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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DAS HORTÊNSIAS


ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS

CÍCERO SILVEIRA CHRISTINO

SOBERANIA POPULAR E ÁGORA VIRTUAL:


DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

CANELA, RS
2018
CÍCERO SILVEIRA CHRISTINO

SOBERANIA POPULAR E ÁGORA VIRTUAL:


DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Trabalho de conclusão de curso


apresentado no Curso de Direito da
Universidade de Caxias do Sul, Campus
Universitário da Região das Hortênsias,
como requisito à obtenção do título de
Bacharel em Direito.
Orientador Prof. Ms. Luiz Fernando
Castilhos Silveira

CANELA, RS
2018
CÍCERO SILVEIRA CHRISTINO

SOBERANIA POPULAR E DEMOCRACIA DIGITAL:


O PODER CONSTITUINTE INSERIDO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Trabalho de conclusão de curso


apresentado no Curso de Direito da
Universidade de Caxias do Sul, Campus
Universitário da Região das Hortênsias,
como requisito à obtenção do título de
Bacharel em Direito.
Orientador Prof. Ms. Luiz Fernando
Castilhos Silveira

Aprovado em 30 de novembro de 2018.

Banca Examinadora
_________________________________________
Prof. Ms. Luiz Fernando Castilhos Silveira - Orientador
_________________________________________
Profª. Drª. Daniela de Oliveira Miranda
_________________________________________
Prof. Ms. Moisés João Rech
Dedico este trabalho às vozes que, embora
tenham muito a dizer não encontram no, no
sistema político atual, o ouvido que lhes é
negado e o espaço necessário para a
participação cívica.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, que, embora longe, sempre estiveram presentes e
foram tão importantes para que este momento fosse possível; à Ana, minha
companheira, por ter sido o apoio necessário nas horas mais difíceis; à comunidade
acadêmica, pelo suporte sem o qual nada teria sido possível; e ao incansável
professor orientador, por brindar luz a esta etapa tão importante da caminhada.
“Injustos fazem leis
E o que resta ‘proceis’?
Escolher qual veneno te mata”
EMICIDA
RESUMO

A presente monografia, partindo do problema referente à inércia do agir estatal em


face dos meios tecnológicos, e de como estes podem impactar a práxis democrática,
objetivou abordar as viabilidades proporcionadas pelo advento das novas tecnologias
da informação quanto ao exercício da soberania popular constitucional. Em um
primeiro momento, abordou-se conceitos básicos para o desenvolvimento do tema,
tais como povo, soberania popular e democracia participativa. Após, considerando a
abrangência dos avanços tecnológicos, que, por intermédio das conexões de rede, já
permeiam toda a estruturação sociológica hodierna, foi firmada a noção acerca do
que, de fato, as novas tecnologias da informação têm proporcionado ao processo
cívico e à atividade democrática. No momento seguinte, foram analisados, à luz da
doutrina já estabelecida, dois casos práticos de intervenção democrática a partir dos
meios eletrônicos, quais sejam: o processo constituinte islandês, obrado,
principalmente, por meio de redes sociais; e o Orçamento Participativo Digital,
realizado na cidade de Belo Horizonte. Por fim, deu-se ênfase a uma análise relativa
às possibilidades oriundas de tais casos, ressaltando as falhas e virtudes de cada um
em relação ao exercício prático da soberania popular enquanto participação direta do
cidadão no processo político. Foram obtidas conclusões acerca de como o poder
público deve se posicionar no sentido de ampliação da democracia e quais
ferramentas podem oferecer risco à idoneidade do processo.

Palavras-chave: democracia, soberania popular, ágora virtual.


ABSTRACT

The present monograph, based on the problem of the inertia of state action in the face
of technological means, and how they may impact democratic praxis, aimed to address
the viability provided by the advent of the new information technologies regarding the
exercise of popular constitutional sovereignty. First, basic concepts for the
development of the theme, such as people, popular sovereignty and participatory
democracy, were discussed. After, considering the scope of the technological
advances, which, through the network connections, already permeate the whole
sociological structure of today, was established the notion about what, in fact, the new
information technologies have provided to the civic process and to the activity
democracy. The next moment, in the light of the established doctrine, two practical
cases of democratic intervention were analyzed from the electronic means, namely:
the Icelandic constituent process, mainly done through social networks; and the
Participatory Digital Budget, held in the city of Belo Horizonte. Finally, emphasis was
placed on an analysis of the possibilities arising from such cases, highlighting the faults
and virtues of each in relation to the practical exercise of popular sovereignty as a
direct participation of the citizen in the political process. Conclusions were reached
about how the public power should position itself in the sense of expanding democracy
and which tools could risk the suitability of the process

Keywords: democracy, popular sovereignty, virtual agora.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11
2 O POVO SOBERANO ........................................................................................... 14
2.1 – O POVO NOS TEXTOS CONSTITUCIONAIS ......................................................... 15
2.2 – SOBERANIA POPULAR .......................................................................................... 17
2.3 – DEMOCRACIA PARTICIPATIVA ............................................................................. 21
3 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E DEMOCRACIA DIGITAL ............................. 26
3.1 – SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E VIDA EM REDE ............................................... 27
3.2 – GOVERNO ELETRÔNICO ...................................................................................... 31
3.3 – ÁGORA VIRTUAL ................................................................................................... 39
4 CASOS DE ESTUDO: PARTICIPAÇÃO POPULAR A PARTIR DAS
TECNOLOGIAS DE REDE ....................................................................................... 42
4.1 – REFORMA CONSTITUCIONAL ISLANDESA ......................................................... 44
4.2 – ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DIGITAL EM BELO HORIZONTE ........................ 48
5 ANÁLISE DOS CASOS EM VISTA AO ALINHAMENTO COM O PRINCÍPIO
CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA POPULAR ................................................... 51
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 55
7 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 58
11

1 INTRODUÇÃO

Considerando as inegáveis e profundas modificações sociológicas provocadas


pelos avanços mais recentes no âmbito da tecnologia da informação, a presente
monografia se insere no debate referente ao tema da soberania popular constitucional
e da participação cidadã direta a partir dos meios que integram o conceito de
Democracia Digital.

As possibilidades proporcionadas com o advento das novas tecnologias da


informação, pela forma como influenciam todas as inter-relações humanas e a
sociedade de modo geral, em todos os aspectos, estão ligadas à multiplicidade de
vozes englobada a partir da noção de rede. Assim, o desenvolvimento dos meios
tecnológicos e da ideia de conexão e diálogo entre pontos remotos, tem aberto canais
aptos a propiciar a troca de considerações entre indivíduos dos mais diversos arranjos
de comunidade. Ora os limites dessas comunidades virtuais reproduzem uma noção
de estrita territorialidade, como exemplo dos grupos formados por moradores de
determinado bairro, no aplicativo Whatsapp, ora se arranjam de acordo com
interesses em comum, pondo em contato segmentos de experiências específicas por
meio de algoritmos utilizados nos mecanismos de busca na internet.

Da mesma forma que não se pode, porquanto seria anacrônico, aplicar o


modelo de democracia praticado em seus primórdios, datado da antiguidade grega, é
inconcebível que o Estado se mantenha inerte em face de tais mudanças de
paradigma oriundas da composição sociológica atual. O sistema democrático vigente
na maior parte dos países ocidentais, embora oferte determinadas possibilidades de
escolha ao cidadão, priva-o da plenitude de participação. Logo, a importância de
realizar-se uma busca por alternativas ao referido sistema engessado é mister.

A contradição supramencionada é concebida na maior parte das constituições


modernas logo na definição da titularidade referente à soberania do poder e de seu
exercício. Tal discrepância se confirma ao passo que os textos constitucionais
legitimam seus dizeres a partir da soberania popular, mas que conduzem à realidade
constitucional a ser exercida pela teoria da soberania nacional.

Em face dos fatores abordados, e da contextualização dada ao debate, o


presente trabalho monográfico terá por escopo enfrentar o problema referente à
inércia do Estado – inserido na sociedade permeada pela existência das redes já
12

referidas - em viabilizar o exercício da participação cidadã constitucional. Mais


precisamente, a abordagem teórica buscará responder o seguinte questionamento:
como os meios advindos das novas tecnologias da informação têm impactado
questões atinentes à reafirmação da soberania popular constitucional e ao
desenvolvimento da democracia?

A hipótese da qual se parte na idealização desta obra guarda, todavia, certa


ressalva quanto ao acesso aos meios que propiciarão avanços no campo
democrático, pois é imperioso que a participação mencionada não se descuide do
cerne da democracia, considerando que os meios possivelmente utilizados exigem
observância de princípios como o da Universalidade e Igualdade, de forma que a
tecnologia não seja um fator impeditivo e segregador. Pelo contrário, é evidente a
necessidade de que haja uma tutela maior do Estado sobre a distribuição destes
meios, já que se apresentam como facilitadores da atividade cívica e democrática.

É nesta senda que se objetivou abordar a viabilidade de adaptação da


participação popular constitucional apontando à ampliação da práxis democrática
mediante utilização de tantos meios quanto estejam atualmente disponíveis e analisar
o alinhamento de programas aos ideais democráticos apontados pela doutrina. Para
tanto, fez-se necessária a análise da doutrina constitucionalista acerca de elementos
tais como a soberania popular, as formas de exercício da democracia; bem como a
busca pela produção acadêmico-científica concernente na participação cidadã por
meio das redes.

Para norte da leitura que segue, há que frisar que nossa Constituição Federal
é intrinsicamente vinculada, desde sua concepção, à resistência das instituições
jurídicas face ao golpe de Estado que vitimou e impôs opressões arbitrárias ao país
nas décadas que a antecederam e que traz em seu corpo diversos sinais que visam
a garantir a permanência da possibilidade de participação. A Carta Magna pátria é,
por excelência, símbolo da liberdade e da democracia de uma nação oprimida e
colonizada desde suas raízes, de modo que deve se manter evoluindo e propiciando
cada vez mais aberturas ao povo – soberano por excelência.

O desenvolvimento do tema se dará a partir da análise doutrinária acerca dos


pontos essenciais da discussão concernente à soberania popular, à democracia, as
previsões constitucionais e principiológicas desta, e aspectos já evidenciados
13

academicamente no que diz respeito à teoria que a relaciona com as tecnologias da


informação. Desta forma, a abordagem se estenderá dentro dos limites acima
propostos, priorizando ater, fundamentalmente, a apreciação dos elementos a um viés
constitucional.
14

2 O POVO SOBERANO

Para melhor desenvolvimento do tema ora proposto, optou-se por identificar,


inicialmente, determinados elementos essenciais ao debate. Desta forma, o estudo se
pautou de acordo com conceitos comuns aos textos constitucionais, que justificam a
existência destes e dizem respeito ao objeto do estudo do direito constitucional,
analisando-lhes a abrangência e a aplicação no âmbito do exercício da limitação do
poder do Estado. Logo, enquanto objeto primordial da análise do presente estudo,
buscou-se elucidar o concernente à titularidade da soberania prevista
constitucionalmente, contextualizando o debate em uma sociedade que, por meio das
redes, cada vez mais descentraliza as discussões inerentes às questões que lhe
dizem respeito.

Assim, revelou-se necessário partir das interpretações a respeito da utilização


do termo Povo nos textos constitucionais, de modo a situar os elementos essenciais
referentes à práxis constituinte aplicável na concepção da ampliação da participação
democrática constitucional na sociedade em rede.

Portanto, este primeiro capítulo se centrará em introduzir conceitos de povo


enquanto elemento constitucional, abordar a soberania popular e seus
desdobramentos, bem como em tecer certas considerações acerca da democracia
direta e suas previsões em nossa Constituição.

Compreender o significado destes termos e previsões constitucionais, é de


extrema importância para o desenvolvimento da presente monografia, porquanto são
elementos essenciais para a plenitude democrática, tendo em vista que não há falar
em Estado sem “povo”, tampouco estudar o direito constitucional sem compreender a
questão atinente à soberania deste. De igual forma, urge que seja superada a
distinção entre representação e democracia, porquanto a contraditória “democracia
representativa” – a qual, em nossos cotidianos, sequer questionamos por pura
submersão paradigmática – já foi, em seus primórdios, compreendida como um
paradoxismo (RANCIERE, 2014, p. 70).
15

2.1 – O POVO NOS TEXTOS CONSTITUCIONAIS


A questão referente ao conceito de “povo” nos textos constitucionais é
abordada historicamente, e sua abordagem se justifica considerando que este, desde
os primeiros brados que se contrapuseram ao poder do absolutismo, é o titular do
poder constituinte. Ao menos, sua titularidade é o que justifica o agir estatal, validando
o teor das cartas constitucionais vigentes na atualidade. Neste sentido, cumpre trazer
à baila lição de José Joaquim Gomes Canotilho (1997, pp. 65, 66):

Veremos que, hoje, o titular do poder constituinte só pode ser o povo, e que
o povo, na actualidade, se entende como uma grandeza pluralística formada
por indivíduos, associações, grupos, igrejas, comunidades, personalidades,
instituições, veiculadores de interesses, ideias, crenças e valores, plurais,
convergentes ou conflitantes.

Definida a importância da conceituação, antes de partir para tal tarefa, faz-se


imperiosa uma distinção entre termos que comumente são confundidos,
estabelecendo os construtos necessários para o desenvolvimento da discussão ora
proposta, quais sejam: povo, população e nação.

Para tanto, aproveita-se a linha de estudo estabelecida na dissertação de


Sidney Guerra (2006), que, recorrendo às conclusões de Aristóteles, refere que “tem-
se por população como uma expressão demográfico-matemática, ligada à geopolítica,
que expressa o grupo de pessoas residem em determinada região numa certa época”
(GUERRA, 2006, p. 18).

