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2021/2022

SEBENTA DE

DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Hugo Almeida
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Nota Introdutória
Esta sebenta de Direitos Fundamentais, disponibilizada pela Comissão de Curso dos
alunos do 2.º ano da licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da Universidade do
Porto no ano letivo 2021/2022, foi elaborada pelo estudante Hugo Almeida, tendo por
base as aulas lecionadas pela Professora Luísa Neto, os apontamentos semanais do
estudante André Rosa, e os manuais “Novos direitos: ou novos objetos para o direito?”,
da Professora Luísa Neto, e “Manual de Direito Constitucional” de Jorge Miranda
(Tomo IV – Direitos Fundamentais), sendo que a bibliografia específica a determinados
capítulos (com base nos documentos disponibilizados do Sigarra) é referida no início do
respetivo capítulo.
A sebenta é um mero complemento ao estudo e não dispensa a presença nas aulas e a
leitura da bibliografia indicada na unidade curricular de Direitos Fundamentais

Hugo Almeida 1
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Índice
Parte I - A problemática dos direitos fundamentais ........................................................4
Capítulo I – Sentido dos direitos fundamentais .........................................................................4
O que são os Direitos Fundamentais? ..................................................................................4
A criação dos Direitos Fundamentais: perspetivas e gerações ..............................................5
A articulação multinível entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos .........................8
A evolução histórica dos Direitos Fundamentais nas perspetivas filosófica, política e
jurídica ..................................................................................................................................9
Liberdade dos Antigos e Liberdade dos Modernos .............................................................12
Pluridimensionalidade dos Direitos Fundamentais .............................................................12
Teorias sobre o Sentido dos Direitos Fundamentais ...........................................................14
Capítulo II – O princípio da dignidade da pessoa humana: novos desafios ............................16
Capítulo III – Conceitos afins e categorias de direitos fundamentais......................................20
Características dos DF ......................................................................................................20
Conceitos afins aos DF ......................................................................................................23
Regime Comum dos Direitos Fundamentais ...................................................................24
Capítulo IV – Direitos fundamentais e sistemas constitucionais.............................................28
Mecanismos de defesa internacional dos direitos fundamentais.........................................28
Dificuldades do reconhecimento da proteção internacional...............................................29
Parte II – Regime dos direitos fundamentais ..................................................................35
Artigo 18.º - regime material específico dos DLG ..........................................................35
Regime orgânico específico dos DLG ..............................................................................43
Regime específico de revisão dos DLG ............................................................................43
Regime Específico dos DESC ...............................................................................................44
Dogmática Unitária dos Direitos Fundamentais.................................................................45
Parte III - Direitos Fundamentais em Especial ................................................................47
Capítulo I – Da Identidade à Intimidade Genética ..................................................................47
Evolução do conceito de Genética e de Pessoa ...................................................................49
Os caveats da Biomedicina e da Biotecnologia: a Bioética .............................................49
Previsão internacional dos Direitos de Identidade e Intimidade Genética ...................52
O Direito Fundamental à Identidade Genética na CRP ................................................57
Intimidade e Proteção de Dados Genéticos .....................................................................57
Quem podem ser os interessados no acesso a estes dados genéticos? .................................58
Proteção através de normas infraconstitucionais .................................................................62
Capítulo II – A Reserva da Vida Privada: Novos Contextos e Novos Desafios e Proteção de
Dados ......................................................................................................................................63

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Existe um Direito Fundamental à Privacidade? .................................................................63


Restrição do Direito à Reserva da Vida Privada .................................................................64
Previsão da Reserva da Vida Privada em Instrumentos Internacionais ...............................64
O Direito à Privacidade e Vida Privada na Jurisprudência Europeia ..................................65
Previsão da Reserva da Vida Privada no ordenamento nacional .........................................67
Contextualização: do ‘Right to Be Let Alone’ até à Autodeterminação Informacional .......68
Teoria das 3 Esferas Concêntricas de Heinrich Hubmann ................................................69
A Reserva da Vida Privada: Direitos Instrumentais e Conteúdo .........................................69
Capítulo III – Direito à Saúde .................................................................................................78
Pressupostos ................................................................................................................................78
A saúde e o corpo humano ......................................................................................................78
Evolução do papel do Estado na promoção da saúde até ao “Direito Social” de Proteção da
Saúde ...................................................................................................................................79
As dimensões do “Direito à Proteção da Saúde” e a interseção com o “Direito da Saúde” 79
Resolução de conflitos e colisões com o “Direito à Saúde” ................................................80
Integridade física e experimentação ........................................................................................81
Instrumentos internacionais: princípios da intervenção e experimentação médica em seres
humanos ..............................................................................................................................82
Atividade médica ....................................................................................................................83
O consentimento no tratamento médico ..............................................................................83
Recusa do Consentimento ...................................................................................................84
Consentimento dos menores e poder paternal .....................................................................85
Responsabilidade por danos de saúde .................................................................................86
Transplantes ............................................................................................................................87
Diretivas antecipadas de vontade ............................................................................................89
Capítulo IV – A Liberdade de Consciência, Religião e Culto .................................................91
A liberdade religiosa no contexto da laicidade do Estado ...................................................91
Evolução histórica da liberdade religiosa e proteção das minorias religiosas .....................93
Configurações da relação entre o Estado e religião .............................................................95
Configurações da relação entre o Estado e religião .............................................................96
A lei da liberdade religiosa – Lei 16/2001, de 22 de Junho ................................................97
Capítulo V – Direito à (Fruição) Cultural ...........................................................................98
Os vários sentidos de cultura ............................................................................................100
Existe um Direito da Cultura? ...........................................................................................101
Capítulo VI – Direito à Educação .........................................................................................104
O Estado e o Regime do Direito à Educação.....................................................................104

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O Direito à Educação em Instrumentos Internacionais .....................................................104


A Educação na História Constitucional Portuguesa ..........................................................105
Regime do Direito à Educação como DLG, DESC e DF de natureza análoga..................107
Direito Fundamental da Educação e Direitos Fundamentais Culturais .............................109
Direito Fundamental da Educação e Direitos Fundamentais dos Trabalhadores...............110

Parte I - A problemática dos direitos fundamentais


Capítulo I – Sentido dos direitos fundamentais

O que são os Direitos Fundamentais?

Segundo Jorge Miranda, são “posições jurídicas subjetivas das pessoas enquanto tais
(individual ou institucionalmente consideradas) assentes na Constituição”.
• Esta definição assenta na posição jurídica subjetiva, de que são direitos (e
deveres, p.ex. o dever de defesa e proteção da saúde – 64.º/1 CRP) inerentes
às pessoas.
• Com “individual ou institucionalmente consideradas” refere-se ao
reconhecimento das pessoas coletivas como centros de imputação de DF.
O n.º2 do art. 12.º faz esta equiparação “As pessoas coletivas gozam dos
direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”
(trata-se de uma cláusula geral, que carece da aplicação casuística pelo
intérprete. Certos direitos, como os direitos políticos (maxime sufrágio – art.
49.º CRP) ou à família – art. 36.º , não são compatíveis com a sua natureza,
outros já serão, como o direito de propriedade privada – art. 62.º
Segundo Jorge Miranda, há direitos fundamentais de titularidade
individual, mas exercício coletivo (como a liberdade de associação – art.
46.º CRP).
• Com “assentes na Constituição” está-se, por um lado, a distinguir dos
direitos subjetivos previstos em lei ordinária (e em instrumentos
internacionais) como os Direitos de Personalidade, com os DF previstos na
Constituição.
Ø José de Melo Alexandrino define DF como: “a situação jurídica das pessoas
perante os poderes públicos, consagradas na Constituição”.
Crítica: Esta definição é incompleta, pois vê os DF apenas na ótica da
relação jurídica com o Estado – como “veículos de defesa contra os poderes
públicos”, noção que corresponde à ideia clássico-liberal de DF, associada
aos Direitos de 1.ª Geração. Porém, atualmente, o regime material dos
DLG (e também dos DESC, para a Dogmática Unitária dos DF) têm eficácia
(drittwirkung) horizontal e vertical, vinculando também entidades
privadas.

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A criação dos Direitos Fundamentais: perspetivas e gerações

Por um lado, os Direitos fundamentais são uma criação recente e frágil1, associada à
génese do Estado Moderno de Tipo Europeu e do constitucionalismo moderno, na
sequência das Revoluções liberais do século XVIII:

Ø “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia de direitos e a


separação de poderes não tem Constituição”. - Artigo 16º da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (DDHC, aprovada pela Assembleia
Nacional Constituinte em 1789).

Ø O conteúdo essencial de qualquer Constituição é a separação de poderes e a


previsão (e positivação) de direitos fundamentais. Estabelece-se uma
ligação intrínseca entre os Direitos Fundamentais e o Constitucionalismo.
Para Roxin e Hensel, “Os Direitos Fundamentais são um “sismógrafo” do
Direito Constitucional”, na medida em que o seu respeito e efetivação
tendem a refletir o “estado de saúde” da ordem constitucional como um todo
- são “Direito Constitucional Aplicado/Qualificado”.

Apesar disto, os DF são também o resultado de um lento processo histórico de


efetivação jurídica, cujas raízes jurídico-filosóficas estão na antiguidade e o seu
apogeu e positivação dá-se no séc. XVIII.
Os Direitos fundamentais são instituições:
• Definição de Maurice Hauriou de Instituição: “Necessidade social que vive e
perdura no tempo”.
• Os DF são uma resposta à necessidade, que nunca deixou de ser sentida, de
proteção do indivíduo face ao Estado e poderes públicos.
A evolução histórica dos Direitos Fundamentais pode ser entendida das perspetivas
filosófica, política e jurídica:
Ø Surgimento dos DF do ponto de vista filosófico – Segundo Vieira de Andrade,
foi pela perspetiva filosófica, como ideias e valores, que os DF começaram a
existir.
Basta pensar como o conceito de “liberdade” evoluiu desde a antiguidade
clássica (a “liberdade dos antigos”, na formulação de Benjamin Constant), na
qual uma “proto democracia” coexistia com a prática da escravatura. Ou o
contributo que a base filosófica e moral do Cristianismo deu no
desenvolvimento da ideia do Direito Natural através de conceitos como a
dignidade da pessoa humana, e a separação de poderes “Dai a César o que é
de César, e a Deus o que é de Deus”) – que na Idade Média, por influência de
1
Como estudaremos, os conceitos filosófico e político de Direitos Fundamentais remetem à Antiguidade
Clássica e até à sua positivação e universalização, a partir do século XVIII, houve um longo processo. É
também importante lembrar a sua fragilidade, de forma a impedir a sua banalização, lembrando as
consequências dos regimes totalitários do século XX.

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Aquino, levaram a ideias como a soberania popular e o Direito de


Resistência, que era um verdadeiro direito do indivíduo face aos poderes do
Estado. No Humanismo Renascentista (a ideia de Direitos Universais e já não
estamentais, um fundamento secular da ideia de DF no jusnaturalismo
racionalista), etc.

Ø Político – Começou pela garantia de posições jurídicas fundamentais face aos


poderes, como os “direitos” dos estamentos previstos na Magna Carta2 (1215),
que limitavam o poder do rei. Assim sendo, a ligação entre a legitimação e
limitação do poder político e a concessão ou reconhecimento de “direitos
fundamentais” (os dois requisitos de qualquer Constituição, na previsão do art.
16.º DDHC), esteve presente ao longo da História.

A ligação entre o poder político e os DF está também fundamentalmente


associada à ideia de liberdade religiosa. O Tratado de Vestefália (1648) foi
dos primeiros documentos a garantir liberdades que hoje reconhecemos como
Direitos Fundamentais, como a Liberdade de Religião e de Culto (praticada no
domicílio ou em público -> afirmando, simultaneamente, a reserva da vida
privada) e a liberdade de circulação (para territórios onde a sua religião é
maioritária). Por isso é que muitos autores consideram o DF de Liberdade
Religiosa como uma espécie de “laboratório de ensaio para a afirmação dos
direitos dos cidadãos”.

Ø Jurídico – Ligada ao constitucionalismo moderno, do séc. XVIII. Deu-se


efetividade jurídica às posições jurídicas subjetivas fundamentais das pessoas.

As Revoluções liberais marcaram o “rompimento” com o Estado Absoluto.


Passamos de ter súbditos para ter cidadãos, pessoas com um vínculo jurídico-
político com o Estado, que comporta direitos e deveres fundamentais e
individuais. Esta evolução é inseparável do surgimento do Estado
Constitucional Representativo e de Direito e das primeiras Constituições
escritas (EUA – 1787 e França – 1791), que positivaram os direitos
fundamentais, dando-lhes força jurídica (deixaram de ser “meras proclamações
filosóficas”3) e imprimindo-os de um carácter universal (eram direitos de todos
os cidadãos, não só de determinadas classes ou ordens sociais, como acontecia
no Feudalismo).

Com a passagem do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, alarga-se o leque
de Direitos fundamentais (DLG, DF de 1ª geração + DESC, DF de 2ª geração). O
conceito de geração de DF deve-se a Bobbio e Vasak.

2
E, sucessivamente, a Petition of Rights (1628), o Habeas Corpus Act (1679), a Bill of Rights (1689),
que juntamente com a Magna Carta, compõe a constituição material britânica enquanto Estado de
Direito. Em todos estes documentos, o conteúdo essencial consiste na limitação de poderes do soberano e
reconhecimento/garantia de direitos, estamentais ou individuais.
3
Gomes Canotilho, “O Estado de Direito é um Estado de Direitos Fundamentais”

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Ø Os DF de 1.ª Geração (que correspondem aos Direitos, Liberdades e Garantias,


na organização do nosso texto constitucional), estão associados à “trilogia
liberdade-segurança-propriedade” nas palavras de Jorge Miranda, que foram
revindicados pela burguesia emergente.
Surgiram no Constitucionalismo Liberal (em Portugal, associado à
Constituição de 1822, Carta constitucional de 1824, e a Constituição de 1836 e
1911). Hoje estão previstos no Título II da Parte I da CRP, bem como nos “DF
de natureza análoga”, que são materialmente DLG, mas previstos fora do Título
I, que o art. 17.º equipara e incluí no seu regime específico – e.g. Direito de
Propriedade Privada (art. 62.º, é formalmente um DESC, mas materialmente um
DLG ex vi art. 17.º CRP).
São DF que exigem uma atitude negativa (o Estado deve “abster-se de
interferir” nestas esferas jurídicas pessoais tuteladas por DLG) e de
reconhecimento e respeito desses direitos por parte do Estado (que depois
passou a ser exigida, não só do Estado e poderes públicos, mas também de
terceiros particulares – drittwirkung horizontal e vertical).
Os DF de 1.ª Geração são, essencialmente, posições jurídicas de cada indivíduo,
que representam um limite à ingerência do Estado (usando como exemplo a
integridade física e moral, um típico DF de 1.ª Geração, é um Direito, previsto
no art. 25.º/1 CRP, cuja garantia, prevista no n.º2, é a proibição da tortura.)

Ø Já os DF de 2.ª Geração, que surgem num contexto de Estado Social/Prestador,


exigem uma atitude positiva, de efetivação (o que não significa, como
veremos, que alguns DLG não requeiram efetivação também) e de
contribuição/prestação.

Ø Também é possível distingui-los na ótica de que, enquanto a 1.ª Geração de DF


garante uma liberdade formal (todos têm, formalmente, igual liberdade de
circulação, de desenvolvimento da personalidade, de expressão – sem que o
Estado possa intervir, sem ser nos limites do aceite num Estado de Direito), os
DF de 2.ª Geração visam assegurar uma liberdade material ou liberdade de
oportunidades (garantindo que todos têm um acesso à educação, a oferta e
serviços sociais, a um mínimo de existência condigna, que permita a todos um
exercício e fruição completa de todos esses direitos).

Ø Rejeita-se a ideia de que os DESC sejam “DF fracos”, ou desprovidos de força


jurídica. Não são meros objetivos programáticos, mas sim, tal como os DLG,
são direitos que se podem exigir de outrem, em especial do Estado (na reserva
do possível e admitindo diferentes graus de efetivação e exigibilidade, conforme
as políticas públicas seguidas pelo Legislador). Todos os DF têm de ter um
mínimo de concretização4, sob risco de a termos, pelo menos quanto à previsão
destes direitos, uma Constituição Semântica.

4
A garantia da existência de um mínimo de concretização através da fiscalização jurisdicional do TC
(em especial a Fiscalização por Omissão, como garantia da efetivação legal da previsão constitucional) e
os limites materiais de revisão, que no caso dos DESC, apenas abrangem “os direitos dos trabalhadores,

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Até podemos falar hoje de DF de 3ª geração (Direito à Proteção de Dados, informáticos


e não só, – art. 35.º CRP e Direito ao Ambiente – art. 66.º; desenvolveram-se nos anos
70 e, em ambos os casos, a CRP de 1976 recebeu-os ab initio), e 4ª geração (Proteção
da Identidade Genética5 – art. 26.º/3, surge na década de 90) – “novos objetos do
direito”
• A sua distinção não é estrutural, contrariamente à que existe primeira geração
(DLG) e segunda (DESC), é uma distinção puramente cronológica. Um
Direito de terceira ou quarta geração pode ser, estruturalmente, um DLG ou
DESC (por exemplo, o Direito à Proteção de Dados – art. 35.º é um DLG, já o
Direito ao Ambiente – art. 66.º é um DESC, sendo ambos direitos de terceira
geração).

• Há autores que admitem ainda a existência de direitos de quinta geração. Estes


são estruturalmente diferentes, pois muda a sua titularidade. Já não são
posições jurídicas subjetivas das pessoas, mas sim de grupos6 e comunidades
(p.ex. os direitos dos povos, das culturas).

A articulação multinível entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos

Ø Os DF estão constitucionalmente previstos, na ordem interna (no ordenamento


jurídico nacional);

Ø Os Direitos Humanos (DH) estão previstos na ordem internacional, em


instrumentos e convenções.
Exemplos: Declaração Universal dos Direitos do Homem , o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos
Direitos Económicos, Sociais e Culturais (todas diplomas da ONU de
proteção universal e geral, de 1948 e 1966, respetivamente), Convenção
Europeia dos Direitos do Homem (Conselho da Europa, 1950 – instrumento
de proteção regional e geral), para além de um sem-número de
instrumentos de proteção setorial (que estudaremos nos DF em Especial).

Ø Atualmente, há uma quase total correspondência entre o âmbito de proteção dos


Direitos Fundamentais (na ordem jurídica portuguesa) e os Direitos Humanos.
Para Paulo Otero, o Estado de Direito não é só um Estado de Direitos
Fundamentais, mas também um Estado de Direitos Humanos– na medida em

das comissões de trabalhadores e das associações sindicais” (art. 288.º al .e)) e não os DESC em geral,
estando nesse aspeto menos protegidos que os DLG, que são integralmente um limite de revisão.
5
Se a proteção da Identidade Genética do ser humano (Cf. Parte III) não fosse introduzida na Revisão
Constitucional de 1997, qualquer descoberta ou intervenção de estudo sobre o genoma humano poderia
ter sido patenteada. Ainda assim, alguns autores entendem que o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana poderia sempre ser usada como “válvula de escape”.
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Um exemplo seria na: “Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais
étnicas, religiosas e linguísticas” (ONU, 1992)

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que o cidadão beneficia de uma extensa tutela de instrumentos internacionais,


que servem como um nível acrescido de proteção das suas posições jurídicas
subjetivas fundamentais.

Para além do extenso elenco de DF que resulta da CRP, que não difere
essencialmente daquele do Direito Internacional Humanitário, o legislador
constituinte assegurou a receção dos Direitos Humanos. Através dos artigo
16.º/1– Princípio da Cláusula Aberta/Não Tipicidade, a força jurídica de
quaisquer outros direitos fundamentais resultantes do DIP ou da lei
ordinária. Através do 16.º/2, recebe formalmente a DUDH, servindo de base
de interpretação e integração de lacunas para todos os DF
constitucionalmente previstos.
Problemas:
a. Não há dúvidas quanto à densificação jurídica dos Direitos Humanos, apenas
quanto à efetividade política dos mesmos. Dado que os tribunais internacionais
não tem a capacidade de aplicar coercivamente sanções.
b. Com a proliferação de textos que preveem direitos humanos, o problema não é
a falta de previsão, mas a sua sobreposição. Nomeadamente saber que
mecanismo de tutela/efetivação dos Direitos Humanos é aplicável (p.ex., se for
invocada a CEDH, estará na jurisdição do TEDH, mas se for invocada a Carta
dos Direitos Fundamentais da UE já será a jurisdição do TJUE).
• Pluralismo dos sistemas de proteção de DH
A evolução histórica dos Direitos Fundamentais nas perspetivas filosófica,
política e jurídica

● Na Antiguidade Clássica (e que associamos a autores como Platão e Aristóteles)


ainda se estava longe da ideia de DF que temos atualmente. Desde logo, a sua
titularidade não era universal, havia uma noção exclusivista e xenófoba, na qual os
direitos (em especial os direitos políticos e cívicos) eram posições jurídicas subjetivas
reservadas aos cidadãos homens e nascidos na pólis7 - os direitos eram essencialmente
privilégios reservados a um grupo minoritário, que eram os cidadãos. Assentavam, não
no reconhecimento de DF (inalienáveis e emanantes da personalidade humana), mas
sim na sua concessão pela pólis. Estes direitos correspondiam ao que, na fórmula de
Constant se chama a “liberdade dos antigos”. A ideia da igualdade de dignidade
também não estava presente, por serem sociedades esclavagistas.
Ainda assim, pensadores sofistas e estoicos, tiveram o importante contributo de ter
reconhecido a igualdade entre todos os homens. Contudo, esta era uma meramente
uma igualdade biológica, ainda longe das ideias de igual dignidade, proteção jurídica e
direitos políticos.

7
Um legado curioso desta atitude está na palavra “hostilidade”, que vem de hostis, o termo grego antigo
para “estrangeiro”.

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Já Cícero (influenciado pelo estoicismo), mais tarde, afirmou que não se deve tratar
apenas da igualdade biológica e antropológica, mas também da igualdade filosófica e
política dos seres humanos.
● Com o Cristianismo, reconhece-se, a par da igualdade biológica e antropológica, e
filosófica e política, uma igualdade de dignidade.
Evolução da conceção de igualdade:
a. Biológica: reconhecida pelos estoicos e sofistas;
b. Filosófica e Política: contributo de Cícero;
c. de Dignidade: do Cristianismo.
A ideia de Liberdade passa também a ser vista em duas vertentes:
a. Externa
b. Interna: Liberdade de pensamento, consciência e religião (na dimensão de fé
pessoal). Não só as exteriorizações de comportamentos que devem ser
protegidas, mas a sua própria os aspetos mais íntimos da consciência são dignos
de proteção. (Vide art. 41.º CRP: Liberdade de Consciência, Religião e Culto).
Na idade média, S. Tomás de Aquino discorre sobre a conceção de Direito Natural,
que é o fundamento de legitimidade e se impõe sobre todo o Direito Positivo. A
incongruência do Direito Positivo com o Direito Natural dá lugar ao Direito de
Resistência (atualmente este DF está consagrado no artigo 21.º, que permite, quando
não for possível recorrer a autoridade pública, a resistência a qualquer ordem ofensiva
dos DLG. Na formulação de Aquino, o Direito de Resistência legitimava-se na
discordância entre uma “lei humana” e a “lei natural”, devendo-se recusar acatar uma lei
injusta). Com isto, os DF (no seu conceito filosófico, relacionado com o Direito
Natural divino/de fundamento teológico), passa a estar na base de legitimação do
próprio poder político.
O Renascimento vem trazer um alargamento da mundividências. Há uma
secularização do Direito e do Direito Natural, rejeitando-se um fundamento divino (a
“lei natural” que sucede da “lei divina” para Aquino, é substituída por entendimento do
Direito Natural de base antropológica e racional).
Com o surgimento do Estado Moderno de Tipo Europeu, cujo uma das características é
a Laicidade, a não-identificação do Estado com fins religiosos. Outra circunstância
importante do Renascimento é a questão em torno do reconhecimento de direitos nos
territórios recém-descobertos, bem como dos direitos dos indígenas.
Foi importante, quer na questão da secularização do Direito Natural, quer dos
direitos dos indígenas e habitantes dos territórios descobertos, o contributo de
Francisco de Vitoria e de Bartolomeu de Las Casas8. No jusracionalismo, o
contributo de Hugo Grócio.

8
No século XVII, a escravatura dos índios no recém-descoberto continente americano, era fundamentado
na ideia de, por estes povos terem práticas que eram vistas como contrárias ao Direito Natural, deviam ser
subjugadas e catequisadas para suprir a percebida falta de ordem social. De Las Casas, não só defendeu os

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Idade Moderna:
1. No séc. XVII, autores como Thomas Paine referem a luta pela liberdade
religiosa no centro da luta pelas liberdades políticas (contexto pós reforma
protestante e contrarreforma). Para Thomas Paine, o conceito de dignidade
humana, baseava-se em dois conceitos: a livre escolha e a tolerância (perante
as escolhas livres)
2. A tolerância como uma fonte de pluralismo: o Estado deve abrir-se a uma
multiplicidade de culturas e credos.
● No séc. XVIII, há duas ideias fundamentais - por um lado, surge a necessidade de
limitar o poder político e, por outro, há uma via jus racionalista e universalista que
leva à ideia de que devem ser previstos DF a todos os Homens, nas mesmas
circunstâncias:
Ø Contributo da linha universalista: O Estado não cria ou concede DF, mas
reconhece-os. Os DF são naturais ao Homem e inerentes à sua essência.
• Ideia que esteve no cerne das revoluções liberais: “All Man are Created Equal“
– Declaração da Independência (1776), “Os Homens nascem e são livres e iguais
em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade
comum” (art. 1.º da DDHC).

Ø Contributo da linha jus racionalista:


Hobbes (na ideia de legitimação do Estado através do respeito pelos direitos
individuais – Contrato Social), Locke (trilogia liberdade-igualdade-
propriedade), Rousseau (o primado da vontade geral e do poder legislativo
enquanto representativo dessa vontade), Kant (o imperativo categórico – o
Homem é um fim em si mesmo e nunca um meio) e Pufendorf (a cada Estado
está subjacente um núcleo de valores mínimos que se identifica com a
dignidade da pessoa humana).
● No séc. XIX, a par do Estado Liberal, surge a Revolução Industrial que transforma a
sociedade:
Ø Imergência da burguesia e surgimento de uma nova classe social – o operariado,
o que naturalmente traz novos problemas e novas necessidades para o Direito,
nomeadamente ao nível dos DF.
● No séc. XX, com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de
1919, cristalizam-se os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (2ª geração), a par
dos Direitos, Liberdades e Garantias do Estado Liberal (1ª geração);
● Na atualidade, cada vez mais é alargado o leque de Direitos (3ª e 4ª geração),
dependendo estes da sua efetividade política e jurisdicional.

direitos dos indígenas, como afirmou que os princípios do Direito Natural que se impõe à lei humana
devem ser entendidos pelo referencial da “razão humana”.

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Liberdade dos Antigos e Liberdade dos Modernos


• Distinção de Benjamin Constant, que vem da obra homónima de 1874.

1. Liberdade dos antigos: os DF eram vistos sobretudo na ótica da liberdade de


participação na vida política, havendo pouca ou nenhuma proteção da esfera
privada.
2. Liberdade dos modernos: A Autonomia, Liberdade Religiosa, a Reserva da
Vida Privada, Liberdade de Iniciativa e Direito de Propriedade – são direitos da
“esfera privada” do indivíduo.
I. Direitos Estamentais (até ao século XVIII): direitos que eram
reconhecidos a ordens e classes sociais, não de forma geral/universal.
II. Direitos universais:
i. DLG
ii. DESC
Ø Garantia/Proteção relativa (multinível):
• Quanto ao âmbito:
- Proteção interna: direitos fundamentais.
- Proteção internacional: direitos humanos
Sobreposição entre a proteção interna e a internacional no caso português (a
quase totalidade dos DH estão previstos na CRP como DF).

• Quanto à natureza da proteção:


• Administrativa (art. 268.º - garantias dos administrados);
• Jurisdicional (através dos tribunais nacionais e internacionais).
Pluridimensionalidade dos Direitos Fundamentais

Dimensão Objetiva – corresponde ao catálogo de direitos que se encontra positivado


na Constituição. Com base neste catálogo de direitos, extrai-se um sentido objetivo: o
seu significado axiológico, o conjunto de princípios básicos que subjazem à
Constituição, que o Estado tem como “ modelo de sociedade”.
Ø Nas Constituições com carácter compromissório - como é o caso da CRP de
1976, que resultou do compromisso entre várias correntes ideológicas e
programáticas distintas -, e com um vasto catálogo de DF, torna-se difícil
reconhecer um único modelo de sociedade que subjaz à Constituição (uma
“ideia de Direito” que radique a previsão normativa da Constituição).

Ø Outro problema surge nas Constituições Semânticas9, nas quais o catálogo de


direitos na Constituição Formal não corresponde à sua real efetivação. Quer
porque o Estado de Constitucional de Direito não é respeitado e os DLG são
suprimidos pelo legislador ordinário – relação com a organização política, ou

9
Relembrando a classificação de Karl Loewenstein, dada em Direito Constitucional: Constituições
normativas – correspondência entre a Constituição formal e material (no caso dos DF: correspondência
entre a previsão/catálogo de DF e a sua efetivação); Constituições nominais e Constituições semânticas
(há previsão, mas não corresponde à realidade, sendo que o desfasamento é maior na semântica).

Hugo Almeida 12
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

porque as estruturas económicas e institucionais não permitem a sua efetivação,


em especial os DESC, que exigem prestações e meios do Estado – relação com
a organização económica.
Dimensão Subjetiva – É aquilo que cada cidadão individualmente considerado pode
exigir, quer em relação ao Estado (eficácia vertical dos DF), quer em relação a
particulares (eficácia horizontal dos DF). Ou seja, enquanto a dimensão objetiva vê os
DF enquanto os valores que definem uma sociedade ou Estado, plasmados num
catálogo de previsões constitucionais, a dimensão subjetiva foca-se na posição do
indivíduo, nos direitos que ele tem e pode exigir em relação a outrem.
Nas palavras de Vieira de Andrade, os DF na sua dimensão subjetiva são um “radical
subjetivo impostergável”. Ou seja, são posições jurídicas dos sujeitos, individualmente
considerados, que não podem deixar de ser respeitadas.
Não se pode deixar de notar que a dimensão subjetiva-individual dos DF era a única no
Estado Liberal, já a dimensão objetiva (que vem do Estado de Polícia10) é mais
associada ao Estado Social. Na articulação entre estas duas dimensões fala-se da relação
entre os valores da sociedade/da maioria e os direitos dos indivíduos face a essa
maioria.
• Segundo Jorge Reis Novais, “Os Direitos Fundamentais são trunfos contra a
maioria11”, já Jorge Miranda, harmonizando as duas dimensões, defende que “a
maioria é um critério de decisão, não é critério de verdade”. Numa sociedade
democrática (em especial, numa democracia representativa, onde o poder
exerce-se nos termos e nos limites da Constituição) a maioria deve ser um
critério de decisão, pautada sempre pelo pluralismo de expressão e os direitos
das minorias.
Exemplo: Na questão da Liberdade Religiosa, a dimensão objetiva aponta-nos para a
Laicidade (“separação das igrejas do Estado” – art. 288.º al. c) CRP) e a não
identificação do Estado com qualquer religião. Já na dimensão subjetiva, temos a
liberdade de consciência, religião e culto – art. 41.º CRP, a liberdade de acreditar ou não
acreditar, praticar ou não, qualquer religião, enquanto um “radical subjetivo
impostergável” de cada cidadão.
Diferença entre DF Materiais e Formais
Tal como se pode falar Constituições Materiais (a “ideia de Direito” ou princípios de
organização do Estado e garantia de DF) e Constituições Formais (o texto
constitucional), podemos distinguir DF Materiais ou Formais. Sendo que o ideal é haver
correspondência entre DF em sentido material e sentido formal. É o que, em
princípio, sucede na nossa Constituição, com algumas exceções:
• Há DF Formais que não são DF Materiais?

10
Associado ao Despotismo Esclarecido, do séc. XVIII, no qual o poder política era exercido pelo
déspota em nome da racionalidade ou do bem comum.
11
Trata-se da noção, que advém do constitucionalismo liberal, de proteção dos direitos das minorias
face à “tirania da maioria” e garantia da integridade do texto constitucional e dos Direitos nele
consignados face às vicissitudes parlamentares.

Hugo Almeida 13
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Vieira de Andrade, defende que o artigo 23.º CRP, que prevê Provedor de
Justiça, é um DF Formal (porque encontra-se na Parte I), mas não Material
(porque não é uma norma de DF, mas sim uma norma orgânica).
Dois problemas:
1. Qual o critério para decidir se um DF passa da constituição material para a
constituição formal?
A resposta simples seria usar como critério a dignidade da pessoa humana,
mas, como veremos em diante, a sua relativa indefinição levanta alguns
problemas.

2. A questão da comunicabilidade de bases, ou a articulação entre os


ordenamentos jurídico português (DF) e internacional (DH).
Através do princípio da cláusula aberta/não tipicidade do artigo 16º/1 da
CRP, que permite que a CRP “vá buscar” DF a outras ordens jurídicas
(convenções internacionais, legislação avulsa, etc.).

• Um exemplo da aplicação do Princípio da Cláusula Aberta, foi no direito a uma


justiça célere (atualmente garantido pelo n.º5 do artigo 20.º; “a lei assegura aos
cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade,
de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil”), introduzido na revisão
constitucional de 1997, mas que já antes de ser introduzido na CRP, podia ser
invocado com fundamento no artigo 6.º da CEDH.
Teorias sobre o Sentido dos Direitos Fundamentais
Estas teorias visam explicar a função que os DF desempenham no ordenamento
jurídico.
- Teoria clássico-liberal: São direitos de defesa do indivíduo face ao Estado (na
aceção clássico-liberal dos DF, ainda não havia eficácia horizontal, esta só veio no
Estado Social, com o reconhecimento das situações de assimetria entre os particulares).
Forte pendor subjetivo e matriz individualista. É uma teoria incompleta, pois apenas
considera a dimensão subjetiva.
- Teoria dos valores: Contrapõe-se à teoria clássico-liberal, dando maior importância à
dimensão objetiva, ou seja, à matriz axiológica que corresponde aos objetivos da
sociedade. À luz desta teoria, as posições jurídicas dos indivíduos são relativizáveis
face aos valores políticos, sociais e éticos, o que pode levar a um problema de tirania
dos valores.
v Dentro da Teoria dos Valores: Teoria institucional, baseia-se igualmente na
dimensão objetiva, mas foca-se mais em questões de organização social do que
nos valores morais e éticos. Existe uma “ideia orientadora da sociedade” que
subordina os DF individuais. (Se a ideia orientadora do Estado for baseada no
Corporativismo, como foi o Estado Novo, esta teoria admite a não consagração
de direitos que sejam contrários à organização social promovida pelo Estado,
como era o direito à greve).

