas para o pú-
da Serra do Espinhaço. blico jovem, sobre a importância do pa-
A serra do Espinhaço é uma porção trimônio cultural associado às histórias
singular do Brasil onde homem e natu- de vida das comunidades envolvidas e o
reza estão em constante diálogo. Os cam- seu reconhecimento e valorização peran-
pos rupestres, o Cerrado e a Mata Atlân- te a sociedade. As memórias das mulhe-
tica influenciaram diretamente as for- res sempre vivas da serra do Espinhaço
mas de uso e ocupação do solo frente ao conectam práticas, conhecimentos, ex-
modo de produção que, historicamen- Dona Ilídia tem hoje 99 anos pressões e lugares culturais que em con-
te, também condicionou essas realida- junto reforçam e paisagem resultante da
des sociais. As memórias e histórias de Histórias como a de dona Ilídia, 99 ciais de suas vidas, trabalharam nas la- interação entre ambiente, história, iden-
vida dessas mulheres dialogam com o anos, moradora do distrito de São Gon- vouras de chá cultivado na Fazenda do tidades e práticas cotidianas.
contexto espacial no qual se desdobra- çalo do Rio das Pedras, ex-tropeira, par- Manso, área do atual Parque Estadual do Os resultados e desdobramentos espe-
ram os processos de interação das pesso- teira e trabalhadora do campo, nascida e Itacolomi. Uma dessas senhoras é a dona rados com o Projeto Mulheres Sempre
as com o meio natural da serra do Espi- criada na serra do Espinhaço. Ela que, ao Tereza. Tereza nasceu em Lavras Novas Vivas consistem em um livro, uma ex-
nhaço, imprimindo marcas na paisagem completar 18 anos em 1933, vivia ainda na década de 1930, trabalhou dos 7 aos posição fotográfica e oficinas, iniciativas
e atribuindo valores a essas pequenas lo- os reflexos dos menos de 50 anos da abo- 12 anos ajudando na carvoaria do pai. que visam empoderar as gerações atu-
calidades. Por essa razão, ao pesquisar as lição da escravatura. Durante os cinco anos seguintes per- ais e as que estão por vir com o resulta-
memórias e histórias de vida das mulhe- Ou ainda, as memórias ancestrais do correu descalça a trilha de mais de 10 km do de uma pesquisa documental sobre a
res, torna-se fundamental compreender candombe na serra do Cipó, tradição que liga Lavras Novas à antiga Fazenda origem e importância da ancestralidade
seu contexto espacial e os processos pai- que se mantém viva desde os tempos do Manso, localizada próximo ao Pico afro-brasileira.
sagísticos que tornam a região tão singu- que era realizada nos terreiros das sen- do Itacolomi. A Fazenda de São José do  
lar para Minas Gerais. zalas da antiga fazenda do Cipó Velho. Manso funcionava como plantação e pro- Marina Moss é Turismóloga e Mestranda
Perpassando pelos remanescentes qui- cessamento do chá-da-índia de marca em Arquitetura e Urbanismo pela
Geração-elo lombolas, que guardam vivas as tradi- Edelweiss, produto exportado para Es- Universidade Federal de Minas Gerais,
O projeto, ainda em andamento, pro- ções dos catopés e dos cantos vissungos tados Unidos e Europa. As mãos da do- pesquisadora do GIPE e conselheira da
cura dar voz e trazer a público as histó- na Comunidade dos Ausentes no Dis- na Tereza, neta de negros que foram es- Ong. Montanhas do Espinhaço. Pesquisa
rias de vida, memórias e paisagens do trito de Milho Verde. Até chegar a do- cravizados, carregam as marcas do tem- a região do Espinhaço há mais de 10 anos
cotidiano de mulheres que representam na Miúda e Dona Maria Macarrão, ma- po e o resultado do processo que contri- e desenvolve estudos sobre paisagem e
uma geração-elo entre o fim do período triarcas da dança do chula no distrito de buiu para a transformação das paisagens patrimônio cultural.
da escravidão (final do século 19 e início São João da Chapada e remanescentes do entorno de Lavras Novas.
do século 20) e o mundo atual.Todas têm do quilombo Quartel dos Indaiá, no mu- Interessante verificar que as crianças Thiago Almeida é fotógrafo, Jornalista
em comum o fato de terem nascido, cres- nicípio de Diamantina. de Lavras Novas foram exploradas no e Turismólogo formado pela Universidade
cido e sobrevivido na região da serra do Em Lavras Novas, distrito de Ouro Pre- trabalho infantil durante as décadas de Federal de Minas Gerais. Desenvolve estudos
Espinhaço, eixo colonizador das Minas to, vivem algumas senhoras, todas com 1930, 40 e 50, quando em virtude da Se- sobre paisagem, cultura e patrimônio
Gerais e do sertão brasileiro. mais de 70 anos, que durante os anos ini- gunda Guerra Mundial a fábrica veio a material e imaterial.
12 de 11 a 17 de setembro de 2014 cultura

Afonsinho e as
barbas de Karl Marx
CRÔNICA Eram tempos
Reprodução

de chumbo, os militantes
e intelectuais de esquerda
achavam o futebol uma
mera alienação

Michel Yakini

NOS ANOS DE 1970 um boleiro, desta-


que da Estrela Solitária, sacudiu a car-
tolagem e a estrutura do futebol brasi-
leiro. Afonsinho era comparado a um
cantor da Jovem-Guarda, por conta da
cabeleira e da barba, mas tinha um fi-
no trato com a bola e pensava além das
quatro linhas, o que resultou na con-
quista inédita do polêmico passe-livre, e
por isso o craque emprestava seus ser-
viços a quem bem entendia. O episó-
dio virou documentário, indispensável
pra quem gosta de conhecer os causos
do mundo bola, Passe Livre dirigido por
Oswaldo Caldeira.