Quanto ao termo “nação”, o referido autor estabelece o seguinte conceito:

uma sociedade que depara denominadores comuns, tais como, identificação


cultural, étnica, linguística, formas de encarar o mundo, entre outros,
comunidade preparada para desempenhar um único objetivo. (GUERRA,
2006, p. 19)

Assim, a significação, como se percebe, remete à ideia de nacionalidade,


propriamente dita. Todavia, ainda que se tenha entendido pela necessidade de
delimitação conceitual, as noções de nação e povo não se podem ser entendidas
como elementos completamente dissociados, considerando que, conforme Habermas
(2007, p. 155):

Permanece a questão empírica a respeito de quando e em que medida as


populações modernas se entendem a si mesmas como uma nação de
membros de um povo ou de concidadãos.
16

Logo, é notável a relação intrínseca entre ambos os termos. Prossegue, mais


adiante, Habermas apresentando certa dualidade de conceitos referentes ao termo
nação, um, utilizado na base teórica sedimentada durante o período iluminista, e outro,
hodiernamente praticado nos discursos constitucionalistas, conforme abaixo
transcrito:

De acordo com o conceito clássico de fins do século XVIII, “nação” significa


o povo de um Estado, que se constitui como tal, na medida em que ele se
confere uma constituição democrática. Esse conceito está em concorrência
com a visão, surgida no século XIX, segundo a qual a soberania popular
pressupõe um povo que, em contraste com a ordem artificial do direito
positivo, projeta-se para o passado como algo organicamente crescido.
(HABERMAS, 2007, p. 158)

Tais ideias, que, mais abaixo serão retomadas, remontam a conexão de nação
e povo com os textos constitucionais. Estes conceitos, assim como a forma com a
qual se relacionam, são de extrema importância no debate atinente à soberania
constitucional, o que será abordado de forma mais detalhada no título específico.

Aliás, no primeiro período referido no trecho supratranscrito, a questão da


soberania nacional (que se refere à nação) e da soberania popular (do povo) foi alvo
de reforma dos primeiros textos constitucionais que precederam a revolução francesa.
Estas mudanças são assinaladas por Rüdiger Voit (2013, pp. 107, 108):

A Revolução Francesa (1789-1799) levou primeiramente na França e depois


também em outros estados ao fim da dominação feudal. Os revolucionários
reivindicaram para si o direito e a obrigação de agir em nome de toda a
humanidade. A comum declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é
uma prova extraordinária dessa atitude. Ao mesmo tempo, a soberania do
príncipe é substituída primeiramente pela soberania da nação e, mais tarde,
pela soberania do povo. Na primeira constituição pós-revolucionária afirma-
se que a soberania “pertence à nação”, como formula o Art. 1º do Título III da
Constituição francesa de 1791. [...]

Na segunda constituição revolucionária de 1793 já não se fala mais da nação


como soberano. Por sua vez, lê-se o seguinte sob o título “Da soberania do
povo”, no Art. 7º: “O povo soberano é a totalidade dos cidadãos franceses.

Dessarte, embora o “povo” se trate de um termo utilizado à estafa nos mais


diversos discursos referentes ao debate político e constitucional, precisar-lhe o
conceito não pode ser considerada uma tarefa tão simples. Tal complexidade inspirou
a obra de Friedrich Müller, que, já em seu título, questiona “Quem é o Povo?”,
apontando, no subtítulo, que trata-se da “questão fundamental da democracia”. Desta
obra, quanto ao mencionado termo e seu emprego nas cartas constitucionais, é
possível extrair as seguintes considerações:
17

De qualquer modo essa expressão pertence ao conjunto das expressões


mais prenhes de pressupostos e também ao conjunto das expressões menos
seguras dos referidos documentos constitucionais.
O objetivo, com o qual estes a empregam, é evidentemente sempre a
legitimação do Sistema Político constituído. (MÜLLER, 2003, p. 52)

Na concepção de Jürgen Habermas (2007), o povo possui sua identidade


enquanto elemento pré-constitucional e histórico, se tratando de um produto do
contrato social, conforme já explicitado alhures. Seguindo-se, então, a linha dos
contratualistas, é constituído a partir do momento em que abdica das liberdades
oriundas do estado de natureza, onde, conforme elucidação de Jean Jacques
Chevallier (1998, p. 10) acerca do Ensaio Sobre o Governo Civil, de John Locke, “cada
um é juiz em causa própria; cada um, igual ao outro, é de certo modo rei”, para
conduzir as questões em comum através do consentimento. Ora, e o que seria a
democracia, senão uma forma de acordo mútuo entre as diversas partes que
compõem o debate? Nota-se, então, que povo e democracia são dois elementos
interdependentes, da etimologia desta às origens daquele.

É justamente pelos motivos elencados, que uma revisão da prática que envolve
a atuação do direito constitucional deve ser voltada a analisar de forma crítica as
questões atinentes à soberania, pois, aludindo ao já mencionado Friedrich Müller
(2003, pp. 89, 90),

as invocações do povo legitimador nos textos das normas apresentam-se


como direito constitucional com caráter de obrigatoriedade na República
Federativa do Brasil; a legitimidade dessa constituição bem como a da
constituição alemã deve poder deixar vincular-se no plano da realidade ao
povo ativo, ao povo enquanto instância de atribuição e ao povo-destinatário.

Portanto, é ao povo ativo que deve se vincular a realidade constitucional,


garantindo, assim, seja exercida a soberania justamente por esse ente real e plural
que habita a comunidade a quem a lei se dedica.

2.2 – SOBERANIA POPULAR


A soberania popular, em nossa Lei Maior, se encontra insculpida já no artigo
1º, demonstrando o compromisso do constituinte de 1988 com o clamor e o anseio
por dar voz ao povo oprimido durante as décadas que precederam a Assembleia.
Logo, mormente estando sua previsão localizada onde já foi referido, é princípio
indispensável que instrui a leitura do texto constitucional. Assim, a importância de uma
reflexão minuciosa acerca de tal instituto se faz, igualmente, premissa para todo o
18

estudo que a presente monografia pretende abranger. Todavia, conforme restará a


seguir exposto, o instituto supramencionado possui ampla margem para contradições
e um vasto campo em que o debate floresce no sentido de desvendar flexibilizações
conceituais que permitem sua utilização como justificação do agir governamental.

O estudo concernente à soberania popular será construído, portanto, mediante


necessária conceituação e análise das problemáticas propostas pela doutrina
pesquisada.

Entretanto, para que qualquer conceito tome algum sentido no debate ora
proposto, se faz imperiosa a contextualização do instituto em análise. Para tanto,
recorre-se à obra de Canotilho (1997), que identifica dimensões do princípio da
soberania sedimentadas historicamente que vão se complementando de acordo com
a exigência da anterior. Destaca, nesta seara, como elemento inicial de tal
sistematização, o domínio político, referente ao exercício de poder dos homens sobre
os homens, que, por não se tratar de algo pressuposto, carece de legitimação; por
conseguinte, tem-se o elemento da legitimação, que, conforme leciona o doutrinador,
neste contexto, só pode derivar do povo; logo, o elemento seguinte é o povo,
compreendido como poder que se apresenta em contraposição aos modelos de
domínio impostos e que requer o aval democrático oriundo da participação popular
em si; e, por último, explana que, conferidas as dimensões já mencionadas, a
organização da democracia mediante uma constituição.

Assim, a soberania popular, que, segundo abordado acima, já nas primeiras


constituições conferidas após a revolução francesa superou a questão da soberania
nacional, envolve todo um contexto que lhe possa propiciar a existência.

Relativo a tal contexto, parte da doutrina identifica um paradoxo atinente à


relação da soberania popular e do texto constitucional, tendo em vista que a
constituição, em si, possui a função de, justamente, limitar o poder do soberano, quem
quer que seja. Alinhado a esta vertente doutrinária, se encontra o pensamento de
Negri (2002), que entende que os textos constitucionais se referem ao ânimo do
constituinte no momento em que o expressou, referindo-se, necessariamente, aos
anseios anteriores à concepção legislativa.

Em contraponto, destaca-se a lição que versa o estudo de Chueiri e Godoy


(2010, p. 6), no qual se entende que “o constitucionalismo (...) acontece no presente,
19

não como mera repetição do passado, mas como condição para o exercício dos
direitos, isto é, como condição para a ação política, e, assim, o constitucionalismo abre
perspectivas para o futuro”. E as perspectivas apresentadas pela Constituição Federal
de 1988 são esclarecedoras na medida em que, como já mencionado, prevê a
Soberania Popular em seus alicerces (BRASIL, 1988). Entretanto, não é somente no
parágrafo 1º do art. 1º da Carta Magna que a soberania popular encontra espaço,
tendo em vista que seu art. 14 prevê hipóteses de exercício de tal poder. Assim,
garante, como mencionado pelos autores, perspectivas ao agir participativo cidadão.

O contraponto entre as posições explicitadas se sintetiza em uma questão de


hermenêutica constitucional, tendo em vista que a ideia de que a soberania se
extinguiria no momento da distinção entre poder constituinte e poder constituído
pressupõe uma interpretação estritamente ligada ao positivismo do constitucionalismo
formal. Ou seja, a norma original quedaria engessada em face aos apelos que vão
surgindo no decorrer da história de um povo. É no mesmo sentido que apregoa Paulo
Bonavides, no estudo acerca da constitucionalidade do art. 14, da Constituição
Federal de 1988 (2001, p. 121):

Com a constitucionalidade material o que se busca, num determinado


sentido, é conciliar a realidade com a Constituição, o ser com o dever-ser, a
regra com o princípio, o direito do cidadão com a autoridade do Estado. De
tal maneira que se venham a captar, na ordem fática, elementos de
juridicidade com que erguer a base normativa de concretização dos preceitos
ou comandos, a partir da letra do texto constitucional, combinado, a seguir,
com os aludidos elementos de facticidade.

Por este motivo é que, em uma sociedade onde o sistema representativo de


democracia se encontra cada vez mais desgastado (TELLES JÚNIOR, 2014), a
hipótese de a interpretação da norma constitucional se quedar inerte no tempo feriria
tantos princípios quantos se possam enumerar. E, especificamente quanto à
participação, o já referido art. 14, da Carta Magna, permite, por uma interpretação
puramente formal, a prevalência da representatividade sobre a participação. Não é
que se trate de uma completa dicotomia entre ambas, mas um vício na relação oriundo
de uma questão básica, muito bem trabalhada por Ranciere (2014, p. 70): “a
representação é, em sua origem, o exato oposto da democracia”, e complementa
relatando que

Ninguém ignorava isso nos tempos das revoluções norte-americana e


francesa. Os Pais Fundadores e muitos de seus seguidores franceses viam
nela justamente o meio de a elite exercer de fato, em nome do povo, o poder
que ela é obrigada a reconhecer a ele, mas ele não saberia exercer sem
20

arruinar o próprio princípio do governo. Os discípulos de Rousseau, de sua


parte, somente a admitem repudiando o que a palavra significa, ou seja, a
representação dos interesses particulares. A vontade geral não se divide e os
deputados representam apenas a nação em geral. Hoje, “democracia
representativa” pode parecer um pleonasmo, mas foi primeiro um oxímoro.

O paradoxo lógico da democracia representativa é evidenciado de forma


simples na lição de Alkmin (2013) apud Toldo (2017, p. 24):

A representação política é uma impossibilidade lógica. Em um sistema


eleitoral representativo, os termos A (representados) e B (representantes)
não podem jamais ser igualados, senão no momento exato da votação. A
equação A = B pode ser validada logicamente pela matemática ou pela teoria
dos conjuntos, mas tão somente do ponto de vista abstrato. A ação política
exige a vontade expressa dos cidadãos, que antecede o seu consentimento,
a sua autorização ou delegação.

Desta forma, a interpretação do art. 14, CF, como já mencionado, necessita ser
norteada pelo constitucionalismo material, de forma que possa atender
satisfatoriamente aos princípios da Soberania Popular e da Democracia. Portanto, no
momento em que o Estado deixa de realizar a interpretação em prol do titular da
soberania, age de forma inconstitucional, conforme lição de Paulo Bonavides (2001,
pp. 125-126):

O segundo procedimento hermenêutico deriva da teoria material da


Constituição, e a ele pertence o futuro das Constituições.
Urge utilizá-lo, para demonstrar que o mesmo torna imediatamente eficaz a
norma do art. 14 da Constituição [...].
Com efeito, se ficarmos jungidos à metodologia tradicional [ligada ao
constitucionalismo formal], como, aliás, tem acontecido na área judicante, a
cláusula que institui aquelas técnicas de exercício da soberania permanecerá,
em razão da reserva de lei ali posta, indefinidamente tolhida em sua
aplicação.
[...] A inconstitucionalidade passa, pois, a residir ali, no atraso jurisprudencial,
na letra de arestos e sentenças que contrariam a vontade constituinte
expressa naquela norma, ela, sim, veículo, essência, instrumento, técnica e
braço da democracia direta parcialmente insculpida no parágrafo único do art.
1º.

Muito além da interpretação do aludido artigo que trata sobre os direitos


políticos na Carta Magna de 1988, a hermenêutica constitucional deve se voltar ao
povo e a participação, por força dos princípios já relatados. É o que se colhe do
magistério de Peter Häberle (2002, p. 55):

Constitucionalizar formas e processos de participação é uma tarefa específica


de uma teoria constitucional (procedimental). Para conteúdos e métodos, isto
se aplica de forma limitada. Fundamentalmente, o processo político deve ser
(e deve permanecer), tanto quanto possível, aberto.
21

Como se percebe, a soberania popular, para ser exercida em plenitude,


necessita da ampliação do chamamento do “povo”, mencionado no título anterior, ao
processo cívico e à prática da cidadania pelas vias diretamente democráticas. Pois,
como leciona Paulo Bonavides (2001, p. 9), referindo-se à inserção da democracia
constitucional contextualizada pela forma como a economia mundial rege a
organização das sociedades contemporâneas,

Se os punhais do neoliberalismo assassinarem a doutrina de uma tão


redentora forma de justiça distributiva, que é o Estado social, a Nação reagirá
para fazer o milagre da ressureição. O mesmo se diga com respeito à
Constituição e à soberania.
Democracia participativa e Estado social constituem, por conseguinte,
axiomas que hão de permanecer invioláveis e invulneráveis, se os povos
continentais da América Latina estiverem no decidido propósito de batalhar
por um futuro reside tão-somente na democracia, na liberdade e no
desenvolvimento.