Hugo Almeida 14
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- Teoria democrático-funcional: Parte de uma conceção democrático decisionista


(lembrando a ideia de Jorge Miranda de que a maioria só pode ser usada como um
“critério de decisão” e nunca de “verdade”), funcionaliza a ideia de democracia.
Isto é, porque queremos um Estado Democrático, os DF que permitimos ou não
devem servir a função de manutenção da democracia. Há legitimidade para
restringir o exercício de DF que ponha em causa os valores democráticos. Um
exemplo desta corrente na nossa Constituição está no artigo 46.º/4 (não se admite a
liberdade de associação para “organizações que perfilhem a ideologia fascista”).
Tal como a Teoria Institucional, instrumentaliza os DF à função de concretização
de uma ideia (no caso da Teoria Democrático-Funcional, é a manutenção da
democracia, no caso da Teoria Institucional, é a organização das instituições).
- Teoria Social: É uma teoria agregadora, a que melhor exprime a
multidimensionalidade (existência da dimensão objetiva, subjetiva, e outras, de DF). O
sentido de DF tem três vertentes:
i. Individual: dimensão subjetiva, é o “direito de defesa”/”radical subjetivo
impostergável”, da teoria clássico-liberal.
ii. Institucional: dimensão objetiva, a “matriz axiológica da sociedade”, das teorias
dos valores, institucional e democrático-funcional.
iii. Processual: é uma dimensão inovadora. Os cidadãos devem ter direito a um
procedimento (é um direito de acesso e de justiça procedimental, não é um
direito ao resultado). Nos DF previstos por normas programáticas (Segurança
Social – 63,º, Habitação – 65.º, etc.), que exigem uma efetivação do Estado. Os
cidadãos, mais do que o direito à prestação do Estado, devem ter algum
controlo sobre como a prestação é efetivada.
É um elemento fundamental na atualidade, especialmente no que toca aos
direitos dos administrados no procedimento (que, para além do CPA, estão
previstos no artigo 268.º CRP), que incluem o Direito à Audiência Prévia,
Acesso à Informação¸ fundamentação da decisão, decisão em tempo útil, todos
estes direitos fazem parte de uma vertente processual: existem
independentemente do resultado (do Estado concretizar a prestação ou não).
• A vertente processual garante um “status activus processualis”, ou seja, os
meios para o cidadão participar ativamente do procedimento, em vez de ser um
mero sujeito passivo.
Não obstante as divergências doutrinais, a dignidade da pessoa humana continua a
ser a referência principal, importando então densificar este conceito.

Hugo Almeida 15
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Capítulo II – O princípio da dignidade da pessoa humana: novos


desafios

Bibliografia específica: “Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana” – José


Melo de Alexandrino
O conceito de Dignidade da Pessoa Humana é polissémico e de difícil densificação.
Alguns autores propõe a utilização da expressão Dignidade Humana, ao invés de
Dignidade da Pessoa Humana – baseando-se no reconhecimento da tutela jurídica do
que está antes (nascituros ou concepturos, frequentemente associada ao argumento de
que não deve ser permitida a interrupção voluntária da gravidez) e depois (tutela post-
mortem). A expressão que usamos não é, em termos de pressupostos ideológicos,
indiferente. No âmbito desta UC optamos pela expressão “Dignidade da Pessoa
Humana”, até porque, no entendimento da Professora Dra. Luísa Neto, a utilização desta
expressão não preclude o facto de o Direito já proteger situações jurídicas anteriores à
aquisição da personalidade e posteriores ao seu termo.
Para melhor entendermos a polissemia deste conceito, remete-se para um estudo do
Supremo Tribunal Federal norte-americano, que reconheceu 5 aceções da Dignidade
da Pessoa Humana:
1. Status institucional – É uma ideia de dignidade que nada tem a ver com aquilo que é
intrínseco ao indivíduo (conceção puramente objetiva). A DPH é perspetivada
como uma necessidade social que perdura no tempo, que é instituída e
reconhecida pelo Estado. Esta noção também está relacionada com o afastamento da
conceito de status enquanto privilégio (como os que eram reconhecidos nobreza, no
Estado Estamental), em prol de um status universal reconhecido pelo Estado, na
forma da igual dignidade de todos os seres humanos.

2. Virtude coletiva – Também é uma perspetiva objetiva, relacionada com a Dimensão


Objetiva dos DF (o catálogo de Direitos Fundamentais, previstos na Constituição,
que correspondem a um compromisso da comunidade política).
• Falamos daquilo que o nosso modelo de sociedade entende como sendo digno
ou admissível: e.g. inadmissibilidade da escravidão, pena de morte. São
incompatíveis com o conjunto de valores que formam o quadro axiológico
normativo da coletividade. Estes valores remetem todos a este conceito objetivo
de Dignidade.
• Está também patente uma ideia de racionalidade coletiva, de que existe uma
“razão comum”, que serve de critério para discernir as situações consideradas
contrárias à Dignidade da Pessoa Humana.

3. Equidade – A Equidade vai para além da igualdade aritmética (de justiça


comutativa), correspondendo à ideia de igualdade geométrica (justiça distributiva/
“suum quique tribuere”). Num olhar que pode ser extrajurídico, i.e., baseado não só
nas normas e princípios jurídicos, mas na própria justiça do caso concreto (ius ex
aequo et bono).

Hugo Almeida 16
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• À luz desta dimensão, todos temos igual dignidade, porém, algumas pessoas
precisam de uma especial proteção em virtude de se encontrarem em situações
de especial vulnerabilidade ou fragilidade. Fala-se, desde logo, dos chamados
casos suspeitos de discriminação clássicos (religião, género, etnia, idade –
elenco exemplificativo do artigo 13.º/2 CRP).
Nestas situações, a proteção da Dignidade Humana poderá implicar, não só a
proibição de discriminação negativa, com fundamento nesses critérios, mas
políticas de discriminação positiva (que não deve ser entendidas como um
“privilégio”, mas uma tutela acrescida com fundamento na Constituição).
• Note-se que a aferição da situação de vulnerabilidade dá-se, não pela subsunção
a uma determinada categoria abstrata, mas sim prestando atenção às concretas
circunstâncias de vulnerabilidade que qualquer pessoa pode apresentar (o
estado de vulnerabilidade pode ser temporário e aproximar qualquer um, não é
definido pela pertença a nenhuma categoria, mas sim por um juízo de
necessidade concreto).

4. Integridade ou Integralidade – Este conceito remete-nos, pela negativa, para


àquilo que é a violação da Dignidade da Pessoa Humana - enquanto violação da
sua integridade. O ser humano é íntegro e uno, enquanto centro de imputação
de direitos e deveres, não é destacável quanto às suas partes ou divisível. A
integridade física e moral, que nesta aceção está no centro do conceito de
DPH, implica um respeito por essa unidade – por exemplo: a instrumentalização
da vida humana afeta a sua integridade moral.

5. Liberdade – no sentido da autonomia (“auto” + “nomos” – possibilidade do


indivíduo de criar e de se reger por normas próprias), de autodeterminação. O
fundamento normativo do conceito de autonomia é entendido à luz do
imperativo categórico de Kant - “age de uma forma tal que a tua forma de
atuação possa ser uma máxima universal” (a conduta humana deve ser regida
por normas que são autoimpostas, que resultam da racionalidade individual,
embora não possa ser arbitrária).
• Deve-se diferenciar a Liberdade, que é heteronomamente reconhecida, da
Autonomia, enquanto possibilidade do indivíduo de se poder autodeterminar por
normas próprias.
• Esta noção de autonomia está intimamente relacionada com o Direito de
Reserva da Vida Privada (art. 26.º/1 CRP) – ou, na sua aceção americana o
Right to be let alone (que será estudado mais à frente) – e o Direito ao Livre
Desenvolvimento da Personalidade12, que é a projeção dinâmica da reserva da
vida privada (projeção estática)
As aceções de pendor mais subjetivista (em especial esta última) levantam o seguinte
problema: quando fazemos equivaler o conceito de dignidade da pessoa humana à
liberdade, autonomia, reserva da vida privada e livre desenvolvimento da personalidade,
12
O artigo 26.º/1 CRP não usa expressamente a expressão “livre” para se referir ao Direito ao Livre
Desenvolvimento da Personalidade. No entendimento da Professora Dra. Luísa Neto, sendo o
desenvolvimento da personalidade por essência livre, a inclusão da expressão não é necessária.

Hugo Almeida 17
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esta passa a corresponder a um direito “catch all”, uma conceção de tal forma
abrangente - dado que quase todas as situações se podem enquadrar nestes direitos – que
o conceito se torna vazio de conteúdo e irrelevante na discussão jurídica.
Outra problemática recorrente da abrangência e carência de densificação do conceito de
Dignidade da Pessoa Humana, é o perigo de se converter numa fórmula banal. Isto é, de
se tornar um “conversation stopper” ou um “knockout argument”. Ninguém afirma
discordar da existência e importância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. O
que pode existir, geralmente, são diferenças relativamente ao conteúdo e ao escopo
deste conceito. Sendo possível que duas posições irreconciliáveis e opostas se baseiem
ambas na Dignidade da Pessoa Humana.
A dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP) pode, em termos filosóficos, ser
vista como um valor (os valores são sempre absolutos), enquanto princípio (que são
relativos, carecendo de harmonização e articulação com outros princípios) ou enquanto
regra (também absoluta, sem possibilidade de harmonização).

• Para José de Melo Alexandrino, não se pode afirmar a existência de deveres,


valores ou princípios absolutos (haverá sempre necessidade de harmonização).
Já Paulo Otero considera que a DPH é um valor absoluto.

O conceito de dignidade resulta de diferentes raízes históricas e filosóficas. Ao longo da


história, os vários autores foram oscilando entre várias possibilidades apresentadas para
a definição da dignidade da pessoa humana. A dicotomia é entre aqueles que defendem
um conceito de DPH com pendor mais objetivista (no exemplo do Supremo Tribunal
dos EUA, corresponderia às ideias de “Virtude Coletiva” e “Status Institucional”) e
aqueles que entendem que a DPH é uma posição subjetiva do indivíduo (um valor
intrínseco da pessoa face ao Estado).
v Subjetividade da Dignidade – Foi defendida pelos autores existencialistas do
século XX, como Sartre e Kierkegaard. De acordo com esta perspetiva, a
densificação do conceito de dignidade da pessoa humana não é, nem nunca
pode ser uma imposição da coletividade sobre o indivíduo. A subjetividade
deve influir naquela que é a conceção pessoal sobre a dignidade da pessoa
humana de cada um de nós (a base desta posição é a autonomia do indivíduo).
• O risco do subjetivismo extremo, é o de relativização ou agnosticismo
antropológico. Se admitirmos como igualmente válidas todas as conceções,
mesmo as mais irreconciliáveis, de Dignidade da Pessoa Humana, tornar-se-á
impossível atingir qualquer consenso sobre qual deve ser a densificação do
conceito de dignidade da pessoa humana.
• Segundo José de Melo Alexandrino, no plano filosófico e moral, são chamadas
conceções relativizadoras todas que as explicações que concebam a dignidade
como tarefa individual (como uma atribuição que o indivíduo faz no uso da sua
liberdade).

v Objetividade da dignidade – Associado a autores racionalistas. A dignidade é


perspetivada enquanto valor absoluto e imodificável definido coletivamente
pela sociedade. O risco desta conceção é o da Tirania dos Valores (a imposição

Hugo Almeida 18
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

de conceções morais, filosóficas e políticas dominantes, sobre a autonomia dos


indivíduos), fala-se do risco de uma democracia acética/desprotegida (na qual
os direitos individuais se subordinavam à vontade da maioria).
• As teorias objetivistas entendem a dignidade como aquilo que resulta do
consenso social que existe, numa determinada sociedade, num dado momento
histórico (ao admitirmos esta variabilidade espácio-temporal, estamos a
admitir a elasticidade do conceito, que, não é absoluta e imutável, mas pode ter
concretizações diferentes conforme as épocas. Por exemplo, à luz de conceções
da antiguidade clássica de Direito Natural – conceito objetivo, extrínseco ao
indivíduo – a escravatura já foi admissível. No entanto superamos estes
conceitos, tendo ocorrido uma evolução histórica).
Assim, no âmbito da dignidade da pessoa humana, é necessário olhar conjugadamente
para as perspetivas objetiva e subjetiva. No âmbito de um Estado de Direito
Democrático é simultaneamente necessário respeitar as posições subjetivas individuais
e o livre desenvolvimento da personalidade, que radica numa conceito de dignidade
como autonomia, que é intrínseca a todos os seres humanos, e não afastar a ideia de
consenso (da legitimidade democrática da maioria) nem cair num relativismo tal que a
utilidade da Dignidade da Pessoa Humana se esvazie (deve existir um consenso quanto
ao núcleo essencial da Dignidade da Pessoa Humana).
A Dignidade da Pessoa Humana enquanto Limite Imanente
• O princípio, valor, ou regra, da dignidade da pessoa humana, está prevista logo
no artigo 1.º da CRP, sendo um princípio estruturante da República
Portuguesa, fundamento e critério de interpretação de todos os DF.
• Vieira de Andrade entende que a DPH é uma “forma de descoberta de novos
direitos” (a dignidade da pessoa humana pode vir a abranger situações que ainda
não foram objeto de previsão normativa). Pode ser vista como uma “válvula de
escape” ao abrigo da qual podemos, pela negativa, afastar as situações que
violam o núcleo intrínseco da dignidade humana.
• Não está prevista nos limites materiais de revisão do art. 288.º, mas é um
limite implícito e imanente (pois está na base da própria Constituição
Material), mesmo que a previsão do artigo 1.º fosse retirada, continuava a existir
um princípio da dignidade da pessoa humana.
A Dignidade da Pessoa Humana enquanto Mínimo de Existência Condigna
• É uma perspetiva especialmente importante para os DESC. Todos os DF devem
ser interpretados e integrados à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana e, no caso dos direitos que exigem uma prestação do Estado (e.g. art.
63.º CRP), o critério da lesão do seu núcleo essencial dá-se pelo mínimo da
existência condigna, que é uma decorrência da dignidade humana.
• Cf. Ac. 177/2002 (penhora), Ac. 509/2002 (sobre o Rendimento Social de
Inserção) e Ac. 306/2005 (sobre a pensão de alimentos). Em toda esta
jurisprudência o TC invocou o mínimo de existência condigna. "do princípio
da dignidade humana, em conjugação com o princípio do Estado social decorre
uma pretensão a prestações que garantam a existência”, sendo de incluir na
garantia do mínimo de existência "as prestações sociais suficientes”.

Hugo Almeida 19
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• Gomes Canotilho considera que o princípio da defesa de condições mínimas de


existência é “inerente ao respeito da dignidade da pessoa humana” e pode
fundar “uma imediata pretensão dos cidadãos (…) no caso se particulares
situações sociais de necessidade”.

Para Paulo Otero, o conceito de DPH tem um núcleo central (situações, quer negativas
- de violação - quer positivas - de garantia, que são certamente abrangidas pela DPH) e
uma auréola (zona de imprecisão). No núcleo central, estabelece várias componentes,
entre as quais:

1. o ser humano é sempre um fim em si mesmo (imperativo categórico de Kant);


2. a dignidade humana “envolve a exigência de um permanente respeito e
consideração por cada ser humano individualmente considerado, vinculando
tudo e todos”; (eficácia horizontal e vertical da DPH)
3. todos os seres humanos têm a mesma dignidade;
4. a dignidade humana é irrenunciável e inalienável;
5. determina a existência de um mínimo de existência condigna, bem como de
garantia de segurança da vida em sociedade;
6. determina a existência de um poder público limitado pelo Direito.

Capítulo III – Conceitos afins e categorias de direitos fundamentais


Adotamos a definição de Jorge Miranda de DF: “posições jurídicas subjetivas
fundamentais das pessoas (enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas)
firmadas na Constituição”.

É a previsão de Direitos Fundamentais que separa um Estado de Direito de um Estado


de mera legalidade. O Estado de Direito é um Estado de Direito Fundamentais13.
Relembra-se o artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão, que coloca
a previsão de direitos fundamentais na cerne do que significa ser um Estado
Constitucional de Direito.

Características dos DF

• Fundamentais - Estão firmadas na Constituição - na definição de Freitas do


Amaral “os direitos fundamentais são posições jurídicas substantivas firmadas
na Constituição”. É desejável que haja uma correspondência entre os DF em
sentido material e em sentido formal - Jorge Miranda entende que tudo que
está na Constituição Formal, também está na Constituição Material (o elenco de
DF em sentido material só pode coincidir ou ser maior do que o dos DF em
sentido formal). Vieira de Andrade porém, alerta para o artigo 23.º CRP
(Provedor de Justiça), que, embora formalmente esteja inserida no capítulo dos
DF, materialmente não é. A previsão constitucional dos DF é o que os distingue
dos Direitos de Personalidade, que estão previstos em lei ordinária (CC).
• Universais - resulta do artigo 12.º CRP, todos cidadãos gozam dos direitos e
estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.

13
Sendo que, para Paulo Otero, para além de um Estado de Direitos Fundamentais, é um Estado de
Direitos Humanos.

Hugo Almeida 20
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• Pessoais - genericamente, não admitem delegação do seu exercício. Esta


característica afirma que nunca pode haver dissociação entre a titularidade e o
exercício de direitos. Esta característica tem sido posta em causa por legislação
recente:
i. Diretivas Antecipadas de Vontade (podem ser testamento vital ou
nomeação de um procurador de cuidados de saúde): nos casos de
nomeação de procurador, este poderá, em caso de doença, decidir
sobre questões relativas aos DF de quem o nomeou (por exemplo,
decidir se quem o nomeou será alimentado artificialmente ou não -
estão em causa os direitos à integridade física - artigo 25.º, à reserva
da vida privada e ao livre desenvolvimento da personalidade - 26.º).
Há quem entenda que nestas situações não há uma delegação, mas
sim uma antecipação do exercício dos direitos pelo particular. O
particular, ao nomear o procurador de cuidados de saúde, está a
exercer antecipadamente os seus direitos de personalidade - e não a
delegá-los noutrem. A própria expressão, diretiva antecipada de
vontade, expressa a ideia que trata-se de um exercício antecipado do
DF.
ii. No regime jurídico do maior acompanhado, tal como no procurador
de cuidados de saúde, há um exercício de direitos em interesse de
outem. Não obstante do dever de consulta do beneficiário do
acompanhamento, a decisão final de sujeitar um indivíduo ao regime
do maior acompanhado - que permite que, na medida da
incapacidade (sistema gradativo) alguns direitos sejam exercidos pelo
acompanhante - é feita por sentença jurisdicional e não pelo
próprio. Difere das diretivas antecipadas de vontade por ter que
existir o elemento de voluntariedade.

• Permanentes - não existem DF temporários.


• Carácter não patrimonial - são insuscetíveis de avaliação pecuniária. Isto
não obstante de uma lesão de um DF poder ser compensada, por valor
judicialmente determinado. É o DF em si, não o dano, que não pode ser avaliado
pecuniariamente.
• Indisponíveis: à partida implicaria a impossibilidade de renúncia ou
autolimitação de direitos, cuja diferença é difícil de definir e é uma questão de
grau. Cabe distinguir a renúncia à titularidade da renúncia ao exercício.

Entende-se que podemos renunciar ao exercício de um direito, mas não à sua


titularidade.

Ø Há que distinguir entre a questão da titularidade e a questão do exercício:


É possível o não exercício de um direito fundamental.
Por exemplo, há direitos fundamentais relativos à paternalidade: se alguém que
não tiver filhos não os está a exercer – isto é uma situação de não exercício, não
de renúncia.
O caso do suicídio é uma renúncia ao direito a vida (mesmo que não seja à
titularidade, é ao exercício), não se trata de um mero constrangimento (o que
equivaleria a uma autolimitação).

Hugo Almeida 21
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

A prática de desportos perigosos já é uma exemplo de autolimitação, neste caso


à integridade física. De igual modo, o consumo de tabaco é autolimitação no que
diz respeito ao direito à saúde.
Distingue-se entre titularidade e exercício: quem consome substancias nocivas
não está a renunciar ao seu Direito à Saúde, mas antes autolimitá-lo. O mesmo
vale para um outorgante que, no seu testamento vital, dispõe que não pretende
receber certos tratamentos, que poderiam evitar a sua morte. Não está a
renunciar da titularidade do direito à vida ou à saúde, mas sim, de forma
antecipada, a autolimitá-la.

Os direitos fundamentais podem ter categorias diferentes:

• Quanto à fonte, podem ser:

i. Direitos fundamentais materiais


ii. DF formais, (e.g., art. 23.º CRP); conforme se encontrem na
Constituição Material ou Formal – idealmente, devem coincidir.
• Incluem-se ainda os direitos que, através do princípio da cláusula aberta/não
tipicidade (art. 16.º) o legislador acolhe do direito internacional.

• Quanto à titularidade,

DF individuais (reserva da vida privada) vs. DF coletivos (ex.: liberdade de reunião).

Ø Na perspetiva de Jorge Miranda, os direitos fundamentais são sempre de


titularidade individual, mas o seu exercício poderá ser coletivo; Há direitos,
como o de manifestação (art. 45.º), que suscitam dúvidas se o seu exercício pode
ser individual, ou apenas coletivo – mas a titularidade é sempre individual.

Ø Exemplos de direitos coletivos ou constitucionais (no quadro de instituições ou


entidades, públicas ou privadas): art. 40.º Direito de Antena dos partidos
políticos e organizações sindicais; art. 41.º/4 – relativo às igrejas; 56.º/2 –
relativo aos direitos das organizações sindicais. Deve-se entender que estes
direitos são intrínsecos dos titulares individuais que formam a pessoa coletiva
(igreja, associação sindical) que os exerce.

• Direitos comuns/gerais e direitos particulares (a ideia dos direitos particulares não


enferma a ideia de universalidade. O que significa é que abrangem apenas uma
categoria específica de titulares. Ex.: art. 69.º - Infância; 71.º CRP – cidadãos
portadores de deficiência);

Quanto à força e regime (a única distinção que tem reflexos constitucionais expressos):

• DLG e DESC. Dentro dos DLG, temos direitos (proteção de um bem jurídico),
liberdades (espaço livre de intervenção alheia) e garantias
(instrumentais/adjetivas). Existem DLG pessoais (24.º - 47.º), de participação
política (48.º-52.º) e dos trabalhadores (53.º-57.º). Do mesmo modo, dentro dos
DESC, encontramos direitos económicos (58.º-62.º), sociais (63.º - 72.º) e
culturais (73.º-79.º). Trata-se de categorias diferentes, um DF, por regra, não
preenche simultaneamente estas categorias.

Hugo Almeida 22
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Ø Se defendermos a Dogmática Unitária que, embora não diga que não existe uma
diferença de categorias (reconhece-se que os DLG têm estruturas e natureza
distintas), afirma que o regime material (incluindo o regime de restrição) dos
DLG e DESC deveria ser idêntico – mas já não o regime formal e orgânico.
Ø Os DLG correspondem a uma liberdade “para” alguma coisa (liberdade de
expressão – liberdade “para” se exprimir), enquanto os DESC são uma
liberdade “de” alguma coisa (ex.: direito à alimentação – liberdade “da”
fome).

Conceitos afins aos DF

• DIREITOS DE PERSONALIDADE – quanto à fonte (CC, vs. a CRP) e quanto à


abrangência (apenas atuam na esfera das relações entre privados). Não significa que não
possa haver uma sobreposição;

• DIREITOS NATURAIS E DIREITOS CIVIS – existem direitos fundamentais que


não caberiam num conceito de Direitos Naturais, se admitirmos a sua existência (ex.:
direito à proteção de dados do art. 35.º da CRP). A expressão “direitos naturais”
contrapõe-se historicamente aos direitos civis, enquanto ambos fazem hoje parte do
elenco dos direitos fundamentais;

• DIREITOS SUBJETIVOS PÚBLICOS – os direitos fundamentais serão sindicáveis


perante as autoridades públicas. Hoje, entende-se que vinculam tanto entidades públicas
como privadas (18.º/1). É uma expressão redutora;

• DIREITOS HUMANOS – direitos humanos são os consagrados na ordem


internacional, enquanto os fundamentais estão previstos na ordem interna, podendo
haver uma sobreposição (no caso português, a interseção entre o catálogo de direitos
humanos e fundamentais é plena);

• TITULARIDADE DOS POVOS (e não dos indivíduos) – os chamados “Direitos de


5.ª Geração” (não vão ser estudados);

• INTERESSES DIFUSOS – São posições jurídicas insuscetíveis de apropriação


individual, por ex., o ambiente e à proteção cultural. Podem estar previstos na
constituição enquanto direito fundamental, mas não há uma titularidade individualizada.
São uma necessidade coletiva;

• DIREITOS E SITUAÇÕES FUNCIONAIS – por ex., 158.º CRP, que fala em


direitos e regalias dos deputados. Não está em causa um direito fundamental do titular,
mas sim um conjunto de vantagens que integra o estatuto do titular de determinados
órgãos. São garantias do bom funcionamento dos órgão. São direitos associados a uma
determinada função/órgão e não individuais, intrínsecos a pessoas.

• DEVERES FUNDAMENTAIS – existe uma referência muito parca aos deveres


fundamentais na CRP14. Temos, por exemplo, o dever de pagar impostos, dever ligado à

14
Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.” - art.
12.º/1 CRP. Outros deveres consignados na Constituição incluem: o dever dos pais de “educação e
manutenção dos filhos” - art. 36.º/5, dever cívico de sufrágio - art. 49.º, “o dever de defender um

Hugo Almeida 23
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

defesa da pátria (art. 276.º, possibilidade de invocação de objeção de consciência – art.


41.º/6), deveres de função – associados a uma função -, poderes-deveres, dever de
defender e promover a saúde e o ambiente. É possível entender a existência de deveres,
juntamente com a de direitos, à luz de uma visão contratualista dos DF (Hobbes, Locke
e Rosseau).

Ø Alguns autores defendem que deveria haver uma previsão geral na constituição
relativamente aos deveres universais. No artigo 2.º da DUDH, consta que os
indivíduos estão sujeitos aos deveres necessários numa sociedade democrática.
Tal cláusula geral não existe na CRP. Também há deveres no âmbito dos quais
identificamos direitos.

Regime Comum dos Direitos Fundamentais

● Artigo 12.º da CRP.: Princípio da Universalidade.

Ø A cidadania (vínculo jurídico de um cidadão ao Estado) é a base pessoal do


Estado, a partir da qual o Estado reconhece direitos e impõe deveres aos
cidadãos. Os direitos fundamentais podem ser usados por todos aqueles que
estejam nesta relação com o Estado. Isto significa que não há critérios de
distinção, em circunstância alguma se pode afastar estes direitos de
determinados cidadãos.
Ø A universalidade dos direitos é o princípio, mas é relativizável (por exemplo, os
Direitos Sociais relativos à terceira idade – art. 72.º, ou aos cidadãos portadores
de deficiência – art. 71.º, não abrangem todos os cidadãos, no entanto, também
não excluem – todos podemos vir a ser de terceira idade ou padecer de uma
deficiência – o Princípio da Universalidade significa que não se pode excluir, em
abstrato, nenhum cidadão português, dos DF previstos na CRP).
Ø Nota: Diferente disto são as situações de relações especiais de poder – arts. 269.º
e 270.º - na qual pode, mediante lei da AR, haver uma restrição dos direitos de
determinada função, por exemplo, dos militares quanto à capacidade eleitoral
passiva, mas que não constituem uma afastamento dos direitos do cidadão – o
cidadão não é excluído dos direitos, apenas enquanto estiver no exercício
daquela função pública.

• Este princípio deve ser entendido em harmonia com os princípios da igualdade


(13.º CRP) e da dignidade da pessoa humana (1.º CRP). Contudo, na dúvida,
não há critérios de exclusão;
• O princípio da universalidade está previsto desde a Constituição de 1911,
embora com uma redação diferente.
• Arts. 14.º e 15.º CRP: Princípio da Equiparação: contribuem para o
alargamento do princípio da universalidade (portugueses no estrangeiro e
estrangeiros que se encontrem ou residam no território português,
respetivamente – com previsões especiais para cidadãos de países de língua
portuguesa e cidadãos europeus).
• O artigo 14.º mostra que o Estado não está circunscrito ao elemento físico
(Território) – extraterritorialidade dos DF.

ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado” - art. 66.º/1, “o dever de preservar,
defender e valorizar o património cultural” - art. 78.º/1

Hugo Almeida 24
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• O artigo 15.º também nos leva a compreender que o legislador constituinte


português adotou uma visão inclusiva do ponto de vista da titularidade de
direitos.

v Nos n.ºs 2 e seguintes do artigo 15.º, há algumas exceções no que toca ao


exercício de determinados direitos por parte de estrangeiros em território
português (nomeadamente, os direitos políticos ou o acesso a funções públicas –
47.º/2 CRP – de carácter que não seja predominantemente técnico).

v Há um direito que, por natureza, se aplica apenas a estrangeiros: o Direito ao


Asilo (art. 33.º/8 CRP).

● Artigo 12.º n.º2 CRP: Cláusula de Limitação. Os direitos e deveres das pessoas
coletivas são aqueles que são compatíveis com a sua natureza. As pessoas
coletivas podem ter um substrato corporativo/pessoal (resultam de uma associação
de pessoas – corporações, que podem ser associações ou sociedades) ou patrimonial
(afetação de um património a um determinado fim – fundações), existindo
necessidades de natureza diferente para cada um destes tipos;

• Existe uma questão em torno do fundamento último dos direitos das pessoas
coletivas. Pode-se dizer que correspondem a uma margem de atuação dos
cidadãos através de meios institucionais, associativos. São ainda uma forma
de auto-organização dos indivíduos;

v De acordo com o 288º.º alínea b) da CRP (limites materiais de revisão), o


legislador prevê que as leis de revisão constitucional devem respeitar os
DLG “dos cidadãos”, não sendo o mesmo direito previsto face às pessoas
coletivas.

● Artigo 13.º: Princípio da Igualdade. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade


social, sendo todos iguais perante a lei (trata-se de uma igualdade formal e não
material). Prevê-se uma igual dignidade social (conceito que deve ser interpretado em
conjunto com o art. 1.º CRP – Dignidade da Pessoa Humana).

v Necessária coordenação do Princípio da Igualdade com o Princípio da


Legalidade (governo “sub leges” - subordinado à lei e “per leges” - governa
através da lei). O artigo 13.º/1 fala-nos de uma igualdade formal, de uma
igualdade perante a lei, assim sendo, o tratamento igual dos cidadãos pelo
Estado é garantido através da lei.

Artigo 13.º/2: Princípio da Não Discriminação, Existem causas insuscetíveis de


discriminação – as chamadas “causas suspeitas de discriminação”. É um elenco
meramente exemplificativo (o legislador constituinte limitou-se a enunciar as causas
que, historicamente, foram mais fortemente associadas a discriminação negativa), mas
não exclui a possibilidade de outros fundamentos de discriminação contrária ao
Princípio da Igualdade.

• Tem havido, no entanto, um entendimento da parte do TC que, se se verificar


alguma destas condições, presume-se automaticamente que se trata de uma
discriminação inconstitucional, ao abrigo do princípio da igualdade.

Hugo Almeida 25
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• O TC tem vindo a afirmar que o princípio da igualdade é um critério de


interpretação do ordenamento jurídico, mas simultaneamente, tem dito que é
um conceito histórico, relacional e relativo (implica uma ponderação dos valores
constitucionais no seu conjunto);

O princípio da igualdade previsto no artigo 13.º é vinculativo (o cidadão pode


invocar uma violação do Princípio da Igualdade, contrária o critério de interpretação
do artigo 13.º/2, bem como através do DLG previsto no art. 26.º/1 in fine). Mas a
igualdade também pode ser entendida como uma aspiração da comunidade - uma
tarefa do Estado (art. 9.º d. – “promover a igualdade real entre os portugueses”).
Aqui já se trata de uma norma programática, note-se que esta igualdade “real” já
tem um sentido mais próximo do material (igual efetivação dos direitos económicos,
sociais e culturais), não se limitando à igualdade perante a lei.

• Distinção entre o princípio da igualdade e direitos especiais de igualdade da


constituição. Ex.: art. 26.º/1, “a todos é reconhecida a proteção legal contra
quaisquer formas de discriminação”; 36.º. Igualdade entre homem e mulher no
contexto da relação conjugal; 41.º/2, proibição da de discriminação em virtude
da virtude das convicções/consciência ou religião.

● Artigo 16.º: Âmbito e sentido dos direitos fundamentais.

O n.º1 prevê o princípio da cláusula aberta/não tipicidade. Existem direitos previstos


fora da CRP, no ordenamento internacional, na legislação ordinária (DF extravagantes)
ou fora da 1ª parte da própria constituição (Direitos Avulsos - ex.: 268º, direitos e
garantias dos administrados), que são acolhidos enquanto direitos fundamentais.

No n.º2, temos a receção formal da DUDH.

• Na receção formal, a CRP recebe as normas sem acrescentar qualquer valor.


Limita-se a essa receção meramente formal, com o valor original.

Já na receção material, por ex.:, quanto às leis incriminatórias dos ex-agentes


PIDE/DGS (art. 292.º CRP), caso não tivesse existido a receção material destas
normas pela Constituição, estas teriam caducado por força do artigo 29.º da
CRP, que proíbe a retroatividade da lei criminal;

As normas recebidas materialmente e formalmente (como a DUDH) fazem parte


da Constituição Complementar, que, a par da Constituição Nuclear, formam a
Constituição Instrumental.

Ø Os preceitos relativos em DF devem ser interpretados em conformidade com as


disposições da DUDH. A DUDH é base de interpretação e integração de lacunas
dos DF previstos na CRP, é isto que significa estar formalmente recebida (o
texto da DUDH permanece intacto, mas as suas disposições servem de suporte
interpretativo da CRP).