Os militantes queriam mostrar


pra piãozada como o jogador
de bola e o operário sofrem
explorações semelhantes

Eram tempos de chumbo, os militan-


tes e intelectuais de esquerda achavam
o futebol uma mera alienação e quando Afonsinho presta depoimento em Passe Livre, dirigido por Oswaldo Caldeira em 1974
o caso de Afonsinho virou filme, o des-
prezo foi reconsiderado e Passe Livre foi A luta de Afonsinho, admirada por Pelé, quando te, hoje são reféns exemplares do atual
exibido no empenho de dialogar com a senhoril futebolístico: os temidos e po-
classe trabalhadora. Os militantes que- ambos jogaram no Santos, se tornou inspiração, derosos empresários. Até Jairzinho re-
riam mostrar pra piãozada como o jo- 20 anos depois, pra promulgação de uma lei, que solveu empresariar atletas e entre a li-
gador de bola e o operário sofrem ex- berdade do jogador e as algemas cifra-
plorações semelhantes. Muitos aposta- tinha como destaque o fim do Passe das, deixou bem claro qual lição lhe
vam que o exemplo de Afonsinho pode- atraiu mais.
ria inflamar outros rumos. O fascínio pelo estilo Jairzinho de
Não fosse Jairzinho, o Furacão da Co- ser continua em evidência e enquanto
pa, com seu black power, seu pano in- Dizem que a piãozada se deslumbrou pois, pra promulgação de uma lei, que a boleirada, principalmente os bem-su-
vocado e sua fuça de operário, o sal- com o jeitão de “criolo-bem-sucedi- tinha como destaque o fim do Passe e cedidos, não estiverem nem aí pra estu-
do talvez fosse outro. Jairzinho apare- do” do Furacão e olhou as barbas re- foi sancionada na gestão do Rei como dar, conhecer a história da sua profis-
ce no filme como o outro lado da moe- beldes de Afonsinho e do tal “Passe Li- Ministro dos Esportes, a famosa “Lei são e não ser ver como um trabalhador,
da, a do boleiro alienado, de crista baixa vre” com uma indiferença semelhante Pelé”. a maioria dos jogadores vão continuar
às imposições do clube, como um refém a de quando conheceram a barba gale- Com a lei, os jogadores quebraram na vida dura, e não há lei, nem Afonsi-
exemplar, que tentou ser livre, foi ame- ga de Karl Marx e do tal “Manifesto Co- definitivamente as algemas dos clubes, nho, Marx que dê jeito nisso. A bolei-
açado e pediu desculpas publicamen- munista” nas reuniões dos sindicatos. mas demonstraram, ao longo dos anos, rada vai continuar cegueta e a piãoza-
te. Já Afonsinho, com sua barba galega, Questão de semelhanças. que não estavam muito interessados da sonhando com as glórias do futebol.
seu futuro promissor como estudante de A luta de Afonsinho, admirada por nessa conversa de Passe-Livre, e cegos
medicina e sua pinta de surfista, era um Pelé, quando ambos jogaram no San- pelo brilho dos relógios de ouro, dos Michel Yakini é escritor e produtor cultural
símbolo de liberdade. tos, se tornou inspiração, 20 anos de- carros importados e das luzes de boa- www.michelyakini.com

www.malvados.com. br dahmer

PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais – 1.Nome dado ao Brasil, pelos indígenas, antes da invasão de Cabral, que
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
significa “terra das palmeiras” – “Você”, em alemão. 2.A resistível ascensão de Arturo (?), 1
peça de Bertolt Brecht – Vestimenta “excludente” do carnaval de Salvador que identifica
o folião para que seja protegido da “pipoca” por um cordão.3.Coito – Novo nome do PFL. 2
4.Termo que é duplicado no nome de um pássaro que ficou famoso na voz de Carmen
3
Miranda 5.Um dos cinco sentidos – Palavra hebraica comum no final das orações que
significa “assim seja” – Antes de Cristo – 6.Prefixo que indica ‘dois’ – Aplicação de subs-
4
tâncias oleosas – Igual, semelhante – “Bunda”, em inglês.7.Nome que indica a introdução
de líquido no ânus para lavagem – “Costela”, em inglês. 8.Fazer o bebê dormir – Interjei- 5
ção associada aos mineiros. 9.Ponto de interconexão – Árvore típica do Nordeste brasi-
leiro, cujo fruto é rico em vitamina C. 10.“Veneno”, em inglês – Bairro do Rio de Janeiro 6
onde morou Machado de Assis. 11.“Avó”, em alemão.
7

Verticais – 1.“(?) Bella”, líder da independência da Argélia, aliado de Che Guevara na


8
década de 1960, falecido aos 96 anos em 2012. 2.São Paulo de (?), nome original da
cidade por causa dos peixes secos resultantes das vazantes dos seus rios. 3.Marca de 9
sal de frutas. 4.Pelado – Romeu (?), falecido em 2010, ex-chefe do Serviço Secreto do
DOPS. 5.O chamado “pai dos burros”. 7.“Descanse em paz”, em inglês - “Grande”, em tupi. 10
8.Nome antigo da nota musical dó - “Uma (?)”, interjeição usada para negar o que foi afir-
mado imediatamente antes – interjeição de saudação no Brasil. 9.País africano que tem 11

como capital a cidade de Bamako. 10.Da gordura de sua fruta, rica em vitamina E, pode
ser feito até sabão. 11.Pequeno país situado na Península Arábica, que tem como capi-
tal a cidade de Mascate – Tipo de peixe. 12.Poesia própria para canto – O artigo “o”, em
espanhol. 13.“Ligado”, em inglês – Fiel. 15.Os rins a extraem do sangue e a concentram 18.Villas Bôas.
9.Mali. 10.Abacate. 11.Omã – Atum. 12.Ode – El. 13.On - Leal. 15.Ureia – Pá. 16.Carajás. 17.Si.
na urina – Utensílio agrícola. 16.O massacre de “Eldorado dos (?)” completou 18 anos Verticais –1.Ben. 2.Piratininga. 3.Eno. 4.Nu – Tuma. 5.Dicionário. 7.Rip – Ussu. 8.Ut – Ova – Oi.
em 2014. 17.Sétima nota musical. 18. Irmãos (?), responsáveis pela criação do Parque Bi - Unção - Tal - Ass. 7.Enema - Rib. 8.Ninar - Uai. 9.Nó - Juá. 10.Poison - Lapa. 11.Oma.
Nacional do Xingu.
Horizontais –1.Pindorama – Du. 2.Ui - Abadá. 3.Cópula - DEM. 4.Tico. 5.Tato - Amém- AC. 6.
américa latina de 11 a 17 de setembro de 2014 13

As mazelas criadas
pela mineração em Honduras www.honduraslaboral.org

MINERAÇÃO
Atividade deixa rastro
de doenças, destruição
ambiental e desemprego;
produção agrícola caiu
70% e 19 das 21 fontes
de água secaram

Giorgio Trucchi
de Manágua (Nicarágua)

“SÃO 14 ANOS de luta e de exigir justi-


ça de um Estado indiferente. A trans-
nacional mineradora Goldcorp Inc. de-
ve ser responsabilizada pelos danos que
nos causou, por ter rompido o tecido so-
cial de nossas comunidades, por ter rou-
bado a paz e a dignidade de nosso povo,
pelo estado de desolação e abandono no
qual vivemos”.
O desabafo é de Carlos Amador, mem-
bro do Comitê Ambiental do Valle de Si-
ria. Sua voz se soma às milhares de vozes
de moradores que ainda se atrevem a vi-
ver nesse canto abandonado do departa-
mento de Francisco Morazán, em Hon-
duras, e que se negam a esquecer a tragé-
dia humana e ambiental que tiveram de
vivenciar. Manifestação contra a atividade mineradora em Honduras, principalmente no Valle de Siria
O Valle de Siria é formado pelos muni-
cípios de El Porvenir, San Ignacio e Ce- Segundo ele, a empresa encerrou su-
OAS

dros. O processo de exploração come- as operações e nem sequer restaurou a


çou em meados da década de 1980, com parte florestal ancestral. Tampouco se
a Fischer Watt Gold Company, mas foi responsabilizou pela drenagem ácida
em 1995 que a empresa Sociedad Mine- que sai das instalações das minas, ou
rales Entre Mares Honduras S.A., sub- pela perda de cultivos e de gado. “Nesse
sidiária do colosso canadense Goldcorp cenário dantesco, nem a empresa, nem
Inc, solicitou permissão de exploração a as autoridades estão fazendo algo para
céu aberto – à base de cianureto – da mi- apoiar as vítimas; em vez disso, tentam
na de San Martín. minimizar o que aconteceu”, argumen-
A permissão foi outorgada em janei- tou López.
ro do ano 2000 para uma área de 23 mil
hectares e o processo de exploração du-
rou até 2008, quando a empresa come- “As comunidades nunca foram
çou a etapa de encerramento e pós-en-
cerramento da exploração, em meio a um consultadas ou informadas
verdadeiro êxodo juvenil e ao crescente
protesto das comunidades que denuncia-
sobre os riscos que a instalação
vam graves efeitos socioambientais. da mineradora de metais a céu
aberto traria para a região”
“A transnacional mineradora
Goldcorp Inc. deve ser
responsabilizada pelos Protestos
À medida que foram percebendo que
danos que nos causou” as promessas da empresa não apenas
não eram reais, mas em vez de trazer de-
senvolvimento, tinham grandes proble-
Carlos Amador, membro do Comitê Ambiental do Valle de Siria mas, os moradores decidiram formar o
Minas a céu aberto Comitê Ambiental. Dessa forma, busca-
Quando se aplica o método da minera- vam reunir os diferentes setores sociais
Intercontinentalcry