Percebe-se, pelo exposto, que a participação direta é o meio ideal pelo qual o
povo pode exercer a soberania ora trabalhada e que lhe atribui o texto constitucional
de forma plena e pragmática.

2.3 – DEMOCRACIA PARTICIPATIVA


Tomando a democracia enquanto requisito essencial do Estado de Direito
moderno, antes de adentrar na discussão acerca dos modelos democráticos e,
especificamente, do modelo participativo de exercício da cidadania, cumpre elencar
dois princípios explanados por José Afonso da Silva (1992, p. 110-111):

Limitar-nos-emos a indicar esses princípios sem entrar em pormenores,


porque ao longo deste curso serão estudados no momento próprio, se já não
foram. São os seguintes: a) princípio da constitucionalidade, que exprime, em
primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade
de uma Constituição Rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de
supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, com as
garantias de atuação livre de regras de jurisdição constitucional;
b) princípio democrático, que nos termos da Constituição, há de se constituir
uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a
garantia da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º).

Nota-se, portanto, que o povo na figura de titular do poder constituinte,


mediante participação direta, trata-se de elemento indissolúvel dos ideais
democráticos na formação do texto constitucional.

Nesta seara, faz-se necessária uma abordagem pragmática quanto à forma


representativa de participação deste mesmo povo em face das relações oriundas da
22

vida em comunidade, do abandono do estado de natureza. A representação, em que


pese a corrente doutrinária aludida por Corval (2015, p. 5), que entende “o
representante não age por outrem, colocando-se, antes, ao seu lado, identificando-se
com o representado”, se institui com malícia semelhante à da legitimação da
soberania a partir do povo. O referido sistema já apresenta tantas discrepâncias com
a própria democracia que é insustentável que não seja rediscutido. É nesse sentido a
lição de Goffredo Telles Júnior (2014, p. 86):

O que parece evidente é que a crise da Democracia – e não é somente a


crise da Democracia brasileira – se cifra precisamente na crise de
representação política. Os regimes ditos “representativos” carecem do ideal
da representatividade.
Algum erro existe no processo da influência da vontade do povo nos órgãos
deliberativos do Governo.
[...]
Pelo sistema tradicional, todos os eleitores são igualados uns aos outros.
Todos, no dia da eleição – como já foi assinalado – valem exatamente o
mesmo: cada um vale um voto. Mas grita aos céus que essa homogeneidade,
essa unidade, não existe. Não passa de uma pura ficção.

Frisa-se, a partir do mencionado, que o modelo representativo não se trata da


representação da vontade geral, ou da vontade de determinado segmento da
população, mas da vontade partidária, tratando-se, desta forma, conforme a aludida
obra, de uma representação política, que, ao fim e ao cabo, é melhor especificada
como uma esperança de representação (TELLES JÚNIOR, 2014). E é nesta mesma
senda que Hamon, Troper e Burdeau (2005, p. 167) afirmam que, segundo a teoria
da representação, “o representado, o povo ou a nação, só existe a partir do momento
em que uma vontade é expressa em seu nome, ou seja, a partir do momento em que
ele é representado”, de fato. E a isso se deve a grande crise das instituições políticas
vivida na atualidade.

Ademais, observa-se que ainda que para reconhecidos autores, como Stuart
Mill, conforme indica Dalaqua (2016, p. 15), a democracia representativa seja
“preferível às demais formas de governo”, tendo em vista que otimizaria a chance dos
cidadãos de participar da política, é indubitável que tal consideração se refere às
circunstâncias de determinada época. Assim, tal modelo, embora em teoria comporte
os mais diversos segmentos de nossa sociedade, não é apto a traduzir a pluralidade
existente em qualquer conjunto complexo de seres que se agregam para formar um
corpo maior. A pluralidade, referida sob a égide do conceito de “povo” concebido por
23

Friedrich Müller (2003) exposto no respectivo subtítulo, não é algo a ser vencido pela
maioria, mas observado na construção de cada nova decisão que surge no seio da
democracia.

E é justamente a pluralidade que reforça a necessidade de se reconhecer a


importância da democracia participativa, visto que o modelo representativo, em que
pese sua potencialidade em traduzir o ânimo de determinados segmentos da
população, não tem o condão de traduzir os anseios da sociedade em sentido integral
(SILVA, 1992).

A incompatibilidade entre os meios e o resultado esperado, acima trabalhada,


reside no fato de que nem todos os setores da sociedade se encontram representados
no atual sistema de exercício da cidadania por meio das eleições, tendo em vista que
estas se tratam de um processo que visa justamente à competição entre os anseios
plurais, em que o vencedor acaba prevalecendo sobre o vencido. Desta forma, este
último é excluído do sistema democrático, passando a estar à margem das decisões
políticas da comunidade.

A diversidade se dá por conta da vivência, da personalidade, dos gostos, das


tendências culturais, políticas, filosóficas, morais, de cada um dos indivíduos que
compõem o grupo acima denominado como “povo”. Nesta senda, de aludir à lição de
Bittar e Almeida (2015, p. 791):

Assim, toda democracia deve necessariamente zelar pela transição pacífica


da gestão de governo, bem como deve zelar pelo resguardo ao direito às
minorias, à dissidência e à discordância. Se todos têm o mesmo direito e o
mesmo dever à lei, revelando-se aqui a ideia da igualdade, ao mesmo tempo,
todos têm o direito de serem considerados em suas particularidades,
revelando-se aqui a ideia parceira, a da diversidade. Estas duas ideias andam
lado a lado, e devem se complementar como forças, e, por isso, toda luta
emancipatória, deve governar-se a partir destes dois critérios.

Com vistas às minorias, reforça-se a necessidade de a democracia ser o mais


pluralista possível. A democracia deve ser o ouvido aberto ao povo, instituto este
considerado a partir das partículas, em uma visão atômica da sociedade e seus
componentes. Todavia, os autores acima evocados alertam para a importância de que
os direitos humanos pautem esse debate (BITTAR e ALMEIDA, 2015). Não se trata
de uma imposição de um ponto de vista, neste caso, mas de uma premissa hábil no
sentido de isolar os efeitos negativos subjacentes do estado de natureza.
24

O debate ocorrendo dessa forma se encontrará alinhado com o ideal de “véu


da ignorância”, concebido por Rawls (2000) com vistas a garantir a equidade dos
processos de formação das bases para um contrato social, ou seja, no “momento
inicial em que se definem as premissas com as quais se construirão as estruturas
institucionais da sociedade”, segundo explicam Bittar e Almeida (2015, p. 489). Nas
palavras do pai do conceito acima referido,

De algum modo, devemos anular os efeitos das contingências específicas


que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a explorar as
circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício. Com esse
propósito, assumo que as partes se situam atrás de um véu de ignorância.
Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular,
e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas
considerações gerais. (RAWLS, 2000, p. 147)

Esta ideia está diretamente relacionada com o conceito de democracia


militante, por exemplo, surgido como crítica ao autoritarismo alemão do princípio do
século XX, fins de preservar a capacidade participativa, garantindo a democracia e
sua aplicação ulterior (URBINA, 2012). Logo, percebe-se que o pluralismo necessário
para o exercício democrático das decisões em uma comunidade não prescinde de
determinados pontos aptos a guiar o debate no sentido da ampliação e consolidação
do agir comunicativo. A comunicação, destarte, de acordo com o que pontua a
doutrina de Habermas (1997), orientada pelo entendimento mútuo, leva a uma busca
de acordos entre os integrantes de uma mesma comunidade. Acerca do exercício
dialógico da democracia, dentro da concepção habermasiana acima referida, importa
a explanação do estudo de Oliveira e Fernandes (2013, p. 26):

Além do mundo sistêmico, já descrito por Weber, para Habermas, existe a


vitalidade do mundo da vida que guarda as tradições, a cultura e a linguagem,
que tornam a vida humana possível de ser compreendida como natural. [...]
É no mundo da vida que brotam as demandas dos sujeitos por um mundo
melhor, por alternativas de vida, por formas mais concretas de atendimento
às necessidades, tanto materiais quanto morais. A partir das experiências,
construídas pela comunicação, os indivíduos se associam e apresentam em
uma esfera pública mais ampla aquilo que consideram como justo e lutam
para modificar o panorama social. Há um espaço, engendrado no mundo da
vida, para a emancipação dos sujeitos, para o fortalecimento dos laços de
solidariedade e das construções das identidades plurais.

Estabelecidos os rumos necessários para a participação democrática, que se


insere no âmbito do mundo da vida, onde se dão os embates de ideias, ressalta-se,
ainda, a importância desta na formação dos cidadãos em determinada sociedade,
conforme análise da obra Participação e Teoria Democrática, de Carol Pateman, por
Diekow (1999, p. 112):
25

A principal função dessa participação, segundo a autora, “é educativa;


educativa no mais amplo sentido da palavra, tanto no aspecto psicológico
quanto no de aquisição de práticas de habilidades e procedimentos
democráticos” (p.61). Neste aspecto, para existir um governo democrático
deve necessariamente a sociedade ser participativa. A participação pode
iniciar no local de trabalho como aprendizagem e evoluir, gradativamente,
para participações no contexto social mais amplo.

Com isso, percebe-se que o exercício da participação democrática se insere no


cotidiano dos integrantes de uma sociedade e incentiva o cidadão a tomar partido das
decisões políticas que dizem respeito ao seu meio.
26

3 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E DEMOCRACIA DIGITAL


Ao analisar Considerations on Representative Government, de Stuart Mill,
publicado no ano de 1861, Gustavo Dalaqua (2016) refere que a defesa do aludido
filósofo acerca do modelo representativo de democracia enquanto o melhor regime
possível seria de acordo com as “circunstâncias modernas” (DALAQUA, 2016, p. 15).
Assim que, para que a discussão acadêmica não corra o risco de se tornar vaga e
afastada do pragmatismo apto a contribuir com o saneamento de questões que põem
óbice ao desenvolvimento social, há que se contextualizar a sociedade na qual o
debate se insere tal como se apresenta ao tempo da pesquisa. Necessário, pois,
asseverar as grandes mudanças sociológicas desde o ano de publicação da obra de
Mill.

Desde 1861, a sociedade passou por, ao mínimo, duas revoluções industriais


e duas grandes guerras, que acarretaram profundas mudanças nas tecnologias e nas
estruturas da sociedade contemporânea (ROCHA, 2015). Neste sentido, situando-se
temporalmente, partindo de um ponto de vista sociológico, podemos concluir que,
segundo a bibliografia consultada, o momento pós-industrial que vivemos é pautado
pelo conhecimento.

Seguindo esta premissa, a doutrina, em geral, tem compreendido que, estando


a sociedade pautada pelo conhecimento, são estabelecidas as relações de poder a
partir da forma como se transmitem as informações (YOUSSEF, 2018).

Assim, será utilizado o conceito de Sociedade da Informação para situar as


questões da democracia em um mundo que, a partir dos avanços tecnológicos,
transmudou-se por completo. Para tanto, recorre-se à lição de Paulo Hamilton
Siqueira Jr. (2013, p. 203):

A sociedade da informação é constituída em tecnologias de informação e


comunicação que envolvem a aquisição, o armazenamento, o
processamento e a distribuição da informação por meios eletrônicos, como
rádio, televisão, telefone e computadores, entre outros. Essas tecnologias
não transformam a sociedade por si sós, mas são utilizadas pelas pessoas
em seus contextos sociais, econômicos e políticos, criando uma nova
estrutura social, que tem reflexos na sociedade local e global, surgindo assim
a sociedade da informação.

No centro de tal interpretação da realidade hodierna, há um vasto campo de


novos objetos de estudo e de ampliação de conceitos consagrados pela reflexão
doutrinária. O espaço público, por exemplo, compreendido como o local de exercício
27

da cidadania desde as concepções gregas, toma proporções jamais vistas


anteriormente. Tal fator propicia que o debate extravase o âmbito físico e contemple
a pluralidade, antes referida, da forma mais plena possível.

Para melhor compreensão do explanado acima, recorre-se à doutrina de


Manuel Castells (2000, p. 38-39):

As novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes


globais de instrumentalidade. A comunicação mediada por computadores
gera uma gama enorme de comunidades virtuais. [...]. Os primeiros passos
históricos das sociedades informacionais parecem caracterizá-las pela
preeminência da identidade como seu princípio organizacional. Por
identidade, entendo o processo pelo qual um ator social se reconhece e
constrói significado principalmente com base em determinado atributo cultural
ou conjunto de atributos, a ponto de excluir uma referência mais ampla a
outras estruturas sociais.

Assim, esta conexão em redes transforma completamente os arranjos e as


discussões sociais. É no âmbito destas redes que se inserem os conceitos de Pierre
Lévy (1998) acerca do exercício democrático na estrutura social formada por tal fator.
Neste sentido, analisa o filósofo:

Não podemos nos basear na experiência histórica ou na tradição para reagir


a problemas jamais vistos. A filosofia política ainda não foi capaz,
evidentemente, de recensear e discutir a democracia direta em tempo real no
ciberespaço, pois sua possibilidade técnica apresenta-se apenas a partir de
meados dos anos 80. A democracia ateniense reúna alguns milhares de
cidadãos que se encontravam e discutiam juntos em um lugar público, ao qual
podiam encaminhar-se a pé. Por ocasião do nascimento das democracias
modernas, milhões de cidadãos se dispersavam em extensos territórios. Foi,
na época, praticamente impossível manter uma democracia direta em grande
escala. A democracia representativa pode ser considerada uma solução
técnica a dificuldades de coordenação. Mas, uma vez que melhores soluções
técnicas são apresentadas, não há motivo algum para não explorá-las a sério.
LÉVY (1998, p. 64)

Dessa forma, para melhor compreender a maneira que as relações


democráticas têm interagido por meio das redes, a tarefa de compreender com a maior
clareza possível a sociedade em que estas se desenvolvem é mister. Caso contrário,
não estaria suficientemente contextualizado o debate, o que o tornaria carente do
ponto de vista acadêmico e vago de um modo geral.