Hugo Almeida 26
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● Artigo 20.º: Acesso à Tutela Jurisdicional Efetiva.

v É qualificado pela doutrina enquanto um “cluster right”, ou seja, um feixe


de direitos, isto porque aqui se encontram várias referências não apenas ao
direito ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, mas a uma série de
outros direitos associados (informação e consulta jurídicas, patrocínio
judiciário, proteção do segredo de justiça, etc.).
v A expressão “tutela jurisdicional efetiva” tem um sentido histórico que
resultou da discussão sobre o direito de acesso ao Direito e aos tribunais,
implicando uma celeridade, eficiência e eficácia real dos tribunais e das
decisões;

● Artigo 21.º: Direito de Resistência. Todos têm o direito a resistir a qualquer ordem
que ofenda os seus DLG, de acordo com a letra da lei. Contudo, este direito aplica-se a
todos os direitos fundamentais, não só aos DLG.

v O Direito de Resistência é de natureza subsidiária, apenas é admissível perante


a manifesta impossibilidade de recorrer a autoridade pública (nomeadamente aos
meios de tutela jurisdicionais). Nenhum Estado de Direito pode negar o direito
de resistência, pelo que consiste numa válvula de escape (é o último meio de
defesa do indivíduo contra lesões da sua esfera jurídica, quando falham as
instâncias públicas).

Ø O direito do Habeas Corpus (artigo 31.º) é um direito instrumental ao Direito


de Resistência. Apresentando uma relação de especialidade (é aplicável, não
para qualquer lesão de DF, mas contra abusos de poder, por virtude de detenção
ilegal ou prisão). É requerido a um tribunal e está dependente da sua sentença,
podendo ser preventivo (para que não seja ilegalmente detido) ou liberatório
(para que seja restituída a liberdade, já depois de prisão ou detenção ilegal) –
outra meio, jurisdicional, de afastar violações de DLG pelas autoridades
públicas é a intimação urgente para a proteção de DLG.

● Artigo 22.º: Responsabilidade das entidades públicas.

v Remissão para o artigo 271.º (os funcionários são responsáveis pelos atos
lesivos que pratiquem). É uma responsabilidade solidária face ao particular
lesado. Face ao funcionário, o Estado tem o direito de regresso (o poder de
exigir, perante o funcionário ou agente que provocou um dano aos direitos
ou interesses do cidadão, com culpa ou dolo, a liquidação da indemnização
que foi paga pela Administração Pública ao cidadão pelos danos).
v A lei 67/2007 prevê a responsabilidade resultante das funções legislativa,
administrativa e jurisdicional, ainda que esta responsabilidade seja muito
limitada na função legislativa e jurisdicional;

● Artigo 23.º: Provedor de Justiça.

v É um direito fundamental formal, mas não material.


v Não faz sentido a inserção deste direito nesta parte da constituição, sendo uma
manifestação do direito previsto no artigo 52.º da CRP é um direito de petição
qualificado.

Hugo Almeida 27
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

v A par do artigo 20.º, entra nos mecanismos de defesa dos DF. Não é um
mecanismo de defesa jurisdicional (20.º e 268.º/4 da CRP), mas sim não
jurisdicional (tal como o direito de petição do artigo 52.º, que é dirigido, nos
termos do artigo, aos órgãos de soberania ou das RA, ou qualquer autoridade –
nos termos do art. 23.º é dirigido ao Provedor de Justiça).
v A existência do provedor de Justiça é uma forma de garantia e defesa dos
direitos.
v Nota: Existem outros mecanismos de defesa não jurisdicionais, como a
comunicação à identidade administrativa independente prevista no art. 35.º/2
(por violações do Direito à Proteção de Dados), ou à entidade prevista no art.
39.º/1, para assegurar os direitos relativos à regulação da comunicação social.

Existem, a par destes, mecanismos de proteção internacionais de direitos humanos.

• Ex.: com o Tratado de Lisboa (2008), atribuiu-se valor vinculativo à CDFUE,


cujas disposições passam a ter o mesmo valor das dos Tratados. Antes disso, o
TJUE, em matéria de DF, aplicava tradições constitucionais comuns dos seus
EM. A nível universal, existe um sistema geral de proteção de direitos, que
resulta da Carta de S. Francisco e da DUDH, bem como pelos pactos adicionais,
protegido pelo Tribunal Internacional de Justiça, sediado em Haia.
• São estes mecanismos que iremos estudar de seguida.

Capítulo IV – Direitos fundamentais e sistemas constitucionais

Mecanismos de defesa internacional dos direitos fundamentais

Como vimos, enquanto os Direitos Fundamentais situam-se no âmbito de proteção


interna, os Direitos do Homem (ou Direitos Humanos) situam-se no âmbito de
proteção universal. No entanto, existe uma quase total sobreposição entre as duas
esferas (quase todos os direitos humanos são direitos fundamentais e vice-versa).
Vieira de Andrade identifica, nos direitos fundamentais, do ponto de vista filosófico,
desde o jusracionalismo do século XVIII uma pretensão universal (mesmo que fossem
previstos em instrumentos nacionais, como a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, tinham a pretensão de ser direitos de todos os seres humanos).
Também do ponto de vista estadual e jurídico-constitucional, esta pretensão
universalista é visível, p.ex. através do Princípio da Equiparação – art. 14.º e 15.º
CRP (que alargam o Princípio da Universalidade do artigo 12.º a portugueses no
estrangeiro, estrangeiros residentes no território português e apátridas). O direito ao
asilo do artigo 33.º/8 é especificamente de aplicação para estrangeiros e apátridas. Já a
garantia de direitos a portugueses residentes fora do território nacional (como o direito
de voto em eleições nacionais) demonstram que a tutela dos DF, embora de âmbito
nacional, não se limita ao território dos Estados.
Atualmente, não só os Estados e as Organizações Internacionais, mas também as
pessoas são sujeitos de DIP. Para além da proteção da personalidade internacional da
pessoa em instrumentos internacionais, na ordem interna também há um acréscimo de

Hugo Almeida 28
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proteção da pessoa enquanto sujeito internacional, nomeadamente: na proteção


diplomática, na proteção humanitária (do Direito Internacional Humanitário) e a
proteção dos refugiados, estas últimas no artigo 33.º CRP, em especial nos n.º 8 e 9.
Feita esta alusão ao âmbito internacional da proteção dos Direitos Fundamentais, focar-
nos-emos na Proteção Internacional dos Direitos do Homem.
Com a Carta de São Francisco (1945), ou Carta das Nações Unidas (CNU),
substitui-se o velho modelo de Vestefália (baseado na soberania estadual e no Estado
enquanto único sujeito de DI: não havia proteção internacional do indivíduo, nem
legitimidade de intervenção ou tutela internacional, pois esta seria considerada uma
ingerência na soberania dos Estados) para o modelo da ONU (o indivíduo passa a ser
reconhecido como um sujeito de DIP, proliferam os acordos multilaterais em matéria de
Direito Humanitário, reconhece-se o ius cogens – normas perentórias aplicáveis a todos
os Estados, que impõe respeito pelos valores humanitários universais).
o Surge o “sistema da ONU”: organização “parauniversal”- é o mais próximo de
uma proteção universal, acolhendo a quase totalidade dos Estados soberanos, no
entanto, os seus princípios não são universalmente acolhidos por todos os
membros.
A primeira situação em que o indivíduo deixa de ser um mero “sujeito passivo de DIP”
(era objeto de proteção de instrumentos internacionais, como a DUDH, mas não
dispunha de meios para a sua efetivação, sem ser através dos Estados) para ser um
verdadeiro sujeito ativo com legitimidade processual ativa, foi com o surgimento do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), criado em 1959 e sediado em
Estrasburgo, que permitia apresentar ações sem necessidade de intermediação do
Estado
o Nota: As ações interpostas por indivíduos nos tribunais internacionais têm
carácter supletivo/subsidiário. Só podem ser interpostas se os meios
jurisdicionais internos do Estado não tiverem funcionado em tempo útil.
Dificuldades do reconhecimento da proteção internacional

• 1.ª Dificuldade: A proliferação de textos normativos e, consequentemente, uma


grande pluralidade na proteção internacional de DF, bem como a sua
sobreposição, quer com textos proteção interna de DF15, quer com outros textos
internacionais.
• O problema não está na ausência, mas na abundância de instrumentos
normativos de proteção, e das dificuldades de articulação que daí surgem.
Estes textos podem ter âmbitos de proteção territorial diferenciados:

15
Relembrando a posição de Paulo Otero de que o Estado de Direito não é só um Estado de Direitos
Fundamentais, mas também de Direitos Humanos.

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I. Gerais/parauniversais

• Sistema das Nações Unidas:

a. Órgãos principais (previstos na CNU): como a Assembleia Geral (AGNU),


Conselho Económico e Social e o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)

è Bobbio: só há proteção internacional quando há jurisdição internacional

b. Altos comissariados: Alto Comissariado das Nações Unidas para os


Direitos Humanos, Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados (ACNUR)

c. Comissões orgânicas: como o Conselho de Direitos Humanos

d. Comités: como o Comité dos Direitos e o Comité dos Direitos Económicos,


Sociais e Culturais

e. Comités especiais (Comité Contra a Tortura, Comité dos Direitos das


Crianças e Comité para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres)

• Declaração Universal dos Direitos Humanos (AGNU, 1948)


o Quanto ao seu valor jurídico, não tem a vinculatividade de resolução ou de uma
convenção. É uma declaração, que foi sendo concretizada por resoluções e
pelos pactos de 1966.

• Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) - 1966


o Incide sobre DLG;
o Estabelece sistemas de garantia, como o envio de relatórios pelos Estados
Membros e um Mecanismo de Comunicação, tanto para Estados como
indivíduos, perante o Comité dos Direitos do Homem.

• Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) -


1966
o Incide sobre DESC;
o Foi juntamente criado o Comité para os Direitos Económicos, Sociais e
Culturais, em 1985.
o Possibilidade de comunicação ao CDESC por indivíduos ou grupos de
indivíduos que aleguem ser vítimas de violação dos seus DESC (artigo 2.º do
Protocolo Facultativo anexo ao PIDESC, de 2008).

II. Regionais

• Convenção Europeia dos Direitos do Homem16 (CE, Roma, 1950)


16
Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais

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o Elaborada no contexto do Conselho da Europa, instituído pelo Tratado de


Londres de 1949.

o Foi o 1.º instrumento regional de proteção dos Direitos do Homem.

o Foi a primeira previsão do direito do indivíduo aceder a uma instância


jurisdicional (o TIJ já tinha antes legitimidade para julgar violações de Direitos
Humanos decorrentes do ius congens, da CNU e de declarações e convenções
da ONU, no entanto, tinham que ser os Estados a interpor esses recursos, com a
criação do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) – tribunal com
competência sobre as questões de interpretação e aplicação da CEDH – art. 32.º
CEDH - o indivíduo podia dirigir-se diretamente a um meio de tutela
jurisdicional supraestadual, porém, este acesso é subsidiário (deve haver
exaustão dos recursos a nível nacional, ou o Estado não proteger atempadamente
o direito lesado).
ARTIGO 35° CEDH Condições de admissibilidade
1. O Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de esgotadas todas as
vias de recurso internas, em conformidade com os princípios de direito internacional
geralmente reconhecidos e num prazo de quatro meses a contar da data da decisão interna
definitiva.

-> Prazo: 4 meses após o trânsito em julgado nos tribunais nacionais.


4. O Tribunal rejeitará qualquer petição que considere inadmissível nos termos do presente
artigo.

o A jurisdição do TEDH é obrigatória e tem força vinculativa. Os Estados


Membros têm a obrigação de se conformar com as suas sentenças.

Cabe ao Comité de Ministros supervisionar e valer pela execução da sentença


(art. 46.º/2), assegurando o cumprimento pelas Partes Contratantes (os EM do
CE).
ARTIGO 46° Força vinculativa e execução das sentenças
1. As Altas Partes Contratantes obrigam-se a respeitar as sentenças definitivas do
Tribunal (TEDH) nos litígios em que forem partes.

• Cabe ao Estado condenado tomar as medidas necessárias para remediar as


consequências da violação de que foi reconhecido culpado.

• Se o seu direito interno não permite apagar totalmente as consequências da


violação, o Tribunal pode condená-lo a pagar uma indemnização financeira à
parte lesada.

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• Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (UE, Nice, 2000)


o O objetivo inicial das comunidades europeias era de integração económica, não
havendo inicialmente nos Tratados tutela dos DF. Progressivamente, o TJ foi
passando do “agnosticismo valorativo” (questões de DF não tinham relevância
para a ordem jurídica comunitária) para o reconhecimento e defesa dos direitos
fundamentais, retirando previsões de DF da “tradição constitucional comum aos
EM”, enquanto fonte de princípios gerais do Direito Comunitário, e de outros
instrumentos de DIH comuns aos EM (como a CEDH) para suprir a falta de
previsão dos tratados nesse âmbito. Estes instrumentos foram usados com valor
interpretativo e integrativo das normas dos Tratados, correspondiam a um
mínimo denominador comum.
o Em dezembro de 2000 é aprovada, durante as negociações do Tratado de Nice
(que seria aprovado em 2001), a Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
Inicialmente não vale como DUE originário, tendo valor interpretativo e não
vinculativo.
o A partir do Tratado de Lisboa (2007) -> Artigo 6.º TUE: reconhece o valor da
Carta dos Direitos Fundamentais da UE como tendo o mesmo valor jurídico que
os Tratados (TUE e TFUE).
o Porque é que a UE precisava de uma carta de direitos fundamentais? Estava em
causa a constitucionalização da União Europeia/União de Direito (estando
iminente o Tratado Constitucional, que seria referendado em 2004, mas já estava
a ser planeado). Toda a Constituição tem como conteúdo mínimo a organização
do poder político e a garantia de Direitos Fundamentais (art. 16.º DDHC).

o A UE aderiu à CEDH, por força do art. 6.º/2 TUE, sendo uma parte da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Isto pode gerar problemas a
nível das jurisdições.

è Conflito de jurisdições entre o TJUE e o TEDH (o TEDH pode


interpretar as normas internas dos Estados, no que toca à sua
consonância com a CEDH, já o TJUE só interpreta normas e princípios
comunitários).
è A qual se deve um cidadão dirigir? Ao TEDH, embora apenas
supletivamente (só após exaustão das instâncias nacionais). Porque o TJ
é um tribunal de comunicação inter-curia, que é apenas acionado pelos
tribunais nacionais ou instituições europeias, e não pelo cidadão europeu.

è Esta proteção multinível dá lugar a conflitos positivos de


competências. A professora Maria Luísa Duarte chamou este fenómeno
de “triângulo judicial europeu”. O excesso de níveis de proteção não
torna o direito mais protegido, mas pode, pelo contrário, gerar conflitos e
confusões no lesado sobre qual a via processual a tomar.

• E.g. As sentenças do TIJ não são vinculativas, mas as do TEDH e TJUE já são.
• O TEDH permite o acesso direto por indivíduos, nas condições do artigo 35.º
CEDH, já no TJUE as questões de DF podem chegar a título prejudicial (por via
de um tribunal nacional) e no TIJ por intermédio dos Estados.

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Outros instrumentos e organismos comunitários de DF:


o Declaração dos Direitos e Liberdades Fundamentais e Carta Comunitária dos
Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, ambas de 1989,
respetivamente de DLG e DESC. (Apesar da primeira ser uma declaração e, por
isso, não vinculativa, reflete os valores jurídicos da UE, influindo nas decisões
do TJ).
o Agência Europeia de Direitos Fundamentais (criada pelo Regulamento (CE)
n.º 168/2007 do Conselho de 15 de Fevereiro de 2007).

• Para além do sistema europeu de proteção regional (CEDH e CDFUE, com a


jurisdição do TEDH e TJUE), existem outros sistemas regionais (como o
Africano: Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, 1981;
Americano: Convenção Interamericana dos Direitos do Homem, 1969).
As normas internacionais são âmbitos de proteção funcional diferenciados:
o Gerais
o Setoriais/de carácter específico muitas vezes provêm de organizações satélites
da ONU (como a UNESCO, ou a OIT).
Exemplos:
• Instrumentos relativos a categorias de pessoas:
• Convenção dos Direitos da Criança, 1989.
• Instrumentos relativos a formas de discriminação:
• Convenção sobre os direitos políticos da mulher, 1952.
• Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial, 1965.
• Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de
discriminação por causa da religião ou da convicção, de 1981.
• Instrumentos relativos à cidadania, apatridia e aos refugiados:
• Convenções sobre a redução dos casos de apatridia, de 1959 e 1961.
• Instrumentos relativos à escravatura e à prostituição.
• Convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou
degradantes, de 1984, com emendas em 1992.
o Instrumentos relativos ao genocídio e aos crimes de guerra e contra a
humanidade.
o Declaração sobre o progresso e o desenvolvimento no domínio social, de 1969.
2.ª Dificuldade: Ligada à questão do grau de vinculatividade das decisões. Há
instâncias que são vinculativas (p.ex. o TEDH é vinculativo sobre os EM do CE – art.
46.º CEDH – sendo estas responsabilizáveis pelos danos provocados), no entanto, esta

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vinculatividade depende do consentimento (os Estados Parte livremente vincularam à


uma Convenção) e à boa vontade dos Estados.
• Já se sabe que o indivíduo é um sujeito de DIP e pode, dependendo da jurisdição
internacional, apresentar queixas ou ações sem intermediação do Estado.
3.ª Dificuldade: Qual é a posição do indivíduo e das comunidades no que toca à
proteção internacional de DF? Será permissível a ingerência na soberania dos Estados
para proteger o Direito Humanitário ou ius cogens?
• No DIP existe sempre uma tensão entre a necessidade de proteção dos DF e os
princípios de Soberania e Não Ingerência. Deve-se procurar uma articulação
entre ambas.
• Situações em que a ingerência na soberania pode ser admissível, à luz dos
princípios da CNU:
o Intervenção humanitária (não militar) num conflito armado;
o Situações de genocídio ou crimes contra a humanidade;
o Situações de catástrofe natural ou humana.

4.ª Dificuldade: Perceber que, ao contrário do que em tempos se entendeu, não existe
um real mínimo denominador comum no que diz respeito à proteção de direitos
fundamentais. É quase impossível encontrar convergência entre as conceções díspares
sobre DF entre os vários Estados.
Ø Segundo a professora Luísa Neto, é uma “dificuldade inultrapassável”, as
diferenças políticas e culturais não permitem que se chegue a um consenso na
matéria.
Ø Mesmo quanto a direitos que aparentam a ser perfeitamente consensuais, como o
Direito à Vida ou à Integridade Física, têm graus e amplitudes de proteção
diferentes entre sociedades (por exemplo, um Estado poderá reconhecer, em
abstrato, o direito à vida, mas admitir a pena de morte, que é incompatível com a
conceção de direito à vida da nossa ordem constitucional).
Existem formas institucionais (relatórios, inquéritos, queixas de Estados e de
indivíduos) e não institucionais (informações recíprocas de Estados, processos
diplomáticos de comunicação de violações de direitos fundamentais).
Princípio do esgotamento prévio dos meios ou recurso internos: leva-nos a assumir
que a proteção dos Direitos Humanos face à proteção dos Direitos Fundamentais tem
caráter subsidiário. Se não tiver funcionado a proteção interna e se não tiver funcionado
em tempo devido, é que intervém a proteção a nível internacional. Esta ideia ajuda
também a não ser tão evidente o problema com a soberania estadual: se qualquer pessoa
que se sentisse lesada pudesse imediatamente recorrer a meios internacionais haveria
uma maior afetação da ideia de soberania. O cidadão só recorre à proteção internacional
a título supletivo.

Hugo Almeida 34
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Parte II – Regime dos direitos fundamentais


Até aqui abordamos o regime comum dos Direitos Fundamentais. Debruçar-nos-emos, a
partir de agora, sobre os regimes específicos dos DLG e DESC.

Podemos falar, quanto ao regime específico dos DLG, em:

• Regime específico orgânico/formal - art. 165.º/1 al. b) ex vi art. 18.º/2 “a lei só


pode restringir os DLG, nos casos expressamente previstos na Constituição”. A
restrição de DLG é, por regra, matéria de reserva relativa da AR. Ou seja, só
leis da AR ou DL autorizados é que podem restringir DLG.
• Regime específico de revisão - art. 288.º al. d) “As leis de revisão
constitucional terão de respeitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”.
Os DLG são limites materiais de revisão.
• Regime específico material (contestado pela Dogmática Unitária) - art. 18.º. O
regime específico dos DLG centra-se neste artigo. O legislador constituinte
refere especificamente neste artigo apenas os DLG (que, por força do art. 17.º -
Cláusula de Equiparação - deve incluir os DF de natureza análoga aos DLG).
Não existe, no texto constitucional, um regime material idêntico para os DESC.
O regime material específico dos DESC, se entendermos que existe, é resultado
da construção doutrinal e jurisprudencial.

Artigo 18.º - regime material específico dos DLG

18.º, n.º1 CRP (1.ª parte) - Aplicabilidade Direta.

As normas que preveem DLG, por regra, são normas de execução imediata,
imediatamente eficazes, não necessitando da intervenção do legislador ordinário.

• As normas que preveem DLG são preceptivas e, tendencialmente, são


exequíveis por si mesmas.

Importa traçar a distinção entre normas preceptivas vs. normas programáticas e normas
exequíveis vs. normas não exequíveis por si mesmas.

1. Normas preceptivas vs. programáticas - As normas programáticas necessitam


da intervenção do Estado, no seu exercício das suas funções políticas ou
administrativas. As normas programáticas preveem um determinado resultado
que o Estado deve concretizar através da atuação política (exemplo de normas
programáticas: as Funções do Estado, do art. 9.º CRP).
2. Normas não exequíveis vs. exequíveis por si mesmas - Já tem a ver com a
executoriedade, se valem por si, ou se dependem da intervenção do legislador
ordinário para serem eficazes.
3. As normas programáticas são sempre não exequíveis por si mesmas. Já as
normas percetivas podem ou não ser exequíveis por si mesmas.

Uma norma pode ser preceptiva mas não ser exequível por si mesma, na medida em
que prevê expressamente um direito ou dever (e não um objetivo para o Estado
concretizar), mas a sua força jurídica depende da intervenção do legislador ordinário -

Hugo Almeida 35
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exemplo: artigo 35.º CRP “os cidadãos têm direito ao acesso aos dados informatizados
que lhe digam respeito (…) nos termos da lei”.

Mesmo que não houvesse a previsão do art. 18.º/1, a aplicabilidade direta seria sempre
uma consequência do artigo 3.º/3 (Princípio da Constitucionalidade).

Um exemplo histórico da verificação da aplicabilidade direta dos DLG foi com a


objeção de consciência (art. 41.º/6 CRP), apesar do legislador constituinte fazer a
amplitude deste direito depender da lei infraconstitucional, este preceito constitucional
foi sendo usada para aplicar, diretamente da CRP, o direito de objeção de consciência.

18.º, n.º1 CRP (2.ª parte) - Vinculação a entidades públicas e privadas.

• Está relacionada com a eficácia (ou, na expressão alemã, drittwirkung) vertical


(perante o Estado, órgãos e entidades públicas) e horizontal (perante privados).

O entendimento da eficácia horizontal (vinculação a entidades privadas) dos DLG


passou por três fases:

1. Inicialmente, os DLG eram vistos como direitos de proteção face ao Estado, e


como tal, só lhes era reconhecida eficácia vertical;
2. Passou-se depois reconhecer uma “eficácia diagonal”, ou uma eficácia
horizontal limitada, que se aplicava a situações de desigualdade
manifesta/desequilíbrio entre as partes (relações de empregador trabalhador,
inquilina arrendatário);
3. Por fim, por influência da doutrina alemã, acolheu-se diretamente na CRP de
1976 uma conceção universal de eficácia horizontal total (os DLG são direitos
de defesa contra todos, sem distinção, públicos ou privados e
independentemente do desequilíbrio entre posições).

Nota: Certos direitos, originalmente pensados apenas contra o Estado (eficácia vertical)
podem, por uma interpretação evolutiva, também ser usados contra entidades privadas
(exemplos: art. 27.º/2, 34.º/3, 37.º/4 e 50.º/2), na medida em que podem, de forma
análoga, também ser violados por privados (o direito a não ser prejudicado, no acesso
aos cargos públicos, por ter exercido cargos políticos - art. 50.º/2, pode, apesar de
apenas estar previsto contra entidades públicas, ser aplicável em situações análogas em
que o mesmo direito é lesado por um privado).

Quanto à vinculação a entidades públicas, deve-se entender que abrange todas as


Funções do Estado:

• Função político-legislativa: O Princípio da Constitucionalidade não deixa


dúvidas que as normas constitucionais, o que incluí as normas de DF, vinculam
toda a atuação do Estado. “A validade das leis e demais atos depende da sua
conformidade com a Constituição” - art. 3.º/3 CRP. A fiscalização da
constitucionalidade (difusa ou pelo TC, por omissão - no caso de normas não
exequíveis por si mesmas) é uma garantia disto.

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• Função Jurisdicional: Para além da previsão geral, que já resulta do art. 18.º/1, a
vinculação dos tribunais à Constituição resulta do art. 204.º (Fiscalização Difusa
da Constitucionalidade - resulta dos tribunais não poderem aplicar normas que
infrinjam o disposto na CRP, o que incluí normas violadoras dos DF). Todos os
tribunais têm o dever de desaplicar normas lesivas de DF (fiscalização difusa).

• Função Administrativa: Confronto entre o Princípio da Legalidade e o


Princípio pelo respeito dos direitos (fundamentais) e interesses
(constitucionalmente) protegidos dos particulares. É reconhecida a
centralidade dos DF para a Administração Pública → um ato administrativo que
viole o núcleo essencial de um DLG é nulo - art. 161.º al. d) CPA. Nos termos
do art. 266.º CRP, a prossecução do interesse público pela AP está subordinada
ao respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Art.
3.º/3 CRP - a validade dos atos jurídicos da administração depende da sua
conformidade com a Constituição). Também a AP tem um dever de desaplicar
normas e não praticar atos administrativos conflituantes com as normas e
princípios da Constituição.

Outras importantes garantias da vinculação dos DLG a entidades públicas estão nos
arts. 22.º e 271.º

• Prevê a responsabilidade solidária do Estado e entidades públicas, para com os


seus órgãos, funcionários e agentes, por ações praticadas no exercício das suas
funções das quais resulta violação de direitos, liberdades e garantias.

• O artigo 271.º prevê que os funcionários e agentes do Estado e demais entidades


públicas possam ser responsabilizados civil, penal e disciplinarmente, pelas
ações e omissões praticadas no exercício das suas funções, das quais resulte
lesão de DLG.

• A Lei 67/2007 prevê a responsabilidade civil extracontratual do Estado, tanto


para a Função Administrativa, como para as Funções Jurisdicionais e
Legislativa. Artigo 15.º Lei 67/2007: o Estado e as Regiões Autónomas são
responsabilizáveis por lesões anormais dos DLG, decorrentes da atividade
legislativa (leis que violem DF, não só previstos na Constituição, mas também
em instrumentos internacionais - através do princípio da cláusula aberta, art.
16.º/1).

Artigo 13.º: Em casos de erro judiciário que cause lesão de DLG (p.ex. uma
privação injustificada da liberdade, que viole o disposto no art. 27.º CRP) ou
violação do direito a decisão judicial num prazo razoável (prevista pelo art.
20.º/5 CRP, durante muito tempo houve uma inconstitucionalidade por omissão,
porque não havia forma de responsabilizar os tribunais por não decidirem num
prazo razoável).

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• Existem outros meios de defesa dos DLG face atuações da Função Jurisdicional
e Administrativa: Habeas Corpus - art. 31.º CRP; Intimação urgente para a
proteção de DLG (109.º a 111.º CPTA, é uma ação interposta nos tribunais
administrativos, para proteger com celeridade o cidadão de violações de DLG
pelos poderes públicos).

Nota: Apesar do legislador constituinte não distinguir a vinculação a entidades públicas


e privadas, na prática, a vinculação pode ser procedimentalmente diferente. Ou seja, o
cidadão possui de meios para se defender contra violações de DLG por entidades
públicas, que não possui contra entidades privadas. No entanto, o DLG não deixa de
vincular ambas igualmente e de ser igualmente exigível o seu respeito, contra públicos
ou privados.

18.º, n.º2 e 3 - Restrição de direitos

À luz do regime material da CRP, é que admissível a restrição de DLG?

• 18.º/2 in fine: “devendo as restrições limitar-se ao necessário para


salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” - as
restrições só se admitem em situações de conflito ou colisão e a restrição deve
limitar-se ao mínimo necessário (Critério da Lesão).

→ Não podem haver “restrições gratuitas”, i.e. um DLG nunca pode ser restrito só
porque sim. A restrição não é um fim em si mesmo, mas um meio de harmonização e
salvaguarda de um DF de outro titular ou interesse constitucionalmente protegido.

Situações de afetação negativa

A interseção entre direitos ou interesses é incompatível, o exercício de um direito afeta


negativamente o exercício ou fruição de outro direito ou interesse, são situações de
deficit de direitos.

1. Colisão: direitos fundamentais com interesses constitucionalmente protegidos,


sejam bens do Estado (segurança nacional e pública) ou bens comunitários
(interesses público difusos, insuscetíveis de apropriação individual, e.g. Saúde -
art. 64.º, Ambiente - art. 66.º , cultura e defesa do património - art. 78.º).
2. Conflito: entre DF de mais de um titular.

Jorge Miranda: Todos os direitos são limites imanentes dos demais.

Jorge Reis Novais: Todos os direitos são restrições implícitas.

Gomes Canotilho: Os direitos encontrados na CRP são DF prima facie (correspondem


ao tatbestand alargado, ou à previsão máxima de um DF, abrange todas as situações,
em abstrato, protegidas por aquele direito) e na sua aplicação e articulação com os
demais DF tornam-se direitos ultima facie (correspondem ao “núcleo essencial” do DF
que subsiste, depois de ser retirada da sua facti species todas as situações de conflito ou
colisão, ficando com um âmbito mais reduzido: tatbestand restrito).

Hugo Almeida 38
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• ex: o Direito à Criação Artística (art. 42.º), no seu tatbestand alargado, enquanto
direito prima facie, incluiria todas as demonstrações artísticas possíveis. Mas na
medida em que esse direito conflitua com outros, p.ex. tocar trombone às 3 da
manhã, perturbando os vizinhos, podia ser visto como infringido na sua reserva
de vida privada. Por isso, o direito à criação artística, no seu tatbestand restrito,
como DF ultima facie, não protege essa dimensão, mas apenas o seu núcleo
essencial, que não intersecta com mais nenhum direito ou interesse.

Em suma: quando olhamos para o texto constitucional tiramos uma previsão muito
abrangente e ilimitada da facti species normativa dos DF. Estes direitos inevitavelmente
vão entrar em contradição uns com os outros (a lógica de que são restrições implícitas
ou limites imanentes - um DF acaba onde começa o outro). Pelo que, para chegar ao
direito ultima facie, à previsão definitiva que aquele DF compreende, é preciso retirar as
situações de sobreposição negativa.

Situações de afetação positiva:

• Acumulação de Direitos/Concorrência autêntica: Um grupo de cidadãos para a


proteção do ambiente reúne-se em frente à AR e protesta, usando slogans e
tocando instrumentos. Estão em causa vários direitos (Liberdade de expressão -
art. 37.º, Liberdade de Associação - art. 47.º, Liberdade de reunião e de
manifestação - art. 45.º, Liberdade de criação cultural - art. 42.º, cujo exercício
simultâneo em nada prejudica ou limita os outros. É uma situação de superavit
de direitos, os titulares encontram-se protegidos por vários DF ao mesmo
tempo. Esta situação não causa qualquer problema.
• Concorrência inautêntica: Quando existe uma relação de
generalidade/especialidade entre as normas (ex.: art. 51.º- liberdade de
constituição de partido político; art. 46.º - liberdade de associação), o artigo 51.º
(previsão especial) absorve o art. 46.º (previsão geral), não sendo preciso
invocar ambas.

Quais são os requisitos da restrição de DLG?

1. Só a lei em sentido formal pode restringir DLG - a restrição tem que operar
pela via legislativa (requisito orgânico). Qual a forma dos atos legislativos? Art.
165.º/1 al. b) - matéria da reserva relativa da AR → DL Autorizado ou Lei da
AR; exceto se tratar de uma situação de restrições de direitos em relações
especiais de poder (militares e forças de segurança), aí já será matéria da
reserva absoluta da AR - art. 164.º al. o). Nota: A restrição de DLG não pode
ser objeto de Decretos Legislativos Regionais (mesmo autorizados pela AR), o
artigo 227.º/1 al. b) expressamente preclude a capacidade das RA legislarem
nesta matéria.

2. “Casos expressamente previstos na Constituição”: São poucas as situações


em que a própria CRP delimita expressamente os casos em que os DLG podem
ser restritos. Um exemplo disto está no artigo 27.º/3 , no qual o legislador
previu um elenco taxativo de situações em que podes ser restrito o direito à
liberdade na lei. A doutrina diverge quanto à relevância destas situações de

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“autorização constitucional”, com alguns autores defendendo a sua relevância


absoluta, outros defendendo a sua relevância relativa e outros ainda a sua
irrelevância.

3. 18.º/2: A restrição deve limitar-se ao necessário (entende-se com a expressão


“necessário”, as três dimensões do Princípio da Proporcionalidade:
necessidade, adequação e proibição de excesso). O critério de restrição de DLG
é sempre o princípio da Concordância Prática/Ponderação Casuística, exige-
se sempre que se avalie o caso concreto: quais são os direitos em afetação
negativa e como devem ser ambos harmonizados/compatibilizados naquela
concreta situação de conflito/colisão. Não há uma hierarquia de DF, ou seja,
não há DF que estejam numa alçada superior e automaticamente, por um critério
hierárquico, prevaleçam, deve ser sempre avaliado no juízo concreto e
equacionada a possibilidade de, de acordo com o Princípio da
Proporcionalidade, solucionar o conflito com a menor restrição possível.

