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PONTO DE VISTA

Presidencialismo
de coalizão ou de
cooptação?
Samuel Pessôa
Pesquisador associado da FGV/IBRE

Num famoso artigo de 1988, o mentação partidária. Assim, após


cientista político Sérgio Abranches a eleição o principal trabalho do
cunhou a expressão presidencialis- presidente eleito é construir a coali-
mo de coalizão para caracterizar o zão de partidos que dará suporte às
regime político brasileiro. O traço ações do governo.
básico desse sistema é que o presi- Apesar dos problemas, há evi-
dente começa a governar, em segui- dências de que nosso sistema polí-
da à sua eleição, com seu partido tico é funcional. Isso não significa
detendo um número de cadeiras no que não ocorram dificuldades nem
Congresso que é muito inferior ao que não haja espaço para aper-
que seria necessário para se formar feiçoamentos. Sempre é possível
uma maioria. Essa característica é aprimorar qualquer arcabouço po-
tradicional nos sistemas parlamen- lítico. As evidências já menciona-
taristas da Europa continental. das somente indicam que o sistema
Num período histórico mais recen- político brasileiro tem funcionado
te, entretanto, tornou-se habitual relativamente bem. instrumentos do presidente são: o
também nas novas democracias A literatura indica adicional- instituto da medida provisória; po-
presidenciais no mundo emergen- mente que a funcionalidade políti- der estabelecer o regime de proces-
te. Assim, a mescla entre presiden- ca brasileira resulta de duas carac- samento, se de urgência ou urgên-
cialismo e necessidade de formar terísticas: uma presidência muito cia urgentíssima, de projetos de lei;
blocos de partidos para governar forte e uma série de estruturas de veto parcial ou integral; e decidir o
perdeu o grau de excepcionalidade controle que desfrutam de grande cronograma de liberação de verbas
que apresentava nos anos 80. independência e limitam o campo orçamentárias em função de o or-
A combinação de voto propor- de ação presidencial. çamento ser autorizativo.
cional com grandes distritos — em A presidência forte, ou “im- A presidência forte permite a
nosso sistema político cada esta- perial”, como preferem alguns, coordenação da diversidade de pre-
do funciona como um distrito em resulta da manutenção de diver- ferências na esfera parlamentar. O
que o número de cadeiras varia de sas prerrogativas presidenciais do presidente pauta o Congresso Na-
oito até 70 — produz elevada frag- período militar. Entre outros, os cional. Entretanto, diferentemente

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PONTO DE VISTA

de um presidente que tenha usurpa- As coalizões petistas abarcam Em síntese, a forte heterogenei-
do esses poderes de forma unilate- toda a esquerda (com exceção de dade ideológica da base de susten-
ral, o mandatário brasileiro tornou- poucos nanicos de esquerda), pulam tação dos governos petistas fez até
se poderoso por livre e espontânea PPS, PSDB e DEM, e em seguida hoje com que a escolha de gestão
vontade — e boa dose de sabedoria, incorporam toda a direita. A forte política priorizasse o varejão em
é justo acrescentar — da maioria heterogeneidade ideológica dessas detrimento do compartilhamento
dos parlamentares que elaboraram coalizões faz com que a opção até de responsabilidades administrati-
a nossa Constituição de 1988. agora dos governos do partido te- vas. Mensalão e Petrolão são efei-
O sistema não degenera em tira- nha sido a de compartilhar menos tos colaterais dessa escolha concen-
nia porque há inúmeras instituições a administração com os parceiros e tradora ou monopolista de gestão.
independentes que estabelecem li- gerir a política no varejão. Há, porém, um forte indicador
mites à ação do Executivo: Minis- de mudança na estratégia do PT
tério Público, Judiciário, imprensa em relação à montagem da coa-
livre e atuante, Tribunal de Contas lizão governativa. O ministério
da União, Controladoria Geral da montado pela presidente Dilma
União e Polícia Federal.
Há dois tipos de moedas Rousseff para o seu segundo man-
Para gerir a coalizão, o Executi- dato totaliza 56,55 pontos no in-
de troca em nosso
vo tem dois tipos de instrumentos: dicador de proporcionalidade do
primeiro a própria construção da presidencialismo de gabinete, o índice mais alto da era
coalizão e a distribuição entre os petista e acima da média do perío-
seus partidos das responsabilidades coalizão: compartilhar do dos governos do PSDB e do PT,
administrativas; e, segundo, o uso de 54,21. Ainda assim, perde para
da liberação de recursos para a exe- responsabilidades os indicadores dos dois mandatos
cução das emendas parlamentares. de FHC, que superaram 60. O cál-
Ou seja, há dois tipos básicos de administrativas no interior culo do indicador foi uma colabo-
moedas de troca em nosso presi- ração do cientista político Carlos
do governo e emendas
dencialismo de coalizão: compar- Pereira, da FGV/Ebape, para esta
tilhar responsabilidades adminis- parlamentares coluna.
trativas no interior do governo e De qualquer forma, é um avanço
emendas parlamentares (o chama- notável na direção do presidencia-
do “varejão”). lismo de coalizão, mostrando que
A literatura tem sugerido que os a presidente pode ter entendido o
dois tipos de instrumentos são com- De fato, um indicador de propor- alto custo político do “presidencia-
plementares. Quem compartilha cionalidade dos gabinetes em relação lismo de cooptação”. O novo mi-
muito governo usa menos o varejão ao peso de cada partido na base de nistério de Dilma foi intensamente
e vice-versa. sustentação do governo no Congres- criticado pela suposta incompetên-
É aqui que nosso presidencialismo so mostra que, desde a presidência de cia de muitos dos nomeados e mes-
de coalizão decai para presidencialis- Lula, tem havido redução do com- mo por alguns casos de suspeita
mo de cooptação. Os governos petis- partilhamento administrativo. Este quanto à lisura. Do ponto de vista
tas têm um problema de origem: como indicador foi de 60, 62, 51, 52 e 44, da montagem de um governo de
houve a opção política de antagonizar respectivamente para FHC 1 e 2, coalizão, no entanto, há chances
os tucanos — que ideologicamente es- Lula 1 e 2 e Dilma 1. Quanto mais de que a presidente tenha dado um
tão bem mais próximos do PT do que próximo de 100, maior será a pro- passo certo, que reduzirá a necessi-
partidos como PP, PR, PSD, entre tan- porcionalidade entre o peso de cada dade de recorrer ao “varejão” para
tos outros —, as coalizões petistas são partido no gabinete de ministros e na garantir maioria nos embates no
muito heterogêneas ideologicamente. base de sustentação do governo. Congresso.

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