3.1 – SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E VIDA EM REDE


O termo Sociedade da Informação é empregado devido à reestruturação da
economia após o aceleramento do ritmo em que os meios técnicos e tecnológicos se
28

desenvolveram no final do século XX. Assim o explica Jorge Werthein (2000, pp. 71-
72):

A expressão “sociedade da informação” passou a ser utilizada, nos últimos


anos desse século, como substituto para o conceito complexo de “sociedade
pós-industrial” e como forma de transmitir o conteúdo específico do “novo
paradigma técnico-econômico”. A realidade que os conceitos das ciências
sociais procuram expressar refere-se às transformações técnicas,
organizacionais e administrativas que têm como “fator-chave” não mais os
insumos baratos de energia – como na sociedade industrial – mas os insumos
baratos de informação propiciados pelos avanços tecnológicos na
microeletrônica e telecomunicações. Esta sociedade [...] está ligada à
expansão e reestruturação do capitalismo desde a década de 80 do século
que termina. As novas tecnologias e a ênfase na flexibilidade – ideia central
das transformações organizacionais – têm permitido realizar com rapidez e
eficiência os processos de desregulamentação, privatização e ruptura do
modelo de contrato social entre capital e trabalho característicos do
capitalismo industrial.

Seguindo essa linha, é possível conceber que a terminologia se deve aos


modos de produção e à difusão de tecnologias, técnicas e costumes, e pode ser
percebida como consequência da expansão da globalização e do modelo econômico
capitalista a partir dos fins do século XX.

Entretanto, alguns teóricos alertam à imprecisão da terminologia ora adota,


tendo em vista que sua definição busca abranger uma era, por assim dizer, em um
período em que a própria facticidade se encontra escorregadia pelos tempos, na
medida em que as tecnologias da informação se desenvolvem em ritmos galopantes.

Quanto à abrangência do termo, é o estudo de NEHMY; PAIM (2002, p. 11):

Alude-se, em geral, ao fato de estar ocorrendo deslocamento de um sistema


baseado na produção de bens materiais para outro, centrado na produção de
informação. Entretanto, há diferentes posições em relação à intensidade do
fenômeno. O que há de comum é a aceitação de que alguma coisa tenha
acontecido ou esteja acontecendo com caráter de mudança social importante,
uma revolução, cuja data se situa por volta dos anos 70. O movimento da
sociedade pode estar em variados estágios: no encerramento de uma etapa
histórica, num período de transição, de emergência de novo sistema social
ou de uma revolução tecnológica.

Certo é que os fatores já mencionados foram, e estão sendo, determinantes


para a organização da sociedade de um modo geral. Logicamente, dependendo do
estado de implementação das práticas, ou da divisão global do trabalho, os países
ocidentais se encontram em diversos estágios da era aludida.

Assim, a globalização dialoga com a Sociedade da Informação, que é


instrumento de expansão desta e a tem, ao mesmo tempo, como componente
29

essencial para a propagação e aceitação de conceitos rentáveis ao mercado. Quanto


à relação estabelecida, importa a elucidação de Milton Santos (2006, p. 18):

Entre os fatores constitutivos da globalização, em seu caráter perverso atual,


encontram-se a forma como a informação é oferecida à humanidade e a
emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida econômica e
social. São duas violências centrais, alicerces do sistema ideológico que
justifica as ações hegemônicas e leva ao império das fabulações, a
percepções fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos
totalitarismos – isto é, dos globalitarismos – a que estamos assistindo.

Contudo, em que pese o poder de manipulação da detenção do conhecimento,


um fruto da sociedade da informação, advindo com as novas tecnologias voltadas
para a troca de dados e comunicação entre pontos distantes do globo, se denota como
fator imperioso para a evolução do debate aqui exposto. As conexões em rede se
tornaram instrumento indissolúvel do cotidiano moderno, de modo que a própria lógica
de detenção ou transmissão das informações, que é característica, conforme já
referido, da era sociológica em que nos inserimos, modificou-se completamente por
meio de tais vínculos.

As redes ampliaram consideravelmente as possibilidades de debate e as


relações dos componentes da sociedade, adicionando novos espaços em comum à
disponibilidade daqueles que possuem acesso a esse tipo de serviço. Ocorre,
portanto, a união de elementos que juntos compõem arranjos necessários para a
formação de um meio ambiente cultural inteiramente distinto daqueles concebidos até
o presente momento da história. É a lição de Fiorillo (2013, pp. 12-13):

O meio ambiente cultural por via de consequência se revela no século XXI


em nosso país exatamente em face de uma cultura que passa por diversos
veículos reveladores de um novo processo civilizatório adaptado
necessariamente à sociedade da informação, a saber, de uma nova forma de
se viver relacionado a uma cultura de convergência em que as emissoras de
rádio, televisão, o cinema, os videogames, a Internet, as comunicações,
através das ligações de telefones fixos e celulares, etc. moldam uma “nova
vida” reveladora de uma nova faceta do meio ambiente cultural, a saber: o
meio ambiente digital. (grifo do autor)

Evidente, então, a relevância das redes neste novo arranjo sociológico.


Reforçando tal entendimento, de frisar o seguinte trecho do estudo de Assmann (2000,
p. 9):

As novas tecnologias da informação e da comunicação já não são meros


instrumentos no sentido técnico tradicional, mas feixes de propriedades
ativas. São algo tecnologicamente novo e diferente. As tecnologias
tradicionais serviam como instrumentos para aumentar o alcance dos
sentidos (braço, visão, movimento etc.). As novas tecnologias ampliam o
30

potencial cognitivo do ser humano (seu cérebro/mente) e possibilitam


mixagens cognitivas complexas e cooperativas. Uma quantidade imensa de
insumos informativos está à disposição nas redes (entre as quais ainda
sobressai a Internet). Um grande número de agentes cognitivos humanos
pode interligar-se em um mesmo processo de construção de conhecimentos.

Logo, devido à disposição de elementos em rede aludida pela obra acima


evocada, as novas tecnologias têm revolucionado as relações sociais nas mais
diversas formas. Tanto é que FUSER (2003) identifica o momento sociológico como
sendo um período de “profundas mudanças de comportamento a partir do uso
constante dos equipamentos de informática”, prevendo que, “em perspectiva de
convergência tecnológica”, tais hábitos apontam “para uma cibersociedade” (FUSER,
2003, p. 118).

Sendo assim, a sociedade em rede não mais afeta somente sobre a égide
técnica e econômica, como no caso de utilização do conceito de Sociedade da
Informação, mas transcende a partir de tais níveis, incorporando os costumes e dando
espaço para novas interações sociais. Neste sentido, frisa Lemos, in A Vida em Rede
(LEMOS; MASSIMO, 2015, p. 8) que, “na atualidade, a estrutura de redes afeta a
política, a economia, a cultura, a educação e todos os campos sociais”, de modo que
é uma forma de estruturação social, e não um conceito sociológico utilizado para
denominar certa fatia histórica da humanidade.

Assim, o referido teórico, op. cit., à p. 9, lembra que a internet e a tecnologia


catapultaram o arranjo em redes para além da esfera técnica e econômica, conforme
se transcreve abaixo:

Ela [a internet] transcendeu a ideia de técnica e de economia e passou a ser


algo que tem impacto na expectativa que as pessoas têm em relação a tudo
que acontece: em relação ao governo, à universidade – a educação está se
transformando em grande velocidade graças à rede -, em relação à ideia de
desenvolvimento e sustentabilidade. Tudo isso se transforma por conta dessa
nova configuração de rede.

Em verdade, raras são as relações interpessoais que não restaram afetadas de


alguma forma pelo arranjo sociológico em rede. Aliás, as conexões permeiam as
questões atinentes a toda a organização social, conforme leciona Castells (2000, p.
497):

Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão


da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados
dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura. Embora a forma
de organização social em redes tenha existido em outros tempos e espaços,
31

o novo paradigma da tecnologia da informação fornece a base material para


sua expansão penetrante em toda a estrutura social. Além disso, eu afirmaria
que essa lógica de redes gera uma determinação social em redes: o poder
dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder.

Assim, engendradas as redes em tudo aquilo que é delimitado pelo âmbito


social, se impõe ao estudo jurídico que considere essa nova realidade social para
desenvolvimento íntegro do debate de ideias. É o que aponta o estudo de Barreto
Júnior (2013, p. 120):

“A doutrina contemporânea, concernente à dinâmica entre mudança social e


estrutura jurídica, converge para o consenso de que alterações na estrutura
social, nos pactos estabelecidos para sua sustentação e existência, assim
como movimentos de mudança cultural, política e econômica, provocam
reflexos nas estruturas jurídicas”.

E é para fins de delimitação das estruturas jurídicas aptas a introduzir o diálogo


acerca das redes interagindo com a sociedade que importa trazer à baila as
considerações de Fiorillo (2013, pp. 16-22):

Assim, conforme aduzido anteriormente, a manifestação do pensamento, a


criação, a expressão e a informação da pessoa humana passaram no século
XXI, diante de um novo processo civilizatório representativo da manifestação
de novas culturas, a ter caráter marcadamente difuso evidentemente em
face das formas, processos e veículos de comunicação de massa
principalmente com o uso das ondas eletromagnéticas (rádio, televisão),
conforme amplamente estudado em nossa obra O direito de antena em face
do direito ambiental brasileiro, assim como o advento da rede de
computadores de alcance mundial formada por inúmeras e diferentes
máquinas interconectadas em todo o mundo (Internet).
Destarte, a tutela jurídica do meio ambiente digital tem como finalidade
interpretar os arts. 220 a 224 da Constituição Federal em face dos arts. 215
e 216, com a segura orientação dos princípios fundamentais indicados nos
arts. 1º a 4º de nossa Carta Política em face particularmente da denominada
“cultura digital”, a saber, estabelecer a tutela jurídica das formas de
expressão, dos modos de criar, fazer e viver, assim como das criações
científicas, artísticas e principalmente tecnológicas, realizadas com a ajuda
de computador e outros componentes eletrônicos observando-se o
dispositivo nas regras de comunicação social determinadas pela Constituição
Federal. (grifos do autor)

Percebe-se, conforme a elucidação evocada, que os componentes que tecem


a rede na qual a sociedade da informação se encontra inserida, necessitam ser
tutelados pelo Estado, tendo em vista se tratarem de interesses coletivos e difusos.

3.2 – GOVERNO ELETRÔNICO


Considerando a nova estrutura sociológica conferida em virtude das interações
em rede advindas das modernas tecnologias da informação, evidente que o agir
administrativo estatal não deixaria de ser afetado. E uma das maneiras de o Estado
32

se inserir no campo das redes que permeiam a sociedade da informação


hodiernamente é o que os teóricos têm denominado, nas últimas décadas, como e-
gov (de e-governament), ou governo eletrônico, sendo um conceito que busca elucidar
a relação que a administração pública vem mantendo com os avanços tecnológicos
no campo da comunicação (RUEDIGER, 2002, p. 30). Assim, o termo abrange
diversas áreas de atuação pública e variados canais de comunicação com a
sociedade, propiciando transparência à relação entre governo e governados. Utiliza-
se, como justificativa ao exposto, a lição de Marco Aurélio Ruediger (2002, p. 30):

Em termos gerais pode-se pensar nas seguintes relações sustentadas pelo


governo eletrônico: 1) aplicações web com foco para o segmento governo-
negócio [G2B]; 2) aplicações web voltadas para a relação governo-cidadão
[G2C]; e 3) aplicações web referentes a estratégias governo-governo [G2G].
Em conjunto, tecnicamente, o governo eletrônico, além de promover essas
relações em tempo real e de forma eficiente, poderia ainda ser
potencializador de boas práticas de governança e catalisador de uma
mudança profunda nas estruturas de governo, proporcionando mais
eficiência, transparência e desenvolvimento, além do provimento democrático
de informações para decisão.

Seguindo os avanços tecnológicos e toda a revolução sociológica já


mencionada, ocorrida em níveis globais, o Governo Federal brasileiro se encontra
norteado pela estratégia de governança digital, instituída com o decreto nº 8.638, de
2016. Inserido nas políticas de governança digital regulamentadas pela referida
norma, se encontra o programa de governo eletrônico, cujas ações “priorizam o uso
das tecnologias da informação e comunicação (TICs) para democratizar o acesso à
informação, visando ampliar o debate e a participação popular na construção das
políticas públicas, como também aprimorar a qualidade dos serviços e informações
públicas prestadas”1.

Pelo exposto, considerando a abrangência do programa de governo eletrônico,


entendeu-se por fazer uma brevíssima análise doutrinária acerca da relação do
governo eletrônico – e o espectro de práticas compreendidas pelo termo – com
determinados princípios constitucionais estudados pelo direito administrativo.

1 Disponível em < https://www.governodigital.gov.br/EGD/historico-1/historico>, acesso em 02


de outubro de 2018.
33

3.2.1. Governo eletrônico e Princípio Constitucional da Eficiência

Considerando o enfoque no aprimoramento da prestação de serviços públicos,


destacado pelo programa de governo eletrônico, percebe-se que este se encontra
plenamente alinhado à Emenda Constitucional nº 19 (BRASIL, 1998), que buscou, em
linhas gerais, a desburocratização do Estado, inserindo o Princípio da Eficiência ao
rol do art. 37, caput, da CF (DI PIETRO, 2014).