ção a céu aberto, a primeira coisa que se e organizar grupos em cada comunida-
faz é acabar com todas as árvores e tu- de, capacitando-os sobre o problema pa-
do o que é vegetação da área a ser explo- ra fazer oposição à expansão do projeto
rada. Depois, joga-se fora a camada fértil San Martín.
da terra de onde se extrai o ouro e, segui- Diante dessa situação, a resposta da
damente, cavam-se crateras gigantescas empresa não demorou. “Eu fui captura-
de cerca de 100 hectares e até 200 me- do no dia 5 de julho de 2011, junto com
tros de profundidade, usando cargas ex- outros companheiros, acusado de ter co-
plosivas e máquinas. locado obstáculos contra um plano de
Uma vez que se extraem as pedras do manejo florestal para desflorestar 1800
subsolo, elas são transportadas por enor- hectares de bosque no monte de La Tor-
mes caminhões para uma planta de bri- recita. Estivemos 18 meses interpondo
tagem, onde são transformadas em pó medidas cautelares substitutivas e, final-
e levadas para áreas de lixiviação (lava- mente, conseguimos demonstrar nossa
gem). Finalmente, são adicionadas gran- inocência”, recorda Carlos Amador.
des quantidades de água cianetada para
separar as partículas de ouro.
“A Entre Mares S.A. chegou ao Val- “Atualmente, a imensa maioria da
le de Siria com a teoria de dar emprego
e desenvolvimento a milhares de pesso- população é contra qualquer tipo
as. O que gerou, na realidade, foram cer- de presença mineradora na região e
ca de 330 postos de trabalho e mais po-
breza para milhares de famílias campo- luta pela defesa dos bens comuns”
neses que ficaram sem renda. Foi tudo
uma grande mentira e passamos de ser Contaminados por metais pesados sofrem com chagas no corpo e outras enfermidades
o maior produtor de grãos básicos do de-
partamento de Francisco Morazán para nicipal, que foi insignificante se compa- de cem anos”, alertou o doutor Juan Al- Da mesma forma, vários ativistas do
uma das áreas mais afetadas e envenena- rada com o suculento negócio da trans- mendarez, diretor do Centro de Preven- Comitê Ambiental têm sofrido persegui-
das do país”, disse Amador. nacional mineradora canadense, pôde ção, Tratamento e Reabilitação de Víti- ção, assédio, e até ameaças de morte. No
De acordo com pesquisas realizadas justificar a magnitude dos impactos so- mas de Tortura (CPTRT). entanto, a criminalização do protesto e o
pelo Centro Hondurenho de Promo- bre as comunidades, seus territórios e A pesquisa “Contaminação da água na contexto de miséria, doenças, escassez de
ção para o Desenvolvimento Comuni- condições de vida. área de exploração do projeto San Mar- água e desemprego, assim como a perda
tário (Cehprodec), no Valle de Síria vi- tin e as repercussões sobre a saúde hu- da soberania alimentar, do tecido social
viam cerca de 7 mil famílias, isto é, 42 Um povo doente mana”, realizada por Flaviano Bianchini e da posse da terra, geraram anticorpos
mil pessoas que foram impactadas pela Segundo as diferentes organizações em 2006, revela que, em uma das comu- na população.
mineradora. que integram o Comitê Ambiental do nidades afetadas pela exploração minei- “Atualmente, a imensa maioria da po-
“Foram removidos mais de 50 milhões Valle de Siria, nos mais de 8 anos de ex- ra, a mortalidade infantil chegou a ser 12 pulação é contra qualquer tipo de pre-
de toneladas de terra para extrair ouro, ploração mineradora, os impactos so- vezes maior que a média nacional. sença mineradora na região e luta pe-
afetando a produção agrícola, que se re- cioambientais gerados pela Entre Mares Esses valores aumentam notavelmen- la defesa dos bens comuns porque pôde
duziu em 70%. Além disso, 19 das 21 fon- S.A (Goldcorp), com o silêncio cúmplice te para os filhos dos trabalhadores da mi- experimentar na própria pele as conse-
tes de água que existiam já se secaram e das autoridades locais e nacionais, foram na. Nesse caso, a taxa de mortalidade é quências dessa atividade”, garantiu Ro-
as que restam estão contaminadas com devastadores. Além de desmantelar o te- 33 vezes maior que a média nacional. nald López.
metais pesados. Isso gerou uma emer- cido social, dividir e deslocar as famílias Além disso, os valores de chumbo a ar- No entanto, o Comitê Ambiental do
gência hídrica sem precedentes” explicou camponesas, as organizações denunciam sênico no sangue das pessoas analisadas Valle de Siria não pode baixar a guar-
Pedro Landa, especialista em mineração graves efeitos à saúde das pessoas. são superiores aos considerados perigo- da nem um segundo. “Os princípios não
e membro da Coalizão de Redes Ambien- “Foram realizados vários estudos e sos pela Organização Mundial da Saúde se vendem, nem se negociam e, por is-
tais e do Cehprodec. confirmamos que a atividade minerado- (OMS). so, estamos em alerta vermelho e pron-
Além disso, as comunidades nunca fo- ra provocou graves problemas dermato- “Nossa água e os cultivos foram conta- tos para nos declarar em rebeldia contra
ram consultadas ou informadas sobre os lógicos e de visão, queda de cabelo, par- minados. Há dezenas de pessoas com al- qualquer tentativa da Goldcorp de vol-
riscos que a instalação da mineradora de tos prematuros, malformações congê- tos níveis de metais pesados no sangue, tar à região. Seguiremos exigindo que
metais a céu aberto traria para a região. nitas e abortos. Também foram detec- enquanto outras sofrem com chagas no os danos ambientais sejam reparados,
Da mesma forma, leis nacionais e vários tados níveis altíssimos de metais pesa- corpo e com um sem número de enfer- que as pessoas doentes e também aque-
convênios internacionais ratificados por dos no sangue das pessoas. O mais pre- midades”, lamentou Ronald López, co- las que foram despejadas de suas terras
Honduras foram violados. Nem mesmo a ocupante é que esse tipo de contamina- ordenador do Comitê Ambiental do Val- sejam indenizadas”, concluiu Amador.
contribuição com o fisco nacional e mu- ção permanecerá no ambiente por mais le de Síria. (Opera Mundi)
14 de 11 a 17 de setembro de 2014 américa latina

O crime do deslocamento forçado Fotos: Marcha Patriótica

ENTREVISTA
Olga Betancourd
discorre sobre o trabalho
desenvolvido pela
Associação Nacional de
Deslocados Colombianos
(Andescol) diante de um
conflito que já dura 60 anos