4. Tem que ser uma lei geral e abstrata (18.º/3) - as leis individuais (que se
aplicam a um número determinado de destinatários) são inconstitucionais, mas a
restrição de DLG nunca pode ser feita por leis-medida (ou seja, leis concretas,
que não revestem de abstração), que se aplicam a um número determinado de
situações - p.ex. não se admite a restrição legal de DLG numa lei que foi criada
para uma situação de seca. Note-se que, contrariamente à suspensão de DF - art.
19.º, em situações de Estado de Exceção Constitucional, as restrições de DF tem
carácter permanente (sem prejuízo de poderem ser revogadas por lei posterior).
Daí a necessidade de qualquer restrição ter carácter abstrato

5. Proibição de retroatividade: Não existe, na CRP, uma previsão geral do


Princípio da Não Retroatividade. Há previsões especiais, como a irretroatividade
da lei penal (art. 29.º/1) e da lei fiscal (103.º/3), e também proíbe-se
especialmente a retroatividade da lei restritiva de DLG (18.º/3). Há, no entanto,
um princípio geral que, mesmo sem esta previsão, impediria que se admitissem
restrições retroativas de Direitos Fundamentais: o Princípio da Segurança
Jurídica/Princípio da Proteção da Confiança, que são corolários do Princípio
do Estado de Direito (art. 2.º CRP).

6. As restrições não podem diminuir o alcance ou núcleo essencial dos Direitos


Fundamentais. Relembrando a doutrina do Tatbestand alargando e reduzido, de
Gomes Canotilho, o núcleo essencial do DF corresponde ao seu conteúdo
essencial, que não pode em circunstância alguma ser restrito (nem sequer
suspenso - arts. 19.º/4 e 6). Este princípio, chamado critério da lesão, articula-
se com o Princípio da Proporcionalidade, implica verificar se a lesão provocada
pela restrição é ou não mínima. Foi dado o exemplo da vacinação obrigatória,

Hugo Almeida 40
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

que exemplifica bem uma colisão entre o direito individual à integridade física e
o interesse/bem comunitário da saúde pública. Devemo-nos questionar se a
vacinação obrigatória já constitui uma lesão da integridade física que constitui
uma violação do núcleo essencial do DF do art. 25.º , pelo que seria uma
restrição inconstitucional à luz do critério da lesão (art. 18.º/3), ou se é uma
restrição que não afeta o conteúdo essencial pelo que, respeitando os princípio
da concordância prática e da proporcionalidade, seria uma solução admissível.

Outras situações para além da restrição de DLG:

1. Suspensão (do exercício) de DLG.

A lógica já não é de concordância prática entre DF ou entre DF e interesses legalmente


protegidos, mas à impossibilidade de exercer certos direitos durante determinado
período de tempo (note-se que é meramente uma impossibilidade de exercício, que
não elimina, nem reduz a titularidade dos direitos) - carácter temporário da
suspensão (art. 19.º/5 - a suspensão não pode ter duração superior a 15 dias, com
possibilidade de prorrogação).

“Os órgãos de soberania não podem suspender o exercício de DLG, exceto em casos de
Estado de Sítio ou Estado de Emergência” – artigo 19.º/1 CRP - excecionalidade da
suspensão do exercício de DLG.

A suspensão de DLG em situação de Estado de Sítio ou de Emergência não é uma


obrigatoriedade. A suspensão deve limitar-se ao mínimo necessário e justificado pela
concreta situação de exceção (os direitos suspensos numa situação com a pandemia -
que foi enquadrada na situação de “calamidade pública” no elenco do art. 19.º/2 - ou
num situação de invasão militar serão diferentes → o Estado de Emergência não
permite suspender quaisquer direitos, o Princípio da Proporcionalidade, em especial a
exigência da necessidade de suspensão, aplica-se - art. 19.º/4).

• A declaração de Estado de Sítio ou de Emergência (que é uma competência do


PR - e é o único ato legislativo do PR→ art. 138.º, com audição do Governo e
autorização da AR), devem estar fundamentada e deverão estar expressamente
previstos os DLG cujo exercício ficará suspenso (art. 12.º/5). Não poderão ser,
com fundamento no Estado de Emergência, suspenso o exercício de mais
direitos para além destes.

Há direitos que o legislador constituinte entendeu como sendo insuscetíveis de


suspensão, não podendo de forma alguma forma ser afetados ou suspenso o seu
exercício, estão previstos no n.º 6 do artigo 19.º: os direito à vida (art. 24.º), integridade
pessoal (art. 25.º), identidade pessoal (art. 26.º/1), capacidade civil e cidadania (art.
48.º), não retroatividade da lei penal (art. 29.º/1), direitos de defesa dos arguidos (arts.
20.º e 32.º) e liberdade de consciência e religião (art. 41.º - mas não de culto). A
interpretação que se faz do 19.º/6 jamais pode ser que existam DF hierarquicamente
superiores, mas sim que a restrição destes direitos nunca é compatível com o
Princípio da Proporcionalidade (art. 19.º/4), ou seja, não há nenhuma situação de
exceção em que a suspensão destes direitos seja necessária, adequada e não
excessiva.

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Cf. Acórdão TC 352/2021, estudado nas aulas práticas, sobre a suspensão de direitos.

2. Condicionamento de Direitos (ou leis conformadoras de direitos)

Situações onde o legislador não restringe, mas conforma e regulamenta o


exercício dos DLG. P.ex., ser necessária a notificação com antecedência de uma
manifestação → é um condicionamento do DLG do art. 45.º CRP. Não foi
reduzido o âmbito do direito, mas o seu exercício está sujeito a um
condicionamento que o conforma.

A separação entre um condicionamento e uma restrição pode, por vezes, ser


ténue. É uma questão gradativa, um condicionamento excessivamente exigente,
que manifestamente limite a possibilidade de exercer o direito, pode ser vista
como uma restrição e, nesse caso, terá que respeitar o regime material e orgânico
previsto no art. 18.º CRP para ser válida.

O professor Jorge Miranda entende que a lei deveria se mover no sentido de uma
maior proximidade com os DLG, e não o contrário (através do seu
condicionamento)

3. Extinção ou perda de direito

• Também chamada “morte cívica”, é incompatível com o Estado de Direito e a


Dignidade da Pessoa Humana.
• A possibilidade de perda da titularidade (o exercício não se perde, pode-se
sempre escolher ou não exercer um DF) de direitos heterónoma (se fosse
autônoma seria uma renúncia) é expressamente proibida pelos arts. 30.º/4 e 5
CRP.
• Art. 30.º/4: Nenhuma pena pode ter como efeito a perda de direitos civis,
profissionais ou políticos.
• Art. 30.º/5: Os condenados a penas ou medidas de segurança mantêm a
titularidade dos direitos fundamentais, salvo as limitações inerentes ao
sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução.

4. Relações especiais de poder

• Trata-se de relações em que, devido ao vínculo profissional do cidadão com o


Estado, existe um condicionamento ou restrição agravada do exercício dos
direitos.
• Tiveram mais importância durante a vigência da Constituição de 1933. Os
funcionários públicos estavam sujeitos a “avaliações de idoneidade”, não
podiam residir a mais X km do local de trabalho, precisavam de autorização para
casar, etc.
• Não são necessariamente incompatíveis com o Estado de Direito Democrático,
desde que sejam conformados pelo Princípio da Proporcionalidade (deve ser
clara a exigibilidade e necessidade da restrição, por motivos de superior
interesse público). Na CRP, os arts. 269.º (que prevê a exclusividade e não
acumulação de profissões nos cargos públicos, exceto nos casos previstos na lei
ordinária: aplica-se, p.ex., a juízes, permite que não haja conflitos de interesse ou
desvio para interesses privados) e o art. 270.º (que prevê a possibilidade

Hugo Almeida 42
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restrição de direitos cívicos e políticos, tais como a liberdade de expressão,


reunião, manifestação, petição popular e capacidade eleitoral passiva - de ser
eleito - de militares e forças de segurança. Estas restrições também têm um
requisito orgânico agravado, são da competência absoluta da AR: 164.º al. o)).

5. Autolimitação ou renúncia contratual

• O que difere das outras modalidades é tratar-se de expressões da autonomia


individual. Não são impostas.
• Tanto a autolimitação como a renúncia são casos de compressão do direito
(afetação negativa). A diferença entre a autolimitação e a renúncia é uma
questão de grau.
• A professora Luísa Neto considera apenas ser admissível a renúncia ao
exercício, não a renúncia à titularidade. Os DF são situações de vantagem,
que têm vertentes positivas e negativas (p.ex., a liberdade religiosa implica a
liberdade para não ter uma religião, a liberdade de expressão a liberdade de não
a expressar, e os direitos de integridade física e saúde implicam o direito de, em
respeito pela consciência e autonomia individual, serem limitados ou até haver
renúncia - p.ex. recusa de uma transfusão sanguínea, doar um órgão com risco de
morte, aceitar um tratamento experimental, bem como o direito de não cuidar da
própria saúde), é sempre por isso possível, desde que respeite os limites
imanentes da dignidade da pessoa humana. [Cf. caso Wackenheim v. France,
2001, Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas - no qual a participação
na prática do “arremesso de anões”, apesar de consentida, foi considerada, pelo
seu conteúdo, violadora da dignidade humana].

Regime orgânico específico dos DLG

Regime geral – 165.º n.º 1 b) CRP. Em regra, a matéria de DLG compete à lei da AR
ou Decreto-Lei Autorizado do Governo, (nunca é competência das RA - art. 227.º/1 al.
b)).

Regime específico – 164,º al. o) CRP, no âmbito das relações especiais de poder.

Regime específico de revisão dos DLG

Os “direitos, liberdades e garantias dos cidadãos” (art. 288.º al. d) ) são um limite
material de revisão. A previsão “dos cidadãos” aponta para que os DLG das pessoas
coletivas não sejam considerados limites materiais de revisão (a cláusula de
equiparação às pessoas coletivas do Princípio da Universalidade - art. 12.º CRP, pelo
qual estas têm os DF compatíveis com a sua natureza, não está abrangido pelos limites
materiais de revisão, apenas os DLG das pessoas individuais).

Existem várias formas de olhar para esta previsão:

• Apenas é necessário que haja um capítulo (no nosso caso, é o Título II da Parte I) na
Constituição que preveja DLG (visão minimalista);

Hugo Almeida 43
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• O catálogo de DLG que existe na Constituição é intocável (pode-se expandir, mas não
subtrair ou eliminar), todos os DLG são, individualmente, limites de revisão, não
podendo haver retrocesso na sua proteção, (visão maximalista);

• Admite-se que se introduzam modificações pontuais no catálogo dos DLG, devendo


sempre existir uma previsão mínima (visão média).

Nota: Releva apontar que a questão dos limites materiais de revisão apenas se coloca no
âmbito das restrições aos DLG, e não nos acrescentos.

• Outra questão que surge é se a previsão da alínea e) do art. 288.º (”os direitos
dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores e associações sindicais”) se
trata de uma proteção dos DLG dos trabalhadores (Capítulo III do Título II,
arts. 53.º a 57.º), ou se são os DESC dos trabalhadores (arts. 58.º e 59.º). Parte
da doutrina entende que, devido à redundância de estar a prever outra vez os
DLG (que já eram abrangidos pela al. d), deve-se interpretar que a al. e) prevê
como limite material os DESC dos trabalhadores (e também das associações e
comissões sindicais, que são pessoas coletivas).

Regime Específico dos DESC


Está associado às exigências do Estado Social um mínimo ético (mínimo de existência
condigna) e a sua progressiva efetivação (tendo os DESC, geralmente, um carácter
programático, são objetivos que o Estado visa cumprir de forma cada vez mais
completa). Não se encontra na CRP, foi sendo desenvolvido pela doutrina e pela
jurisprudência do TC, sobretudo com base nos princípios adjetivos ao Estado de
Direito Democrático (art. 2.º CRP). Desenvolveram-se 3 princípios básicos:

1. Dependência legal, necessidade da intervenção da vontade político-legislativa


(ou interposição do legislador ordinário). Os DESC são normas programáticas
(exigem uma atuação das Funções políticas) ou normas percetíveis não
exequíveis por si mesmas (precisam de ser “completadas” pela lei, para se
tornar exequíveis).
2. Sujeição a um princípio da reserva do possível (do financeiramente possível -
também chamada “reserva dos cofres cheios” mas também do tecnologicamente
possível e do socialmente/politicamente possível). No artigo 9.º al. d), é prevista
como uma tarefa programática do Estado, a “efetivação dos direitos
económicos, sociais, culturais (direitos de 2.ª geração) e ambientais (3.ª
geração), “mediante a transformação e modernização das estruturas
económicas e sociais”.
3. Princípio do não retrocesso (a partir do momento em que é atingido um
determinado grau de proteção, não se pode voltar atrás, tornavam-se “direitos
adquiridos”). Dá-se, efetivamente, uma “cristalização dos DESC” (depois de
atingirem um certo grau de proteção, só pode aumentar a efetivação ou manter-
se).

• Atualmente, a jurisprudência do TC afastou o Princípio do Não Retrocesso


(que não está previsto na CRP), substituindo-o pelo Princípio da Proteção da
Confiança (das expectativas legítimas e razoáveis do cidadão), que resulta do

Hugo Almeida 44
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

art. 2.º (Estado de Direito). Este foi o princípio invocado pelo TC na


jurisprudência da crise.

Não há um regime orgânico específico. É tendencialmente matéria concorrencial.

Não há um regime específico de limites materiais de revisão, a menos que entendamos a


al. e) do art. 288.º como se referindo aos DESC dos trabalhadores.

Dogmática Unitária dos Direitos Fundamentais


É a mais atualizada corrente doutrinária sobre a temática dos DF. Originou-se na Escola
de Lisboa, pelo trabalho de autores como Jorge Reis Novais, José Melo de Alexandrino
e Vasco Pereira da Silva. O seu principal contributo é a ideia que, não obstante do
reconhecimento de duas categorias de DF, os DLG e os DESC, estruturalmente
diferentes, correspondendo a duas gerações e fases diferentes do Estado Constitucional
Representativo e de Direito, os DLG e DESC não têm regimes materiais diferentes,
i.e. não se pode autonomizar o regime material dos DLG.

• O mesmo já não vale para o regime orgânico e formal - sendo a restrição dos
DLG, genericamente, de matéria da reserva relativa da AR17 - art. 165.º/1 al.
b), e os DESC, genericamente, matéria concorrencial.
• Nem para o regime de revisão (apenas os DLG dos cidadãos são, na sua
totalidade, limite material de revisão - art. 288.º al. d), para os DESC, seriam, no
máximo, os dos trabalhadores - al. e)).

A Dogmática Unitária defende que as características de cada regime material (dos DLG
- art. 18.º, e dos DESC - que como vimos, são resultado do labor doutrinal) não são
realmente específicas de uma categoria de DF, sendo aplicáveis a ambos:

O regime “específico” dos DLG aplica-se aos DESC:

• Todos os direitos têm Aplicabilidade Direta. I.e., por força do art. 3.º/3
(Princípio da Constitucionalidade) todas as normas constitucionais (e por isso,
todos os DF previstos na Constituição, sejam DLG ou DESC) vinculam todas as
leis e demais atos do Estado. O grau de vinculatividade é que pode ser
diferente, na medida em que os DESC têm maior dependência da efetivação
pelo legislador ordinário (mas como veremos, também a efetivação dos DLG
depende nalguns casos de lei ordinária).
• Os DESC também têm Eficácia Horizontal e Vertical, ou seja, vinculam
entidades públicas e privadas, dado que, por serem normas constitucionais,
todos estão sujeitos ao seu cumprimento (e.g. a previsão do “dever de defender o
ambiente” do artigo 66.º/1 é aplicável contra particulares, não é uma norma
programática que vincule apenas o Estado).
• O Princípio da Proporcionalidade na sua restrição também se deve impor sobre
os DESC, desde logo por ser um princípio adjetivo do Estado de Direito (art.
2.º CRP), pelo que se aplicaria mesmo que não tivesse previsto no artigo 18.º/2

17
Também se coloca a questão se os DF de Natureza Análoga, que o artigo 17.º equipara aos DLG, está
sujeita ao mesmo regime orgânico. Jorge Miranda entende que não.

Hugo Almeida 45
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

CRP. A restrição de DESC também deve-se pautar pelos critérios de


Necessidade, Adequação e Proibição de Excesso.
• Os DESC, tal como os DLG, apenas podem ser restritos em situações de
conflito ou colisão. Não pode haver restrições gratuitas de qualquer DF.
• A restrição dos DESC não pode afetar o seu núcleo essencial. Qualquer
restrição que afete o núcleo essencial do DESC é contrária ao princípio da
constitucionalidade (art. 3.º/3 CRP). Se se admitisse, a CRP tornar-se-ia
meramente semântica quanto à efetivação dos DESC.
• Por fim, deve-se impor também à restrição dos DESC a não retroatividade,
dado que esta resultaria sempre do Princípio da Proteção da Confiança e da
Segurança Jurídica, ambos subprincípios do Estado de Direito.

O regime “específico” dos DESC aplica-se aos DLG:

• A Dependência Legal também se aplica aos DLG, i.e., há DLG que dependem
da intervenção do legislador ordinário para a sua concretização (e.g. art. 35.º/1
CRP “todos os cidadãos têm direito de acesso aos dados (…) nos termos da
lei”). - aplica-se aos DLG que são normas programáticas não exequíveis por
si mesmas;
• A ideia do Não Retrocesso, como já referido, foi hoje superada pela
jurisprudência e substituída pela ideia da Proteção da Confiança, que, por se
tratar de um subprincípio do Estado de Direito, aplica-se a ambas as categorias;
• Por fim, a Reserva do Possível (não só financeiramente possível, mas também
tecnologicamente possível) também não é exclusiva dos DESC. Apesar de
tendencialmente os DLG não exigiram uma prestação do Estado, podem
acarretar custos (por exemplo: o tratamento e acesso a dados - art. 35.º CRP - e o
direito à segurança - art. 27.º - implicam custos para a administração).

Em suma, a Dogmática Unitária defende a existência de um regime material único,


sem prejuízo de continuar a existir um regime orgânico e formal diferenciado para os
DLG e DESC, que continuam a ser reconhecidas como categorias de DF com natureza e
estrutura distintas.

A Dogmática Unitária tem implicações para os DF de natureza análoga, sendo que o


artigo 17.º da CRP equipara-os, quanto ao regime, aos DLG expressamente previstos no
Título II (artigos 24.º a 79.º CRP). Ora, se o regime material é o mesmo, a identificação
de um DF fora do elenco de DLG como de natureza e estrutura análogas às do DLG
continuará a ter implicações, mas só a nível do regime orgânico e de revisão.

Onde estão os DF de natureza análoga?

• Podem ser direitos avulsos (previstos no texto constitucional, mas fora do Título
II, quer seja na parte dos DESC - e.g. Direito à Propriedade - art. 63.º -, quer seja
fora da Parte dos DF - art. 268.º - DF dos Administrados);
• Ou podem ser direitos extravagantes (por força do Princípio da Cláusula
Aberta - 16.º/1 - são recebidos de instrumentos internacionais), ao classificar
estes direitos temos que verificar se têm natureza e estrutura semelhante à
dos DLG ou à dos DESC (p.ex., o PIDCP prevê direitos com a estrutura de
DLG, já o PIDESC prevê, quer direitos com natureza de DESC, quer de DLG,

Hugo Almeida 46
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

este raciocínio vale para todos os direitos que retiremos de instrumentos


internacionais, como a DUDH ou CEDH).

Qual o critério para enquadrarmos o DF como sendo de natureza análoga a um DLG?

• Alguns autores defendem que o critério de qualificação material dos DLG deve
ser Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rejeitamos esta ideia, dado que a
Dignidade da Pessoa Humana é um fundamento de todos os DF (e não só os
DLG).
• Outros consideram que são posições jurídicas de vantagem em relação ao
Estado. Porém, também este critério é comum a DESC e DLG.
• O critério mais consensual é o da determinabilidade constitucional do
conteúdo do direito. Assim sendo, tem a natureza de DLG o DF que impõe ao
Estado uma atitude de respeito e reconhecimento e tem a estrutura de DESC o
que impõe uma atitude de contribuição e efetivação.

Qual o regime aplicável aos DF de natureza análoga?

• Jorge Miranda defende que o regime orgânico/formal e de revisão não é


aplicável aos DF de natureza análoga, caso contrário o legislador teria previsto
expressamente nos arts. 165.º/1 al. b) e 288.º al. d).
• Porém, o entendimento do TC é que é aplicável o regime total dos DLG.
• Se combinarmos este entendimento com a Dogmática Unitária, então aos DF de
natureza análoga aplica-se o regime formal e de revisão dos DLG e o regime
material, que é comum aos DESC e DLG.

Parte III - Direitos Fundamentais em Especial

Falaremos de seis Direitos Fundamentais em Especial: (1) Direito à Identidade e


Intimidade Genética; (2) Direito à Reserva da Vida Privada e Direito à Proteção de
Dados; (3) Direito à Saúde; (4) Direito à Liberdade Religiosa; (5) Direito à Cultura e
Fruição Cultural; (6) Direito à Educação.

Capítulo I – Da Identidade à Intimidade Genética

A previsão constitucional de um “Direito à identidade genética do ser humano”,


surge com a Revisão Constitucional de 1997, no artigo 26.º/3 CRP. É, por isso, (na
expressão de Noberto Bobbio) um DF de 4.ª Geração18. Surge associada à questão da
experimentação científica e utilização, criação e desenvolvimento de tecnologias que
afetem a identidade genética.
• Contextualização: nos anos 90 aconteceu a transição para a era pós-genómica.
Em 1997, já se considerava iminente a descodificação e sequenciamento do
18
Como já estudamos, os direitos de 3.ª (anos 70 – ambiente e proteção de dados) e 4.ª geração (anos 90 –
identidade genética) distinguem-se, não pela estrutura, mas pelo objeto, podendo ter a estrutura e
natureza, ou de DLG, ou de DESC.

Hugo Almeida 47
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genoma humano, com o Projeto do Genoma Humano, lançado em 1990 (tendo


o genoma humano sido sequenciado em 2003). O Projeto do Genoma Humano,
baseando-se na ideia de que o genoma humano deveria ser livre e gratuitamente
acessível para todas as pessoas e investigadores, concorria com um consórcio
privado, a Celera Genetics, que entendia vender subscrições da sua base de
dados e patentear genes e técnicas de sequenciamento (estas questões,
relacionadas com a liberdade de investigação, a possibilidade de os genes
puderem ser usados para finalidades lucrativas e da classificação do genoma
como património comum, motivaram muita da previsão normativa que começou
nesta década a surgir). A par deste projeto, foi lançado o ELSI (Ethical, Legal
and Social Issues), com o objetivo de antecipar as consequências jurídicas,
éticas e sociais que poderiam advir do mapeamento do genoma humano.
• O genoma humano é o substrato biológico comum a todos os seres humanos. A
proteção da identidade genética do artigo 26.º/3 CRP estende-se, quer ao
genoma, enquanto elemento comum, quer aos aspetos da genética que variem de
indivíduo para a individuo, que integram a identidade individual.

• Na sequências destes avanços médico-científicos, vários instrumentos


internacionais, no âmbito do Conselho da Europa (como a Convenção de
Oviedo19, de 1997) e de agências da ONU20, começaram a surgir com o objetivo
de criar uma previsão internacional dos direitos e dignidade humana relativos ao
genoma e dados genéticos – foi a transição da Bioética para o “Biodireito” – de
ter princípios e normas éticas aplicáveis à atividade científica, mas que careciam
de juridicidade, para ter um verdadeiro Direito Fundamental à Identidade e
Intimidade Genética, com força jurídica e centrados num contexto de Estado
de Direito baseado na Dignidade da Pessoa Humana.
O Direito à Intimidade Genética, apesar de não estar nominado no texto
constitucional, é uma decorrência necessária do Direito à Identidade Genética, e uma
garantia (carácter instrumental) do direito à identidade genética.
• Devemos interpretar o Direito à Identidade Genética, do art. 26.º/3 em harmonia
com o Direito à Reserva da Vida Privada (art. 26.º/1 CRP), à luz da doutrina
dos 3 círculos concêntricos:
Ø A identidade genética deve-se colocar na esfera da vida íntima – a mais central
e protegida dos 3 círculos concêntricos. Isto porque a informação genética é de
uma natureza eminentemente pessoal, reportando-se à própria essência da pessoa
(inclusive aspetos desconhecidos da pessoa, que podem estar na origem de
discriminação, como genes que determinam a probabilidade que um indivíduo
tem de vir a contrair certas doenças), e à sua história familiar.
• Nota: não devemos, no entanto, cair num reducionismo genético: a pessoa
humana não é definida exclusivamente pelo seu genoma, sendo moldada por um
conjunto de condicionantes pessoais, ambientais, sociais, etc. Contudo, o

19
Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações
da Biologia e Medicina
20
Como a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos e a Declaração
Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, ambas da UNESCO, de 1997 e 2004 respetivamente.

Hugo Almeida 48
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genoma, em especial, deste que é variável de pessoa para pessoa, é uma parte da
sua identidade que se infere na esfera íntima: os dados genéticos pessoais são
dados íntimos.
• Por esta razão, a proteção da identidade genética e da informação genética
pessoal está abrangida pelo núcleo íntimo da vida privada.
Evolução do conceito de Genética e de Pessoa
• Luís Archer apelidou a Genética de “ciência do futuro”, dizendo que “o gene é a
semente do que há de vir”.
• Jorge Sequeiros falava em “Horóscopo genético”, aludindo à natureza preditiva
que os genes têm sobre o futuro dos indivíduos.
Esta definição põe à vista a questão da possibilidade de redução da pessoa às suas
características genéticas.
• Para esta discussão, cabe-nos definir os conceitos biológico, filosófico e
psicológico de pessoa, bem como distinguir pessoa de indivíduo e a
personalidade da capacidade jurídica.
Eis algumas destas visões:
a. Para Niceto Blazquez, o ser humano é um conceito biológico, ao passo que
pessoa é um conceito filosófico e psicológico. (Assim sendo: é em virtude do
nosso genoma humano comum que somos “seres humanos”, no entanto, o
conceito de “pessoa” não se confunde com a expressão dos genes, é um conceito
filosófico e social).
b. Para Immanuel Kant, “pessoa” é o sujeito cujas ações são suscetíveis de
imputação – a pessoa é uma centro de imputação moral e jurídica, não sendo um
mero sinónimo de indivíduo.
c. Lucien Séve e Jean Bernard – a pessoa como “forma-valor”.
d. A personalidade jurídica tem um cariz qualitativo (i.e., é uma qualidade da
“pessoa” para o Direito, que se inicia com o nascimento completo e com vida21,
da qual resulta a suscetibilidades de direitos e obrigações), já a capacidade tem
um cariz quantitativo (apesar da capacidade jurídica ser imanente à
personalidade, diz respeito ao conjunto/quantidade de direitos e obrigações que
cada pessoa pode ser titular ou exercer).
A grande questão está em tentar perceber se eventualmente o conceito filosófico de
pessoa vai ser reduzido ao conceito de gene. Entende-se que os genes são parte do que
constitui a pessoa, constituindo uma potencialidade cuja expressão dependerá do
ambiente natural e social de cada indivíduo, pelo que o conceito de normativo e social
de pessoa vai muito para além da informação codificada nos seus genes.
Ø A “identidade genética” não se circunscreve à identidade pessoal, mas relaciona-
se intimamente com ela.
Os caveats da Biomedicina e da Biotecnologia: a Bioética

21
Isto não significa que não haja considerações de Direito fora do período entre o nascimento e a morte,
e.g. proteção do feto/embrião e leis sobre as autópsias.

Hugo Almeida 49
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O conceito de Bioética é cunhado em 1970 por Van Rensselaer Potter.


A Bioética é a área que discute as limitações éticas e aplicações relativas às ciências da
vida/biológicas. Divide-se em:
I. Macrobioética (Potter): preocupada com considerações da investigação
e aplicação das ciências biológicas numa escala acima do ser humano,
e.g. ecologia/biodiversidade, utilização de recursos/sobrevivência
humana.
II. Microbioética (Helleger): relacionado com as aplicações e investigações
médicas em seres humanos e outros seres vivos, nos seus genes, órgãos,
etc. (“ponte entre a medicina, a filosofia e a ética”).
O artigo de 1971 da Time “Man into superman: the promisse and peril of the new
genetics” veio, três décadas antes do mapeamento do genoma humano, levantar muitas
das questões que ocupariam a Bioética e, posteriormente, o Biodireito, como a
descodificação e replicação do genoma humano e a modificação genética.
No entanto, foi com o Relatório Belmont (1978), que se viu a primeira densificação
dos princípios bioéticos: autonomia, beneficência e justiça.
• Autonomia: A autodeterminação do indivíduo está no centro das preocupações
bioéticas. Consiste no direito do indivíduo de estabelecer as suas próprias
normas e convicções. Escolhendo, à luz destas, sujeitar-se ou não a tratamentos,
experiências, etc.
• Beneficência: A finalidade última da investigação deve ser sempre o benefício
do ser humano.
• Justiça: Exige uma justa e equitativa alocação de recursos, visando uma ampla
distribuição dos benefícios da investigação pelas populações.
A estes princípios, que foram chamados de Princípios Bioéticos Gerais, foram
posteriormente acrescentados:
• Não-Maleficência: Não basta que uma determinada experimentação ou
intervenção médica beneficie a humanidade, também não pode provocar nenhum
dano (exceto quando este é consentido) a pessoas individuais.
• Precaução: Quando a amplitude dos efeitos lesivos não é suficientemente
conhecida, deve-se evitar a investigação/aplicação das técnicas potencialmente
lesantes.
Ø Este princípio tem relevância não só ao nível da Microbioética (p.ex.
investigações sobre o genoma humano), mas também da Macrobioética, como a
nível ambiental: quando se desconhece a totalidade dos efeitos de uma atividade
poluente, esta deve ser evitada sempre que possível.
Existem ainda os Princípios Bioéticos Específicos:
• Vulnerabilidade e Solidariedade: A Vulnerabilidade aponta para um especial
cuidado com os fatores de discriminação – p.ex. populações pobres serem
economicamente incentivadas a tomarem parte em experiências perigosas; já a
Solidariedade baseia-se na ideia de que todos que necessitem possam beneficiar

Hugo Almeida 50
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

destas técnicas – p.ex. mesmo alguém que se inscreve como não-dador em


Portugal, pode receber um órgão.
• Subsidiariedade e Socialidade:
Ø A Subsidiariedade diz respeito, não tanto às intervenções, mas às normas
proibitivas ou restritivas da investigação médico-científica (a restrição do DF à
Investigação Científica deve-se limitar ao necessário para solucionar conflitos
ou colisões e, claro, ser proporcional).
Ø Socialidade: os benefícios da investigação devem ser colocados ao benefício de
todos;
• Confidencialidade e Privacidade: Consistem em manifestações do Direito à
Reserva da Vida Privada, que abrangem a proteção dos dados médicos,
genéticos, sobre a investigação, a possibilidade de anonimato nos estudos,
eliminação da informação genética que já não serve uma finalidade, e não
divulgação da mesma com terceiros. São mecanismos de salvaguarda da esfera
íntima e privada dos indivíduos no âmbito das investigações.
• Liberdade de investigação (a liberdade de criação científica e investigação
resulta do artigo 42.º CRP, tratando-se de um DLG, está sujeito ao regime de
restrição do art. 18.º CRP)
Todos os princípios que referimos até agora são princípios bioéticos que visavam
impor limites ético-deontológicos à investigação biológica. Estes princípios carecem de
juridicidade. Foi só com o surgimento de instrumentos internacionais de proteção da
identidade e dados genéticos, em meados dos anos 90, que passou a existir um
verdadeiro Biodireito, normas preceptivas que têm por objetivo conferir força jurídica
às diretrizes traçadas pela Bioética. Com a previsão constitucional, em 1997, do DF à
Identidade Genética, passam a ter eficácia horizontal e vertical (por força do art. 18.º/1
CRP), vinculando também entidades privadas.
• É hoje ainda mais importante a garantia da identidade, intimidade, diversidade e
irrepetibilidade dos genes face:

o Não só ao Eugenismo do Estado (medidas, como a proibição de


casamentos ou esterilizações forçadas, que visavam eliminar genes
considerados indesejáveis – eugenia negativa – ou para favorecer a
permanência de genes socialmente valorizados – eugenia positiva,
políticas associadas às experiências totalitárias do século XX).
o Mas também face ao que Jürgen Habermas denominou “o Eugenismo de
privados/eugenia liberal” (ou, segundo o Parecer 43/CNECV/04 –
engenharia genética de melhoramento). São “intervenções feitas por
particulares com a finalidade de aperfeiçoar determinada característica
física, traço morfológico ou psico-afectivo”. Como veremos, a proibição
da clonagem, da seleção de sexo das crianças ou de traços que não
estejam relacionados com a prevenção de problemas graves de saúde, é
proibida por instrumentos internacionais como a Convenção de Oviedo,
ao abrigo dos quais devemos interpretar o art. 26.º/3 CRP.
o Podemos falar ainda da terapia génica, que é uma intervenção, que pode
ser ou não modificativa do genoma, com finalidades preventivas, de

Hugo Almeida 51
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diagnóstico ou terapêuticas. Há 2 tipos de terapia génica: (i) sobre


células somáticas – não afetando as células da linha germinativa, que
são hereditárias; (ii) sobre as células germinativas – apenas se admite
para o tratamento de doenças genéticas hereditárias, podendo ser
realizada em gâmetas ou embriões.
o De Medicina Preventiva/Predizente ou Genómica: “prática médica que
lida com o diagnóstico, tratamento e o controle dos distúrbios
hereditários”.
o E da proliferação de kits de testes genéticos.

Ø Lei da Procriação Medicamente Assistida (Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho):


estabelece a PMA como método subsidiário de procriação e as respetivas
técnicas admitidas e condicionamentos.

Artigo 3.º da Lei 32/2006


n.º1 : Respeito pela dignidade humana de todas as pessoas envolvidas;
n.º2: Proibição de discriminação com base no património genético.

Artigo 7.º da Lei 32/2006


n.º1: É proibida a clonagem reprodutiva tendo como objetivo criar seres
humanos geneticamente idênticos a outros.
n.º2: As técnicas de PMA não podem ser utilizadas para conseguir melhorar
determinadas características não médicas do nascituro, designadamente a
escolha do sexo (exceto em casos de doença genética ligada ao sexo – n.º 3);
n.º 4: Proibição de quimeras ou híbridos.
n.º5: Proibição da medicina preventiva em “doenças multifatoriais22 onde o
valor preditivo do teste genético seja muito baixo” (ou seja, tem que haver uma
relação direta e forte entre o gene e a probabilidade de vir a desenvolver
doenças)
Professor José de Oliveira Ascensão: há que verificar em que medida a pessoa é
servida e em que medida pode ser afetada pelas novas técnicas biomédicas. (princípio
da precaução – é um princípio da bioética relativo à investigação, mas que também
deve servir de base para a ponderação casuística quando está em causa a restrição ou
condicionamento de certas técnicas biomédicas (por exemplo: engenharia genética).