Contextualizada a era de inserção do debate, percebe-se que o próprio


Princípio da Eficiência “impõe a modernização da Administração Pública para a
prestação de serviços públicos com garantia de qualidade e de maior eficácia”
(RAMOS JÚNIOR, 2009, p. 147). Portanto, a relação entre o mencionado princípio
constitucional e os elementos que compõem o conceito de governo eletrônico se dá,
principalmente, na prática deste em decorrência lógica daquele. Neste sentido,
pontua, em sua tese Governo Eletrônico e Direito Administrativo, José Fernando
Ferreira Brega (2012, p. 104):

[...] não há dúvida de que as melhores técnicas – imprescindíveis para a


realização da eficiência administrativa – incluem o uso de meios informáticos
e telemáticos. Se as melhores técnicas envolvem a utilização de meios
eletrônicos, é possível afirmar que estes decorrem do princípio da eficiência.
Portanto, o emprego da informativa, como instrumento de realização da
eficiência, tem fundamento direto no texto da Constituição.

Para melhor compreensão do aludido princípio, necessário pontuar que a


aplicação do mesmo se dá sob dois aspectos, conforme a doutrina:

O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser


considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual
se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os
melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar,
disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de
alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público. (DI
PIETRO, 2014, p. 84)

Da mesma forma, a análise da eficiência acerca do governo eletrônico,


enquanto realidade política impulsionada pelas redes e pela Sociedade da
Informação, deve pautar a abordagem em cima de ambos os aspectos, tanto referente
à atuação do agente público, quanto à organização da Administração Pública.

Acerca das experiências com os recursos provindos do conceito de Governo


Eletrônico aplicadas à relação dos agentes públicos no cumprimento das atribuições,
imperioso o destaque à obra The Responsive City – enganging communities through
34

data-smart governance, de Goldsmith e Crawford (2014). Conforme relata Youssef


(2018, p. 26), a mencionada doutrina realiza

a análise do quadro emergente de funcionários públicos e ativistas cívicos


que estão usando as novas ferramentas de dados e as inovações
tecnológicas para transformar os governos das cidades [...]. Destacam, por
exemplo, aspectos como mudanças organizacionais para remover as
hierarquias e burocracia, os dados partilhados e como eles se tornam
compreensíveis e úteis para as pessoas e os governos. Os autores sustentam
que, em decorrência dos dados e da tecnologia, estaríamos vivendo uma
grande mudança na história da governança, com as mesmas proporções de
outros momentos revolucionários, mas em desempenho e escalas difíceis de
compreender.

Entretanto, concernente à aplicação das novas tecnologias, tendo em vista a


velocidade com a qual evoluem e transformam os meios que definem as relações de
trabalho, importa asseverar que

“Estas novas tecnologias que tanto permitem a criação de inusitadas e


produtivas formas e ambientes de trabalho, por outro lado, também fazem
com que, de forma cada vez mais dinâmica, sejam demandadas distintas
habilidades e competências e imponham permanentes formas de
aprendizado”. (COELHO, 2001, p. 129)

Assim, para que a eficiência alcance os níveis esperados, se faz necessária a


ação estatal no sentido de introduzir os agentes públicos de forma satisfatória aos
meios tecnológicos, canais de exercício da realidade proposta pelo conceito de
governo eletrônico. No mesmo sentido, é a conclusão de Labra e Silva (2007, p. 115)
no estudo realizado acerca de um meio voltado à interlocução entre os componentes
dos conselhos de saúde:

Um dos desafios que ainda precisam ser superados no processo de luta pela
inclusão digital das instâncias de controle social é o de estabelecer uma
pactuação entre os três entes federativos para que o enfrentamento desse
problema seja uma meta de todos, referendada nas conferências de saúde.
É preciso também que se faça um trabalho conjunto com outros setores, em
especial a educação, para reduzir os índices de analfabetismo funcional no
país. Muitas vezes, são lideranças locais importantes e que precisam ter voz.
O desafio é construir formas de repassar as informações relativas ao Sistema
Único de Saúde para essas pessoas.

3.2.2. Governo eletrônico e Princípio Constitucional da Publicidade

O princípio da eficiência, aludido acima, com a finalidade de aumentar o


controle sobre a máquina administrativa, requer que a Administração Pública seja
transparente (RAMOS JÚNIOR, 2009, p. 147). No fito de garantir a tal transparência,
o princípio da publicidade retoma, portanto, a questão do povo soberano, tendo em
vista que garante aos cidadãos a prestação de contas e o acesso às informações
35

referentes aos atos do poder público quer para fins de verificação acerca da
regularidade destes, quer para sanar qualquer dúvida que resida no âmbito do agir da
Administração Pública. Se insere, dessa forma, conforme lecionam Alexandrino e
Paulo (2011, p. 197), em duas acepções, frente ao sistema estabelecido pela
Constituição de 1988, quais sejam: a exigência de publicação dos atos e a
transparência da atuação administrativa. Quanto à primeira, os mencionados autores
dissertam acerca da eficácia dos atos da administração:

A rigor, não se pode dizer sequer que o ato já esteja inteiramente formado
(perfeito) enquanto não ocorre a sua publicação, nas hipóteses em que esta
é obrigatória, vale dizer, o ato que obrigatoriamente deva ser publicado é um
ato imperfeito (não concluído) enquanto a sua publicação não ocorre.
Evidentemente, em um Estado de Direito, é inconcebível a existência de atos
sigilosos ou confidenciais que pretendam incidir sobre a esfera jurídica dos
administrados, criando, restringindo ou extinguindo direitos, ou que onerem o
patrimônio público. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 197)

No concernente à segunda acepção, os referidos doutrinadores frisam o vínculo


do aludido princípio à indisponibilidade do interesse público, asseverando a obrigação
estatal em garantir, à população, o controle acerca de tal elemento, imprescindível
para a perfectibilização dos atos administrativos (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p.
197). Reforçam a lição ao aludir à motivação necessária dos atos, segundo se colhe
da mencionada obra:

“Decorrência lógica do princípio da transparência é a regra geral segundo a


qual os atos administrativos devem ser motivados. Com efeito, a motivação
(exposição, por escrito, dos motivos que levaram à prática do ato) possibilita
o efetivo controle da legitimidade do ato administrativo pelos órgãos de
controle e pelo povo em geral. De forma mais ampla, a cidadania fundamenta
a exigência de motivação, uma vez que esta é essencial para assegurar o
efetivo controle da Administração, inclusive o controle popular, uma das mais
evidentes manifestações do exercício da cidadania.”. (ALEXANDRINO;
PAULO, 2011, p. 198)

Corroborando a lição ora evocada, traz-se à baila o magistério de Horvath


(2011, p. 26):

Requer esse princípio ampla clareza e ausência de segredos no


desenvolvimento da atividade pública. A Administração deve sempre atuar
em conformidade com os preceitos de visibilidade e publicidade de seus atos
em todos os seus âmbitos de atividade.
Um dos desdobramentos desse princípio é o direito de todos os cidadãos
receberem dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de
interesse coletivo geral. Outro desdobramento é o direito de se obterem
certidões cm repartições públicas para a defesa de direitos e esclarecimentos
de situações de interesse pessoal.
36

Estabelecidas estas premissas, compreendida a abrangência do princípio em


debate, torna-se translúcida a relação deste com o instituto do governo eletrônico,
porquanto ambas as acepções trazidas a lume são abarcadas por suas facetas.
Mormente, tendo em vista os campos de interação do governo eletrônico com a
sociedade administrada, a partir dos tipos de transações do governo, que, segundo
lição de Goes e Damasceno (2004) apud Vieira e Dos Santos (2010, p. 8), podem ser
classificadas, como já dito alhures, da seguinte forma:

Governo para Governo, que envolve o próprio governo, na sua relação


horizontal com seus próprios órgãos (ministérios, secretarias, departamentos
etc.) e na sua relação vertical entre governo de esferas diferentes (União,
estados, municípios);
Governo para Empresas, que corresponde à relação que o governo tem com
as empresas, de que são exemplos a aquisição de bens e serviços junto ao
setor produtivo, via meios eletrônicos, os chamados pregões eletrônicos;
Governo para Cidadão, diz respeito às ações que o governo realiza no
sentido de colocar à disposição, por meio eletrônico, ao cidadão, serviços e
informações pertinentes à esfera pública.

Logo, o governo eletrônico propicia a otimização das transações classificadas


dessa forma, e, consequentemente, amplia a possibilidade de atuar sob os preceitos
do princípio ora discutido. Assim se garante que o povo, soberano pelos preceitos
constitucionais, possa exercer a fiscalização acerca das políticas de governo. Nesse
propósito, conforme afirmam Vieira e Dos Santos,

O governo eletrônico surge como um importante instrumento de gestão


pública, criando canais eletrônicos contínuos de informações e
disponibilizando serviços a sociedade, possibilitando ainda a transparência e
o controle social. (VIEIRA; DOS SANTOS, 2010, p. 8)

A utilização dos meios eletrônicos para a finalidade de controle social se


encontra expressa na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527), que, somente em
2011, regulamentou a previsão do inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art.
37 e no § 2º do art. 216, da Constituição de 1988, segundo expressa o art. 8º, § 2º, da
mencionada norma:

Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover,


independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso,
no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou
geral por eles produzidas ou custodiadas.
[...]
§ 2º Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas
deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem,
sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de
computadores (internet). (BRASIL, 2011)
37

Desse modo, considerando que a regulação do acesso à informação previsto


constitucionalmente já prevê a utilização das modernas tecnologias da informação
para viabilizar a aplicação do princípio da publicidade, percebe-se consagrada a
relação entre os moldes do governo eletrônico com a transparência no agir estatal.
3.2.3. Governo eletrônico e Princípio Constitucional da Participação

A publicidade dos atos administrativos, segundo foi possível concluir pelo


exposto acima, se encontra diretamente relacionada à interação da Administração
Pública com os administrados. Quando por “administrado” se compreende o povo,
soberano por força da letra constitucional, a relação estabelecida possui outra via que
não somente aquela de manter este a par da atuação governamental. A participação
direta do cidadão em face à Administração Pública constitui outra esfera de controle
social, insculpida no Princípio da Participação, que, após a Emenda Constitucional nº
19 (BRASIL, 1998), passou a ter previsão expressa na Lei Maior, conforme leitura do
dispositivo alterado pela emenda:

Art. 37, § 3.º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na


administração pública direta e indireta, regulando especialmente:
I. – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral,
asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a
avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;
II – o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre
atos de governo, observando o disposto no art. 5.º, X (respeito à privacidade)
e XXXIII (direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
ou de interesse coletivo em geral);
III – a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo
de cargo, emprego ou função na administração pública.

Respeitando o aludido princípio, alinhado com as políticas de governança


digital, ao traçar as diretrizes gerais de implantação do governo eletrônico, dentre
estas, o Governo Federal estabeleceu que

1 - A prioridade do Governo Eletrônico é a promoção da cidadania


A política de governo eletrônico do governo brasileiro abandona a visão que
vinha sendo adotada, que apresentava o cidadão-usuário antes de mais nada
como “cliente” dos serviços públicos, em uma perspectiva de provisão de
inspiração neoliberal. O deslocamento não é somente semântico. Significa
que o governo eletrônico tem como referência os direitos coletivos e uma
visão de cidadania que não se restringe à somatória dos direitos dos
indivíduos. Assim, forçosamente incorpora a promoção da participação e do
controle social e a indissociabilidade entre a prestação de serviços e sua
afirmação como direito dos indivíduos e da sociedade.
Essa visão, evidentemente, não abandona a preocupação em atender as
necessidades e demandas dos cidadãos individualmente, mas a vincula aos
princípios da universalidade, da igualdade perante a lei e da equidade na
oferta de serviços e informações.
38

2 - A Inclusão Digital é indissociável do Governo Eletrônico


A Inclusão digital deve ser tratada como um elemento constituinte da política
de governo eletrônico, para que esta possa configurar-se como política
universal. Esta visão funda-se no entendimento da inclusão digital como
direito de cidadania e, portanto, objeto de políticas públicas para sua
promoção.
Entretanto, a articulação à política de governo eletrônico não pode levar a
uma visão instrumental da inclusão digital. Esta deve ser vista como
estratégia para construção e afirmação de novos direitos e consolidação de
outros pela facilitação de acesso a eles. Não se trata, portanto, de contar com
iniciativas de inclusão digital somente como recurso para ampliar a base de
usuários (e, portanto, justificar os investimentos em governo eletrônico), nem
reduzida a elemento de aumento da empregabilidade de indivíduos ou de
formação de consumidores para novos tipos ou canais de distribuição de
bens e serviços.
Além disso, enquanto a inclusão digital concentra-se apenas em indivíduos,
ela cria benefícios individuais mas não transforma as práticas políticas. Não
é possível falar de práticas políticas sem que se fale também da utilização da
tecnologia da informação pelas organizações da sociedade civil em suas
interações com os governos, o que evidencia o papel relevante da
transformação dessas mesmas organizações pelo uso de recursos
tecnológicos2.

Assim, de asseverar, primeiramente, a postura da Administração Pública frente


ao administrado, que passa a ter seu título de cidadão reconhecido e o incentivo às
atividades cívicas ampliado, por meio de estímulos que o afastem do conceito de
“cliente”, vinculado às políticas neoliberais. Acerca da segunda diretriz acima
colacionada, importa frisar que a relação entre governo eletrônico e participação
popular, deve visar à inclusão digital como norte para exercício pleno das
possibilidades oriundas dos meios eletrônicos no âmbito das atividades políticas.