Diana Paez e
Martha Romero

NA COLÔMBIA, há mais de 60 anos se


produz um confronto armado que se as-
semelha a uma guerra civil entre o Esta-
do colombiano, as guerrilhas e os grupos
paramilitares.
Comunidades camponesas, indígenas
e afrodescendentes originárias das dife-
rentes regiões da Colômbia acabam fi-
cando no meio deste constante confron-
to armado.
A partir do acirramento na intensida-
de da guerra no país, essas comunidades
têm sido forçadas a sair de seus territó-
rios ancestrais como única forma de sal-
var suas vidas.
Tais comunidades, em sua grande
maioria rurais, acabam se deslocando
forçosamente para a periferia das princi-
pais cidades do país, ficando em condi-
ções de extrema pobreza e tendo que en-
frentar as outras violências próprias das
cidades (desemprego, exclusão, margi- Mobilização da Marcha Patriótica em Bogotá, capital colombiana
nalização).
Estima-se em

6
Olga Betancourd é uma das líderes de ção. Esses crimes contra nós são sempre al de gerar empresas nacionais dirigidas
uma das organizações mais representati- justificados institucionalmente pela luta pelas mesmas comunidades. Esta ques-
vas do deslocamento forçado da Colôm-
bia, a Associação Nacional de Deslocados
Colombianos (Andescol). Na entrevista a
milhões do Estado contra o narcotráfico e o ter-
rorismo, só que a grande maioria das ví-
timas tem sido as povoações originárias
tão é colocada porque, por estarmos há
muito tempo fora dos nossos territórios
de origem, não tem sido possível estudar
seguir, ela relata o trabalho desenvolvido dos territórios rurais na Colômbia. e, portanto, nos qualificar nas cidades.
pela associação o número de pessoas atingidas Como camponeses, achamos ser possível
diretamente pelo conflito político, Quais são as propostas de viver dignamente no campo, de produ-
Brasil de Fato – Qual a social e armado que já dura mais Andescol quanto à construção de zir em larga escala alimentos orgânicos a
importância da Andescol no de 60 anos na Colômbia um espaço de unidade entre as partir das comunidades e, além disso, re-
contexto atual da Colômbia? vítimas de deslocamento forçado construir nossas relações familiares, or-
Olga Betancourd – A Andescol é uma na Colômbia? ganizativas e sociais.
organização de vítimas de deslocamento sacres às comunidades que nasceram na No contexto político de hoje, achamos
forçado que tivemos que fugir em direção maioria dos territórios rurais da Colôm- que nossa proposta organizativa conti-
às principais cidades da Colômbia por bia. Todos esses interesses e alianças não nua sendo importante para a luta das ví- “Esses crimes contra nós são sempre
causa da guerra. Temos uma história de vão acabar com a assinatura de um acor- timas do deslocamento forçado em geral,
luta e de resistência de 15 anos pelo re- do de paz, porém, a não presença da in- já que o número de pessoas atingidas di- justificados institucionalmente pela
conhecimento dos nossos direitos funda- surgência como organização clandestina retamente pelo conflito político, social e luta do Estado contra o narcotráfico
mentais violentados, principalmente, o no território nacional obrigará o Estado a armado corresponde aproximadamen-
direito à vida e ao morar nos nossos ter- responder ao povo colombiano pelos cri- te a 6 milhões de pessoas. Neste sentido, e o terrorismo, só que a grande
ritórios. O objetivo da nossa organização mes de “lesa-humanidade”, que não que- a Andescol mantém como pauta perma-
é o de dar visibilidade ao descolamento rem reconhecer até hoje. nente a luta pela paz com justiça social maioria das vítimas tem sido as
forçado, reconhecido legalmente como – um sonho para todos os colombianos, povoações originárias dos territórios
um crime que atenta contra a humani- ainda mais para nós vítimas do desloca-
dade, por meio de ações políticas de re- “A presença e consolidação mento forçado. Por isso oferecemos um rurais na Colômbia”
sistência tanto no interior do país quan- apoio irrestrito aos diálogos de paz em
to aquelas realizadas por aqueles que ti- dos exércitos ilegais, Habana ao mesmo tempo em que exi-
veram que sair do país em condição de nomeados paramilitares, gimos o cessar-fogo porque o confronto
exilados ou refugiados. Temos também armado continua gerando mais vítimas O que fazer para que o conflito,
o objetivo de incidir no cenário político têm sido encarregados de diariamente. uma vez resolvido, não volte a
do país, para que o Estado solucione es- Também temos como bandeira de lu- acontecer?
ta grave crise humanitária que atinge na fazer “aquelas tarefas” que ta o retorno aos nossos territórios de ori- Acreditamos que o retorno para nos-
atualidade 10% da população colombia- não podia fazer legalmente gem, com dignidade e garantias, ao passo sas terras deve trazer consigo a possibi-
na, seja por meio de políticas públicas que sejam respeitados os nossos direitos lidade de avançar em relação à verdade,
efetivas que atendam as vítimas do des- o Exército colombiano” fundamentais, econômicos e sociais es- à justiça e à reparação a partir dos nos-
locamento forçado ou pela solução defi- tipulados na Constituição: direitos bási- sos próprios relatos sobre os aconteci-
nitiva do conflito social e armado no ter- cos como saúde, educação, soberania ali- mentos. É muito importante poder es-
ritório nacional. mentar e soberania para nos mobilizar li- crever a memória histórica do desloca-
Há ocorrido algum avanço vremente pelo território nacional. mento forçado a partir de uma pesqui-
real desde que o novo sa total e aprofundada, a partir do relato
“A Andescol é uma governo tomou posse? da maioria das vítimas. Nesse sentido,
Com o atual governo, deu-se a Lei de “Todos esses interesses e alianças a Andescol se soma à proposta de criar
organização de vítimas Vítimas e a restituição das primeiras ter- uma comissão que estude a origem do
de deslocamento forçado ras apropriadas a partir de deslocamen- diretas, justificadas com a desculpa conflito armado no país para que a ver-
to forçado. Este é um importante passo dade possa sair à luz e estes crimes não
que tiveram que fugir para a reivindicação das vítimas deslo-
de retirar o suposto apoio ‘das se repitam nunca mais na Colômbia. É
em direção às principais
cadas forçosamente, porém na sua exe- comunidades’ às insurgências, têm por isso que a Andescol também incen-
cução foram assassinadas 62 pessoas tiva a realização de uma Assembleia Na-
cidades da Colômbia por que exigiam suas terras. É com fatos co- gerado, além do deslocamento forçado, cional Constituinte, como um exercício
mo este que queremos dar visibilidade, de poder político a ser exercido pelos co-
causa da guerra” mais uma vez, ao fato de que não é ape- milhões de assassinatos e massacres” lombianos e colombianas na construção
nas uma questão de acabar somente com de um país com justiça social. É esta a
a insurgência, já que muitas das condi- nossa bandeira de unidade de luta a par-
ções nas quais nos encontramos na atua- tir de nossa situação de vítimas de des-
Qual é a leitura da Andescol lidade são de responsabilidade tanto pela O que vocês entendem locamento forçado. Essa assembleia po-
sobre o processo de negociação ação quanto pela omissão do Estado co- especificamente por “paz com deria legitimar a defesa pela soberania
da paz entre o Estado colombiano lombiano. justiça social”? nacional, isto é, a soberania alimentar, a
e as Farc (Forças Armadas A paz com justiça social tem que re- nacionalização dos nossos recursos na-
Revolucionárias da Colômbia)? Os membros da Andescol sofrem solver as problemáticas socioeconômi- turais e a reestruturação de todas as ins-
As palavras do representante do go- algum tipo de ameaça? cas dos cidadãos, isto é, tem a ver com tituições do Estado. Só assim, podería-
verno no início do processo de paz fo- Por conta de nossas reivindicações, a possibilidade de comunicar todas as mos avançar na transformação das polí-
ram: “Nem o modelo econômico, nem a apesar de nossa luta ser justa e neces- regiões do país, de ter as máquinas ne- ticas econômicas, políticas e sociais que
doutrina militar, nem a inversão estran- sária, temos sido objeto de perseguição cessárias tanto para a produção agríco- respondam positivamente a questões vi-
geira estão em discussão no processo de política, de assassinatos e de julgamen- la quanto para a transformação de ma- tais e que têm relação direta com o de-
paz em Havana”. E são precisamente es- tos de vários companheiros da organiza- térias-primas, de ter a possibilidade re- senvolvimento geral do país e a qualida-
tes três pontos, os que, a nosso ver, atra- de de vida dos seus cidadãos. Em muitas
vessam a problemática atual do descola- ocasiões, tem sido possível conferir, por
mento forçado na Colômbia. Existem vá- meio de pesquisas judiciais, o alto grau
rios fatores em nosso país que geram o de corrupção, clientelismo, paramilita-
deslocamento forçado. O primeiro tem a rismo e narcotráfico de vários represen-
ver com a política nacional armamentista tantes políticos do Estado colombiano,
e os planos estratégicos de guerra, como práticas que são muito negativas para
é o caso do Plano Patriota. O segundo, a o desenvolvimento econômico, político
presença e consolidação no território na- e social do país. Nesse sentido, mante-
cional dos exércitos ilegais nomeados pa- mos o anseio infinito na procura de uma
ramilitares, que têm sido encarregados, paz com justiça social na Colômbia. Os
com o apoio financeiro e militar de vários deslocados forçados fazemos parte de
representantes do Estado assim como uma mesma classe, uma mesma histó-
de empresários e investidores, de fazer ria, uma mesma pátria. Somos tradição
“aquelas tarefas” que não podia fazer le- de luta, exemplo fidedigno de resistên-
galmente o Exército colombiano. Todos cia por um mesmo sonho: uma Colôm-
esses interesses e alianças diretas, justifi- bia livre, digna e soberana.
cadas com a desculpa de retirar o supos-
to apoio “das comunidades” às insurgên- Diana Paez e Martha Romero são militan-
cias, têm gerado, além do deslocamento tes do Movimento Político e Social Colom-
forçado, milhões de assassinatos e mas- Olga Betancourd, uma das líderes da Andescol biano Marcha Patriótica – Capítulo Brasil.
internacional de 11 a 17 de setembro de 2014 15