Previsão internacional dos Direitos de Identidade e Intimidade Genética

Instrumentos internacionais:
• Declaração Ibero-Latino-Americana sobre Ética e Genética ou Declaração de
Manzanillo, de 1996, revista em Buenos Aires em 1998. Que estabelece a Rede
Ibero-Americana sobre Bioética, Direito e Genética.

22
Multifatoriais são relacionadas com vários genes ou até fatores não genéticos. Já as doenças
monogénicas estão diretamente relacionadas com um gene.

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• Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser


Humano face às Aplicações da Biomedicina, ou Convenção de Oviedo –
Conselho da Europa, 1997.
• Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos
(DUGHDG), ou Declaração sobre o Genoma Humano – UNESCO, 1997
• Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos – UNESCO,
2004;
• Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) -
UNESCO, 2005.

Artigo 1.º da Declaração sobre o Genoma Humano (UNESCO, 1997):


O genoma humano tem subjacente a unidade fundamental de todos os membros da
família humana, bem como o reconhecimento da sua inerente dignidade e diversidade.
Em sentido simbólico, constitui o património da Humanidade.
Artigo 11.º
As práticas que sejam contrárias à dignidade humana, como a clonagem de seres
humanos para fins reprodutivos, não serão permitidas.
A qualificação do genoma humana enquanto património da humanidade significa
que o genoma não pode, na sua totalidade, ser patenteado, nem sujeito a exploração
económica. Isto não preclude, no entanto, a possibilidade de patentear genes singulares
que tenham sido criados ou modificados.
A dignidade inerente ao genoma humano pressupõe, por isso, que não possa ser
apropriado para finalidades lucrativas (artigo 21.º Declaração de Oviedo – “o corpo
humano e as suas partes não devem ser fonte de quaisquer lucros”), nem copiado. Estes
usos da informação genética seriam atentatórios da dignidade humana.
Ø Nas palavras de Oliveira Ascensão, a identidade genética pressupõe um
“pretenso direito de individualidade”, no sentido de irrepetibilidade dos
seres futuros”23.
• Com a irrepetibilidade do genoma humano, num sentido prático, pretende-se
afastar a legitimidade da clonagem reprodutiva, por se considerar uma forma de
instrumentalização da pessoa humana, atentatória da dignidade humana. No
mesmo sentido Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo (Conselho da
Europa, 1997) proíbe toda a intervenção “com a finalidade de criar um ser
humano geneticamente idêntico a outro, morto ou vivo”, definindo como “ser
humano que tem em comum com outro o mesmo conjunto de genes nucleares”.
Parecer 43/CNECV/04: se a sociedade democrática e plural abraça este
empreendimento com a curiosidade e expectativa habituais a qualquer projecto com
esta dimensão, deve dispensar, igualmente, parte substancial dos seus recursos para o

23
Fonte: https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2003/ano-63-vol-i-ii-
abr-2003/artigos-doutrinais/jose-de-oliveira-ascensao-intervencoes-no-genoma-humano-validade-etico-
juridica/

Hugo Almeida 53
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

estudo aprofundado das questões éticas, sociais e legais despertadas pela análise do
genoma humano e o subsequente tratamento da informação genética.
Ø Este parecer do CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida)
surge na sequência do Projeto de Lei n.º 455/VII “Informação Genética
Pessoal”, já posterior ao Programa Genoma Humano ter sequenciado o genoma,
possibilitando o diagnóstico e rastreio de inúmeras doenças genéticas.
Artigo 3.º da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (UNESCO,
1997):
Cada indivíduo tem uma constituição genética característica. No entanto, não se pode
reduzir a identidade de uma pessoa a características genéticas, uma vez que ela é
constituída pela intervenção de complexos fatores educativos, ambientais e pessoais,
bem como das relações afetivas, sociais, espirituais e culturais com outros indivíduos, e
implica um elemento de liberdade”.
Estas declarações têm uma dupla-finalidade: afastar o reducionismo genético – o
indivíduo é mais do que a soma dos seus genes – e o determinismo genético – a
informação genética é apenas predizente e indica potencialidades/predisposição (em
vez de uma certeza), não eliminando a liberdade e autonomia humana para o livre
desenvolvimento e formação no plano social e normativo. Bem como de garantir a
inerente diversidade genética (diversidade dos indivíduos e grupos face ao eugenismo
dos Estados e dos privados).
Ø Parecer 40/CNECV/01 “duas pessoas, mesmo que genotipicamente idênticas,
acabarão por ter sempre uma personalidade distinta (…) não é possível clonar
a identidade pessoal, uma vez que ela é fruto da liberdade, originalidade e da
forma de se e de estar que compõe a vida de cada um”.
• Stela Barbas propõe uma diferenciação entre a identidade pessoal e a identidade
genética. A identidade pessoal inclui, mas transcende, a identidade genética.
Artigo 4.º da DIDGDH – Especificidade dos dados genéticos
Ø Serem preditivos de predisposições genéticas do indivíduo (indicam uma
probabilidade);
Ø Poderem de ter impacto significativo sobre a família, sobretudo a
descendência, ao longo de várias gerações, e em certos casos sobre todo o grupo
a que pertence a pessoa em causa (devido à heritabilidade/carácter geracional
da informação, a especificidade da informação genética não se cinge ao
indivíduo, mas também aos seus ascendentes e descendentes. A comunalidade
de genes entre familiares pode criar conflitos, na medida em que a partilha de
informações genéticas por um indivíduo – por exemplo, que esteja relacionada
com a predisposição para uma certa doença – pode levar a que os seus
descendentes sejam discriminados com base nessa predisposição genética);
Ø Poderem conter informações cuja importância não é necessariamente
conhecida no momento em que são recolhidas amostras biológicas (p.ex. genes
cujos efeitos ainda não são completamente conhecidos);
Ø Poderem revestir-se de importância cultural para pessoas e grupos (para além
do genoma ser património comum da humanidade, os dados genéticos presentes

Hugo Almeida 54
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em certas populações são também passíveis de serem objeto da sua identidade e


dignos de proteção pelo seu carácter distintivo).
Desta especificidade resulta o carácter sensível (esfera da vida íntima, na doutrina das
3 esferas concêntricas) dos dados genéticos: os dados genéticos são dados sensíveis, em
função do seu carácter predizente e geracional, tratando-se de informações que se
reconduzem ao núcleo íntimo da vida privada e familiar.
Artigo 2.º da DIDGH – tipos de dados genéticos:
• Dados associados a uma pessoa identificável (DIDGH, artigo 2.º al. ix): contêm
informação como o nome, data de nascimento e morada, permitindo identificar a
pessoa cujos dados forma recolhidos;
• Dados dissociados de uma pessoa identificável (DIDGH, artigo 2.º al. x):
quando os dados foram substituídos ou dissociados pela utilização de um
código, não sendo diretamente identificável a pessoa.
• Dados irreversivelmente dissociados de uma pessoa identificável (DIDGH,
artigo 2.º al. xi) quando o nexo entre a informação e a pessoa foi destruído.
Nota: Os direitos de acesso aos dados (art. 13.º DIDGH), não ser informado
sobre os resultados (art. 10.º) ou de retirar o consentimento para a recolha de
dados a qualquer momento (art. 9.º), não se aplica para quando os dados estão
irreversivelmente dissociados da pessoa, pois já não é possível identificar os
dados com um indivíduo.
Artigos 8.º e 9.º da DIDGDH – Consentimento (o consentimento na investigação
científica será estudado em maior profundidade no Capítulo III – Direito à/da Saúde)
Ø Deve ser livre, informado e expresso, sem que tenha havido tentativa de
persuasão por ganho pecuniário ou por outra vantagem. Só em harmonia com as
disposições do direito interno e direito internacional humanitário (art. 14.º
DIDGH), por razões de conflito de direitos, é que o consentimento pode ser
restrito.
Ø Em situações de incapacidade, o representante legal deverá atuar em nome do
seu superior interesse (poder-dever). A opinião de um menor deverá ser tomada
em consideração, consoante a idade e grau de maturidade. Quando um adulto
seja incapaz de consentir, deverá participar na medida do possível no processo
de autorização. (arts. 8.º al. a) e d) DIDGH)
Ø O consentimento é livremente revogável, sem que possa daí resultar qualquer
penalidade ou desvantagem (art. 9.º DIDGDH). Exceto nos casos em que os
dados estejam irreversivelmente dissociados.

Artigo 10.º da DIDGDH – Direito a não ser informado/direito de não saber


Ø No momento da obtenção do consentimento, a pessoa deverá ser devidamente
informada do seu direito, de poder decidir ser ou não informada dos
resultados.
Ø “Se necessário, o direito a não ser informado deverá ser tornado extensivo aos
familiares identificados dessas pessoas que possam ser afetados pelos
resultados”

Hugo Almeida 55
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Artigo 13.º da DIDGDH – Direito ao Acesso à Informação Genética


A ninguém deverá ser recusado o acesso aos seus próprios dados genéticos ou dados
proteómicos a não ser que os mesmos sejam irreversivelmente dissociados da pessoa
que é sua a fonte identificável ou que o direito interno restrinja o acesso no interesse da
saúde pública, da ordem pública ou da segurança nacional.
• Só há dois fundamentos para a restrição do direito do indivíduo de acesso à sua
informação genética: (i) estarem irreversivelmente dissociados – não sendo
possível saber a quem pertencem aqueles dados; (ii) por colisão com os
interesses legalmente protegidos de saúde e ordem pública, em conformidade
com as normas de restrição do direito interno (entre nós: art. 18.º CRP), bem
como com os princípios bioéticos estudados.

Artigo 14º da DIDGH:


Os Estados deverão desenvolver esforços para proteger a vida privada dos
indivíduos, nas condições previstas pelo direito interno em conformidade com o
direito internacional relativo aos direitos humanos.

Convenção de Oviedo
(1997 - Entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa: 1/12/2001)
• Artigo 2.º (Primado do ser humano): “O interesse e o bem-estar do ser humano
devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência”.
• Artigo 13º (Intervenções sobre o genoma humano): “(…) não pode ser levada a
efeito senão por razões preventivas, de diagnóstico ou terapêuticas e somente
se não tiver por finalidade introduzir uma modificação no genoma da
descendência.”
• Artigo 14º (Não seleção do sexo): “Não é admitida a utilização de técnicas de
procriação medicamente assistida para escolher o sexo da criança a nascer, salvo
para evitar graves doenças hereditárias ligadas ao sexo.”
• Protocolo Adicional: proíbe clonagem.
São proibidas as intervenções sobre o genoma humano que tenham finalidades
modificativas do genoma da descendência, de seleção de sexo ou clonagem reprodutiva.
Apenas são permitidas as intervenções que visem o tratamento, diagnóstico ou
prevenção de doenças hereditárias.

Hugo Almeida 56
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O Direito Fundamental à Identidade Genética na CRP

• Artigo 26º/3 (revisão de 1997) – previsão expressa e autónoma da garantia da


dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano face aos riscos
advindos através da criação, do desenvolvimento e da utilização das novas
tecnologias, bem como da experimentação científica.

• “Sempre que se afirme um novo entendimento das necessidades de garantia da


dignidade pessoal, descobrir-se-ão novas dimensões normativas dos direitos
fundamentais.” (Vieira de Andrade)

Para o professor João Loureiro, são características da identidade genética:


• Os destinatários vinculados: Estado e entidades privadas; (art. 18.º/1 CRP)
• Os beneficiários: todos os seres humanos. Não se restringindo à necessidade
de aquisição completa da personalidade jurídica ou de se considerar pessoa
apenas os seres dotados de racionalidade. A identidade genética de todos é
protegida, independentemente da capacidade jurídica ou natural.
• A legislação ordinária obrigatória deve considerar especificamente as
ameaças resultantes da criação, desenvolvimento e utilização de tecnológicas e
na experimentação científica.
• Ao assegurar a identidade genética do ser humano na sua ampla dimensão de
singularidade genética em relação os outros seres humanos e de
especificidade em relação aos outros seres vivos, acaba por contribuir para a
preservação do genoma humano como património comum da Humanidade.
Intimidade e Proteção de Dados Genéticos

Relembrando que a informação genética, pelo seu carácter sensível, revelando o mais
íntimo da essência pessoal ou familiar, encontra-se na esfera íntima do indivíduo (o
“núcleo duro” do direito à reserva da vida privada), devendo ser protegidas contra
todas as manifestações de ingerência alheia.
Relembram-se os arts 2.º (tipos de dados genéticos: associados, dissociados e
irreversivelmente dissociados a uma pessoa identificável), 4.º (especificidade dos dados
genéticos, em virtude de serem predizentes, geracionais, poderem revelar informação
que não é conhecida à data da colheita e a sua importância para familiares ou como
património cultural de grupos) e 14.º DIDGH (proteção da vida privada).
Ø Art. 10.º Convenção de Oviedo: qualquer pessoa tem direito ao respeito pela
vida privada no que toca às suas informações de saúde.
O direito à intimidade genética é instrumental na garantia da igualdade, liberdade
(autonomia) e dignidade. Serve, sobretudo, duas finalidades:
I. Garantir a diversidade genética e evitar a discriminação genética:

Hugo Almeida 57
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Segundo o National Human Genome Research Institute a discriminação
genética ocorre quando as pessoas são tratadas injustamente em função de
diferenças no DNA que aumentam as suas chances de contrair determinada
doença. Tratando-se de uma avaliação que tem por base na constituição
genética das pessoas e não os seus méritos ou aptidões individuais. É uma
ingerência na sua privacidade e esfera íntima e discriminação com base em
características fora do seu controle.
Ø Art. 7.º DIDGH (Não discriminação e não-estigmatização): impõe que o uso de
dados genéticos, bem como as conclusões e interpretações dos estudos de
genética das populações, não sejam usados para fins contrários à dignidade
humana, aos direitos humanos e liberdades fundamentais ou que conduzam à
estigmatização de um indivíduo, família, grupo ou comunidades.
Ø Ver, no mesmo sentido art. 11.º DUBDH e art. 11.º da Convenção sobre os
Direitos do Homem e a Biomedicina.
Ø Art. 21.º Carta dos Direitos Fundamentais da UE: Princípio da Não
Discriminação (é um elenco exemplificativo, como o nosso art. 13.º/2 CRP, mas
que prevê expressamente a constituição genética como causa de discriminação).

II. Garantir a autodeterminação informacional: a intimidade genética


pressupõe que a informação e dados genéticos usufruam do maior grau de
proteção dado pelos princípios da Reserva da Vida Privada (art. 26.º/1) e
Proteção de Dados (art. 35.º), o que inclui a autodeterminação informacional,
i.e., a capacidade de controlar a divulgação, acesso, uso, do titular ou do
terceiro, sobre estes dados, quer na vertente positiva como negativa (direito,
tanto a ser informado, como a não ser informado):
i) Direito de livre acesso às próprias informações genéticas;
ii) Direito de não ser informado sobre as suas informações
genéticas;
iii) O controlo sobre o acesso e uso das informações genéticas
de terceiros (arts. 10.º e 13.º DIDGH);
• Focando-nos em concreto no direito de não saber/a não ser informado:
Ø Artigo 10.º DIDGH (já referido);
Ø Artigo 5.º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humano;
Ø Artigo 5.º al. c) da Declaração Universal sobre o Genoma Humano – cada
indivíduo tem o direito de decidir se será ou não informado sobre os resultados
na análise genética e das consequências dela decorrentes.
Ø Art. 10.º da Convenção de Oviedo - qualquer pessoa tem o direito de conhecer
toda a informação recolhida sobre a sua saúde devendo, no entanto, ser
respeitada a sua vontade expressa no sentido de não ser informada.
Quem podem ser os interessados no acesso a estes dados genéticos?

1. A comunidade científica
A comunidade científica (investigadores, médicos, indústria farmacêutica) poderá ter
interesse nos dados genéticos, por exemplo, para investigação de doenças raras, estudos
de populações, etc.

Hugo Almeida 58
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• Conflito entre o a liberdade de investigação, que é em si um direito


fundamental, (artigo 42.º CRP) e o princípio bio jurídico do “primado do ser
humano” (artigo 2.º da Convenção de Oviedo).
• O critério de resolução de situações de conflito como esta são os princípios
bioéticos gerais (como a precaução), os princípios bioéticos específicos (como
a confidencialidade, privacidade, subsidiariedade, liberdade de investigação e
responsabilidade), bem como os critério da ponderação casuística e
concordância prática (aplicável a todos os conflitos e colisões de direitos).

2. O Estado
O Estado pode ter interesse nos dados genéticos em variadas situações, entre as quais:
i. Recursos de saúde pública – relacionados com a alocação de
recursos, p.ex., se souber que doença x genética é mais prevalente na
sua população do que doença y, favorecerá a despesa médica nesta.
ii. Biobancos: São bases de dados, que podem existir, quer para
identificação civil, quer para identificação criminal. No nosso
ordenamento são regulados pela Lei n.º 5/2008, que prevê um
sistema misto, com possibilidade de recolha voluntária de amostras
(art. 6.º e 7.º da Lei n.º 5/2008) quanto à identificação civil
(carecendo sempre de consentimento) ou investigação criminal
(sendo, neste caso, obrigatória para crimes dolosos com pena de
prisão a partir de 3 anos – art. 8.º).
Para além das vantagens na investigação criminal, ao nível da
identificação civil, pode ser uma forma de identificar das vítimas de
em caso de catástrofes naturais, ou o seu cadáver e paradeiro.
Nota: Alerta-se para a necessidade de respeitar o Princípio da
Finalidade, ao abrigo do qual os dados fornecidos devem servir uma
finalidade clara e expressa, devendo o seu tratamento persistir apenas
enquanto existir essa finalidade. Um exemplo real é de um referendo
na Islândia, no qual estava em causa a criação de uma Base de
Dados de Identificação Civil de toda a população islandesa, tendo a
população aprovado o referendo, com a finalidade de criar essa base
de dados universais. Porém, o Estado islandês depois vende esta base
de dados à farmacêutica privada Roche, um uso que extravasa o
consentimento que tinha sido prestado
iii. Imigração: Já foi proposto (na França), em situações que permitem
aos filhos acompanhar sempre os pais na entrada em determinado
país, para além do documento de prova (que é passível de
falsificação) exigir um teste de ADN para comprovar, acrescentando
um elemento de certeza.
3. Os familiares consanguíneos:
Pode haver interesse dos pais em ter acesso às informações genéticas dos seus filhos.

Hugo Almeida 59
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• Artigo 14.º al. d) da DIDGH: as informações constantes dos dados genéticos


humanos e amostras biológicas não deverão, em regra, ser comunicadas nem
tornadas acessíveis a terceiros, incluindo a família.
Está em causa:
• o interesse dos pais em ter acesso às informações genéticas dos seus filhos;
• o interesse de outros familiares como irmãos e primos;
• o interesse dos filhos em ações de paternidade/maternidade (direito ao
conhecimento da sua própria origem genética);
Há que ponderar o direito de recusa de consentimento face ao princípio da
beneficência em relação às pessoas em risco que precisam da sua ajuda.
Outra questão é a do sigilo profissional (da empresa que realiza testes genéticos,
por exemplo), que não é absoluto, sendo que a obrigação de sigilo poderá cessar
perante graves interesses de terceiros.
Note-se que CRP apenas garante o direito à identidade genética, na vertente do
conhecimento da identidade genética (própria), não necessariamente o
conhecimento do nome do pai e mãe biológicos – que não têm que ser revelados por
teste de ADN. De igual forma, um indivíduo poderá recusar que um familiar
consanguíneo (ex: pai ou mãe) seu, saiba da sua informação genética. No entanto,
estas são sempre situações de conflito de direitos (por exemplo, entre um interesse
legítimo às informações genéticas de familiares próximos, e a autodeterminação
informacional – o controlo sobre o acesso que terceiros têm sobre as minhas
informações).

4. Familiares não consanguíneos


É uma questão muito mais complexa. À primeira vista, por não haver material
genético em comum (i.e., não há uma relação familiar próxima) não se reconhece um
interesse a conhecer o material genético do cônjuge. Mas este interesse pode estar
relacionado com a delimitação face aos direitos reprodutivos, quando falamos por
exemplo de um cônjuge que quer saber qual a informação genética que passará para os
seus filhos.
Ver, neste sentido, o artigo 22.º/2 da lei 5/2008, de 12 de fevereiro:

Artigo 22.º Acesso de terceiros


1 - É proibido o acesso de terceiros aos dados constantes na base de dados de perfis de
ADN, salvas as exceções previstas na presente lei.
2 - Mediante consentimento escrito do titular dos dados, podem aceder à informação
constante da base de dados de perfis de ADN os descendentes, ascendentes, cônjuge ou
quem com ele viva em união de facto, nos termos da lei.
3 - Mediante autorização do conselho de fiscalização e após parecer do conselho
médico-legal, podem aceder à informação constante da base de dados de perfis de ADN,

Hugo Almeida 60
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

após o falecimento do titular, os presumíveis herdeiros desde que mostrem interesse


legítimo e não haja sério risco de intromissão na vida privada do titular da informação.

5. As entidades empregadoras

a) Diagnóstico pré-sintomático de doenças de manifestação tardia.


b) Deteção de genes determinantes de suscetibilidade a certas substâncias
específicas utilizadas na realização do trabalho ou presentes no ambiente
de trabalho.
c) Análises que determinem se há causa genética em doenças surgidas
entre os trabalhadores (p.ex., para determinação de responsabilidade da
entidade empregadora por doença que surja no trabalho).

As avaliações das situações supra podem ser feitas através de duas diferentes
técnicas:
• Genetic monitoring (monitorização genética ou acompanhamento genético),
que envolve a análise periódica de trabalhadores com o objetivo de avaliar as
possíveis alterações do seu material genético, ou a evidência do aumento da
ocorrência de mutações moleculares.
• Genetic screen (rastreio genético) – aplicação de testes genéticos para avaliar a
composição genética dos empregados ou candidatos a emprego sobre
determinadas características hereditárias.
Qual é a relevância da análise destes dados por estas entidades? As entidades
empregadoras podem dizer que não são responsáveis por uma determinada doença
profissional, porque um dos seus funcionários já tinha nos seus dados genéticos uma
forte probabilidade de contrair tal doença.
Argumentos favoráveis:
• Necessidade de proteção da saúde do próprio trabalhador que justifique evitar a
exposição a determinadas substâncias presentes no ambiente de trabalho.
• Dever do empregador de zelar pela segurança e higiene no ambiente de trabalho.
• Proteção dos demais trabalhadores e/ou clientes, evitando-se o “risco coletivo”.
• Direito da entidade empregadora zelar pela preservação do património.
• Como acentuou o CNECV nunca se poderá admitir que a empresa promova a
realização destes testes apenas para assegurar que os mais resistentes assumem
as funções mais arriscadas para a saúde, assim poupando nos seus custos de
higiene e segurança no trabalho.
Argumentos desfavoráveis:
• Direito à intimidade genética do trabalhador e do candidato a emprego.
• Respeito pelo princípio da confidencialidade ao qual o profissional de saúde
especializado está, em regra, adstrito.

Hugo Almeida 61
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• Direito à autodeterminação da informação genética.


• Direito à igualdade e à não discriminação genética.
• Direito ao trabalho.
6. As seguradoras
O seguro é, por natureza, um contrato aleatório, pelo que haverá sempres riscos.
Questiona-se sobre a admissibilidade de os seguros exigirem dados genéticos para
cobrir estes riscos (cobrando prémios mais elevados por clientes com tendência a
contrair doenças).
Argumentos desfavoráveis:
• Negar o acesso de pessoas a um seguro de saúde ou de vida, sob a alegação de que
elas carregam no seu genoma uma tendência a padecer de algum mal é, primeiramente,
violar o elemento essencial desse tipo de contrato, que se traduz na álea, na sorte, no
acaso, no risco.
• Direito a não saber.
• A informação genética é geracional e respeita não apenas ao indivíduo interessado no
seguro, mas, também, aos seus familiares não contratantes (potencia a futura
discriminação de pessoas que não consentiram na partilha destes dados).
• Doença ainda não manifestada.
Argumentos favoráveis:
• Diminuição do custo dos prémios de seguro para os indivíduos que tiverem resultados
negativos.
• De acordo com a boa fé, deverá o segurando informar o segurador sobre todas as
circunstâncias que possam ser relevantes para o cálculo do risco do seguro. Caso
contrário, estaria agindo de má-fé, o que poderia determinar a nulidade do contrato de
seguro.
Proteção através de normas infraconstitucionais
Toda esta matéria e suscetibilidade de colisão tem que ser protegida através de normas
infraconstitucionais – ver, assim:
Ø Lei da proteção de dados pessoais (RGDP e lei 58/2019, de 8 de agosto);
Ø Lei da procriação medicamente assistida (lei 36/2006, de 26 de julho, com
alterações);
Ø Lei 46/2006, de 28 de agosto, que proíbe e pune a discriminação em razão da
deficiência e da existência de risco agravado de saúde.
Ø Lei 12/2005, de 26 de janeiro, com alterações da lei 5/2012, de 23 de Janeiro
que define o conceito de informação de saúde e de informação genética, a
circulação de informação e a intervenção sobre o genoma humano no sistema de
saúde, bem como as regras para a colheita e conservação de produtos biológicos
para efeitos de testes genéticos ou de investigação.
• Princípios previstos na lei 12/2015:

Hugo Almeida 62
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i. Princípio da não discriminação (artigo 11.º).


ii. Proibição de aplicação de testes genéticos (artigo11.º).
iii. Proibição no âmbito das relações de seguro (artigo 12.º).
iv. Proibição no âmbito das relações de emprego (artigo 13.º).
Ver ainda: artigos 16.º, 17.º, 19.º, 22.º, 23.º, 30.º do Código do Trabalho.
A intimidade genética tem um carácter instrumental à identidade genética e, apesar
de não estar expressamente prevista na CRP, é inevitável a previsão conjugada deste
direito. É ainda de realçar que, apesar das questões em torno do genoma humano já se
encontrarem largamente ultrapassadas – fala-se de um admirável mundo velho – vão
surgindo novas questões-fronteira, como as questões das neurociências.

Capítulo II – A Reserva da Vida Privada: Novos Contextos e Novos


Desafios e Proteção de Dados

Existe um Direito Fundamental à Privacidade?

O direito relativo à Reserva da vida privada está consagrado na CRP desde 1976, no
artigo 26.º/1CRP (mantendo a formulação original formulação “a todos são
reconhecidos os direitos (...) à reserva da vida privada e familiar).
Para além da sua previsão como Direito Fundamental, este direito encontra-se plasmado
em instrumentos internacionais e comunitários, tais como:
• art. 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH),
• art. 7.º e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP);
• art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)24.
Apesar de não existir uma previsão expressa de um “direito à privacidade”, a proteção
da privacidade está abrangida pela Reserva da Vida Privada.
Do prima constitucional, a Privacidade é protegida em duas perspetivas: como
Privacidade Comportamental, um Direito de 1.ª Geração (uma liberdade negativa,
que exige do Estado respeito pelas decisões individuais, pela esfera do particular e não
ingerência nesta) associada à Reserva de Vida Privada em sentido estrito, do art. 26.º/1
CRP, bem como a Privacidade/Autodeterminação Informacional, um direito mais
circunscrito, de 3.ª Geração (que não está relacionada com a estrutura do Direito, mas
sim com o momento seu surgimento – Alemanha na década de 70), que encontra
consagração no Direito à Proteção de Dados do art. 35.º CRP.
O contexto social em que hoje se coloca o Direito à Privacidade é de um conceito em
vias de extinção25: o autor David Brin cunha o termo “The Transparent Society” na

24
Também chamada de Convenção dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais, adotada no
Conselho da Europa (organização internacional completamente independente das instituições
comunitárias) em 1950.
25
Esta expressão foi originalmente adotada num artigo do Expresso de 1998.

Hugo Almeida 63
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

sua obra epónima de 1998, onde alerta para o risco de extinção da privacidade, já o TC
Alemão de o “homem de cristal”, numa sentença de 15/12/83. Atualmente, o direito a
um resquício de privacidade é progressivamente posto em causa pela interconectividade
permanente em que vivemos. Não obstante, é inegável a existência de uma ampla
proteção jurídica da privacidade, quer na previsão constitucional, infraconstitucional ou
internacional.
Apesar disto, o âmbito da proteção da Vida Privada vai muito para além do que à
partida se consideraria como “Privacidade” no sentido tradicional, incluindo dimensões
como a liberdade de consciência (plasmada no art. 41.º CRP, mas que é considerada
uma decorrência e garantia da vida privada), respeito pelas decisões individuais, vida
familiar, a honra e a imagem.
Restrição do Direito à Reserva da Vida Privada
• Tratando-se de um DLG (no entanto, o mesmo regime material de restrição
valeria se não fosse, adotando a Dogmática Unitária dos DF), pode ser objeto de
restrição nos termos do art. 18.º CRP, em caso de conflito com outros DF, ou
colisão com interesses constitucionalmente protegidos, sendo a sua
harmonização sujeita ao Princípio da Concordância Prática/Ponderação
Casuística (i.e., não existe uma hierarquização dos DF, a restrição é um modo
de, caso a caso, chegar a um direito definitivo), e a sua restrição ao critério da
lesão (atendendo-se ao tipo e intensidade da lesão) e princípio da
proporcionalidade
• O exercício e restrição de todo o DF está sujeito aos Limites Imanentes da
Constituição, i.e., os limites implícitos estruturantes da ordem constitucional,
tais como a Dignidade da Pessoa Humana, o Estado de Direito, etc.
• Na tutela contra violações da reserva da vida privada, deve-se atender à Teoria
da Insignificância/T. Bagatelar (remissão para o Direito Penal), que exclui a
relevância de lesões de baixa importância. Releva aqui o critério da lesão – na
necessidade de atender à gravidade e intensidade da lesão, de modo a aferir a
necessidade de tutela do DF in casu, bem como o critério da conformação
social – há lesões que são normalizadas.
Previsão da Reserva da Vida Privada em Instrumentos Internacionais

Ø Artigo 12º DUDH: "Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida


privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem
ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques a pessoa
tem direito à protecção da lei “;
Ø Artigo 17º PIDCP:
1 - Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida
privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de
atentados ilegais à sua honra e à sua reputação.
2. Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou
ofensas.
Ø Artigo 8º CEDH (Direito ao respeito pela vida privada e familiar):

Hugo Almeida 64
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do


seu domicílio e da sua correspondência.
2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito
senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma
providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a
segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico
do país, para a defesa da ordem e a prevenção de infrações criminais, a
protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das
liberdades de terceiros.
São identificáveis quatro dimensões, ou “direitos menores26 ou instrumentais”, dentro
da Reserva à Vida Privada: a reserva à vida familiar (na CRP: art. 26.º/1), à
proteção/inviolabilidade de domicílio e o direito à correspondência (art. 34.º CRP) e o
direito à honra (26.º/1 – “bom nome e reputação”)
Todos estes preceitos focam-se na eficácia vertical deste DF, da perspetiva de
proteções contra as ingerência arbitrárias ou ilegais do Estado e autoridades públicas.
Porém, na nossa ordem constitucional, por força do art. 18.º/1, é dotada de eficácia
horizontal e vertical e a eficácia da proteção da privacidade contra privados é
especialmente relevante na atualidade.
Estas disposições também indicam critérios de restrição do Direito à Reserva da Vida
Privada, que devem ser utilizados como critérios de interpretação do art. 18.º CRP. O
art. 8.º CEDH prevê como um dos pressuposto alternativos da restrição as situações de
conflito com direitos e liberdades de terceiros, já no nosso ordenamento é uma condição
necessária para a admissibilidade da restrição. Também se admite se a restrição por
colisão com valores constitucionais nacionais, como a segurança e ordem pública ou o
bem-estar económico. A necessidade destas justificações serem “justificáveis no
contexto de uma sociedade democrática” advém do facto destas serem amiúde usadas
por regimes autoritários para restringir os direitos de privacidade. No nosso
ordenamento, isto já resulta do limite imanente do Estado de Direito Democrático.
Nota sobre o Direito à Inviolabilidade de Correspondência: O conceito de
“correspondência” é hoje mais amplo do que era à data da redação original do art. 34.º
CRP, pelo que se deve interpretar o disposto de forma atualista e evolutiva, de modo a
incluir novas formas de correspondência, como e-mails, etc.
O Direito à Privacidade e Vida Privada na Jurisprudência Europeia

Ø Caso Evans c. Reino Unido (n.º 6339/05) do TEDH: Estava em causa um


conflito entre um casal que esperava um filho de barriga de aluguer, tendo se
separado antes do processo de fertilização in vitro (IVF) (no qual estava apenas
armazenado o “esperma” do companheiro). A companheira invoca o direito a ter
um filho com um elo genético (direito a constituir família – na vertente

26
N.B. Os Direitos à Inviolabilidade de Domicílio, de Correspondência, Reserva da Vida Familiar e o
Direito à Honra são todos DF e, por isso, não são hierarquicamente inferiores ao Direito de Vida Privada.
A sua qualificação como direito menor (ou instrumental) está relacionada com o facto de servirem de
garantia do “direito maior” (Reserva da Vida Privada), que é mais abrangente e no qual estão incluídos.