Quanto a este comprometimento assumido no centro das políticas de


governança digital e acesso à informação, cumpre ressaltar as considerações de
Toldo (2017, p. 33):

Esta nova forma de fazer política não tem somente uma característica top-
down (partindo dos governos), mas a sua importância dá-se, sobretudo, pela
componente bottom-up, com os cidadãos independentes ou grupos
organizados reivindicando os seus direitos e auxiliando na construção da
democracia e de uma sociedade mais participativa.

É possível, portanto, perceber que as práticas envolvidas pelo conceito de


governo eletrônico são aptas a propiciar o cumprimento pleno das premissas fixadas
pelo princípio da participação.

2
Disponível em <https://www.governodigital.gov.br/EGD/historico-1/diretrizes>, acesso em 02
de outubro de 2018.
39

3.3 – ÁGORA VIRTUAL


Às possibilidades de participação popular canalizadas pelo modelo de governo
eletrônico, muito se tem estudado, principalmente no que se refere à ampliação da
viabilidade de exercício democrático da cidadania. No presente trabalho, o conceito
que será adotado é o de Pierre Levy (1998), que denomina a internet, enquanto
espaço amplo para debate e tomada de decisões, de ágora virtual. A referência às
antigas praças gregas voltadas para a discussão dos rumos políticos da polis, em que
pesem as restrições deste modelo somente aos indivíduos considerados cidadãos de
Atenas, descreve a ideia de uma assembleia que comporte todos os interessados na
discussão de qualquer assunto que seja. Assim o termo auxilia na compreensão do
significado amplo e preciso referente às relações de participação por intermédio das
tecnologias da informação. Explica-se:

O ideal da democracia não é a eleição de representantes, mas a maior


participação do povo na vida da cidade. O voto clássico é apenas um meio.
Por que não conceber outros, com base no uso de tecnologias
contemporâneas que permitiriam uma participação dos cidadãos
qualitativamente superior à que confere a contagem de cédulas depositadas
nas urnas? LÉVY (1998, p. 64)

. Logo, é possibilitado à sociedade uma prática até então imaginável de


exercício do ideal democrático, tendo em vista a ampliação da esfera pública, que,
conforme Velloso (2008, p. 104), é

reconhecida como o lugar do comum, revela-se como o palco das interações


e possível âmbito do exercício da liberdade, levada a efeito na ágora grega,
a praça dos debates e das manifestações públicas; liberdade que, na esfera
privada, não se dá em virtude das relações desiguais e do reino da
necessidade e das carências biológicas, já referidas. Nesse diapasão, a
esfera pública constitui o lugar dos cidadãos livres e iguais, no exercício da
ação, para além do labor e do trabalho.

Este aumento da esfera pública, tecido por meio das redes que, como já dito
alhures, envolvem a sociedade contemporânea, permite, antes de mais nada, o
desenvolvimento do que Lévy (1998) chamou de “inteligência coletiva”. Tal instituto
concerne na soma de informações que, unidas, possibilitam um banco de dados
disponível aos usuários da internet de qualquer parte do mundo. Assim, o
conhecimento é democratizado antes mesmo das decisões locais de âmbito social e
político. Isso se dá como paradoxo da globalização, que alastrou moldes
mercadológicos para garantir a circulação de determinados produtos, e acabou
difundindo os meios necessários para a “outra globalização”, defendida por Milton
40

Santos. O premiado geógrafo indica que “os novos instrumentos, pela sua própria
natureza, abrem possibilidades para sua disseminação no corpo social, superando as
clivagens socioeconômicas preexistentes” (SANTOS, 2006, p. 80).

Em conclusão de análise acerca do espectro arquitetado em torno da


Inteligência Coletiva por Pierre Lévy, o estudo de Bembem e Costa Santos (2013, p.
149) constatou se tratar de
uma forma de valorização das capacidades individuais, a qual se propõe a
colocar em sinergia os indivíduos por meio da utilização das tecnologias, a
fim de reuni-los para que compartilhem aquilo que de mais precioso possuem
– a inteligência.
A organização de uma sociedade mais democrática e inclusiva, na qual as
identidades dos indivíduos são construídas no saber, permitirá o
encaminhamento a uma real democratização da informação.

A democratização da informação pode ser considerada elemento essencial ao


desenvolvimento pleno do espaço para debate da democracia, porquanto, para a
tomada de decisões partir de premissas idôneas, o acesso ao conhecimento é
requisito para o exercício responsável da cidadania (GOMES, 2005).

Neste sentido, confere-se, nas novas tecnologias da informação, mais do que


a satisfação dos meios necessários a suprir, ao menos, os princípios do Direito
Administrativo já elencados, à medida que apresenta ferramentas para a construção
da estrutura necessária à democratização das decisões sociais e políticas da
comunidade.

Em contraponto, importa ressaltar que, embora o acesso à informação otimize


o processo político e amplie as condições da participação, os meios eletrônicos, por
si só, utilizados sem qualquer orientação ou estratégia de inclusão, não garantem a
revolução democrática esperada, porquanto, conforme conclui Gomes (2005, p. 221):

quem pode ter acesso à informação on-line, pode gerenciá-la e,


eventualmente, pode produzi-la, está equipado com ferramentas adicionais
para ser um cidadão mais ativo e um participante da esfera pública. Por outro
lado, tecnologias tornam a participação na esfera política mais confortável e
acessível, mas não a garantem. Seja porque a discussão política on-line está
limitada para aqueles com acesso a computadores e à internet, seja porque
aqueles com acesso à internet não necessariamente buscam discussões
políticas, seja, enfim, porque discussões políticas são frequentemente
dominadas por poucos.

Nota-se, portanto, que subsiste a necessidade de que o processo de introdução


dos ideais que norteiam a Ágora Eletrônica, de Pierre Levy (1998), seja reforçado e
41

protagonizado pelo poder público. Todavia, estudos de caso têm apontado para a
inércia do poder público em aplicar os recursos do modelo de governo eletrônico
voltado à efetivação da participação popular, conforme constatou Bernardes (2011, p.
163):

embora haja práticas de interatividade mediante Plano diretor digital (apenas


uma capital) e Orçamentos Participativos (apenas duas capitais), uso de
redes sociais (destaque para o Twitter) e possibilidade de Download e upload
de documentos para fins arrecadatórios, as potencialidades da internet não
estão sendo utilizadas pelas administrações brasileiras de forma a envolver
os cidadãos no universo político, tornando-os partícipes de suas decisões.
Comprova-se, com os percentuais acima, que, quando se trata de ativar a
arrecadação de tributos, as tecnologias são usadas com propriedade, mas
em outros casos faz-se praticamente tabula rasa.

Ainda que existam os meios necessários para injetar civismo na cultura das
comunidades, propiciando e incentivando a participação e o exercício direto da
soberania popular, o Poder Público, em geral, não demonstra empenho em aplicar os
recursos atinentes ao governo eletrônico a tais setores.
42

4 CASOS DE ESTUDO: PARTICIPAÇÃO POPULAR A PARTIR DAS


TECNOLOGIAS DE REDE

No presente item, o estudo se voltará para casos concretos, verificados ao


longo dos últimos anos, em que a Ágora Virtual mencionada foi utilizada para tomada
de decisões sociais e políticas no âmbito de determinadas comunidades.

A análise a ser apresentada visa à abordagem da utilização dos meios


tecnológicos na aproximação do cidadão e da prática governamental, de modo geral.
Assim, os casos estudados serão apresentados com base em material bibliográfico,
de modo que o trabalho aqui realizado utilizou somente a metodologia de revisão dos
resultados obtidos nessas pesquisas, apresentando o alinhamento com a temática
central desta monografia.

A importância de abordar iniciativas de semelhante natureza, reside na


aproximação da práxis cívica com o cotidiano das comunidades inseridas na
sociedade em que se inserem atualmente.

Dentre diversas as iniciativas que utilizam os meios eletrônicos propiciando um


aumento significativo no caráter democrático do dia a dia da sociedade, um exemplo
notório é o evidenciado pelo estudo de Jeferson Thauny (2013, p. 94):

Avaaz contradiz o pressuposto de que somente através de inserções na mídia


generalista as ações iniciadas no virtual poderiam conquistar
representatividade global. O modus operandi do movimento, sustentado pelo
computador, busca unificar forças virtuais individualizadas, garantindo a força
da coletividade, através principalmente de petições online. Ao redimensionar
os esforços para a web – é possível participar da democracia sem sair da
frente da ela – o movimento parece ter encontrado interessante
direcionamento para ganhar expressão política, provavelmente, a operação
ideal para explorar a técnica nos movimentos de hierarquia horizontal.

Todavia, o que se quer não é sugerir que a democracia deva passar a depender
de entidades privadas filantrópicas, porquanto a possibilidade de lucro pode vir a
corromper qualquer ideal alinhado com as pautas sociais. Motivo pelo qual, se denota
a importância de mencionar alternativas de incentivo à participação cidadã localizadas
no espectro do governo eletrônico, tais como o portal e-cidadania, ministrado pelo
Senado Federal brasileiro, de caráter consultivo acerca das decisões legislativas e
orçamentárias de competência da mencionada casa.

A mencionada iniciativa prevê a viabilidade de otimizar as questões de iniciativa


popular, conforme versa a Resolução nº 19, de 2015, do Senado Federal:
43

Art. 6º As manifestações de cidadãos, atendidas as regras do Programa,


serão encaminhadas, quando for o caso, às Comissões pertinentes, que lhes
darão o tratamento previsto no Regimento Interno do Senado Federal.

Parágrafo único. A ideia legislativa recebida por meio do portal que obtiver
apoio de 20.000 (vinte mil) cidadãos em 4 (quatro) meses terá tratamento
análogo ao dado às sugestões legislativas previstas no art.102-E do
Regimento Interno do Senado Federal e será encaminhada pela Secretaria
de Comissões à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa
(CDH), dando-se conhecimento aos Senadores membros. (BRASIL, 2015)

Apesar de promover a participação popular nos processos legislativos,


entretanto, o portal e-cidadania não permite que os resultados obtidos sejam
suficientemente confiáveis a ponto de ser encarado como uma ferramenta idônea na
construção da atividade cívica, conforme aponta Toldo (2017, p. 86):

A primeira crítica a se fazer é que o registo de usuários do programa não está


vinculado ao Cadastro de Pessoa Física, que é o número de referência de
cada cidadão brasileiro, abrindo a possibilidade de registos múltiplos. Não é
possível verificar, também, se o usuário é maior de idade ou eleitor
recenseado. Assim, apesar de estimular o debate, não há garantias que
grupos de interesse dominem as discussões, retirando a legitimidade da
ferramenta.

Outrossim, o estudo supracitado assevera que, em relação ao reflexo das


participações no processo legislativo é ínfimo, o que faz com que o portal, na prática,
não passe de uma ferramenta de divulgação das atividades da casa legislativa que o
mantém, conforme se observa:

os resultados das discussões demonstram que o peso da ferramenta parece


ser muito pequeno no processo de decisão legislativa. Esse facto diminui
ainda mais a credibilidade do programa e resume-o, em princípio, a uma
ferramenta de marketing, onde o governo apenas parece dar transparência
das suas ações e oportunidade de participação aos cidadãos. Mais uma vez,
trata-se de um processo implementado de cima para baixo, sem a
participação da população na construção da ferramenta.
Não há, portanto, como afirmar que a adoção do programa se traduziu num
aumento da participação e, ainda menos, na melhoria do processo decisório
de construção de políticas públicas e prática democrática. (TOLDO, 2017, p.
86) – grifo da autora.

Retoma-se, portanto, a ideia de que, se o poder público não tomar uma postura
verdadeiramente atuante em prol da participação popular, os canais de diálogo entre
a administração e o administrado se apresentarão desviados da finalidade de
ampliação e fortalecimento da democracia.

Para que seja possível uma avaliação crítica minuciosa acerca dos meios
ligados à democracia digital capazes de reforçar a soberania popular por meio da
participação direta, abaixo, será exposta bibliografia referente a uma via de
44

intervenção participativa voltada ao exercícios dos poderes legislativo e executivo,


respectivamente, quais sejam: o recente processo constituinte islandês e a política do
Orçamento Participativo Digital, experimentado na cidade de Belo Horizonte, tendo
em vista se tratarem de experiências em relação às quais a doutrina vem tecendo
conclusões favoráveis quanto aos aspectos cuja análise é pretendida pela presente
monografia.

4.1 – REFORMA CONSTITUCIONAL ISLANDESA

O mais notório dentre os casos concretos de aplicação das tecnologias da


informação no exercício direto da soberania popular é o da reforma constitucional
ocorrida na Islândia, entre 2009 e 2012.

A considerável crise financeira mundial de 2008, que teve como marco inicial a
falência do tradicional banco de investimento Norte-americano Lehman Brothers,
atingiu diretamente a economia islandesa, que, conforme Diogo Piano (2016, p. 53),
viu “dois dos seus três principais bancos colapsarem e apesar da nacionalização do
segundo maior banco do país”, o próprio Banco Central da Islândia cedeu igualmente
ao colapso. Tal fator acarretou ao país uma dívida externa impraticável, motivo pelo
qual uma série de discussões online foram desencadeadas, onde se questionou,
principalmente, o comprometimento dos representantes políticos para com a
população e o bem-estar social. A organização dos cidadãos, sobretudo, há que se
frisar, facilitada pela baixa densidade populacional, culminou em uma série de
protestos, inicialmente, contra a austeridade do FMI, e que, posteriormente, repisaram
diversas pautas, chegando, por fim, à manifestação pela confecção de uma nova carta
constitucional.