Como sempre, um acordo


baseado em farsa Fotos: Lara Sartorio

ANÁLISE Mais uma vez fica evidente


que o combinado e o que ainda será
discutido nada mais é que a exigência
de acordos descumpridos por Israel

Lara Sartorio
da Cisjordânia (Palestina)

DEPOIS DE 51 DIAS de bombardeio e


genocídio promovidos por Israel, apoia-
do e patrocinado pelos Estados Unidos,
na Faixa da Gaza, uma proposta de ces-
sar-fogo realizada pelo Egito no dia 26 de
agosto foi acordada.
O ataque chamado “Operação Proteção
de Bordas” exterminou 2.178 palestinos
– dentre eles, cerca de 600 crianças – e
69 israelenses foram mortos – soldados,
quase em sua totalidade. A ONU repor-
ta que pelo menos 1.500 crianças ficaram
órfãs e 110 mil estão desabrigados.
Os termos do acordo de cessar-fogo in-
cluem a permissão para que Gaza seja re-
construída (50% do território ficou arrui-
nado); garantem a abertura de todas as
fronteiras para a entrada de alimentos,
medicamentos e material de construção;
e amplia o espaço marítimo para a pesca
de 6 milhas náuticas desde a costa para
12 milhas náuticas. Criança segura bandeira palestina diante de assentamento em frente à Vila Wadi Fukin
Mesmo que o acordo demonstre uma
flexibilização do Hamas, já que os ter- lições e massacres na fundação do Esta- 12 anos em Hebron no dia 8 de setem- Guerra energética
mos não denotam avanços significativos, do de Israel) e na guerra de 1967. bro- e a polícia da Autoridade Palestina Os bombardeios em Gaza e o avanço de
a ideia é que configure uma contenção Desde a década de 1980, o Estado is- (AP) prendeu 75 pessoas. grupos fundamentalistas no Oriente Mé-
das mortes palestinas e funcione como raelense não para de expandir os assen- Essa informação pode parecer confu- dio, tais como o Isis (o autoproclamado
trégua preliminar às negociações do mês tamentos nos entornos de vilas e cida- sa à primeira vista. É preciso, portan- Estado Islâmico do Iraque e da Síria), são
seguinte, quando serão debatidos termos des palestinas. Considerados ilegais pe- to, mirar mais profundamente a corre- ações que confirmam que o que está em
que incluem a abertura de um aeroporto la lei internacional, os assentamentos lação de forças políticas na Palestina. A curso é uma grande guerra energética.
e de um porto em Gaza. são a concretização do plano sionista de AP, produto dos acordos de Oslo, é pre- O Isis é um grupo fundado e financiado
expulsão dos palestinos. Neles, é aplica- sidida por Abbas, do partido Fatah. Não pelos EUA e Israel que vem promovendo
do um sistema de apartheid em que ser- só o próprio acordo é considerado uma ataques na Síria contra o governo Assad,
Para entender o acordo é preciso retomar viços de infraestrutura são construídos grande traição aos palestinos, por ter le- desde 2011. Em julho deste ano, o gru-
através da demolição de moradias pa- gitimado atrocidades – tais como o con- po avançou sobre o Iraque exterminan-
a histórica do território palestino. Depois lestinas para servirem exclusivamente trole da água e a divisão do território em do milhares e mantendo mulheres em
aos colonos – demarcados com a cons- áreas ABC, o que significou a entrega de cativeiro para exploração sexual. O gru-
da invasão dos judeus sionistas em 1948, trução de muros, torres de vigilância e mais de 70% da Cisjordânia ao controle po também tentou avançar sobre a fron-
quando foi fundado o Estado de Israel, um sistema de segurança específico pa- completo de Israel e mais de 20% a seu teira do Líbano em agosto, sendo rapida-
ra as colônias, com tanques de guerra e controle parcial –, como a presidência do mente contido.
a Palestina foi dividida em territórios forte armamento. Fatah representa um continuísmo dessa É sabido que em dezembro de 2010 foi
No plano anunciado por Israel, pelo política de acordos com Israel, que a his- descoberto o “mais proeminente terreno
desconectados, Cisjordânia e Gaza menos 20 casas completas de um dos vi- tória provou ser falha. de gás natural já encontrado na Bacia do
larejos, Surif, já receberam aviso de des- leste Mediterrâneo”, na área da Bacia do
pejo. Dentre as informações contidas Leviatã, capaz de impulsionar Israel co-
nesses documentos, consta o prazo de 45 Na mesma semana em que mo um grande exportador. O problema
Mar de Gaza dias para apresentar reclamações à cor- é que a maior parte das bases está situ-
Para entender o acordo é preciso re- te do Estado de Israel. A maior parte dos foi acordado o cessar-fogo ada nas regiões de Gaza e do Líbano. A
tomar a histórica do território palesti- agricultores das vilas já têm processos em Gaza, notícias revelam Síria já realizou contratos milionários de
no. Depois da invasão dos judeus sionis- pendentes relativos à apropriação ilegal exploração da bacia com a Rússia, o que
tas em 1948, quando foi fundado o Esta- de suas terras. que Israel se prepara para motivou os Estados Unidos a intervirem
do de Israel, a Palestina foi dividida em Hassan Manasra, 88 anos, trabalha e no país através do financiamento de gru-
territórios desconectados, Cisjordânia e habita uma parcela de terra dentro do que atacar o Líbano, único país pos como o Isis.
Gaza. foi declarado, na semana passada, como Certamente isso explica em parte a es-
A Faixa de Gaza foi capturada e ocu- “terra de Israel”. Manasra foi um dos des- cujo grupo paramilitar, o tratégia dos imperialistas em sua guer-