Hugo Almeida 65
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

positiva), já o pai invoca o mesmo direito, na vertente negativa, respeitando a


sua dignidade e decisão de não querer ser pai biológico e não permitir a
utilização dos seus gâmetas sem o seu consentimento (que, na lei britânica, era
livremente revogável).
Para ambos, a base legal invocada foi o art. 8.º CEDH (Reserva da Vida
Privada e Familiar), que o TEDH entendeu abranger amplamente os aspetos da
identidade física e psicológica do indivíduo, incluindo o direito de ser respeitada
a decisão de constituir família, como de não constituir.
O Tribunal entendeu que a lei britânica (Human Fertilisation and Embryology
Act 1990), segundo a qual os gâmetas não poderiam ser usados sem o
consentimento do dador, não era diretamente contrária ao Direito à Reserva da
Vida Privada do art. 8.º CEDH, reconhecendo no entanto, que os interesses
invocados por ambas as partes eram legítimos e consistentes com o art. 8.º da
Convenção. Reconhecendo também haver uma lesão mais intensiva no caso da
parceira, dado ser esta que acarretaria o maior dispêndio físico e emocional com
o processo de IVF, bem como a situação de patente desigualdade que estaria em
relação, dada a sua infertilidade (que levou a que invocasse a Proibição de
Discriminação – art. 14.º CEDH).
Devido à sensibilidade da situação, e à variabilidade de regimes legais entre
Estados e ao facto de não existir solução que não frustrasse os legítimos
interesses de uma das partes, o TEDH entendeu que, dentro dos limites da
dignidade humana, deveria ser dada discricionariedade de decisão aos Estados
do regime aplicável, sendo que a aplicação do lei britânica se justificaria
também por interesses públicos, como a segurança jurídica, evitando a
arbitrariedade.
Ø Caso Gaughran c. Reino Unido: Caso inserido no âmbito do Direito à
Identidade e Intimidade Genética na vertente da autodeterminação de dados
genéticos e biométricos (ambos dados sensíveis), bem como a Reserva da
Vida Privada – sendo, quer a informação genética, quer a informação
biométrica, dados sensíveis inseridos na esfera da “vida íntima”, que é abrangida
pelo âmbito do art. 8.º CEDH.
Neste caso, um cidadão sentenciado por crimes de baixa gravidade foi sujeito à
retenção por tempo indefinido do seu perfil de ADN, impressões digitais e foto.
A natureza sensível destes dados exige uma tutela mais forte (neste caso, tivesse
ocorrido hoje e em Portugal, seria aplicável o RGPD + Lei 58/2019, que exige
um prazo de preservação associado à finalidade – quando a finalidade da
retenção de dados já não se aplicar, os dados devem ser eliminados. Sendo que o
titular dos dados tem o direito a aceder e pedir a revisão dos mesmos.
As autoridades britânicas argumentaram que a retenção indefinida destes dados
era justificável à luz do Princípio da Proporcionalidade, por ser adequada e
necessária no combate à reincidência criminal e celeridade da investigação. No
entanto, o tribunal considerou que o regime legal não tinha em conta a gravidade
do crime, nem fornecia meios adequados para requerer a revisão ou eliminação
dos dados.
Note-se que, no caso da informação genética, a limitação à sua retenção por
autoridades públicas é ainda mais limitada do que para dados biométricos (no
direito nacional, o 7.º/2 Lei 12/2005, sobre a Informação Genética e de Saúde,

Hugo Almeida 66
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

remete o regime das “Bases de Dados Genéticos” para a lei de proteção de dados
– atualmente, RPGD e lei 59/2019).

Previsão da Reserva da Vida Privada no ordenamento nacional

- Previsão na CRP:
Ø Art. 25.º/1: inviolabilidade da integridade física e moral.
Parte da doutrina entende que a integridade física e moral pressupõe o respeito
pela individualidade física e moral e pelas decisões dos indivíduos nessas
dimensões.

Ø Art. 26.º/2: “(livre)27 desenvolvimento da personalidade” e “reserva da vida


privada e familiar”;
v Tem-se entendido que o livre desenvolvimento da personalidade e a reserva da
vida privada são, respetivamente, a projeção dinâmica (no sentido da liberdade
de decisão, de desenvolver e modificar livremente aspetos que se reconduzem à
pessoa, como dados pessoais, convicções, - as “facetas da personalidade que o
indivíduo venha a desenvolver”) e a projeção estática (no sentido de proteção
da informação, privacidade e decisões, passadas e presentes do indivíduo –
proteção do indivíduo como ele é hoje, bem como a sua honra e imagem).
v NB: Apesar do legislador apenas nominar a “vida privada”, deve considerar-se
que o direito do art. 26.º/3 protege, quer a esfera privada, quer a esfera íntima
por ela abrangida. No que toca à proteção de dados (art. 35.º), tal significada que
abrange, quer a proteção de dados pessoais (esfera privada), quer a proteção de
dados sensíveis (esfera íntima)

Ø Artigo 26.º/3: A proteção da Identidade e Intimidade Genética está incluída na


esfera de proteção da vida íntima. No que toca à proteção dos dados genéticos,
enquanto dados sensíveis, bem ao respeito pela autodeterminação informacional
genética e o respeito pelos comportamentos (direito de acesso e direito de não
ser informado) e, por consequência de serem dados geracionais, também engloba
a reserva da vida familiar.

Ø Artigo 26.º/2: proteção contra a obtenção e utilização abusivas de


informações relativas às pessoas e famílias (tutela da esfera privada e familiar,
bem como do bom-nome e reputação e do anonimato e vida em relação
familiar).
Ø Artigo 34.º: Inviolabilidade de domicílio e de correspondência (bem como
outros meios de comunicação privada) – respeito do anonimato e domicílio
como “último reduto de privacidade”. – (exemplo de “direito menor”/de
garantia).

27
Entende-se que a falta do adjetivo “livre” na previsão do Direito ao Livre Desenvolvimento da
Personalidade (projeção estática da Reserva da Vida Privada) trata-se de uma omissão do legislador, não
se podendo extrair dela qualquer significado.

Hugo Almeida 67
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Ø Artigo 41.º: Liberdade de consciência – está incluído, segundo Gomes


Canotilho e Vital Moreira, no conceito constitucional de esfera privada partindo
do conceito de dignidade humana.
- Previsão infraconstitucional:
Ø Artigo 80.º CC: no Direito Civil, o direito à reserva sobre a intimidade da vida
privada, desdobara-se numa quantidade ilimitada e ilimitável de direitos. Neste
contexto trata-se, não de um Direito Fundamental, mas de um Direito de
Personalidade, com interseção entre a tutela civil e constitucional.
Contextualização: do ‘Right to Be Let Alone’ até à Autodeterminação Informacional
De onde surgiu a ideia da reserva da vida privada? Existem duas vertentes/linhas
argumentativas, que alicerçam as formas de proteção privada que existem hoje, uma
vinda dos EUA no século XIX e outra da Alemanha na década de 70.
EUA (século XIX) - The Right to be let alone:
O “right to be let alone” é uma formulação da autoria de Warren e Louis Brandeis,
numa publicação de 1890, descrito como “the most valued by civilized men”. A
implicação máxima deste direito é o “direito a um último reduto de privacidade” ou a
um “espaço vital” onde cada indivíduo se possa sentir livre de indiscrição ou ingerência
alheia.
• Desde a sua formulação e desenvolvimento jurisprudencial no contexto norte-
americano, como resposta ao surgimento das “snapshot photographies28”, este
direito foi sendo entendido como, protegendo, quer contra a ingerência de
autoridades públicas, quer de terceiros particulares sobre a esfera do particular
(eficácia horizontal e vertical, que os autores previram ab initio, mas que, na
nossa ordem constitucional, por força do art. 18.º/1 CRP, existiria sempre).
Apesar da sua eficácia horizontal, este direito na sua primeira aceção era de 1.ª
Geração e refletia uma conceção clássico-liberal, focada na primazia do
indivíduo (e, por extensão, da sua família), a não ingerência na sua vida e o
respeito pelas suas escolhas.
• Foi também entendida como uma proteção para além do contexto da mera
“solidão física” (proteção dos aspetos físicos da pessoa, como imagem
capturada, objetos pessoais, tutela do corpo e da integridade física, quer em vida,
quer post mortem, ou a inviolabilidade física do domicílio e correspondência),
mas incluindo também os aspetos não físicos da individualidade (como a
honra, o recato, a consciência e convicções pessoais – incluindo religiosas, a
liberdade e respeito pelas escolhas e opções individuais, e a sua integridade e
identidade no meio familiar e social, direito ao segredo).

28
Fotos tiradas sem o consentimento do fotografado. Atualmente são outras as questões que provocam
discussões na problemática da autolimitação do direito à reserva da vida privada, como exposição nas
redes sociais, participação em reality shows, contratos que conferem direitos de imagem sobre um
indivíduo por longos períodos de tempo, etc.

Hugo Almeida 68
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

è É um redoma que abrange várias manifestações da individualidade. É


impossível enumerar a priori todas as situações abrangidas por este direito e,
com a evolução da vida social, a sua tutela expandir-se-á.
N.b. Apesar deste direito, substancialmente, corresponder hoje ao DF plasmado no art.
26.º/1, Warren e Brandeis utilizaram a expressão “Privacidade” e não “Reserva da Vida
Privada” como sinónimo para o right to be let alone. Este termo só surge associado à
Teoria dos 3 Círculos Concêntricos de Hubmann
Alemanha (2.ª metade do s. XX, em especial anos 70)
Com a informatização, quer da economia, quer da burocracia do Estado, a escala do
tratamento de dados, muitas vezes altamente personalizado (p.ex. algoritmos
publicitários e criação de perfis, “data leakgages”, tratamento de dados na adesão a
serviços, transações, procedimentos administrativos, etc.). É um DF com um escopo
muito mais circunscrito que a Reserva da Vida Privada29. É o chamado direito à
privacidade (ou autodeterminação) informacional.
Tem previsão constitucional no art. 35.º CRP, infraconstitucional na Lei n.º67/98
(entretanto revogada pela Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto que transpõe e densifica o
regime do RGPD) e comunitária no Regulamento Geral de Proteção de Dados
[Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de maio de 2016, entrando em vigor em maio
de 2018].
Teoria das 3 Esferas Concêntricas de Heinrich Hubmann
i) vida íntima;
ii) vida privada;
iii) vida pública;
Todas as situações protegidas pela vida íntima são, simultaneamente, protegidas pela
vida privada. A esfera da intimidade é a mais central e com maior proteção.
A Reserva da Vida Privada: Direitos Instrumentais e Conteúdo
O direito à reserva da intimidade da vida privada pode abranger:
a) direito à integridade intelectual:
liberdade de pensamento e de expressão – art. 37.º CRP
liberdade de criação científica ou artística – art. 42.º CRP
b) direito à integridade moral:
liberdade civil, política (direitos políticos e civis) e religiosa (art. 41.º CRP),
direito à honra - art. 26.º/1 CRP)
recato
segredo pessoal,
imagem - art. 26.º/1 CRP
identidade pessoal, familiar e social

29
Podendo-se, no entanto, considerar que já está nele incluído. I.e., o DF à Proteção de Dados como
resulta do art. 35.º CRP decorreria do art. 26.º/1.

Hugo Almeida 69
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Ou, noutra formulação:


- O direito à proteção da integridade física (da vida e da liberdade/integridade física) -
incluindo a tutela post-mortem da integridade física, no direito de escolha do destino do
corpo após a morte;
- O direito à proteção da individualidade não física (proteção da honra, da reputação,
da imagem, dos direitos de autor, do segredo/sigilo).
Neste sentido, a vida privada corresponde a um conjunto de atuações, atividades,
situações e comportamentos individuais que não fazem parte da vida pública, estando
unicamente ligados à vida pessoal e familiar do indivíduo. Esta definição, na qual a
vida privada é demarcada pela negativa perante a vida pública e tomando por
referência o indivíduo e a família, advém do Parecer 120/80 da CCPGR (Conselho
Consultivo da Procuradoria Geral da República).
• Trata-se de uma mera cláusula geral, dado que uma enumeração completa
através dum elenco taxativo seria impossível (até porque os avanços sociais e
tecnológicos constantemente revelam novas dimensões de necessidade de tutela
da vida privada).
Outras noções doutrinárias de reserva da vida privada:
Pierre Kayser – a reserva da vida privada abrange tudo aquilo que afeta o corpo,
acontecimentos da vida privada e familiar, património, opiniões políticas, filosóficas e
religiosas, bem como a inviolabilidade do domicílio e da correspondência.
Luis Fariñas Matoni – procede a uma distinção dos aspetos relacionados com:
● O cidadão em si mesmo
1. com referência ao passado: direito ao esquecimento/segredo das
recordações pessoais;
2. com referência ao presente: aspetos corporais (dados sobre a saúde) e
aspetos não corporais (imagem, identidade, dados pessoais, objetos
pessoais);
3. com referência ao futuro (planos ou projetos de futuro).
● O cidadão nas suas relações com outros - intimidade compartilhada/ ameaçada
por outros (terceiros ou Estado).
Em Itália – distinguem-se 4 esferas concêntricas que abrangem a intimidade e a vida
privada:
● Solidão - suscetibilidade de evitar o contacto físico com terceiros;
● Intimidade - suscetibilidade de apenas estabelecer contactos com grupos
reduzidos);
● Anonimato - garantia da liberdade do indivíduo em permanecer anónimo, ainda
que exposto a contactos;
● Reserva em sentido estrito – possibilidade de banir intromissões indesejadas.
Em Portugal – de acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, o conceito
constitucional de esfera privada parte necessariamente do conceito de dignidade
humana, e abrange o respeito pelos comportamentos (escolhas), respeito pelo

Hugo Almeida 70
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

anonimato, respeito pela vida em relação e pela liberdade de consciência. Esta


densificação do Direito de Reserva da Vida Privada, intersecta e tem como direitos
menores os direitos à Honra, Imagem, Reputação e Bom Nome, havendo uma
concorrência de direitos.
Estes autores defendem que o conceito constitucional da vida privada, apesar de ser uma
derivação da Dignidade Humana (art. 1.º CRP), tem como finalidade a proteção da
Liberdade. Veremos como a ideia de proteção da liberdade se reflete na previsão
constitucional dos DF que protegem a reserva de vida privada.
Na atualidade, surgem sucessivamente novo âmbitos de proteção normativa e novos
meios de violação – recolha de dados genéticos; dados de localização e de tráfego (GPS
e em aplicações); dados biométricos; reformulação do conceito de inviolabilidade de
correspondência; categorias específicas de dados pessoais (bancos de dados médicos,
dados de investigação científica e dados estatísticos, dados utilizados para fins de
“direct marketing”); videovigilância em espaços públicos e em condomínios, por razões
de segurança, etc.
Ø Perante estes novos meios de violação, o desafio está em compreender onde se
traça a linha de fronteira entre aquilo que permitimos e não permitimos. A
grande discussão reside em perceber se tudo isto se trata, nas palavras do
Professor Dr. Carneiro da Frada, de “vinho novo em odres velhos” e se as
atuais normas da proteção da vida privada são suficientes face aos mesmos, ou
se será necessário uma verdadeira atualização das regras existentes para fazer
face a estas novas circunstâncias.
Há uma responsabilidade de cada um de nós de procurar proteger a própria privacidade.
A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) disse, em 2004, num parecer em
que estava em causa a instalação de câmaras de videovigilância numa creche, que se
devia evitar a “habituação ou aceitação natural da sujeição a tal modo de
controlo”. Revela-se uma preocupação pedagógica - a “educação para a privacidade” é,
por isso, fundamental para que não se normalize a sua violação.
Cada vez mais a privacidade é um bem raro e difícil de assegurar, ao passo que os dados
pessoais têm um valor económico que crescerá exponencialmente (e.g. algoritmos).
Coloca-se o problema de saber quem é que tem dados sobre cada um de nós. O “poder
de ver quem nos vê” tem sido entendido como uma garantia da viabilidade do “right to
be let alone” e da transparência informacional. O desafio hoje está em exigir mais
transparência sobre o tratamento de dados e legitimação processual (legitimação
processual esta que foi sendo assegurada pelos pareceres da CNPD, até, a partir de
2019, o RGPD e a Lei 59/2019 estabelecerem novos procedimentos de proteção de
dados).
Recapitulando, podemos entender a evolução da proteção jurídica da privacidade em 3
eras: i)
i) O surgimento, no século XIX, do Right to be let alone, E associada à ideia de
privacidade comportamental;

Hugo Almeida 71
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

ii) Na 2.ª metade do século XX, o Dataschutz (alemão para “proteção de dados”) surge
com o advento dos dados informatizados, mas é uma proteção generalizada a todos os
dados, informatizados ou não);
iii) estamos agora numa 3.ª era, do Risco tecnológico web 2.0./3.0., em que se fala
dum Direito à Integridade informacional, e os riscos estão associados a algoritmos,
inteligência artificial, redes sociais e formas menos controláveis de tratamento dos
dados pessoais.
Adotamos a posição de que a privacidade informacional é instrumental/adjetiva30 à
privacidade comportamental e que esta tem o seu fundamento último na liberdade e no
right to be let alone, que formam a base da Reserva da Vida Privada.
Ø Em caso de conflito, deve prevalecer a Privacidade Comportamental (Reserva da
Vida Privada) sobre a Privacidade Informacional.

Proteção de dados pessoais


Formam uma parte menor daquilo que é a reserva da vida privada. Hoje em dia,
erradamente, muitos pensam que apenas dizem respeito às questão do software, dos
algoritmos, da privacidade, etc. Mas é muito mais do que isso na realidade, sendo
necessária uma delimitação da sua abrangência:
● Dados pessoais (existem várias definições, e.g. art. 4.º RGPD, mas entendem-se
como os dados referentes à esfera privada, mais alargada que a esfera íntima).
● Dados sensíveis (a partir do RGPD são chamados “dados especiais”, mas no
âmbito desta UC mantemos a designação “dados sensíveis”).
1. Dados genéticos (já estudamos, Cf. DUDGH)
2. Dados biométricos (ex: impressões digitais, reconhecimento facial,
reconhecimento da íris).
Ø Biometria significa utilizar características mensuráveis do corpo como meio de
identificação (biometria estática – reconhecimento facial; biometria dinâmica
– modo de teclar no computador).
Dados pessoais
Ø CRP: 35º - Utilização da Informática.
• É originário da CRP de 1976 e deve ser visto em conjunto com par do artigo 26º.
Critica-se a escolha epígrafe “Utilização Informática”, pois o que está em causa
verdadeiramente é uma proteção de todos os dados pessoais, físicos e
informatizados.
Ø N.º1: Direito dos cidadãos ao acesso aos dados informatizados que lhes digam
respeito;
Direito de retificação e atualização dos mesmos;
Direito de conhecer a finalidade a que se destinam (é uma garantia do
Princípio da Finalidade, poder conhecer a finalidade é importante, porque
frequentemente damos os nossos dados sem nos apercebemos que estão a ser
usados para fins inesperados, p.ex., ao aderirmos a um cartão da farmácia com

30
Em semelhança a como a Intimidade Genética é instrumental à Identidade Genética.

Hugo Almeida 72
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

os medicamentos consumidos, para ter acesso a descontos, alguém que tenha


acesso poderá perceber, pelas doenças registadas, que é uma pessoa mais frágil
e, por isso, mais sujeita a burlas).
Ø N.º2: Remete o conceito de dados pessoais e as suas condições de tratamento,
conexão, transmissão e utilização, para a lei ordinária (que só surge em 1991,
com a Lei n.º 10/91 – até esta lei havia uma inconstitucionalidade por omissão);
Ø N.º3: Proíbe-se a utilização dos dados informáticos referentes às convicções
filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada
ou origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização
prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de
dados estatísticos não individualmente identificáveis (só nestas situações é
permitido o tratamento destas categorias de dados).
Ø N.º4: Proíbe-se o acesso a dados pessoais de terceiros, como regra geral;
Ø N.º7: Cláusula de equiparação a dados não informatizados.
Para além desta previsão constitucional, fomos sendo recetáculo de 3 gerações de
Diretivas Europeias: i) diretiva 95/46/CE; ii) diretiva 2002/58/CE; iii) diretiva
2006/24/CE, que obrigavam à transposição pelos EM para a o ordenamento jurídico
interno31.
• Esta primeira diretiva foi transposta em Portugal pela Lei 67/98, de 26 de
outubro, a antiga “Lei de Proteção de Dados Informatizados”, que cria a
Comissão Nacional de Dados Pessoais Informatizados. Antes disso vigorava a já
aludida Lei n.º 10/91.
Esta onda de previsão normativa comunitária culminou a 4/04/2016, com a publicação
do RGPD, que revoga a diretiva de 1995, e aplica-se, com força obrigatória e geral a
todos os Estados-Membros.
Ø O RGPD (Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27
de abril de 2016) tinha um período transitório de 2 anos, tornando-se totalmente
operacional a partir de 25 de Maio de 2018.
• A partir desta data, a fonte normativa passa a ser o RGPD a lei de execução -
Lei n.º58/2019, de 8 de agosto. Tornam-se regime jurídico fundamental
aplicável em matéria de proteção de dados, em Portugal
Com o novo regime de proteção de dados surgiram questões sobre situações
transitórias. Relações jurídicas nas quais já havia um tratamento de dados pré-
existentes anterior à entrada em vigor do RGPD. Estas situações são reguladas pelo art.
60.º da Lei n.º58/2019.
• Todos as notificações e pedidos de autorização já decididos pela CNPD
tornam-se caso julgado. Já os processos pendentes caducam.

31
Antes destas diretivas: a Convenção 108 de 1981, do Parlamento Europeu, e Comissão para o
enquadramento das novas tecnologias em 1982: informática e procriação medicamente assistida.

Hugo Almeida 73
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

O RGPD estabelece uma série de novas disposições:


a) Direitos
Ø Consentimento expresso (art. 7.º RGPD)
Ø Direito ao esquecimento (art. 17.º RGPD) e direito de portabilidade (art. 20.º
RGPD);
b) Obrigações:
Ø Muda a forma de olhar para os dados pessoais, passa-se do paradigma privacy
by design para a privacy by default (art. 25.º RGPD: Proteção de dados desde a
conceção e por defeito): Qualquer sistema deve estar, desde o momento da sua
conceção, desenhado para proteger a privacidade. Isto implica que as empresas
devem recolher o mínimo de dados necessários, limitando ao tratamento dos
dados necessários para as finalidades específicas e somente dos dados para os
quais foi prestado consentimento expresso.
É uma obrigação do responsável pelo tratamento (art. 24.º RGPD). (Esta foi a
razão pela qual, a partir de 2018, foi necessário dar informar sobre a nova
política de privacidade e obter consentimento dos utilizadores, para continuar a
usar muitos serviços).
Ø Proibição de perfis (artigo 22.º RGPD) – não se pode criar um perfil
automatizado de determinada pessoa. Salvo nas situações previstas no n.º2
(quando é necessário para a execução do contrato entre o titular dos dados e o
responsável pelo tratamento; por autorização legal – devendo nesse caso estar
previstas medidas adequadas para salvaguardar os direitos e interesses legítimos
do titular; havendo consentimento explícito do titular dos dados).
Ø One Stop Shops: Deve existir uma entidade única que se possa comunicar para
obter informações sobre o tratamento de dados, em vez de ter que contactar as
“delegações” dos vários países (p.ex., se der dados a uma multinacional, esses
dados poderão estar a ser tratados pela filial de outro país). Pressupõe a criação
de um Balcão Único de Atendimento para resolver litígios transfronteiriços na
UE relacionados com o tratamento de dados pessoais (previsto nos arts. 127.º e
128.º RPGD.
Ø Hard Law e Soft law – Para além das normas preceptivas do Regulamento (hard
law), procede-se à criação de códigos de boas práticas/conduta (soft law –
artigos 40.º e seguintes RGPD) dirigidos às entidades como proceder em
determinadas matérias, sem vinculatividade ou sanções pelo incumprimento.

c) Responsabilidade e sanções:

Ø Sistema de Accountability, substituindo o antigo sistema de controlo prévio


(através de pedidos dirigidos à CNPD). Passa a haver autorregulação das
entidades tratadoras de dados, o que pressupôs uma revisão de todos os contratos
com entidades parceiras e fornecedoras (mesmo fora da UE, onde o RGPD não
vigora) e, em virtude dessa responsabilidade pela informação, independente do
controlo prévio, houve um agravamento substancial das coimas (até 4% da
faturação anual global ou até 20 000 000€);

Hugo Almeida 74
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Ø Cabe às entidades que fazem tratamento de dados, realizar um Privacy Impact


Assessment (PIA) – uma descrição geral das operações de tratamento,
juntamente com uma avaliação prévia dos riscos ou impactos a direitos,
liberdades e garantias, que podem surgir daquele tratamento de dados, medidas
para fazer face aos riscos, bem como a conformidade do tratamento com as
normas do Regulamento.
• Art. 29.º da Lei n.º 59/2019 (Avaliação de impacto): no caso de um tipo de
tratamento representar um elevado risco para os DLG das pessoas, o responsável
pelo mesmo deve efetuar uma avaliação de impacto antes de lhe dar início.

Ø Notificações obrigatórias à CNPD em situações de data breaches - violações de


dados pessoais. As data breaches devem ser comunicadas internamente a um
encarregado de proteção de dados (Data Protection Officer), que decidirá,
com base na suscetibilidade do perigo, se é necessária a intervenção da CNPD.

• Com o RGPD, as entidades de controle (como a CNDP) passam a ter uma


intervenção de ultima ratio.
Ø Data protection officers ou encarregado de proteção de dados (artigos 37.º,
38.º e 39.º RGPD): O encarregado de proteção de dados designado pode ser (i)
um responsável pelo tratamento (quem decide quais dados devem ser
processados, bem como o fim e os meios do seu tratamento - controller) ou um
subcontratante (externo à entidade que realiza o tratamento dos dados-
processor).
O que são dados pessoais?
Artigo 4º RGPD (Definições)
Ø Nº1 – “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável
[“titular de dados”], (...), por referência a um identificador, como por exemplo
um nome, número de identificação, dados de localização, identificadores por via
eletrónica ou um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica,
genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”,
Ø Nº2 – define o que é uma operação de tratamento de dados (“operação ou
conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais, por meios automatizados
ou não”, elenco exemplificativo: recolha, consulta, divulgação, utilização,
apagamento,...)
• Muitas vezes, achamos que as ameaça só vêm das operações de tratamento
positivo de dados (recolha, etc.), e esquecemo-nos das operações negativas
(ex: se a FDUP apagasse todos os dados relativos às classificações dos alunos).
• N.º 13 “Dados genéticos”
• N.º 14 “Dados biométricos” – “tratamento único relativo a características
físicas, fisiológica ou comportamentais (…) que confirmem a identificação única
dessa pessoa singular”
• N.º 15 “Dados relativos a saúde” – dados relacionados com a saúde física ou
mental de uma pessoa, incluindo a prestação de serviços de saúde.

Hugo Almeida 75
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

A previsão do RGPD é muito abrangente, quase qualquer informação pode ser


considerada “dados pessoais” e qualquer operação sobre estes “tratamento de dados”.
Condições de licitude do tratamento a partir do RGPD:
Cf. Arts. 5.º (Princípios relativos ao tratamento de dados) e 6.º (Condições de licitude
do tratamento)
Ø Consentimento expresso (art. 7.º RGPD) – manifestação livre, específica,
informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração
ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe digam respeito sejam
objeto de tratamento.
• Antes do RGPD, admitia-se o consentimento tácito.
• O direito de retirada do consentimento (art. 7.º/3), que deve ser tão fácil como
a prestação do consentimento¸ não compromete a licitude do tratamento
efetuado até então.
• Exige-se um tratamento lícito, leal e transparente (art. 5.º al. a))
Ø Limitação das finalidade (al. b): As operações de tratamento servem para
finalidades determinadas, expressas e legítimas. São ilícitas todas as
operações de tratamento sem finalidades determinadas ou legítimas. Cf. Artigo
89.º/1 RPGD.
Ø Minimização dos dados (al. c): concretização dos princípios da
proporcionalidade e da finalidade. Os dados exigidos devem ser adequados,
pertinentes e não excessivos.
Ø Exatidão (al. d) : devem ser adotas medidas para que dados inexatos sejam
retificados (direito de retificação resulta do art. 35.º/1 CRP e 176.º RGPD) ou
apagados (art. 17.º RGPD).
Ø Limitação da conservação: O prazo de conservação dos dados pessoais liga-se à
finalidade. Este prazo deve ser o mínimo possível atendendo aos fins que os
dados servem, cabendo à entidade estabelecer prazos para o apagamento ou
revisão dos dados conservadores. (al. e) do art. 5.º - excecionalmente, podem ser
conservados por períodos mais longos, por motivos estatísticos, de arquivo ou
interesse público.
Ø Integridade e confidencialidade (al. f): Devem ser tomadas as medidas para
proteger os dados pessoais do acesso indevido por terceiros, bem como contra
operações negativas (destruição, modificação dos dados, que afetam a sua
integridade).
Ø Responsabilidade (5.º/2 RGPD): É uma manifestação da já referida
autorregulação - cabe à própria entidade assegurar que o tratamento de dados é
conforme o Regulamento.
Direitos que têm os titulares dos dados:
Ø Direito de (à) informação: o já referido “poder ver aqueles que nos vêm”,
saber quem tem dados sobre nós. Também no momento da recolha dos dados, o
titular deve ser informado sobre a natureza do tratamento;
Ø Direito de acesso (art. 15.º RGPD): o titular tem direito a aceder aos seus dados,
saber a que tratamento foram sujeitos e por quem, a finalidade, os destinatários a
quem foram divulgados/comunicados.

Hugo Almeida 76
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Ø Direito de oposição (art. 21.º RGPD): direito do titular dos dados a não permitir
que os seus dados sejam usados para determinadas operações de tratamento.
Inclui o direito a opor-se a decisões tomadas exclusivamente com base em perfis
automatizados (art. 22.º RPGD);
Ø Direito ao esquecimento/apagamento dos dados (art. 18.º RGPD): é introduzido
ex novo pelo RGPD, pelo que suscitou muita discussão;
• Quando é que existe?
i) Os dados deixam de ser necessários para a finalidade que
motivou a recolha ou tratamento;
ii) O titular retira o consentimento;
iii) O titular opõe-se ao tratamento e não existem interesses
legítimos prevalecentes que o justificam;
iv) Os dados foram tratados ilicitamente;
v) Os dados têm de ser apagados para o cumprimento de uma
obrigação jurídica;
Ø Direito de retificação (art. 17.º RGPD)
Ø Direito de portabilidade (art. 20.º RGPD): direito de receber os dados pessoais
que tenham sido fornecidos a um responsável pelo tratamento, num formato
estruturado, de uso corrente e de leitura automática, bem como o direito a
transmitir esses dados a outro responsável.
O artigo 23.º RGPD fornece um elenco exemplificativo das situações em que estes
direitos podem ser limitados (p.ex., segurança pública e do Estado, independência
judiciária, defesa dos direitos e liberdades de outrem), exige-se que “respeite a essência
dos direitos e liberdades fundamentais e constitua uma medida necessária e
proporcionada” para assegurar outros direitos ou interesses (requisitos idênticos aos
termos gerais do artigo 18.º para a restrição de DLG).
Órgãos de garantia destes direitos:
• Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida;
• Comissão Nacional de Proteção de Dados;
• Comissão de Ética
Surge novamente a problemática, que já vimos na proteção internacional de DF, que a
proliferação de textos normativos e instâncias de garantia, pode causar problemas de
articulação e saber qual o órgão a dirigir-se em cada situação.
Artigo 9.º RGPD (Categorias especiais de dados)
• Proibição de tratamento de dados que revelam a origem racial, convicções
políticas, religiosas, filosóficas, filiação sindical (…) dados genéticos,
biométricos (…) relativos à orientação sexual de uma pessoa. (análogo ao elenco
previsto no art. 35.º/4 CRP – são as chamadas “categorias especiais” ou “dados
sensíveis”, há uma grande elasticidade da noção de dados sensíveis). O n.º2 do
artigo 9.º RGPD prevê exceções.
• No âmbito da anterior lei da proteção de dados - Lei n.º 67/98 (art. 7.º, o
tratamento destes “dados sensíveis” só era permitido mediante disposição legal
ou autorização da CNPD).

Hugo Almeida 77
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• Atualmente: art. 6.º Lei n.º 59/219 (Tratamento de categorias especiais de


dados)

Capítulo III – Direito à Saúde


Pressupostos

A saúde e o corpo humano

Definição de “saúde”, presente no §.1 da Constituição da OMS em 1946: “Completo


estado de bem-estar físico, psíquico e social, e não apenas a ausência de doença ou
efemeridade”. É uma definição abrangente e pela positiva de saúde. No dever do
Estado de promover a saúde está inserida, não só o tratamento da doença, mas todos os
atos salutogénicos - promoção do bem estar físico, ambiental, mental e espiritual e os
entrelaçamentos da saúde com a educação para a prevenção, condições de trabalho e o
dever de cada cidadão de promover a saúde (que decorre do nosso artigo 64.º/1 CRP in
fine). No §.2 está previsto que “a fruição do mais elevado padrão de saúde é um direito
fundamental de todo ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político,
de condição económica ou social.”. Trata-se de uma garantia específica da não-
discriminação no acesso e fruição da saúde, que entre nós resultaria sempre do
princípio da igualdade (art. 13.º/2 CRP), aplicável a todo direito fundamental.

Por adotarmos um conceito amplo de saúde, será também abrangente o conceito de


tratamento e de ato médico.

• A Lei de Bases da Saúde - Lei n.º 48/90 determina que o conceito de “ato
médico” é definido na lei. Porém, nunca chegou a ser legalmente definido.
Atualmente, devido à crescente tendência para o reconhecimento da
multidisciplinaridade do trabalho hospital, tem-se falado menos em atos e
responsabilidade médica, mas em “cuidados de saúde”, que incluem a atuação,
não só de médicos, mas também enfermeiros e funcionários. Na mesma linha, já
não se fala de “erro médico”, mas “erro na medicina” e em responsabilidade por
danos em saúde.
• O artigo 6.º do Regulamento n.º 698/2019, de 5 de setembro, normativo com o
valor de regulamento interno, da Ordem dos Médicos, contem uma definição de
ato médico que inclui, não só o tratamento, diagnóstico, prognose, perícias e
execução de técnicas médicas, mas também a promoção da saúde física, mental
e social de pessoas e grupos, a prevenção e a investigação e educação para a
saúde.
• A relação entre o “tratamento médico” e o consentimento na exclusão da
ilicitude das intervenções médicas (que são, ilícitos de ofensas à integridade
física, caso não haja consentimento livre e informado do lesado) será
aprofundada neste capítulo. Bem como a objetivação da responsabilidade por
“danos em saúde” e a relevância de tratamentos puramente estéticos enquanto
tratamentos médicos.

Hugo Almeida 78
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Evolução do papel do Estado na promoção da saúde até ao “Direito Social” de Proteção


da Saúde

Começando por ser uma preocupação meramente local nas sociedades antigas, assistiu-
se a uma progressiva institucionalização no Império Romano e garantia da saúde
pública através de infraestruturas como banhos públicos e inspeções de saneamento.