Em face da insatisfação generalizada da população em geral, conforme estudo


de Nichel e Oliveira (2015, p. 2-3),

A Islândia optou por escrever sua nova Constituição, destacando-se que a


antiga é uma transcrição da Lei Fundamental da Noruega, vigente desde
1944, ou seja, desde a independência do país. Porém, o processo escolhido
para a concepção dessa nova Constituição é absolutamente inovador e difere
das experiências anteriores observadas no mundo, uma vez que, optou-se
por uma escrita colaborativa e fruto da participação direta do próprio povo
islandês.
45

Para melhor reforçar os ímpetos que impulsionaram a formulação da nova


Carta Magna, traz-se a lição de Piano (2016, p. 87):

O desgaste dos atores políticos e a falta de confiança no sistema motivou


esta reclamação por parte da cidadania que pretendia apresentar diretamente
as suas propostas de participação na vida política e que incluem modelos 2.0
de participação social através de plataformas de comunicação que veiculam
mensagens com o objetivo de aumentar a participação dos cidadãos no
processo democrático. Pretendiam os subscritores desta iniciativa uma nova
Constituição, sufragada por todos, que se tornasse um símbolo reforçado de
unidade nacional.

Nesse cenário, com o governo, após as eleições gerais de 2009, sendo


sucedido pela esquerda verde do país, abriu-se a possibilidade para a reforma ora em
análise. A partir de então, o parlamento definiu as três etapas que comporiam o
processo, quais sejam: a convocação de uma Assembleia Nacional, a nomeação de
um Comitê Constitucional e a eleição de uma Assembleia Constituinte, que,
posteriormente, foi definida como um Conselho Constituinte, tendo em vista que
auxiliou na organização de ideias lançadas por todos os cidadãos interessados (Toldo,
2017).

Para a realização da Assembleia Nacional, definida como primeiro passo a ser


dado no processo, foram convocados, aleatoriamente, 1.200 cidadãos, e o encontro
ainda contou com a presença de 300 representantes de entidades e grupos de
interesse (Toldo, 2017). Tal encontro foi sucedido por outra Assembleia Nacional
(também identificada como Fórum), que teve por objetivo, de acordo com Piano (2016,
p. 87), “recolher os pontos de vista da cidadania e incorporar as suas propostas no
novo projeto de constituição”. Este último evento foi constituído por um número em
relação ao qual a doutrina diverge, mas que contou com 950 a 1.000 participantes,
convocados de forma aleatória e proporcional em relação a determinados fatores, tais
como gênero, faixa etária, etnia e região de origem (Toldo, 2017).

A partir do que restou definido no segundo encontro, o Comitê selecionado para


o Fórum definiu os liames para a escolha dos componentes da Assembleia
Constituinte (que, como já mencionado, viria a converter-se em Conselho
Constituinte), conforme refere o estudo de Neves e Araújo (2017, p. 7):

Como delineado pelo Fórum, a formação da Assembleia Constituinte se daria


via eleição, com algumas peculiaridades. Desde que obtivesse indicação de,
no mínimo, trinta outros cidadãos, qualquer um poderia se candidatar.
Naquela ocasião, 522 pessoas concorriam às eleições da Assembleia. Faz-
se necessário enfatizar que não houve participação partidária no processo,
46

embora não houvesse restrição acerca da candidatura de membros de


partidos políticos.

A eleição supramencionada serviu para a escolha de 25 indivíduos que viriam


a representar a população na Assembleia Constituinte, defendida desde as primeiras
insurgências face à crise institucional islandesa e, segundo explica Toldo (2017, p.
88), “o método eleitoral utilizado foi o Sistema de Voto Único Transferível, destinado
a garantir que, se o seu candidato não tiver votos suficientes, seu voto é transferido
para outro candidato de acordo com as suas instruções, garantindo uma participação
mais abrangente”.

Após determinadas irregularidades técnicas constatadas durante o pleito, o


Supremo Tribunal da Islândia invalidou os resultados iniciais das eleições. De acordo
com Piano (2016), os vícios feriram princípio atinente à rastreabilidade dos votos:

Os boletins de voto tinham um código de barras numericamente sequencial e


foram distribuídos aos distritos eleitorais por ordem sequencial. Nas mesas
de voto os boletins foram igualmente entregues por ordem sequencial aos
eleitores e estes foram registados por ordem de chegada. A combinação de
estas ações permitia fazer o rastreio e saber quem tinha votado em quem,
violando claramente a confidencialidade do voto, considerando o Supremo
Tribunal violar-se aqui “uma disposição fundamental da Constituição da
Islândia em matéria de eleições”. (PIANO, 2016, p. 88)

Entretanto, em face da inexistência de provas no sentido de que os


mencionados vícios pudessem ocasionar problemas reais ao processo, o Althingi
(nomenclatura dada ao Parlamento islandês) nomeou os 25 candidatos mais votados
para presidir o Conselho Constituinte (Berg, 2012).

Sanadas as questões supra referidas, os membros do Conselho Constituinte


passaram a elaborar o esboço da Constituição, transmitindo ao vivo as reuniões
internet, com a postagem das deliberações após o encerramento dos encontros, e
realizando consultas ao povo islandês por meio de redes sociais, como o Facebook e
o Twitter (NEVES; ARAÚJO, 2017, p. 8). Desta forma, “qualquer cidadão com acesso
à internet tinha a possibilidade de participar ativamente no processo de formação da
Constituição de seu país, num exercício do poder constituinte originário nunca antes
produzido” (NICHEL e OLIVEIRA, 2015, p. 4), mormente, tendo em consideração que
99,0% da população daquele país possui acesso às redes3.

3 Conforme dados de 31/12/2017, disponíveis em:


http://www.internetworldstats.com/stats4.htm., acesso em 08/11/2018.
47

Trata-se, portanto, da aproximação dos ideais pautados por Pierre Lévy (1998)
e da práxis constituinte, tomando o povo como soberano do poder legislador da Lei
Maior do país. Entendendo desta forma, não se diverge das conclusões obtidas no
estudo de Neves e Araújo (2017), conforme se colhe do seguinte trecho:

Deste modo, é possível entender toda a história acerca da Islândia, sua crise
financeira e consequente recuperação através do conceito de Soberania
Popular. Houve pressão contra o conservadorismo do Parlamento que gerou
abertura, pelo Presidente da República, para referendar assuntos de
interesse do povo, o que representa em partes a Soberania Popular, já que o
povo não elaborou as leis, apenas as referendou. Não obstante,
posteriormente, entende-se que o povo, exercendo a soberania, elaborou
uma nova Constituição, criando leis em prol do bem comum, com objetivo de
gerir-se pela vontade geral. (NEVES; ARAÚJO, 2017, p. 10)

Ressalta-se que para a plenitude do exercício da soberania popular, no


presente caso, as tecnologias da informação formaram o campo essencial no sentido
de possibilitar a ampla participação, conforme ressaltou Toldo (2017):

A elaboração da Constituição propriamente dita, ainda que ocorresse através


de um Comitê de “pessoas comuns”, eleitas democraticamente, não poderia
ter atingido um público tão amplo sem a utilização da internet e das novas
Tecnologias da Informação. É inevitável inferir que o aumento da participação
e de o processo ser conduzindo de forma aberta aumenta, também, a
legitimidade da proposta.

Ter a própria população como porta-voz das reivindicações e envolvê-la no


processo de profundas mudanças na maneira de condução das políticas
públicas (na forma da lei maior da nação) pode ter como consequência uma
maior adequação das futuras intervenções governamentais. Outro ponto que
merece realce é a questão da redução dos conflitos de interesses no
momento da formulação da lei, ao passo que não há intervenção direta de
grupos de interesses e maior transparência na condução da intervenção.
(TOLDO, 2017, p. 58)

Em consonância com o trecho colacionado acima, ressalta-se que a não


intervenção de grupos de interesse permitiu maior fluidez e idoneidade ao processo,
garantindo a atuação livre do povo enquanto soberano de sua constituição.

Todavia, considerando que, até o período de desenvolvimento do presente


estudo, o parlamento islandês ainda não consagrou o texto formulado mediante a
participação popular nos fins propostos, ou seja, na revisão da carta magna daquele
país, "o resultado do projeto na condução prática das questões governamentais ou no
desenho das políticas públicas” ainda não pode ser avaliado (TOLDO, 2017).
48

4.2 – ORÇAMENTO PARTICIPATIVO DIGITAL EM BELO HORIZONTE

O orçamento participativo trata-se da abertura à participação popular direta,


cuja implantação se deu, inicialmente, pela Administração do município de Porto
Alegre, no ano de 1989, alinhado ao reconhecimento de participação por parte das
associações civis no planejamento urbano, previsto pela Constituição Federal
promulgada no ano anterior (AVRITZER, 2002).

As vantagens do orçamento participativo como catalisador da democracia


direta, acarretaram, inclusive, sua disseminação em nível internacional como modelo
de programas, com as devidas adaptações, transferências e inovações, de acordo
com o local de implantação (SINTOMER; HERZBERG; RÖCKE, 2012).

Em que pesem as diferenças quanto à implementação e ao desenho


institucional nos diversos municípios em que foi obrado, o orçamento participativo
presencial consiste em na consulta popular acerca das possíveis destinações das
verbas públicas, conforme discorre Avritzer (2002, p. 10):

é uma política participativa ao nível local que responde a demandas dos


setores desfavorecidos por uma distribuição mais justa dos bens públicos nas
cidades brasileiras. Ele inclui atores sociais, membros de associações de
bairro, e cidadãos comuns em um processo de negociação e deliberação
dividido em duas etapas: uma primeira etapa na qual a participação dos
interessados é direta e uma segunda etapa na qual a participação corre
através da constituição de um conselho de delegados.

A extensão do orçamento participativo para o meio digital ainda não se encontra


projetada com a mesma consistência do que sua modalidade presencial. Entretanto,
o caso específico de implementação do programa na internet, levado a efeito na
capital Mineira, a partir do ano de 2006, merece especial atenção, mormente no que
diz respeito ao eixo temático abordado na presente monografia. Surgindo como “um
processo a parte dos Orçamentos Participativos já existentes na capital, com
calendário, orçamento e site próprios” (ARAÚJO; PACHECO, 2016, p. 34), o
Orçamento Participativo Digital, em Belo Horizonte, foi perfectibilizado mediante
votação realizada integralmente online, tendo como requisito único a identificação do
contribuinte por meio de título eleitoral (SAMPAIO; MAIA; MARQUES, 2010).

Visando à inclusão digital e no intuito de propiciar a participação da forma mais


ampla e universal possível,
49

foram implementados quiosques de votação em toda a cidade, nos quais


existiam agentes da prefeitura treinados para orientar o cidadão a votar nas
obras. Além disso, foram indicados locais com acesso público à internet como
escolas, bibliotecas, secretarias municipais e outros órgãos ligados à
prefeitura. (SAMPAIO, 2009, p. 133)

Após uma revisão global do processo realizado por meio dos portais
eletrônicos, no ano de 2008, foram concretizadas melhorias na empreitada de diminuir
as dificuldades oriundas das barreiras digitais, a prefeitura disponibilizou um número
de telefone gratuito para registro do voto por parte do cidadão (SAMPAIO; MAIA;
MARQUES, 2010).

Desse modo, a municipalidade da capital mineira logrou obrar verdadeiras


contribuições no sentido de consolidar a democracia participativa, abrangendo a
questão elementar de contemplar os contribuintes com a responsabilidade de atuar
nas decisões políticas por meio da inclusão digital. Quanto a isso, versa o estudo de
Araújo e Pacheco (2016, p. 34):

Destarte, junto aos instrumentos formais de democracia representativa,


outros mecanismos de responsabilização entram em cena, enfatizando a
participação da sociedade na tomada de decisão nas políticas públicas por
meio de instituições colegiadas com poderes deliberativos, cujos
participantes representam o governo e a sociedade organizada.

Entretanto, o estudo aludido acima ressalta algumas carências quanto à


viabilização do exercício da democracia por meio da participação popular nas vias
digitais. Mencionam as autoras que, em que pese a postura do Estado em oportunizar
o acesso aos meios digitais pelos administrados, a ausência de diálogo entre ambas
as partes, ou seja, municipalidade e cidadãos, serviu para asseverar o distanciamento
da máquina pública em relação ao povo soberano (ARAÚJO; PACHECO, 2016).

Seguindo na mesma linha, Abreu (2016) relatou que a ausência de uma


mediação eficiente no sentido de estabelecer os moldes do processo participativo deu
origem a enfrentamentos verbais e disputas bairristas, pouco contribuindo para o
desenvolvimento sadio do debate político.

Por fim, cumpre trazer à baila as sugestões de Araújo e Pacheco (2016) para a
otimização do processo de participação popular explorado no âmbito do Orçamento
Participativo Digital:

Primeiramente, deve-se analisar o esvaziamento da participação popular,


ocorrido entre as sucessivas edições. Sabe-se que alguns cidadãos
50

demonstram falta de interesse em participar das decisões governamentais


devido à insatisfação com a política. Isso poderia ser revisto se os cidadãos
entendessem o potencial que a e-participação tem de se transformar em uma
ponte sobre a separação que existe entre eles e o governo. Campanhas
educativas e informativas para a divulgação dos mecanismos participativos e
de como se dá sua utilização, poderiam ser realizadas para reverter o
desinteresse da sociedade. Outro ponto que se coloca como desafio às
próximas edições é a incorporação de novas ferramentas disponíveis pelo
avanço da tecnologia, como votação por aplicativo para dispositivo móvel,
votação por mensagens, entre outros. (ARAÚJO; PACHECO, 2016, pp. 42-
43)

Corroborando as conclusões da obra supramencionada, entende-se que o


Poder Público, enquanto instrumento político da coletividade, deve militar no escopo
da divulgação e otimização do processo de participação popular, seja com campanhas
educativas, ou na melhoria dos ambientes virtuais voltados ao debate, pois, como
aponta Sampaio (2009, p. 141), sendo “a disposição política é um pré-requisito vital
para esta governança eletrônica, acreditamos elaborar um bom site para busca de
informação, participação civil, transparência e monitoramento seja um ótimo ponto de
partida”.
51

5 ANÁLISE DOS CASOS EM VISTA AO ALINHAMENTO COM O PRINCÍPIO


CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA POPULAR
Dos casos e modelos elencados acima, passa-se a uma análise acerca da
aplicabilidade e do alinhamento com o princípio constitucional da soberania popular,
já abordado na primeira etapa do presente estudo.