pada por Israel na guerra de 1967. Desde pejados em 1948 e havia se mudado para Hezbollah, teria condições ra declarada contra parte do mundo ára-
então, é mantido controle completo dos uma caverna ao longo de um morro na re- be. O interesse de dominação é o interes-
espaços aéreo e marítimo do território, gião de Wadi Fukin. Ao lado da caverna, de conter o avanço do Isis se de controle financeiro do ouro moder-
bem como das fronteiras. Manasra construiu um barraco de 2m², no: o petróleo e o gás.
Os palestinos precisam da permissão sem energia elétrica e sem água corrente. Além disso, a proteção do Curdistão
de Israel para usar o mar de Gaza, o que Essa é uma das “ostentadoras” casas que (região autônoma do Iraque) pelos EUA
impõe restrições e limita consideravel- receberam a visita de soldados israelenses Ressalta-se que a própria polícia da – único limite imposto pelos estaduni-
mente sua maior fonte de renda, a pes- com aviso de despejo. AP é treinada e tem seus salários pagos denses ao Isis – faz todo sentido quando
ca. Barcos de pescadores foram bombar- diretamente pelos EUA. De modo que fi- se observa que a região é estratégica pa-
deados com frequência por “ultrapas- ca clara a relação entre Israel e a elite ra Israel na exploração e no escoamento
sar a distância permitida”. À época, foi Hassan Manasra, 88 anos, trabalha e palestina. dos hidrocarbonetos da bacia.
acordada, entre Israel e Palestina, uma
permissão de 20 milhas náuticas para o habita uma parcela de terra dentro do A quem serve o cessar-fogo?
exercício da pesca. Em 2006, porém, a
que foi declarado, na semana passada, É inegável que a visibilidade do geno- As políticas articuladas
distância passou a ser de 3 milhas náu- cídio em Gaza foi elemento diferenciador
ticas, como forma de retaliação à vitória como “terra de Israel”. Manasra foi dos outros tantos massacres em 66 anos no Oriente Médio
eleitoral do Hamas. Em 2012, o acordo de ocupação militar. Era necessário, por- demonstram uma guerra
de cessar-fogo, que deu fim ao genocídio um dos despejados em 1948 e havia se tanto, voltar a invisibilizar esse povo sem
em Gaza naquele ano, incluiu a extensão rosto, transformado em números. energética terceirizada do
para 12 milhas náuticas, mas Israel des- mudado para uma caverna na região A solução foi forjar um fim do conflito
cumpriu o combinado e permitiu apenas baseado em farsa. A brutalidade em Gaza imperialismo, que se utiliza
6 milhas náuticas. gerou um fluxo de informação contínuo
em que imagens de crianças mutiladas se de grupos árabes para
Aeroporto e porto Na Cisjordânia perdiam entre imagens publicitárias dos dividir e dominar sem sujar
Apesar de o Acordo de Oslo, de 1993, Simultaneamente, a Cisjordânia so- jornais. Números de mortes crescentes e
ter mantido o controle de Israel sobre o fre incursões em que tanques chega- um bombardeio de notícias fez com que as mãos de sangue
espaço aéreo de Gaza, foi permitido que ram a adentrar grandes cidades, tal co- o público não mais se chocasse e perce-
construíssem um aeroporto. A obra foi mo Belém, e palestinos são presos in- besse a própria imobilidade. O cessar-fo-
concluída em 1998. No ano de 2000, Is- discriminadamente. O exército israelen- go foi também um cessar dos assuntos da
rael fechou o aeroporto e, em 2001, bom- se já prendeu pelo menos 178 pessoas na limpeza étnica e do neocolonialismo con- Na mesma semana em que foi acorda-
bardeou-o. Cisjordânia – incluindo uma criança de tínuo nos territórios da Palestina. do o cessar-fogo em Gaza, notícias reve-
O mesmo aconteceu com a decisão lam que Israel se prepara para atacar o
do acordo que permitiu Gaza construir Líbano, único país cujo grupo paramili-
um porto. Foi iniciada a construção em tar, o Hezbollah, teria condições de con-
2000, mas meses depois foi destruído. ter o avanço do Isis.
Assim, fica evidente que o combinado Se o ataque se confirmar, o objetivo
e o que ainda será discutido nada mais de desestabilização do grupo pelo maior
é que a exigência de acordos descumpri- armamento do Oriente Médio, o de Is-
dos por Israel. rael, poderá significar a dominação do
Uma semana depois, a história se repe- Isis no país. As políticas articuladas no
te e, tal como em 2012, Israel desrespeita Oriente Médio demonstram uma guer-
o acordo e mata um pescador no mar de ra energética terceirizada do imperialis-
Gaza. Simultaneamente, projetos maio- mo, que se utiliza de grupos árabes pa-
res de retaliação ao povo palestino foram ra dividir e dominar sem sujar as mãos
declarados pelo primeiro-ministro de Is- de sangue.
rael, Netanyahu. A base perversa de um mundo que vi-
ve na realidade sua própria ficção brutal
(mais) 400 ha roubados está no sistema político e econômico que
No dia 30 de agosto, o político anun- estrutura o mundo globalizado: o capi-
ciou a maior apropriação de terras na talismo. Não deveria surpreender ações
Cisjordânia dos últimos 30 anos. Cinco que realizam verdadeiras limpezas étni-
vilas serão afetadas em um roubo de 400 cas para concretizar interesses financei-
hectares. A história dessas vilas já é de ros se ainda não nos revoltamos com um
ininterruptas destruições e despejos por sistema que tem por fundamento a ex-
parte de Israel, marcadamente no evento ploração do homem pelo homem e o rou-
conhecido como Nakba em 1948 (demo- Manifestantes jogam pedras e pneus contra soldados israelenses que atiravam de dentro da prisão Ofer, em Ramallah bo da força de trabalho.
16 de 11 a 17 de setembro de 2014 internacional