Com a Idade Média a prestação da saúde passou a pertencer primariamente às ordens


religiosas. Surgiu progressivamente uma conceção individualista da saúde, que atingiu
o seu auge no Estado Liberal, no qual a Saúde era visto sobretudo na ótica da não
ingerência do Estado (vertente negativa) na integridade física e psíquica dos cidadãos.
A intervenção do Estado, longe de ser prestativa, estava sobretudo limitada a uma
Administração de Saúde Agressiva, através de intervenções pontuais e agressivas,
como a imposição de quarentenas.

Com o Estado Social de Direito, após a 1.ª Guerra Mundial, a Saúde Pública passou a
ser vista como um bem comunitário (e não somente individual), cuja promoção ativa e
proteção cabia ao Estado:

• art. 25.º DUDH (1948) - direito de cada pessoa ao nível de vida suficiente para
assegurar a si e à sua família saúde e bem estar, direito à segurança na doença e
invalidez.
• art. 12.º PIDESC (1966) - diminuição da mortalidade materna e infantil;
melhoramento da higiene do meio ambiente e industrial; profilaxia, tratamento e
controlo das doenças epidémicas, endémicas.

À Administração Agressiva vem juntar-se a Administração Prestadora, para esta foi


necessária uma estrutura organizativa para providenciar de forma universal estes
direitos.

As dimensões do “Direito à Proteção da Saúde” e a interseção com o “Direito da Saúde”

Apesar da expressão “Direito à Saúde” não constar da CRP, existe um DESC à


Proteção da Saúde, previsto no art. 64.º CRP. Este artigo prevê um direito subjetivo
“à proteção da saúde” , juntamente com um dever de proteção e promoção da saúde,
ambos de âmbito universal (art. 12.º e 13.º CRP/princípios da Universalidade e
Igualdade).

• Na sua totalidade, o Direito à Saúde, deve ser entendido, não só pela vertente
positiva, como DESC, um direito a prestações que surge no Estado Social. Mas
também na vertente negativa, como direito de natureza análoga a um DLG
(aplica-se o art. 17.º CRP) de defesa contra a intervenção do Estado e terceiros
privados na integridade pessoal (art. 25.º CRP).
• Acresce-se uma dimensão comunitária, como garantia do DF à Proteção da
Saúde. Esta incluí um serviço nacional de saúde universal e geral e
tendencialmente gratuito (”tendo em conta as condições económicas e sociais
dos cidadãos”) - n.º2 al. a), e a criação de condições económicas, sociais e
ambientais, que incluem a promoção de práticas saudáveis, da educação, cultura
física e desportiva (art. 79.º CRP), melhoria das condições de trabalho (Cf. art.

Hugo Almeida 79
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59.º al. c) - saúde e higiene como direitos dos trabalhadores, bem como dos
consumidores - art 60.º/1 CRP).
• A dimensão comunitária inclui as incumbências do Estado para a assegurar o
direito à proteção da saúde (art. 64.º/3) , v.g.: o acesso universal independente
de condições económicas (gratuitidade tendencial, e.g. isenção de taxas
moderadoras), cobertura de todo país/alocação eficiente de recursos,
complementaridade de sistemas (SNS e privados) - articulação com instituições
privadas, etc.
• A saúde (pública) é um interesse público, que todos os cidadãos, individual ou
coletivamente (através de associações de defesa) podem proteger através do
direito de ação popular - art. 52.º/3 e 268.º/4 CRP + 58.º/2 CPA - garantia dos
administrados para defesa de interesses públicos. Garantindo-se a sua tutela
jurisdicional efetiva (art. 20.º CRP).

Já o Direito da Saúde (e o sub-ramo de Direito da Saúde Pública) é o ramo que inclui


toda a legislação em matéria de organização, estrutura e funcionamento do SNS e
articulação com privados, definição de ato médico, das técnicas e legis artis,
responsabilidade civil, penal e disciplinar por erros de medicina (onde se tem verificado
uma progressiva objetivização da responsabilidade, i.e., irrelevância da culpa do
profissional de saúde, o fundamento da responsabilidade é a indemnização do dano
provocado ao paciente), bem como questões de alocação de recursos hospitalares.

Resolução de conflitos e colisões com o “Direito à Saúde”

A dimensão comunitária (saúde pública como bem/interesse público


constitucionalmente protegido) pode entrar em colisão com a sua dimensão individual
(em especial, na vertente negativa), p.ex., em questões como a vacinação obrigatória,
há uma colisão entre a saúde pública e a integridade física e reserva da vida privada de
quem é vacinado contra a vontade. O critério, na harmonização e restrição de DF, é
sempre o da proporcionalidade e concordância prática, no entanto, havendo outros
princípios que assumem importância.

• Princípio da Subsidiariedade/Mínima Intervenção: O Direito (em especial o


Direito Penal que intervém apenas em ultima ratio) não deve tentar juridificar
todas as situações (muito menos proibir ou criminalizar). A intervenção da
esfera jurídica deve ser “limitada pelo princípio da dignidade da pessoa humana,
noções de ordem pública e bons costumes e pelas linhas traçadas pela ética”.
• Disponibilidade e Consentimento (sobre a lesão) para os bens jurídicos da
saúde. Adotando a definição de direito subjetivo de Menezes Cordeiro,
“permissão normativa específica de aproveitamento de um bem”, não há bem
mais essencial, ao qual a permissão normativa possa incidir, do que o próprio
corpo - o corpo humano como um objeto suis generis de direitos. Esta noção
compreende, quer uma liberdade negativa, de defesa contra ingerências ou
lesões não consentidas, mas também uma liberdade de autolimitação (dentro
dos limites impostos pela boa fé e ordem pública).
• Há limites do princípio da inviolabilidade da pessoa humana (decorrente, quer
do art. 24.º - “A vida humana é inviolável”), bem como princípios da dignidade
da pessoa humana e livre desenvolvimento da personalidade, que são o que
fundamenta, p.ex., que não seja válido o consentimento para um dano grave e
irreversível para o lesado. [A intervenção do Direito, em especial do Direito

Hugo Almeida 80
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Penal, difere para o valor da vida, dependendo tratar-se de uma auto ou


heterolesão consentida, motivo pela qual não existe penalização do suicídio,
mas já existe do incitamento, mesmo quando é consentido].
• Existe um espaço de racionalidade decisória, que implica necessariamente
consciência dos riscos e consequências dessas decisões e um consentimento
informado (parte da razão pela qual a questão do consentimento dos menores ou
incapazes de prestar consentimento informado requer atenção especial). A
autonomia, liberdade, responsabilidade e consciência são conceitos que
andam de mãos dadas.
• Ao respeitar essa liberdade de decisão, está-se a garantir a reserva da vida
privada (art. 24.º/1 CRP) na dimensão da integridade pessoal.

As problemáticas do “Direito da Saúde” estão hoje sobretudo nos espaços de


legitimidade de intervenção do Estado ou na margem do legislador para regular a
relação do sujeito consigo mesmo, limitando o livre exercício da racionalidade
deliberativa do indivíduo, em prol de considerações de conflito e colisão de direitos,
ético-sociais, de ordem pública ou para garantir que a vontade do paciente é consciente
e informada.

Estudamos 3 momentos onde ocorre intervenção do Estado:

I. O Direito à vida: a formação e desenvolvimento de um embrião;

II. O direito à integridade física, saúde e intimidade: a “vida do corpo humano”;

III. O “dano morte” e a escolha do momento da morte: direito à intimidade e dignidade


no fim da vida.

Integridade física e experimentação

No âmbito da legitimidade de intervenção estadual na integridade física dos cidadãos,


John Stuart Mill argumentava que esta só se existia em duas situações:

1. Para garantir que as escolhas são pautadas pela liberdade de consciência, -


assegurando que o indivíduo sabe o que está a decidir; como vimos, a liberdade
de consciência é um pressuposto da autonomia privada.
2. Quando a atuação do Estado esteja a salvaguardar os direitos de saúde de
terceiros e não apenas de um indivíduo.

A Integridade Física, enquanto DF (art. 25.º CRP), pode ser objeto de autolimitação
i.e., o “enfraquecimento” parcial voluntário pelo titular de um DF, p.ex., participação
em ensaios clínicos ou doação de órgãos em vivo. Na ótica da Teoria da Fórmula
Objeto de Durig, a autolimitação deve estar limitada por um mínimo de dignidade
humana objetiva, de que ninguém pode, nem autonomamente abdicar, p.ex. ninguém
pode escolher tornar-se escravo de outrem, renúncia do exercício, em situações como
nas Diretivas antecipadas da vontade e em especial a nomeação de um procurador de
cuidados de saúde, na qual o titular escolhe delegar o exercício - mas não a titularidade
- dos seus DF e autonomia decisória, ou até em situações como a recusa de uma
transfusão sanguínea devido a convicções religiosas.

Hugo Almeida 81
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Instrumentos internacionais: princípios da intervenção e experimentação médica em


seres humanos

Convenção de Oviedo (Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da


Dignidade Humana face às Aplicações da Biomedicina)

• Objetivo (art. 1.º CO): proteção do ser humano e da sua dignidade face às
aplicações da biologia e medicina.
• Primado do ser humano (art. 2.º): o interesse e bem-estar do ser humano
devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou ciência; (na ótica dos
princípios da bioética: a não-maleficência do indivíduo deve prevalecer sobre a
beneficência da coletividade).
• Consentimento (art. 5.º): Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode
ser efetuada, tendo sido prestado pela pessoa em causa o consentimento livre e
esclarecido - que pressupõe informação adequada do objetivo, natureza, riscos e
consequências da intervenção. O consentimento é livremente revogável a
qualquer momento.
• Consentimento do menor de quem careça de capacidade (art. 6.º): Qualquer
intervenção só poderá ser usada em seu benefício real e direto. A opinião do
menor deve ser progressivamente tomada em conta, em função da idade e
capacidade de discernimento. A investigação em pessoas sem capacidade para
consentir é de ultima ratio, depende da não oposição do lesado e redução a
escrito da autorização do representante legal (art. 17.º)

N.B. São proibidas as experiências médicas em pessoas com carácter especial de


dependência. Não se trata de menores, mas outras categorias de pessoas que, devido à
sua condição social ou psíquica, poderão não ter total liberdade de escolha na
participação, tais como estudantes ou discípulos do investigador, detidos e pessoas com
doença (física ou mental). Para os menores o regime já não é de proibição, mas de
garantia que qualquer intervenção só pode ser feita para seu benefício real ou direto e,
mediante a sua capacidade de entendimento, não pode ser feito contra a sua vontade -
exceto em Estado de Necessidade (quando obrigar ao consentimento impediria que se
evitasse em tempo útil lesão grave para o menor).

• Liberdade de investigação científica (art. 15.º). Na CRP o art. 42.º prevê a


criação e investigação científica como um DF.
• Artigo 16.º A investigação em ser humanos é de ultima ratio, só pode ser levada
a cabo se: i) inexistir método alternativo de eficácia comparável; ii) os riscos em
que a pessoa pode incorrer não forem desproporcionados em relação a eventuais
benefícios da investigação; iii) aprovação por instância competente (em
Portugal, compete ao CEC e ao INFARMED a aprovação e supervisão do estudo
clínico e sua conformidade com a lei e disposições das convenções ratificadas
por Portugal - Cf. art. 5.º da Lei n.º 21/2013 - Lei da Investigação Clínica)
• iv) tiver sido informada dos seus direitos e garantias previstos na lei;
• v) Consentimento expresso, informado e livremente revogável → art. 5.º

Declaração sobre o Genoma Humano (1997, UNESCO):

• Art. 12.º: Os benefícios do progresso deverão ser disponibilizados a todos


(princípio bioético específico da socialidade);

Hugo Almeida 82
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• Tutela específica do genoma humano (já estudada no capítulo da “Identidade e


Intimidade Genética), como objeto da esfera íntima do indivíduo, bem como
como património comum da humanidade. A investigação médica relativa ao
genoma deve visar o alívio do sofrimento humano.

Declaração de Helsínquia (1967): Apesar de não ser um instrumento juridicamente


vinculativo, é considerada a “pedra de toque” em matérias éticas da investigação
médica.

Outros instrumentos:

• Código de Nuremberga (1947) - estabeleceu 10 princípios hoje universalmente


aceites, entre os quais: A investigação deve atender a uma utilidade/necessidade
social, não pode ser por motivos fúteis ( §.2) Necessidade de tomar todas as
precauções para evitar mesmo possibilidades remotas de lesão ( §.7). Exigência
do mais elevado grau de qualificação e cuidado médico. ( §.8) possibilidade do
sujeito revogar o consentimento durante o curso da investigação ( §.9).
Obrigação do cientista responsável de terminar caso existam motivos para
acreditar que a sua continuação poderá resultar em lesão, deficiência ou morte
para o paciente ( §.10).
• Juramento de Hipócrates , Declaração de Genebra (1948), Código Deontológico
da Ordem dos Médicos, Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médica -
previsto no art. 79.º do Estatuto da Ordem dos Médicos.

Atividade médica
O consentimento no tratamento médico

O consentimento do paciente é “o comportamento que revela uma aquiescência


relevante na intromissão fulcral de cada pessoa, último reduto da dignidade e da
liberdade e autonomia”, sendo uma garantia do princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1.º), dos DF de reserva da vida privada (art. 24.º), integridade física e
psíquica (art. 25.º) e da liberdade de consciência (art. 41.º CRP). O consentimento para
a lesão, reconhecido na medida do discernimento do sujeito, é assim uma dos mais
importantes garantias do princípio da dignidade da pessoa humana, na vertente da
autodeterminação.

Contudo, o consentimento não pode ser visto só como um “momento único” em que se
exclui a ilicitude da intervenção. O consentimento deve ser visto como um processo,
no qual há da parte dos médicos responsáveis deveres de informação à cerca dos riscos
e consequências, bem como a natureza e finalidade, quer se trate de uma intervenção
médica ou de investigação clínica. Sendo que, no caso das investigações clínicas, o
sujeito deverá ainda ser informado dos seus direitos e garantias legais (art. 16.º al. iv.
Convenção de Oviedo) e do meio adequado para exprimir o consentimento, que deverá,
sempre que possível, ser por escrito. Já nas intervenções médicas, não é sempre
necessário que o consentimento se dê por escrito, mas tem que ser sempre informado.

Ainda assim, o Consentimento Informado comporta sempre dificuldades, no que toca à


eficaz comunicação dos riscos ao paciente. P.ex., resultados extremamente improváveis,
com uma probabilidade inferior a 1/1000, deverão ainda assim ser comunicados, pois
existe o dever de informar sobre todos os riscos que sejam previsíveis. Deve igualmente

Hugo Almeida 83
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

haver um dever de explicar a terminologia médica dum modo que seja compreensível
para o paciente.

Consentimento Presumido

As intervenções médico-cirúrgicas arbitrárias, i.e. quando realizadas sem consentimento


do paciente, são ofensas à integridade física, nos termos do art. 156.º CP. No entanto,
contrariamente ao que se sucede na experimentação e investigação médica, onde tem
que ser sempre expresso (art. 5.º Convenção de Oviedo), o consentimento para o
tratamento médico pode ser presumido. As condições de admissibilidade do
consentimento presumido são dadas pelo art. 39.º/2 CP. Já a Convenção de Oviedo, no
art. 8.º, permite que se proceda a uma intervenção sem consentimento desde que: i) seja
uma situação de urgência/estado de necessidade; ii) seja uma intervenção medicamente
indispensável em benefício da saúde da pessoa.

Quanto ao modo de obtenção do consentimento, o modo mais comum é este ser dado
por escrito, através de formulários. A doutrina critica este método (ver, neste sentido, a
Circular Informativa nº 15/DSPCS, de 23/3/98, da Direção Geral da Saúde).

Por fim, admite-se ainda a possibilidade de intervenção médico-cirúrgica sem


consentimento. Esta restrição dos DF supra referidos é permissível em situações de
conflito ou colisão, como por exemplo, na vacinação obrigatória, em que, na colisão
com o interesse público da Saúde, pode ser dada prevalência a este último.

Recusa do Consentimento

Esta situação tem sido tratada sobretudo a nível jurisprudencial, nacional e


internacionalmente. O “Direito a Não Consentir” é frequentemente fundamentado na
Liberdade de Consciência e Religião (art. 41.º CRP), sendo que o imperativo de respeito
pela autonomia individual e pela sua liberdade de consciência e religiosa (que são
também dimensões da reserva da vida privada, mais especificamente, do direito à
integridade moral) é fundamentado no respeito pelas decisões.

Se o paciente considera que as consequências da intervenção seriam toleráveis, por


lesarem gravemente as suas convicções morais ou bem-estar espiritual, estas devem ser
respeitadas “não importa o tão distorcido ou pervertido o seu senso de valores possa
parecer pela comunidade, desde que qualquer distorção não chegue a ser o que a lei
interpreta como capacidade”.

Não só não cabe aos valores maioritários (ou dos profissionais de saúde) imporem-se
sobre os valores individuais e os legítimos interesses do paciente, mas o respeito pelos
seus valores, mesmo colocando a vida do paciente em risco, é “uma força positiva para
o confortado paciente se ele estiver seguro de que os mesmos serão respeitados”.

Na jurisprudência internacional, no caso “Malette v. Schulman” (1989), no Canadá, a


decisão do Ontario Court of Appeal foi no sentido de reconhecer a autodeterminação
e autonomia individuais como fundamentos de um direito à recusa de tratamento,
por mais prejudicial ou injustificado pareça para terceiros. Não o fazer, seria uma
violação do direito do paciente sobre o próprio corpo (integridade física) e o desrespeito
pelos seus valores religiosos.

Hugo Almeida 84
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Consentimento dos menores e poder paternal

Segundo um Parecer do Conselho Consultivo da PGR (8/1991), o poder paternal é um


poder-dever ou poder-funcional, que deve ser exercido altruisticamente no interesse
do filho, de harmonia com a função do direito. (§.1 do Parecer)

• (§.2) O superior interesse do filho é a “razão de ser” (fundamento), critério e


limite do poder paternal; tal significa que o poder paternal nunca se pode pautar
por outro objetivo que não a proteção dos interesses do filho e que, caso o seu
exercício conflitua ou põe em causa estes legítimos interesses, cessa a sua
legitimidade.
• (§.3) A funcionalização do poder paternal (i.e., a definição do poder paternal
como um poder-dever, exercido em prol de outrem) cria um autolimite ao poder.
O poder paternal pode ser suspenso (por inibição do poder paternal - neste
caso, ficciona-se legalmente que o poder paternal é exercido pelo tribunal, até
estar afastado o risco para os interesses do filho; ou por providências
limitativas como a submissão a diretivas médicas ou pedagógicas - que
salvaguardar os interesses do menor de saúde e educação, respetivamente),
quando “coloque em risco a segurança, saúde, formação moral ou educação do
menor”.
• (§.6) Consoante a capacidade de discernimento do menor, este também deverá
ser informado sobre todos os aspetos relevantes a uma decisão consciente
(embora esta pertença aos pais, dentro dos limites da poder paternal).
• (§.7) Em situações mais complexas, como o caso em que o médico decide pela
admissão hospitalar do menor em regime de internamento, mas os pais recusam
o seu consentimento, não há um critério singular de solucionamento, devendo
ser resolvida casuisticamente atendendo aos vários elementos da situação, tais
como: a) O estado de saúde do menor; b) a sua idade e capacidade de
discernimento; c) urgência do internamento; e) o tipo de tratamento, intervenção
ou exame que seria submetido e as suas consequências.

→ Deverá ser tomada a medida menos gravosa dependendo da urgência e necessidade


de atuação médica. Se não for urgente, deve-se recorrer a providências, tais como
diretivas médicas. Se for urgente e houver consubstanciado receio de perigo de vida ou
dano grave para a saúde, pode justificar-se a inibição do poder paternal.

Ou seja, a recusa do consentimento não é tão livre nos exercício do poder paternal por
pais e educadores, como é quando a decisão é apenas individual. Já que há um dever de
altruisticamente exercer o poder paternal em prol dos interesses do menor, sendo que,
em caso de conflito entre os valores e a integridade física ou vida do menor, deve
prevalecer esta última.

Existe ainda a figura da emancipação médica, que consiste no direito do menor,


munido de uma capacidade amadurecida de discernimento, de poder decidir sobre o
seu próprio corpo e exercer o consentimento , independentemente do poder paternal. No
entanto, este instituto não é reconhecido no ordenamento jurídico português.

Hugo Almeida 85
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Responsabilidade por danos de saúde

Tem havido uma tendência crescente de maior exigência de equidade no acesso à


excelência nos cuidados e do poder reivindicativo dos privados, na responsabilização
por danos médicos. Houve uma subida considerável do n.º de processos.

Como já foi referido, a maior interdisciplinaridade da medicina tem levado a uma


mudança do paradigma da “responsabilidade pelo ato médico” à “responsabilidade pelo
ato de prestação de saúde”, que inclui, não só os atos dos profissionais de saúde, mas
também de outros funcionários dos estabelecimentos médicos, bem como
responsabilidade do produtor por danos causados por dispositivos médicos (p.ex.
por implantes ou próteses defeituosas, ou com materiais nocivos/patogénicos).

Tem-se verificado também uma crescente objetivização da responsabilidade por


danos de saúde, sendo a culpa (requisito da responsabilidade civil, nos termos do art.
438.º CC) cada vez menos exigida para que haja lugar a indemnização por danos
médicos. É cada vez mais comum a responsabilidade pelo risco e por faut de service
(danos anónimos, que não podem ser imputados a nenhuma agente em específico).

Tipos de responsabilidade

– Disciplinar (deontológica);

– Civil (pode ser contratual ou extracontratual);

– Penal.

Pressupostos de responsabilidade

– Ato ilícito;

– Culpa - regime geral (vs. objectivização/sem culpa - regime excecional);

• Gradação da culpa em dolo (intenção para a prática do dono) e negligência


(omissão do cuidado devido)

– Nexo de causalidade; – Dano (emergência de novas categorias, como o “dano


existencial”)

A Responsabilidade (extracontratual) por danos de saúde de entidades públicas está


sujeita ao regime da responsabilidade por atos da administração da Lei 67/2007, de 31
de Dezembro (Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais
Pessoas Coletivas Públicas). Jurisdição: tribunais administrativos.

Já a Responsabilidade de entidades privadas é da jurisdição cível, sendo o regime


aplicável o da Responsabilidade Civil (não obstante de os danos provocados poderem
preencher responsabilidade penal, nem da responsabilidade disciplinar que ocorre a
nível interno).

Responsabilidade Penal (Código Penal e legislação avulsa):

Hugo Almeida 86
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• Princípio da Legalidade: nullum crimen sine lege;


• Princípio da Não Retroatividade;
• Comissão por ação ou omissão;
• Princípio da Culpa: nulla poena sine culpa;
• Punição da tentativa;
• Aplicabilidade das causas de exclusão da ilicitude e de exclusão da culpa.

Quadro exemplificativo das incriminações mais comuns na área da saúde:

• Homicídio; Incitamento ou ajuda ao suicídio; Aborto; Ofensa à integridade


física; Intervenções e tratamentos médico cirúrgicos sem observação da legis
artis; Intervenções e tratamentos médico cirúrgicos arbitrários; Violação do
dever de esclarecimento; Procriação artificial não consentida; Devassa da vida
privada; Violação do segredo; Omissão de auxílio; – Atestado falso; Corrupção
de substâncias alimentares ou medicinais; Propagação de doença, alteração de
análises ou de receituário.

• Propagação de doença – lei de vigilância epidemiológica (Lei n.º 81/2009, de


21 de Agosto) . Questão de saber em que circunstâncias os cidadãos podem ser
obrigados a ficar em casa, e em que pode haver internamento compulsivo
(apenas é permitido para doenças psíquicas).
• Doenças de notificação obrigatória – conflito entre o dever de sigilo do
médico, e de ter de notificar obrigatoriamente determinadas doenças (ex.:
doenças transmissíveis, até que ponto será o médico obrigado a essa notificação
obrigatória).

Transplantes
Previsão em instrumentos internacionais:

• Segundo Protocolo Adicional à Convenção de Oviedo (Convenção dos Direitos


do Homem e a Biomedicina), sobre o Transplante de Órgãos e Tecidos de
Origem Humana, assinado por Portugal em 21/02/2002.

O diploma atualmente em vigor em matéria de transplantes de órgãos é a Lei 12/93, de


22 de Abril (alterada por vários diplomas, último dos quais Lei nº 22/2007, de 29 de
Junho)

Artigo 5.º Lei 12/93 (Princípio da Gratuitidade):

• É proibida a comercialização e renumeração da dádiva de órgãos, tecidos ou


células, para fins terapêuticos.
• N.º 3: Os dadores podem receber uma renumeração única e exclusiva pelo
serviço prestado, o que não pode é haver um cálculo do valor dos órgãos ou
tecidos doados.

Os Transplantes podem ser:

i. Ad Vitem (ou Colheita em vida - artigos 6.º-9.º da Lei 12/93): O legislador


consagra a admissibilidade de doação em vida, mas apenas de órgãos que não

Hugo Almeida 87
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

impeçam a vida do dador ou envolvam uma diminuição grave e permanente da


integridade física ou saúde do dador (art. 6.º/7) – é discutível se o Estado terá ou
não legitimidade para intervir impedido lesões graves e irreversíveis para os
cidadãos – visão paternalista do Estado.
• O regime dos Transplantes Ad Vitem divide-se entre a dádiva e colheita de
órgãos ou tecidos regeneráveis e não regeneráveis.
• Os órgãos e tecidos regeneráveis são, por regra, doáveis, no entanto, esta
doação só pode ser feita no interesse do recetor e na inexistência de órgão ou
tecido adequado de dador post mortem ou de método terapêutico alternativo
de eficácia comparável (ou seja, a doação de órgãos ad vitem é subsidiária à
post mortem e a outros métodos terapêuticos).
• Já a doação de órgãos e tecidos não regeneráveis depende do parecer
favorável da EVA e nunca o dador pode ser menor ou incapaz.

ii. Post Mortem (ou Colheita em cadáveres – artigos 10.º - 14.º)

• Todos os cidadãos portugueses, apátridas e estrangeiros residentes em Portugal,


que não tenham manifestado junto do Ministério da Saúde a sua qualidade de
não dadores, são considerados potenciais dadores (art. 10.º/1). Estes ficam
registados no RENNDA (Registo Nacional de não Dadores).
• O sistema baseia-se na presunção de que todos terão vontade de ser dadores após
a morte.
• Nos termos do artigo 15.º, devem ser promovidas, em termos regulares,
campanhas de informação sobre o significado e o regime da colheita de órgãos.
• Só vale a vontade do de cujus, mas esta pode ser transmitida de qualquer forma
e por qualquer pessoa -> Cf. Acórdão nº 130/88 do Tribunal Constitucional,
no qual esta questão, bem como outras ainda debatidas, foram suscitadas.

Até à alteração legislativa de 2007 só se admitia a dádiva e colheita de órgãos não


regeneráveis aos casos em que existia relação de parentesco até ao terceiro grau entre
dador e receptor. Este regime não tinha razão de ser pois, embora os riscos relacionados
com a colheita de órgãos não regeneráveis expliquem a existência de um regime mais
rígido e rigoroso, não explicam esta proibição (para não falar que, ao abrigo desta
restrição, não podia haver dádiva de órgãos entre marido e mulher, uma vez que não
existe uma relação de parentesco).

Artigo 8.º (Consentimento) para a doação ad vitem

• Deve ser livre, esclarecido, informado e inequívoco (8.º/1); faz-se perante o


médico;
• O consentimento do menor é prestado pelos pais, desde que não inibidos do
poder paternal, ou pelo tribunal, em caso de inibição, mas conforme o seu grau e
capacidade de entendimento, a dádiva e colheita carece da concordância do
menor.
• É sempre prestado por escrito e é livremente revogável (p.ex., um menor
inscrito pelos pais no Registo de não dadores, pode revogá-lo no momento da
sua maioridade);

Artigo 14.º/2: O facto da morte se realizar em condição que imponha autópsia, não
impede a realização da colheita.

Hugo Almeida 88
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Articulação com outras leis: Lei nº141/99 (Princípios em que se baseia a verificação
da morte); DL n.º 274/99 (Colheita de órgãos para ensino e investigação); Lei n.º
12/2009 (regime que garante a qualidade e segurança da colheita).

Diretivas antecipadas de vontade


A importância de discutir as diretivas antecipadas de vontade reside no facto de, para
além da questão do Direito à Saúde e do Consentimento, tratar-se de um exercício de
DF passível de ser delegado.
A primeira referências legais às diretivas antecipadas de vontade foi na Califórnia
(living will ou sidebed declaration).
• Estas denominações podem causar a ideia errada de que as diretivas antecipadas
de vontade só têm lugar quando o titular dos direitos delegados está perto da
morte. Este não é o caso no nosso regime, dado que podem ser feitas a qualquer
altura por qualquer pessoa, maior de idade, no exercício pleno das suas
capacidades.
Tomar em consideração as vontades expressas pelos doentes antes da morte32 (ou por
um indivíduo são antes de doença incapacitante) é uma forma de proteger a sua
liberdade.
O regime em Portugal: a Lei n.º 25/2012, de 16 de julho aprovada por unanimidade
As diretivas antecipadas de vontade podem ter duas formas:
i. Testamento vital (testamento de paciente/biológico): documento
unilateral e livremente revogável, no qual uma pessoa maior de idade
e capaz, manifesta antecipadamente a sua vontade, no que
concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, bem como aos
que não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar
incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.
Art. 1.º/2 (Lei n.º25/2012) elenco exemplificativo das disposições
que podem constar da Diretiva Antecipada de Vontade:
a. Não ser submetido a tratamento de suporte
artificial de funções vitais (ventilação e
reanimação cardiorrespiratória, p.ex.);
b. Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou
desproporcionado, nem a medidas de suporte
básico de vida ou de alimentação artificial, que
apenas visem retardar o processo natural de morte;
c. Receber cuidados paliativos;
d. Ser ou não submetido a tratamentos em fase
experimental e autorizar ou recusar a participação
em ensaios clínicos.
• É um ato pessoal, unilateral e revogável, cujas disposições são exclusivamente
de carácter não patrimonial.

32
Segundo uma Resolução da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa de 2012: Protecting
human rights and dignity by taking into account previously expresses wishes of patients

Hugo Almeida 89
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

ii. Nomeação de procurador de cuidados de saúde: Documento que


atribui poderes a alguém para tomar decisões em matéria de cuidados
de saúde e interpretar/integrar lacunas do testamento vital.
• A nomeação de um procurador de cuidados de saúde pode ou não estar
associada a um Testamento Vital.
Artigo 3.º (Requisitos de Forma do Documento):
• As diretivas antecipadas de vontade são formalizadas através de um documento
escrito, assinado presencialmente perante funcionário devidamente habilitado do
RENTEV (Registo Nacional do Testamento Vital).
• Devem constar (n.º2): a identificação do outorgante, as situações clínicas em
que as diretivas antecipadas de vontade produzem efeito, nessas situações -
as opções e instruções relativas a cuidados de saúde que o outorgante deseja
ou não receber, bem como as declarações de renovação, alteração ou revogação
da Diretiva, caso existem.

• Crítica: não é exigido o esclarecimento por parte de um médico sobre as


implicações e opções do testamento vital, este esclarecimento é facultativo -
3.º/2 da Lei, o outorgante poderá recorrer à colaboração de um médico “(…) se
essa for a opção do outorgante e do médico”. Também não é necessária
assinatura de um médico, mas só de um funcionário do RENTEV.
• O registo pode ser feito, ou gratuitamente no RENTEV, ou através de um
notário (não sendo gratuito). Também se critica a natureza opcional do registo
da Diretiva. Basta que o documento conste no RENTEV ou seja entregue à
equipa responsável para que seja eficaz e se deve respeitar o seu conteúdo (só
deixa de ser eficaz se se comprovar que o outorgante não desejaria mantê-las ou
houver uma evidente desatualização da sua vontade face a avanços médicos) –
art. 6.º/1 e 2.
Modificação e revogação do Documento
• Livremente revogável e modificável pelo outorgante.
• Obrigatoriedade de renovação de 5 em 5 anos (art. 7.º) – os serviços
responsáveis pelo serviço devem indicar, por escrito, ao outorgante (e, caso
exista, ao Procurador), num prazo de sessenta dias antes do termo do prazo de 5
anos (após o qual a Diretiva caduca).
• Crítica: na opinião da Professora Dra. Luísa Neto, é um requisito desnecessário,
o outorgante por norma não se esquece que fez uma Diretiva. O fundamento
desta exigência está na solenidade associada à Diretiva Antecipada de Vontade,
já que é efetivamente, uma delegação do exercício de um DF.
• Forma da revogação ou modificação: à partida, estaria sujeita à forma prevista
para a redação inicial.
• Parecer n.º 22/2012 CNPD: considera-se que o autor pode modificar ou revogar
a Diretiva através de uma simples declaração oral, perante o responsável pela
prestação do cuidado de saúde, devendo esse acontecimento ser inscrito no
processo clínico, no RENTEV (se estiver registado) e comunicado ao procurador
(caso exista).

Hugo Almeida 90
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Artigo 4.º (Capacidade): Três pressupostos cumulativos:


i. Maiores de dezoito anos;
ii. Não podem estar interditos ou inabilitados por anomalia psíquica;
iii. Encontrar-se em condições de dar consentimento consciente e livre.
Nota: É possível, mediante parecer do CNECV e da CNPD, outorgar uma Diretiva de
utilização facultativa (é uma Diretiva em que o agente prevê, numa situação em que
ainda tem capacidade de escolha, o tipo de tratamento que deseja ou não receber –
nestas situações, a vontade posterior do outorgante prevalece sobre o que ele dispôs na
Diretiva) – art. 3.º/3 Lei n.º 25/2012.
Limites das Diretivas (art. 5.º): São juridicamente inexistentes as Diretivas contrárias
à lei, ordem pública e às Legis Artis (boas práticas médicas), o cumprimento da diretiva
que leve a uma morte não natural e evitável, ou em que o outorgante não tenha
expressado, clara e inequivocamente, a vontade.
• Consequência da violação: Responsabilidade civil e criminal.
Quem pode ser Procurador de Cuidados de Saúde? Qualquer pessoa maior de idade,
na posse das suas capacidades, se aceitar.
Poderes do procurador de cuidados de saúde:
• Solicitar a qualquer momento (ao RENTEV) a consulta ou entrega do
documento da Diretiva;
• Interpretar o documento da nomeação e, caso se tenha redigido, interpretar
o documento do testamento vital;
• Decidir se aceita ou recusa de tratamento que o outorgante venha a necessitar;
• Informar de alterações ao estado de saúde do outorgante, impedindo a
caducidade da Diretiva;
• Facultar ou não o acesso de dados de saúde (dados sensíveis);
• Internar o representado, decidindo também sobre a escolha da residência.
Sem prejuízo dos poderes do Procurador de interpretar e integrar lacunas no Testamento
Vital, em caso de conflito entre a decisão do Procurador e disposição do
Testamento Vital, prevalece o testamento.