Retomando as questões atinentes ao povo e sua soberania insculpida na Carta


Constitucional, bem como à ideia de democracia como princípio de um governo
voltado a esta massa heterogênea e plural, passa-se a analisar as viabilidades
ofertadas pelos novos meios tecnológicos ligados à transfusão da informação.

De reforçar, inicialmente, que um dos processos está ligado à atividade


legislativa e que o outro se refere à programação orçamentária que, embora necessite
ter as propostas aprovadas transpostas para a forma de lei, é função que condiciona
e interage com o Poder Executivo.

Dito isso, é mister referir que a participação direta, veiculada por intermédio das
redes sociais, tendo em vista a percentagem de pessoas que utilizam a internet e
possuem Facebook, por exemplo, tanto na Islândia4, quanto no Brasil5. Ademais, há
fluidez de informações e uma ferramenta disponível para a maior parte dos usuários
do tipo de tecnologia que permite o acesso à rede mundial.

Outrossim, a possibilidade de que as pessoas possam definir os rumos e a


aplicação de verba pública, elegendo as prioridades atinentes à comunidade, sem que
precisem mudar drasticamente suas rotinas, em relação a deslocamento, podendo
exercer a participação cívica de onde quer que se encontrem, é, também, um ponto
apto a fortalecer o exercício da soberania.

Entretanto, é inevitável referir que, nos casos acima elencados, posto que
tenham servido de experiências plenamente voltadas à intervenção do povo,

4
74%, conforme dados de 31/12/2017, disponíveis em:
http://www.internetworldstats.com/stats4.htm., acesso em 15/11/2018.
5
74%, conforme dados de 30/06/2017, disponíveis em:
http://www.internetworldstats.com/stats10.htm., acesso em 15/11/2018.
52

acabaram por condicionar o exercício da soberania popular aos representantes, ou


seja, ao governo instituído.

Referente ao caso islandês, o revolucionário exercício do poder constituinte,


concretizado de maneira transparente, por via das redes sociais, acabou por esbarrar
no Althingi, e, até a data de realização deste estudo, não teve seu texto promulgado
pelo Parlamento islandês.

Outrossim, necessário asseverar que a atividade política não pode se encontrar


condicionada à utilização de determinado serviço privado, como é o caso da
manutenção de um perfil pessoal em redes sociais. As empresas, entidades cujo foco
primordial é a captação de lucro, agem de forma a alcançar objetivos financeiros,
tendo em vista que o próprio termo é juridicamente conceituado como a atividade
econômica desenvolvida pelo empresário, de acordo com Fábio Ulhoa Coelho (2010).
Permanecer a democracia dependente do mercado e de seus fatores, que,
comumente, são alteram de acordo com as necessidades e objetivos dos grupos
empresariais dominantes economicamente é um atentado direto à soberania popular
(BONAVIDES, 2001). Cumpre, inclusive, trazer a lume as conclusões da obra de
Wood (2010):

O mercado “flexível” acentua a flexibilidade e a competitividade solapando as


suas próprias fundações enquanto retira consumidores do mercado,
enquanto o mercado “social”, submetendo-se aos imperativos capitalistas,
estabelece limites estreitos para sua própria capacidade de humanizar o
capitalismo. A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas atuais
condições econômicas e políticas é que um capitalismo humano, “social” e
verdadeiramente democrático e igualitário é mais irreal e utópico que o
socialismo. (WOOD, 2010, p. 250)

Logo, as grandes empresas do ramo tecnológico não podem ser consideradas


o palco ideal para desenvolvimento sadio da participação popular, mormente
considerando a venda de dados pessoais realizadas por algumas corporações para
posterior utilização de forma a manipular o comportamento das massas. Precisa,
neste campo, é a explanação de Alê Youssef (2018):

É a velha política amplificando a crise da democracia, mesmo no ambiente


aparentemente alternativo e inovador. É a supremacia do dinheiro e do poder
econômico mesmo no ambiente que prometia a defendida horizontalidade. O
recente escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica e o Facebook
é ilustrativo em relação ao perigo desse ambiente. A aparente vulnerabilidade
de dados dos usuários da gigante rede social, e a utilização dos mesmos pela
referida empresa de análise de dados em benefício da campanha de Donald
Trump e em outras eleições ao redor do mundo demonstram desdobramentos
perversos de utilização das novas tecnologias.
53

[...] Essas gigantes [Facebook e Google] também assombram o mundo e o


mercado com algoritmos cada vez mais sofisticados, que canalizam e
controlam as buscas por informações na internet e o conteúdo nas timelines.
Tudo customizado e padronizado diante da relação entre interesse pessoal
do usuário e acordos comerciais das grandes empresas. Isso vale
obviamente também para assuntos relacionados à política, à cultura e à
sociedade. Essas ferramentas já estão disponíveis e são poderosas, ainda
mais se considerarmos o esgotamento da população mundial com a classe
política e, por consequência, com a democracia e o que isso pode significar
em um ambiente de buscas ou timelines repletas de interesses corporativos
e estratégias de formação de opinião. (YOUSSEF, 2018, pp. 136-137)

Tais, métodos se situam dentro do espectro do aprisionamento tecnológico,


que, a serviço do mercado e das grandes corporações, engessa conceitos para
aumentar a capacidade de torna-los rentáveis de alguma forma, conforme exemplifica
Lanier (2010):

Antes do MIDI, uma nota musical era uma ideia insondável que transcendia
a definição absoluta. Era uma forma que um músico tinha para pensar ou
uma maneira de ensinar e documentar a música. Era uma música mental
distinguível da música em si. Pessoas diferentes podiam fazer transcrições
da mesma execução musical, por exemplo, e acabar com partituras
ligeiramente diferentes.

Depois do MIDI, uma nota musical deixou de ser apenas uma ideia, tornando-
se uma estrutura rígida e obrigatória que você não tem como evitar em certos
aspectos da vida que se tornaram digitais. O processo do aprisionamento
tecnológico é como uma onda alterando aos poucos o livro de regras da vida,
eliminando as ambiguidades de pensamentos flexíveis à medida que cada
vez mais estruturas de pensamento são engessadas em uma realidade
permanente. (LANIER, 2010, p. 25)

Inviável, portanto, que se mantenha a participação popular à mercê da


transmissão de dados inverídicos e notícias sensacionalistas, verificada na sociedade
da informação, onde “constata-se, frequentemente, uma defesa da mentira, em
oposição ao princípio ético da verdade” (MANSUR; ANDRADE, 2013, p. 72), sem que
a Administração Pública, que devia, em tese, representar, por intermédio de seus
atores, o povo soberano, possa intervir e fiscalizar a propagação de estratagemas
aptos a manipular a opinião e os ímpetos gerais das massas. Sem a conferência da
idoneidade dos conteúdos transmitidos e veiculados, uma rede social não é hábil a
servir de “Ágora Eletrônica”, considerando que a democracia jamais pode prescindir
do acesso à informação, e de que é essencial que esta seja transmitida de maneira
ética e translúcida (GOMES, 2005).

Portanto, o espaço para a exposição de ideias e opiniões por parte do povo


deve ser provido pelo poder público, de modo a resguardar o processo de interesses
54

particulares, sejam eles políticos ou econômicos. Nesta senda, acompanha-se a


doutrina de Alê Youssef (2018):

A fim de compreendermos saídas para esse prognóstico de proporções tão


impactantes, parece-me fundamental que a utilização das inovações
tecnológicas como alternativa de aprimoramento da nossa democracia
representativa aconteça não apenas com esse sentido de urgência, mas
através de ferramentas que não estejam a serviço dos interesses comerciais
e políticos das gigantes tecnológicas, antes que o descrédito da população
atinja seu ápice em relação aos sistemas representativos e os serviços
prestados pelo poder público. (YOUSSEF, 2018, p. 139)

Por outro lado, no concernente ao Orçamento Participativo Digital de Belo


Horizonte, conforme se colhe dos estudos acima abordados (ABREU, 2016; ARAÚJO;
PACHECO, 2016; SAMPAIO, 2009), ainda que tenham sido reconhecidos resultados
positivos quanto à utilização dos meios informacionais e no tocante aos esforços pela
inclusão digital, frisa-se que a política está longe de ser considerada irretocável. Pelo
contrário, nota-se uma postura, por parte dos gestores do sistema, de ausência de
diálogo entre a Administração Pública e o povo (ARAÚJO; PACHECO, 2016), e de
falta de investimento acerca da imagem do portal em que ocorrem os debates.

Assim, por mais que no caso do Orçamento Participativo Digital o poder público
tenha tomado para si a responsabilidade de prover os canais próprios para o debate
e a participação popular, entende-se que não o faz de maneira satisfatória, tendo em
vista a ausência de políticas concisas de inclusão digital e de uma intervenção de
monitoramento e optimização dos espaços virtuais já existentes.
55

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A soberania popular é elemento justificante dos textos constitucionais,


verificado como legitimador do agir estatal a qualquer tempo. Hodiernamente, se dá
mediante o tão criticado sistema representativo, que, até certa fase tecnológica da
sociedade, foi a maneira de maior viabilidade quanto à aplicação da democracia nos
modelos de governo.

Todavia, a representação não é um modelo que traduza a democracia em seus


conceitos mais puros, tendo em vista que resume a participação cívica dos
componentes de uma comunidade à escolha entre determinadas chapas que podem
ou não ser condizentes com os anseios do eleitor. Logo, não é apta a representar a
soberania popular, pois este elemento constitucional deve se encontrar vinculada à
voz do povo, soberano por excelência.

Isto posto, é mister ressaltar que, modernamente, as novas tecnologias da


informação possibilitam, mais do que nunca, o debate e a troca de ideias que possam
vir a somar para o processo cívico de determinada localidade. Aliás, os meios
eletrônicos também têm propiciado um aumento na transparência e na efetividade da
Administração Pública.

Desta forma, as novas tecnologias da informação têm propiciado vários meios


para que a soberania popular volte a ser exercida pelo povo, de fato, tendo em vista
que a Carta Magna condiciona e limita o campo de atuação estatal justamente em
respeito ao povo soberano. De outro modo, o questionamento acerca de a quem, de
fato, o Estado deve servir e prestar as devidas informações de sua atuação, se tornaria
sem resposta. Não há família real, religião, ou distintos grupos de cidadãos apartados
do restante do povo a quem o Estado deva ser submisso. O agir estatal é voltado ao
povo e as Cartas Constitucionais a garantir a soberania deste frente aos desmandos
de quaisquer interesses particulares.

Existente o espaço virtual, é imperioso que o poder público se apodere de tais


tecnologias e intervenha em prol da participação, tendo em vista que é essencial para
o exercício pleno da soberania popular.

É, portanto, fundamental que o Estado invista em políticas de inclusão digital,


tanto na via material, para fins de prover àqueles que não possuem condições
56

econômicas de adquirir os instrumentos eletrônicos necessários para o exercício das


possibilidades já mencionadas, quanto no quesito cultural, incentivando a difusão de
conhecimentos técnicos acerca dos meios eletrônicos. Uma estratégia de inclusão
digital no mencionado âmbito cultural, é urgente, tendo em vista que as redes, posto
que formem uma estrutura amplamente apta a difundir informações dos mais diversos
ramos, impedem, por vezes, que se exerça uma seletividade acerca do que é verídico
e do que não passa de manifestações fantasiosas ou mal-intencionadas.

Outro ponto essencial para que os meios advindos da gama de avanços


tecnológicos verificada na sociedade da informação possam ser hábeis a oportunizar
o fortalecimento e o exercício da soberania popular, é a independência estatal de
portais privados ou diretamente atrelados ao interesse econômico de corporações e
grupos empresariais. Como mencionado, as componentes deste oligopólio
tecnológico estão atreladas aos impulsos e interesses de mercado, como é comum a
qualquer empresa que vise ao lucro, não servindo, desta forma, a oportunizar um meio
idôneo o bastante para servir de palco para o embate de ideias e para a participação
popular democrática.

Entretanto, faz-se necessário ressaltar que o poder público, ao prover um portal


no intuito de fomentar o debate e possibilitar a participação popular, não pode abrir
um canal para exercício de uma espécie de monólogo, em que somente os
administrados debatem e votam, sem qualquer posição ou monitoramento por parte
dos agentes ligados à Administração. Tal premissa se encontra ligada à ideia de
difusão das políticas ligadas à inclusão digital cultural, considerando que, havendo
reciprocidade entre o Estado e aqueles que procuram participar das decisões políticas
da comunidade em que se encontram inseridas, é mais provável que haja um senso
de utilização do serviço e uma noção dos parâmetros da participação mais
aprofundada.

Igualmente importante, conforme constatado acima, é a aplicação de recursos


na otimização dos portais a serem utilizados para a finalidade de ampliar os espaços
para a participação direta dos administrados, tendo em vista que os sítios que
hospedam os fóruns de discussão devem ser atrativos e práticos ao usuário. Não se
pode conceber a manutenção de um espaço voltado à participação do povo onde este
57

encontre dificuldades e empecilhos na tentativa de consumar sua participação cívica,


já que isto contrariaria os interesses do soberano constitucional.

Diante do exposto, conclui-se que, atualmente, é, mais do que nunca, possível


que o poder público intervenha no objetivo de fortalecer o exercício da soberania
popular e que esta possibilidade depende de empenho, inicialmente, em políticas de
inclusão digital, com a distribuição de postos para acesso da população à internet e
aos portais de debate, e no fortalecimento e manutenção dos espaços virtuais. Dessa
forma, as novas tecnologias poderão ser utilizadas como um retorno ao povo das
atividades administrativas, propiciando, assim, que este também retorne a exercer a
soberania que lhe é atribuída constitucionalmente, mediante a participação direta e
democrática.
58

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