Como a ‘Guerra ao Terror’ criou o


grupo terrorista mais forte do mundo Fotos: Reprodução
BARRIS DE PÓLVORA diatamente posteriores ao 11 de setem-
bro. Quase todos os elementos significa-
Estratégia estadunidense tivos no projeto de lançar aviões nas Tor-
res Gêmeas e em outros prédios icônicos
falhou porque não mirou dos EUA remontavam à Arábia Saudita. 
no movimento jihadista Bin Laden era um membro da elite
saudita, e seu pai tinha sido um associa-
como um todo e, acima de do próximo da monarquia saudita. Ci-
tando um relatório da CIA de 2002, o re-
tudo, não mirou na Arábia latório oficial de 11 de setembro diz que
Saudita e no Paquistão a Al-Qaeda, para seu financiamento, de-
pendeu de “uma variedade de doações e
arrecadações, majoritariamente nos paí-
ses do golfo Pérsico e da Arábia Saudita”.
Patrick Cockburn Os investigadores do relatório encon-
de Nova York (EUA) traram seu acesso limitado ou negado
ao buscar informações sobre a Arábia
HÁ ELEMENTOS extraordinários na po- Saudita. E o presidente George W. Bush
lítica atual dos Estados Unidos em rela- aparentemente nunca achou necessá-
ção ao Iraque e à Síria que estão atraindo rio responsabilizar os sauditas pelo que
uma atenção surpreendentemente bai- aconteceu. 
xa. No Iraque, os EUA estão perpetrando A saída de sauditas idosos dos EUA, in-
ataques aéreos e mandando conselhei- cluindo parentes de Bin Laden, foi facili-
ros e treinadores para ajudarem a con- tada pelo governo dias depois de 11 de se-
ter o avanço do Estado Islâmico do Ira- tembro. Foi ainda mais significativo que
que e do Levante (mais conhecido como 28 páginas doComission Report – o re-
Estado Islâmico) na capital curda, Arbil. latório oficial sobre o 11/9 – sobre a re-
Os EUA presumidamente fariam o mes- lação entre os agressores e a Arábia Sau-
mo se o EI cercasse ou atacasse Bagdá. Jihadistas em momento de oração: perigoso jogo político estadunidense dita tenham sido cortadas e nunca publi-
Mas, na Síria, a política de Washington cadas, apesar da promessa do presidente
é exatamente oposta: há muitos oposi- Mas diversos vídeos mostram que a Bri- Estado islâmico, na imposição da charia Obama de fazê-lo, por motivos de segu-
tores do EI no governo sírio e curdos sí- gada Yarmouk frequentemente lutou em (conjunto de leis religiosas), no retor- rança nacional.
rios em seus enclaves do Norte. Ambos colaboração com a Frente al-Nusra, afi- no aos costumes islâmicos, na subjuga- Em 2009, oito anos depois de 11 de se-
estão sendo atacados pelo EI, que já to- liada oficial da Al-Qaeda. Já que era pro- ção da mulher e no travamento de uma tembro, um telegrama diplomático da
mou cerca de um terço do país, incluin- vável que, no meio da batalha, esses dois guerra santa contra outros muçulma- secretária de Estado Hillary Clinton, re-
do a maior parte de suas instalações de grupos dividissem suas munições, Wa- nos, notadamente os xiitas, que são con- velado pelo Wikileaks, dizia que as do-
óleo e gás. shington estava efetivamente permitin- siderados hereges que merecem morrer. ações da Arábia Saudita constituíam a
Mas a política dos EUA, da Europa do que armamento avançado fosse entre- No centro dessa doutrina de guerra está fonte mais significativa de financiamen-
Ocidental e do Golfo Pérsico é derrubar gue em mãos ao seu inimigo mais mor- a ênfase no autosacrifício e no martírio to dos grupos terroristas sunitas mun-
o presidente Bashar al-Assad, que vem tal. Os oficiais iraquianos confirmam que como símbolo de fé e comprometimen- dialmente. Mas, apesar de esse reconhe-
também a ser a política do EI e de outros capturaram armas sofisticadas de com- to com a religião. Isso resultou no uso cimento privado, os EUA e os europeus
jihadis na Síria. E se Assad cair, o EI se- batentes do EI no Iraque que eram origi- de crentes não treinados, mas fanáticos, ocidentais continuaram indiferentes aos
rá o beneficiário, já que será questão de nalmente fornecidas por poderes estran- como homens-bomba, com um efeito pregadores sauditas cujas mensagens se
vencer ou absorver o resto da oposição geiros para forças consideradas de oposi- devastador. espalharam para milhões por meio da
armada síria. [...] Logo o califado pode se ção à Al-Qaeda na Síria. Sempre foi do interesse dos EUA e de TV por satélite, do YouTube e do Twit-
estender da fronteira iraniana até o Me- O nome Al-Qaeda foi sempre aplica- outros governos que a Al-Qaeda fosse ter, clamando pela morte de xiitas como
diterrâneo e a única força que pode pos- do com flexibilidade na identificação de vista como tendo uma estrutura de co- hereges. Esses chamados chegavam con-
sivelmente impedir que isso aconteça é o um inimigo. Em 2003 e 2004, no Iraque, mando e controle como um mini Pentá- forme as bombas da Al-Qaeda estavam
exército sírio. enquanto uma oposição armada iraquia- gono, como a máfia na América. Essa é massacrando pessoas nos bairros xiitas
A realidade da política dos EUA é na se formava, oficiais dos EUA atribuí- uma imagem confortante para o públi- do Iraque. Uma linha fina em outro te-
apoiar o governo do Iraque, mas não a ram a maior parte dos ataques à Al-Qa- co porque grupos organizados, por mais legrama diplomático do Departamento
Síria, contra o EI. Mas uma razão para o eda, apesar de muitos terem sido perpe- demoníacos que sejam, podem ser en- de Estado, no mesmo ano, diz: “Arábia
grupo ter sido capaz de se tornar tão for- trados por grupos do partido Baas e na- contrados e eliminados por meio da pri- Saudita: Antixiismo como Política Exter-
te no Iraque é que ele pode extrair seus cionalistas. Propagandas como essa aju- são e da morte. É mais alarmante a rea- na?”. Agora, cinco anos depois, grupos
recursos e combatentes da Síria. Nem tu- daram a persuadir quase 60% dos votan- lidade de um movimento cujos adep- apoiados pelos sauditas têm um históri-
do o que deu errado no Iraque foi cul- tes dos EUA, antes da invasão do Iraque, tos se autorecrutam e podem surgir em co de sectarismo extremo contra muçul-
pa do primeiro-ministro Nouri al-Mali- que existia uma conexão entre Saddam qualquer lugar. manos não sunitas.
ki, como agora se tornou o consenso po- Hussein e os responsáveis pelo 11 de se- A reunião de militantes de Osama bin O Paquistão, ou melhor, a inteligência
lítico e midiático no Ocidente. Os políti- tembro, apesar de não existir qualquer Laden, que ele não chamava de Al-Qae- militar paquistanesa representada pe-
cos iraquianos têm me dito nos últimos evidência disso. No próprio Iraque, e, na da até depois de 11 de setembro, era só la ISI (Inter-Serviços de Inteligência),
dois anos que o apoio estrangeiro à revol- verdade, no mundo muçulmano inteiro, um dos muitos grupos jihadistas de 12 era outro parente da Al-Qaeda, do Tali-
ta sunita na Síria inevitavelmente deses- essas acusações beneficiaram a Al-Qae- anos atrás. Mas, hoje, suas ideias e mé- bã, e de movimentos jihadistas em ge-
tabilizaria o país deles também. Isso ago- da ao exagerar seu papel na resistência à todos são predominantes entre os jiha- ral. Quando o Talibã estava se desinte-
ra aconteceu. ocupação estadunidense e britânica. dis por causa do prestígio e publicida- grando sob o peso do bombardeio esta-
Ao continuar com essas políticas con- Uma técnica de relações públicas exa- de que ganharam depois da destruição dunidense de 2011, suas forças no norte
traditórias em dois países, os EUA garan- tamente oposta foi usada pelos gover- das Torres Gêmeas, da guerra no Iraque do Afeganistão foram encurraladas por
tiram que o EI pudesse fortalecer seus nantes ocidentais em 2011, na Líbia, e da demonização de Washington co- forças contra o Talibã. Antes que eles se
combatentes no Iraque por meio da Síria quando qualquer semelhança entre a Al- mo a fonte de todo o mal estadunidense. rendessem, centenas de membros da ISI,
e vice-versa. Até agora, Washington teve -Qaeda e os rebeldes patrocinados pela Atualmente, há uma diminuição das di- treinadores militares e conselheiros fo-
sucesso em não levar a culpa pelo cres- Otan lutando para derrubar o líder líbio ferenças nas crenças dos jihadis, apesar ram apressadamente evacuados pelo ar.
cimento do EI e em colocar toda a culpa Muammar Kadafi foi minimizada. Ape- de eles serem ou não formalmente liga- Apesar da evidência clara do patrocínio
no governo iraquiano. Na verdade, criou nas aqueles jihadis que tinham uma li- dos à Al-Qaeda central. do Talibã e dos jihadis em geral pela ISI,
uma situação na qual o EI pode sobrevi- gação operacional direta com o “cora- Não é surpresa que os governos pre- Washington se recusou a confrontar o
ver e pode inclusive prosperar. ção” da Al-Qaeda, Osama bin Laden, fo- ferem a imagem fantasiosa da Al-Qae- Paquistão e, assim, abriu o caminho pa-
ram considerados perigosos. A falsidade da porque lhes permite cantar vitórias ra o ressurgimento do Talibã depois de
Etiqueta da Al-Qaeda do argumento de que os jihadis oposito- quando consegue matar seus membros 2003, que nem os EUA nem a Otan con-
O grande aumento da força e do alcan- res a Kadafi na Líbia eram menos ame- e aliados mais conhecidos. Comumen- seguiram reverter.
ce das organizações jihadistas na Síria e açadores que aqueles em contato direto te, aqueles eliminados ganham postos A “Guerra ao Terror” falhou porque
no Iraque tinha, em geral, passado des- com a Al-Qaeda foi forçosamente e tra- quase militares como “chefe de opera- não mirou no movimento jihadista co-
percebido até recentemente pelos polí- gicamente exposta quando o embaixa- ções” para aumentar o significado de sua mo um todo e, acima de tudo, não mi-
ticos e pelos meios de comunicação no dor dos EUA Chris Stevens foi assassina- morte. A culminação desse aspecto for- rou na Arábia Saudita e no Paquistão, os
Ocidente. Uma grande razão para isso é o do por combatentes jihadistas em Ben- temente propagandeado, mas, em gran- dois países que fomentaram o jihadis-
que os governos ocidentais e suas forças gazi em setembro de 2012. Esses eram os de parte, irrelevante da “Guerra ao Ter- mo como uma crença e um movimen-
de segurança estreitamente dizem que a mesmos combatentes louvados pelos go- ror”, foi a morte de Bin Laden em Abbot- to. Os EUA não o fizeram porque esses
ameaça jihadista é formada por forças vernos e pela mídia ocidental por seu pa- tabad, no Paquistão, em 2011. O fato per- países eram aliados importantes que não
diretamente controladas pela Al-Qaeda pel no levante contra Kadafi. mitiu que o presidente Obama apareces- queriam ofender. A Arábia Saudita é um
central. Isso os permite apresentar um se para o público estadunidense como o mercado enorme para as armas estadu-
quadro muito mais alegre de seu sucesso Al-Qaeda como a Máfia homem que presidiu a captura do líder nidenses, e os sauditas cultivaram, e, em
na chamada “Fuerra ao Terror” do que é A Al-Qaeda é uma ideia mais que uma da Al-Qaeda. Em termos práticos, no en- algumas ocasiões, compraram membros
a situação real. organização, e isso é o caso há muitos tanto, sua morte teve pouco impacto nos influentes da classe política dos EUA. O
Na verdade, a ideia de que apenas jiha- anos. Por um período de cinco anos de- tipos de grupos jihadistas da Al-Qaeda, Paquistão é um poder nuclear com uma
dis com os quais é necessário se preo- pois de 1996, recrutou pessoas, recursos cujas maiores expansões aconteceram população de 180 milhões e um exérci-
cupar são aqueles que têm a benção ofi- e campos no Afeganistão, mas eles fo- subsequentemente. to com ligações próximas ao Pentágono.
cial da Al-Qaeda é ingênua e autoenga- ram eliminados depois da queda do Ta- O ressurgimento espetacular da Al-
nosa. Ignora o fato de, por exemplo, o EI libã em 2001. Subsequentemente, o no- Arábia Saudita e Paquistão -Qaeda e seus desdobramentos aconte-
ter sido criticado pelo líder da Al-Qaeda me Al-Qaeda se tornou majoritariamen- As decisões-chave que permitiram a ceu apesar da enorme expansão dos ser-
Ayman al-Zawahiri por sua violência e te um grito conjunto, uma série de cren- sobrevivência da Al-Qaeda e sua expan- viços de inteligência estadunidense e bri-
sectarismo excessivos. Depois de conver- ça islâmicas centradas na criação de um são posterior foram feitas nas horas ime- tânico e de seus orçamentos depois do 11
sar com uma série de rebeldes sírios jiha- de Setembro. Desde então, os EUA, se-
dis não afiliados diretamente à Al-Qae- guidos de perto pelo Reino Unido, trava-
da no sul da Turquia no começo do ano, ram guerras no Afeganistão e no Iraque
uma fonte me contou que “sem exceção, e adotaram procedimentos normalmente
eles todos expressaram entusiasmo pelos associados a Estados policiais, tais como
ataques de 11 de setembro e torceram pa- prisão sem julgamento, rendição, tortu-
ra que a mesma coisa que aconteceu nos ra e espionagem doméstica. Os governos
EUA acontecesse na Europa”. travam a “Guerra ao Terror” dizendo que
Grupos jihadis ideologicamente próxi- os direitos dos cidadãos individuais de-
mos à Al-Qaeda têm sido reclassificados vem ser sacrificados para garantir a se-
como moderados dependendo de suas gurança de todos.
ações serem consideradas de apoio aos Face a essas medidas controversas de
objetivos das políticas dos EUA. Na Sí- segurança, os movimentos contra quem
ria, os estadunidenses apoiaram um pla- elas foram orquestradas não foram der-
no da Arábia Saudita de construir uma rotados, mas ficaram mais fortes. Na
“Fronte Sulista”, baseada na Jordânia, época do 11 de Setembro, a Al-Qaeda era
que seria hostil ao governo de Assad em uma organização pequena, geralmente
Damasco e simultaneamente hostil aos ineficaz; em 2014 grupos do estilo da Al-
rebeldes do tipo da Al-Qaeda no Norte e -Qaeda são numerosos e poderosos.
no Leste. Em outras palavras, a “Guerra ao Ter-
A poderosa, mas supostamente mode- ror”, que delineou o cenário político de
rada Brigada Yarmouk, noticiada como o boa parte do mundo desde 2001, eviden-
recipiente estratégico de mísseis antiaé- temente falhou. Antes da queda de Mo-
reos da Arábia Saudita, deveria ser o ele- sul, ninguém prestava muita atenção.
mento de liderança nessa nova formação. Osama bin Laden, líder da Al-Qaeda (Opera Mundi/TomDispatch)

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