Capítulo IV – A Liberdade de Consciência, Religião e Culto


A liberdade religiosa no contexto da laicidade do Estado
Falarmos da liberdade de religião na nossa ordem constitucional é falar dela no
contexto de um Estado de direito democrático, laico e, na perspetiva dos tipos históricos
de Estado de Jorge Miranda (ou tipos fundamentais de Estado, para Jelinek), no Estado
Moderno de Tipo Europeu.

Hugo Almeida 91
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• Relembrando matéria de Constitucional: Estado é a articulação de três


elementos: povo33, território e poder político. Ao falar de povo é preciso ter em
conta que este se trata necessariamente de um grupo homogéneo, podendo
apresentar grande diversidade étnica, linguística ou religiosa.

O Estado Moderno de Tipo Europeu, tipo histórico de Estado que surge no séculos
XIV e XV. Englobou três fases:

1. Estado estamental: Surge na Inglaterra no século XIII, com a Magna Carta de


1215, que limitou o poder régio pelos estamentos - ordens sociais organizadas e
representativas de determina classe social, profissional, confessional. Com um
fenómeno semelhante em Portugal, com o Apogeu das Cortes após a crise
dinástica do séc. XIV.
2. Estado Absoluto (que compreendeu as monarquias de direito divino - séc. XVII
e o despotismo esclarecido - séc. XVIII).
3. Estado Constitucional, Representativo e de Direito (em especial as fases de
Estado Liberal - revoluções liberais até ao início do séc. XX e Estado Social - a
partir da Constituição Mexicana de 1917 ou a Constituição de Weimar de 1919).

Esta tipologia de Estado apresenta três características34 comuns:

1. Poder político soberano:

• Desafios da soberania: face à globalização - que afasta os centros de decisão


económica das instâncias democráticas estaduais; face à delegação/atribuição de
competências soberanas em instâncias supranacionais, como na União Europeia,
tratando-se de uma autolimitação da soberania dos Estados.

1. (Tendencial) correspondência entre Estado e Nação:

• É desafiada por uma crescente globalização social e cultural, uma sociedade


mais cosmopolita e mudanças demográficas devido a movimentos migratórios.
Também a crescente reivindicação de direitos supraindividuais/comunitários (os
chamados “direitos de 5.ª geração”) de minorias nacionais regionais, étnico
linguísticas e religiosas, cujos direitos são reconhecidos na Carta das Nações
Unidas (”direitos dos povos à autodeterminação” - art. 1.º/2 Carta das Nações
Unidas) e outros instrumentos internacionais.

1. Secularidade de fins (i.e., separação dos fins espirituais/religiosos dos fins


temporais/políticos) ou Laicidade: falaremos dos desafios da laicidade, mas
primeiro, cabe explicar a história da laicidade do Estado e a sua relação com a
liberdade religiosa e os restantes DF.

33
N.b. O conceito constitucional de povo refere-se ao conjunto de pessoas que apresentam com o Estado
o vínculo jurídico político da cidadania, o que permite uma heterogeneidade de grupos étnicos e
religiosos dentro do mesmo povo.
34
As características do Estado, já não só da tipologia do Estado Moderno de Tipo Europeu, são:
autonomia em relação à sociedade civil, territorialidade, coercibilidade, complexidade organizativa e de
atuação, e institucionalização

Hugo Almeida 92
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Evolução histórica da liberdade religiosa e proteção das minorias religiosas

Durante a Idade Média, noções escolásticas e religiosas, através de autores como Tomás
de Aquino, tiveram grande importância na fundamentação do que viria a ser a previsão
dos direitos fundamentais e em especial o reconhecimento da igual dignidade de cada
um.

Porém, a primeira vindicação da liberdade religiosa só deu-se no advento do Estado


Moderno, com o Tratado de Vestefália (de 1648). Este Tratado, apesar de ter como
principal objetivo pôr fim à Guerra dos 30 Anos (1618-1648), acabou por também ser o
primeiro documento a prever direitos a um grupo minoritário. Garantiu:

1. o princípio da igualdade entre Protestantes e Católicos


2. apesar de prever o direito dos soberanos de escolher a religião do Estado,
garantiu o direito inalienável de protestantes e católicos poderem praticar
livremente a sua religião dentro do território de qualquer Estado signatário (seja
domesticamente - liberdade de religião numa acessão estrita, seja em locais de
culto)
3. liberdade de educar os filhos em casa conforme a religião (que ainda hoje é
tutelada pela esfera da vida familiar - art. 26.º/1 CRP)
4. direito de migração para outra região onde a sua religião fosse maioritária (que
também foi das primeiras formulações do direito à deslocação e emigração, entre
nós previsto no art. 44.º CRP).

O primeiro momento em que a proteção das minorias foi expressamente previsto foi
na Conferência de Paz (Paris, 1919), que levou à criação da Sociedade das Nações.
Declarou-se “a igualdade de todas as pessoas perante a lei, a igualdade de direitos civis
e políticos, a igualdade de tratamento e a segurança de minorias”. Sucessivamente, com
as Nações Unidas, proliferaram as normas internacional de direitos de liberdade e
igualdade de tratamento religiosa, bem como da proteção de minorias religiosas:

• Art. 1.º Carta das Nações Unidas: “promovendo e estimulando o respeito pelos
direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de
raça, sexo, língua ou religião”
• Art. 18.º DUDH35: “Todo o ser humano tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou
crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela
prática, pelo culto em público ou em particular”.

• Art. 22.º DUDH: direito à realização dos direitos (...) culturais indispensáveis
à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade36;

35
A DUDH é materialmente recebida na Constituição Instrumental através do art. 16.º/2, tendo valor
interpretativo e integrativo de lacunas. Isto significa que, ao interpretar o art. 41.º CRP, como à frente
veremos, é necessário interpretá-lo em conformidade com as dimensões da liberdade religiosa que a
DUDH prevê, incluindo: a liberdade de mudança de crença, de não professar ou crer em religião e de
exprimir ou não exprimir essa mesa crença através da educação e a liberdade de culto em público ou
particular.
36
A religião é uma manifestação da cultura, pelo que os instrumentos de proteção das minorias e de
proteção e promoção da cultura, incluem também os aspetos religiosos.

Hugo Almeida 93
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Este direito surge também em instrumentos diversos, interligado à proteção das


minorias nacionais e culturais:

• Declaração dos Direitos das Minorias Nacionais, 1991, OSCE


• Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais
étnicas, religiosas e linguísticas, 1992 (adotada por resolução da AG da ONU)
a) As pessoas pertencentes a minoria nacionais ou étnicas, religiosas e
linguísticas têm o direito a fruir da própria cultura, de professar e praticar
a sua própria religião, e de utilizar a sua própria língua, em privado e em
público, livremente e sem interferência ou qualquer forma de
discriminação (2.º/1)
b) “participar efetivamente na vida cultural, religiosa, social, económica e
pública”;
c) “Os Estados deverão adotar medidas a fim de criar condições favoráveis
que permitam às pessoas pertencentes a minorias manifestar as suas
características e desenvolver a sua cultura, língua, religião, tradições
(...)” (4.º/2)

• Carta Europeia para as Línguas Minoritárias ou regionais (por exemplo, o


mirandês), 1992, Conselho da Europa
• Convenção Quadro para a proteção das minorias nacionais, 1994, Conselho da
Europa

Em sequência da proclamação de 1995 como ano internacional da Tolerância, a


Declaração de Princípios do Ano Internacional da Tolerância (1995) descreve tolerância
como “o respeito, a aceitação e apreço da rica diversidade das culturas do nosso mundo,
das nossas formas de expressão e meios de ser humanos. Fomenta o conhecimento, a
atitude de abertura, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de
religião. A tolerância consiste na harmonia e na diferença. Não é só um dever moral,
mas também uma exigência política e jurídica.”.

• Afasta uma noção de tolerância, ligada à ideia de “superioridade moral” (1.º/2 da


Declaração: “A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência”);
• Previsão enquanto dever político e jurídico, que exige a adoção de políticas,
num quadro do Estado de Direito “A tolerância é o sustentáculo dos direitos
humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do
Estado de Direito”. Implica um tratamento imparcial e justo e o fomento de
uma sociedade plural, de políticas de combate exclusão e marginalização de
grupos minoritários e a adoção de instrumentos internacionais de DI
humanitário.
• A aplicação do princípio da tolerância comporta dificuldades, como a
“tolerância da intolerância”, deve por isso, ser acompanhada de um esforço da
Humanidade de estabelecer um mínimo denominador comum/núcleo essencial
de valores que sejam plena e reciprocamente respeitados por todos.

Nota: o conceito de minoria não tem que assentar numa questão numérica, mas sim de
marginalização ou desigualdade no acesso e exercício de direitos civis e políticos (voto,
acesso aos cargos políticos,...), bem como económicos, sociais e culturais (educação,
saúde, habitação,...). (Um exemplo é na África do Sul da era Apartheid, no qual a
população maioritária era uma minoria marginalizada).

Hugo Almeida 94
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO, 2001), adota-se


um conceito de diversidade cultural paralelo ao da biodiversidade: “Enquanto fonte de
intercâmbios, inovação e criatividade, a diversidade cultural é tão necessária para a
Humanidade como a biodiversidade o é para a natureza.”, afirmando-se também a
diversidade cultural como património comum da humanidade e a sua necessidade de
preservação e promoção para as gerações futuras.

• Invoca-se também a importância da diversidade cultural para o livre


desenvolvimento da personalidade, “permitindo alcançar uma existência
intelectual, emocional e espiritual mais satisfatória”.
• A importância da liberdade de expressão e liberdade de imprensa e dos meios de
comunicação (art. 37.º e 38.º CRP) para a sua promoção.
• O direito a uma educação que respeite plenamente a identidade cultural - art. 6.º
da Declaração.
• Proteção dos autores e da criação artística: “deverá prestar-se particular atenção
à diversidade da oferta criativa, ao devido reconhecimento dos direitos dos
autores e artistas e à especificidade dos bens e serviços culturais que,
enquanto portadores de identidade, valores e sentido, não podem ser tratados
como meros produtos ou bens de consumo”.

Assim sendo, viu-se a mudança de um paradigma de homogeneidade (ou até


segregação) para uma perspetiva multicultural ou intercultural.

• Diferença entre a multi e interculturalidade:

1. A Multiculturalidade pode ser entendida enquanto facto/ser (a constatação da


existência ou não de uma maior diversidade de culturas numa dada sociedade) e
enquanto norma/dever-ser (o imperativo de proteger a diversidade cultural).
2. A Interculturalidade vai para além da promoção da proteção dos vários grupos:
tenta, evitando os extremos da homogeneidade ou segregação, integrar e criar
uma síntese entre as várias culturas, baseada num mínimo denominador
comum de valores sociais necessários à convivência e integração.

Configurações da relação entre o Estado e religião

O art. 288.º al c) consagra “A separação das Igrejas do Estado” como limite material
da revisão. É importante o uso da expressão “igrejas” no plural porque desde logo
reconhece a existência de mais do que uma confissão religiosa no país, bem como a
equidistância do Estado em relação a todas as igrejas.

→ Identificação entre prossecução de fins políticos e religiosos

• Teocracia: a religião tem ascendente sobre o fator político;


• Caesaropapismo37: o poder político releva sobre a religião;

→ Não identificação:

37
Sistema no qual cabe ao chefe do Estado a regulação das doutrina e assuntos religiosos, não havendo
uma separação entre o poder político e religioso. Difere da Teocracia na qual o chefe do Estado é, em
primeiro lugar, o líder religioso, tendo a religião precedência na sua identificação.

Hugo Almeida 95
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• União: existência de uma “religião de Estado”, não obstante haver separação


em termos políticos e religiosos;
i) ascendente religioso – clericalismo
ii) ascendente político – regalismo
• Separação:
i) relativa
ii) absoluta
• Autonomia (também pode ser relativa)

Oposição:

• relativa (Estado laicista38)


• absoluta (Estado ateu)

No Estado Moderno de Tipo Europeu apenas se admite sistemas de não identificação,


seja separação ou autonomia relativa.
A liberdade de religião, enquanto conceito jurídico, ainda que esteja relacionado com a
tolerância religiosa (no âmbito da promoção e proteção da sua diversidade), baseia-se
essencialmente na separação das igrejas do Estado (art. 288.º CRP). Este preceito deve
ser interpretado à luz do princípios do Estado de Direito Democrático – em especial o
“pluralismo de expressão” (art. 2.º) – a relação do Estado com as igrejas deve ser, nem
de identificação nem oposição, mas de delimitação clara das suas esferas de atuação. Na
atuação das igrejas e comunidades religiosas opera o princípio da liberdade de
organização e funcionamento (art. 41.º/4)
Configurações da relação entre o Estado e religião

Distingue-se a liberdade de religião na sua vertente privada/pessoal e na vertente


pública/coletiva.
• vertente pessoal: opera no silêncio das consciências de cada um. Na epígrafe do
art. 41.º corresponde à liberdade de consciência. Este direito encontra-se
totalmente abrangido pela Reserva da Vida Privada no conceito norte-
americano (Right to be let alone); - uma das mais fortes garantias desta vertente
é a objeção de consciência (art. 41.º/6).
• vertente coletiva: confissão religiosa e organização; corresponde à liberdade de
culto e religião39, bem como o direito de organização religiosa (que inclui o
direito a criar organizações religiosas, bem como hospitais e ensino de carácter
confessional).

38
O laicismo (não confundir com Estado laico), do qual a França é o exemplo mais conhecido, defende a
total separação do governo e da igreja, o que inclui a proibição de qualquer símbolo religioso em espaços
públicos e o não apoio pelo Estado a qualquer instituição religiosa (diferente de haver colaboração entre a
Igreja e o Estado, numa ótica de imparcialidade e apoio às funções culturais, educativas e assistenciais – o
que é permitido num Estado Laico/Secularismo). Já o Estado Ateu, que existiu nos Estados Comunistas,
é caracterizado pelo anticlericalismo e a identificação expressa do Estado como irreligioso.
39
Nota: A liberdade de religião está incluída na liberdade de consciência, e a de culto na de religião e
consciência – são liberdades concêntricas. O art. 41.º CRP faz uma gradação da liberdade mais
abrangente à mais estrita, bem como da dimensão mais interna/individual, para a mais externa/social.

Hugo Almeida 96
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Os n.ºs 2 a 5 do art. 41.º são sobretudo garantias da liberdade de religião e culto


(vertente coletiva) e o n.º 6 já é uma garantia da consciência (maior amplitude)
A liberdade religiosa compreende:
a) a liberdade ou direito de se ter ou não ter sentimentos religiosos (está sempre presente
a duplicidade do direito à liberdade religiosa - vertente positiva e negativa);
b) a possibilidade de atuar de acordo com essas convicções ou falta de convicções;
c) o direito de comunicar quer a existência quer a ausência de sentimentos religiosos;
d) a possibilidade de alguém desistir das suas convicções religiosas, ou modificar tais
convicções;
e) a liberdade de culto, que pode ser individual ou coletiva, privada ou pública;
f) a ideia de se poder entrar ou sair de uma congregação religiosa;
g) a liberdade de criar associações que prossigam fins religiosos com poder de
autodisciplina, autorregulamentação e auto-jurisdição (salvo quando cai sob alçada
estatal);
h) a possibilidade de promover atividades e criar escolas e hospitais. (nos termos do art.
43.º CRP, o ensino público não é confessional, no entanto o art. 41.º/5 garante a
liberdade de criar ensino particular de carácter confessional).
Muitos destes direitos, como o da alínea a, b), c), e), f) e h) também estão previstos no
art. 18.º DUDH.
O “direito a não ser perguntado/não revelar” as convicções ou práticas religiosas é, para
além de uma dimensão da liberdade religiosa, um exercício da reserva da vida privada
na vertente da autodeterminação informacional, já que os dados referentes a convicções
filosóficas e a fé religiosa são dados sensíveis, segundo o art. 35.º/3 CRP (articular
com os art. 9.º RGPD e 6.º da Lei 59/2019).
• O princípio é de que a informática não pode ser utilizada para o tratamento de
dados sobre a fé religiosa.
Também é importante chamar a atenção para o art. 15. CRP, especialmente na medida
em que equipara a titularidade de todos os DF (incluído a liberdade religiosa) a
estrangeiros, apátridas e cidadãos europeus, o que implica um respeito uma extensão da
titularidade das liberdades religiosas nos termos da Constituição.
O art. 43.º, que prevê a liberdade de aprender e ensinar, tem como garantias nos n.º
2 e 3, a proibição da programação da educação da cultura segundo quaisquer diretrizes
religiosas e a proibição do ensino confessional respetivamente, garantindo que a
educação pública é secular e a programação da cultura e educação não privilegiam
nenhuma religião. O direito à criação do escolas particulares – 43.º/4 – é uma garantia,
mais ampla, do art. 41.º/5.

A lei da liberdade religiosa – Lei 16/2001, de 22 de Junho

Hugo Almeida 97
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Capítulo V – Direito à (Fruição) Cultural

Bibliografia: O Conceito de Bem Cultural (José de Melo Alexandrino)


Existe uma série de artigos na Constituição que, de uma forma ou de outra, protegem o
bem jurídico (quer individual, quer comunitário) da cultura:
Na base de todos estes direitos: art. 2º - Estado de Direito Democrático, e o princípio
do pluralismo que lhe é inerente (reconhecimento da pluralidade de manifestações
culturais e rejeição da ideia de uma “cultura única”) e o facto de Portugal, para além de
uma democracia política, ser uma democracia económica, social e cultural, devendo
existir um esforço do Estado em expandir o acesso à fruição e criação cultural por todos
os cidadãos, bem como a participação de todos os agentes culturais na política cultural
do Estado – não exclusivismo do Estado/democratização da cultura.
- 9.º Tarefas (culturais) fundamentais do Estado:
a) criar condições económicas sociais e culturais que promovam a independência
nacional (tal é feito através do reforço da cultura enquanto expressão da identidade do
povo português)
e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português;
f) Assegurar o ensino e valorização permanente, defender o uso e difusão
internacional da língua portuguesa;
- 78.º (Direito à Fruição e Criação Cultural)
• “Todos têm o direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de
preservar, defender e valorizar o património cultural”.
• É um DESC, com deveres de providência e promoção e preservação da cultura
que incubem ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais (sejam
entes públicos, associações ou fundações privadas, cidadãos, rejeita-se o
exclusivismo do Estado nas tarefas culturais):
a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos a meios e
instrumentos de ação cultural, bem como corrigir assimetrias existentes.
→ Exige-se que os Estados assegurem um acesso transversal e
equitativo aos meios de cultura, combatendo assimetrias geográficas,
económicas e educacionais.
b) Apoiar iniciativas (dos particulares) que estimulem a criação individual e
coletiva, nas suas múltiplas formas e expressões (lembrando que,
segundo o art. 37.º/2, não cabe ao Estado identificar um modo “correto”
de cultura ou impor sobre ela diretrizes filosóficas, estéticas ou morais).
c) Promover a salvaguarda e valorização do património cultural. (a
efetivação desta tarefa é feita através da Lei de bases do património
cultural).
d) Desenvolver relações culturais com todos os povos, em especial os de
língua portuguesa, e assegurar a defesa e a promoção da cultura
portuguesa no estrangeiro; (este aspeto de extraterritorialidade, i.e., a

Hugo Almeida 98
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tarefa do Estado e dos agentes culturais de promover a cultura


portuguesa e fomentar as relações culturais com outros povos também
está previsto no art. 4.º da Lei de Bases, já a especial relação com os
países de língua portuguesa também decorre do princípio do art. 7.º/4
nas relações internacionais).
- 42.º (Liberdade de Criação Cultural):
• n.º 1: É livre a criação intelectual, artística e científica (uma aceção ampla de
cultura inclui todos estes aspetos);
• n.º 2: Proteção legal dos direitos de autor e de invenção, proteção e
distribuição da obra. (É um DLG, de proteção da criação do particular, mas que
ainda assim depende de interposição legal - Código da Propriedade Intelectual)
- 43.º (Liberdade de Aprender e Ensinar):
• Podemos entender o ensino (bem como a ciência e a formação) perecem a uma
aceção mais ampla de cultura (nos quais a liberdade de ensinar é um Direito
Cultural, na formulação dos DESC)
• Mais importante: o artigo 43.º/2: a não identificação com qualquer filosofia,
estética, política, ideologia ou religião, sendo vedado elevar qualquer uma delas
ao conteúdo da ação do Estado no âmbito educativo e cultural.
→ Longe de se vedar a intervenção do Estado na cultura, que aliás, é uma tarefa
do Estado no que toca à sua promoção, preservação e valorização (arts. 9.º als. e)
e f) e 78.º/2), não se permite que estas ações se limitem à cultura que o Estado
considera como “digna de se proteger”, nem permitir que haja um “controlo
político” da cultura ou tentativa de impor uma “cultura única ou oficial”.
De igual modo, não pode ser imposto uma filosofia, estética oficial, ideologia ou
religião oficial. Tal foi afirmado pela Assembleia Constituinte.
Defende-se o pluralismo de expressão, corolário inerente ao princípio do
Estado de Direito Democrático (art. 2.º), bem como o princípio recorrente do
mesmo artigo da democracia cultural, que implica a tolerância e igual
dignidade das expressões culturais.

Note-se ainda que a promoção da língua portuguesa (art. 9.º al. f) e 11.º) e
políticas ligadas à identidade nacional (como a promoção da nossa cultura no
estrangeiro - art. 78.º/2 al. d)) e as políticas de democratização da educação e
cultura, com vista a expandir o seu acesso e atingir uma verdadeira “democracia
cultural” (arts. 73.º ss.) não são contrárias ao artigo 43.º/2, na medida em que
visam a realização do Estado de Direito Democrática e respeitam o pluralismo.

- 69.º, 70.º e 72.º: o acesso à cultura em todas as faixas etárias, mas em especial a
efetivação dos direitos sociais e culturais na infância, juventude e terceira idade, visando
o seu desenvolvimento integral (expressão do 69.º/1), realização pessoal e
participação ativa na comunidade (72.º/2). O artigo 70.º al. a) prevê a proteção
especial para a efetivação dos DESC no ensino, formação e culturas, prevê-se também a
colaboração com “associações e fundações de fins culturais e as coletividades de cultura
e recreio” (mais uma vez a ideia de não-exclusivismo do Estado) e a criação de

Hugo Almeida 99
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condições para o gosto pela criação livre (incentivando o exercício do direito de criação
cultural, que é um DLG – art. 42.º).
- 73.º - Direito à Educação e à Cultura
• Para além de se poder considerar o ensino e a criação científica incluído nos
direitos culturais, o art. 73.º/3 prevê especificamente a democratização da
cultura (garantia da “democracia cultural” do artigo 2.º), através da colaboração
com agentes, incluindo órgãos de comunicação social (neste aspeto, a existência
de uma imprensa e meios de comunicação sociais lives – garantidas pelo art.
38.º - são garantias da criação, quer da divulgação e acesso à cultura).
- 74.º al. d) “garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos
graus mais elevados de ensino, da investigação científica e da criação artística”
- 79.º: Cultura Desportiva
- 37.º Liberdade de Expressão e Comunicação
- 26.º/1 Direito à Identidade Pessoal e Livre Desenvolvimento da Personalidade (como
foi estudado no Capítulo II, a reserva da vida privada, bem como a sua dimensão
dinâmica – o livre desenvolvimento da personalidade – abrangem os direitos de livre
expressão e criação cultural e intelectual)
- 225.º: A autonomia das RAA e RAM tem uma base cultural.
- 58.º/2 al. d) Direito ao Trabalho (DESC): Incumbe ao Estado promover a formação
cultural dos trabalhadores.
- 66.º/2 al c) (Património arquitetónico, paisagístico e ambiental como dimensões do
património cultural material do país, cujo interesse público histórico ou artístico deve
ser preservado).
- 90.º Objetivos dos Planos: “coordenação da política económica com a política social,
educativa e cultural”
Os vários sentidos de cultura
Do mais amplo ao mais estrito:
a) A cultura como expressão da identidade de uma comunidade/povo
(pode incluir símbolos, formas de apreensão e transmissão do
conhecimento, costumes e usos, dieta, língua e dialeto, formas de cultivo
da terra e do mar)
b) A cultura como educação, ciência e cultura stricto ou strictissimo sensu
(esta é aceção de cultura defendida no art. 74.º)
c) Cultura por exclusão da educação ou ciência (em termos negativos),– em
termos positivos: a criação e fruição de “bens culturais40” (art. 78.º)

40
O conceito de Bem Cultural é jurídico. O art. 14.º/1 da Lei de Bases define os bens culturais como
“bens móveis ou imóveis (...) que representam um testemunho material com valor civilizacional ou de
cultura”, no cerne da qualificação de um bem cultural está interesse cultural, que consiste no bem
refletir valores de memória, antiguidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade (art.
2.º/2 Lei de Bases).

Hugo Almeida 100


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

A cultura é autónoma da política, não cabendo ao Estado identificar um modo único de


cultura. Mas a relevância coletiva que esta matéria tem impele os poderes públicos a
não serem indiferentes à cultura, impondo sobre o Estado o dever de definir uma
política de acesso e fruição dos bens culturais.
Porém, foi só com o Estado social que se introduziram em pleno os “direitos
culturais”. São parte da formulação dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. A
par dos direitos económicos visam a realização pessoal e bem-estar, mas neste caso,
não económico, através do trabalho, ou segurança social na necessidade, mas pela
realização cultural e espiritual. As exigências de acesso à educação e cultura (direitos
culturais), mais do que um bem a ser fruído, foram vistas pelo Estado Social como
exigências da transformação da condição operária, do desenvolvimento da
personalidade, condições de um padrão elevado de participação política e social e do
nivelamento das desigualdades.

Existe um Direito da Cultura?


Apesar de não ser um ramo autónomo, é possível construir, tanto pela conjugação das
normas constitucionais (já indicadas) sobre a cultura, quer por normas que versam
sobre a matéria cultural, que são transversais a diversos ramos, como o Direito
Administrativo (em especial: Direito do Ordenamento do Território e Ambiente, Direito
do Património Cultural, Direito da Língua e Direito do Espetáculo), Direito Fiscal da
Cultura (benefícios para atividades culturais, mecenato, etc.), no Direito Civil (Direitos
do Autor, Direitos Reais sobre Bens Móveis ou Imóveis de valor cultural), Direito Penal
e Contraordenacional da Cultura (crimes como exportação ou transferência ilícita,
deslocamento, destruição de património cultural – p.e.p. pelo Título XI Lei de Bases e
no CP)
Jorge Miranda – cultura é aquilo que possui destaque coletivo por ter um significado
espiritual; são bens não económicos e também envolvem a criação humana,
contraposta a simples expressão da natureza
5 tipos de direitos subjetivos fundamentais, relativos ao direito à cultura:
i. direito de criação cultural;
ii. direito de fruição cultural;
iii. direito à participação nas políticas públicas de cultura;
iv. direitos de autor;
v. direito à fruição do património cultural
Lei de Bases do Património Cultural

• 1º/1 – construção da identidade nacional e democratização da cultura. Esta lei


contribui para a democratização da cultura (referência aos artigos 2º e 9º da
CRP);
• 2º/1 – conceito e âmbito do património cultural;
• 3º - interesse cultural relevante (enumeração exemplificativa);
• 4º - integração no património cultural dos bens imateriais (prevista num decreto-
lei de desenvolvimento da lei de bases – DL nº 139/2009);

Hugo Almeida 101


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• 5º - identidades culturais (referência aos 7º/4 e 78º da CRP);


• 5º/2 – apesar de hoje em dia não existirem estados nómadas, a relevância do
território é diferente da do povo e do poder político. Logo, o património
lusófono sito fora do território nacional merece também proteção por parte do
Estado português;
• 6º - planeamento, inventariação, eficiência, coordenação entre o Estado e a
sociedade civil, inspeção e prevenção, informação, equidade (ex. de encargos
com o património cultural: necessidade de expropriação de um terreno para a
proteção de um elemento do património cultural), responsabilidade, cooperação
internacional;
• 7º - desenvolvimento da personalidade através da realização cultural;
• 10º - estruturas associativas de defesa do património cultural. A legitimidade
procedimental administrativa pode ser individual ou coletiva, na representação
de interesses próprios ou difusos. A proteção cultural é um destes interesses
difusos que pode legitimar a iniciativa destas estruturas associativas;
• 11º - dever fundamental (78º/1 CRP) de preservação, defesa e valorização do
património cultural;
• 13º - componentes específicas da política do património cultural;
• 14º - bens culturais são todos aqueles que representem testemunho material com
valor de civilização ou de cultura;
• 15º - interesse nacional, público ou municipal;
• 15º/7 – os bens culturais imóveis que sejam considerados, pela UNESCO, como
património mundial, integram os bens classificados como de interesse nacional.
• 16º - formas de proteção legal;
• 18º - classificação de um bem como património cultural (mediante ato final de
um procedimento administrativo). Bens móveis de interesse municipal – deve
haver consentimento dos proprietários (conflito com o direito de propriedade,
resolvido por meio do princípio da proporcionalidade e da concordância prática);
• 21º - deveres especiais dos detentores (ex.: facilitar a administração do
património cultural, proceder a uma adequada conservação do bem, etc.);
• 22º - obrigações que incumbem ao Estado;
• 32º - dever de comunicação das situações de perigo;
• 33º - medidas provisórias de salvaguarda de bens classificados ou suscetíveis de
ser classificados enquanto património cultural, em casos de perigo para a sua
integridade;
• 37º– direito de preferência dos comproprietários, Estado, RA e municípios (por
esta ordem) na transmissão de bens classificados (ou em vias de ser
classificados) como património cultural;
• 40º - impacto de grandes projetos e obras, nomeadamente quanto ao risco sobre
o património cultural;
• 48º - nenhum imóvel classificado nos termos do art. 15º pode ser deslocado ou
removido, exceto em situações de força maior ou de manifesto interesse público

Hugo Almeida 102


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• 50º - expropriação de bens imóveis classificados ou em vias de classificação


como património cultural (caso curioso da alínea c. – o interessado pode não
desejar proceder às diligências que lhe são requeridas para a conservação do
bem classificado como património cultural, e preferir requerer a expropriação do
mesmo);
• 65º - a saída de bens classificados como património cultural do território
nacional é interdita, fora os casos especificamente previstos;
• 69º - regime de comércio e restituição (ação de restituição – incide sobre bens
que foram confiscados por outros Estados, que foram levados para outros países
em consequência de uma guerra, etc.).

A UNESCO, em 2003, aprovou uma Convenção para a Salvaguarda do Património


Cultural Imaterial.
2º - definição de património cultural imaterial (ex.: tradições e expressões orais, artes e
espetáculo, técnicas artesanais, etc.).
Exemplos em Portugal: fado, canto alentejano, chocalho, etc.
A Convenção exige que cada um dos Estados tenha uma lei própria, que que estabeleça
um regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial

Decreto-Lei nº 139/2009 – regime jurídico de salvaguarda do património cultural


imaterial

• 1º - objeto e âmbito de aplicação;


• 2º - princípios gerais: prevenção, equivalência, participação, transmissão,
acessibilidade;
• 4º - deveres especiais das entidades públicas;
• 5º - iniciativa da inventariação (Estados, RA, autarquias locais, grupos,
indivíduos, comunidades ou ONG de interessados);
Nota: nem todo o património imaterial é património imaterial mundial.

• 21º ss. - Comissão para o património cultural imaterial.

Hugo Almeida 103


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Capítulo VI – Direito à Educação

O Estado e o Regime do Direito à Educação


Ø Existirá, na expressão de Jorge Miranda, uma “Constituição da Educação”?
Um conjunto articulado e unidade de sentido de valores em torno do fenómeno
educativo.
Quais os benefícios da educação?
• Benefícios ao nível do bem-estar individual:
i) Enquanto consumidores de algo que lhes traz satisfação intelectual,
cultural, social, etc.
ii) Enquanto produtores pela melhoria das suas capacidades produtivas
e cívicas – a educação é vista como um investimento pelo Estado.
• Benefícios ao nível do bem-estar da comunidade em geral (benefícios externos
ao indivíduo).
Qual o papel do Estado?
Ø Definir a educação mínima ou obrigatória?
Ø Financiar a educação obrigatória?
Ø Incentivar a educação não obrigatória?
Ø Controlar as situações de concorrência imperfeita?
Ø Promover a produção de informação?
Ø Fiscalizar a qualidade da educação?
Quais as justificações para existir uma política geral da educação?
Ø A proteção da menoridade, reconhecida enquanto situação de vulnerabilidade,
e também como garantia do direito ao desenvolvimento da personalidade – a
educação deve servir para potenciar que os indivíduos, de forma livre, atinjam o
pleno desenvolvimento das suas capacidades;
Ø Minorar desigualdades, quer de oportunidades laborais (a educação enquanto
meio de assegurar o acesso do direito previsto no artigo 47.º CRP – Liberdade
de escolha da profissão), quer de redistribuição de riqueza.
Ø O poder formativo da Educação (não só na formação técnica e laboral, mas
também na educação cívica, fruição cultural e preparação para a vida em
sociedade);

O Direito à Educação em Instrumentos Internacionais

Ø Artigo 13.º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e


Culturais
• Os pais, sendo responsáveis pela educação dos filhos, têm o direito de:
“escolher para os seus filhos escolas diferentes das criadas pelas autoridades

Hugo Almeida 104


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

públicas sempre que aquelas satisfaçam as normas mínimas que o Estado


subscreve e aprova em matéria de ensino, e de fazer com que os seus filhos
recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas
próprias convicções”.
“O direito à liberdade de educação implica a obrigação dos Estados membros
(dimensão prestativa do DESC) de tornar possível o exercício prático desse direito,
inclusive no aspeto económico, e de conceder às escolas as subvenções necessárias
para o exercício da sua missão, e o cumprimento das suas obrigações em condições
iguais às de que gozam as correspondentes escolas estatais, sem discriminação
relativamente às entidades titulares, aos alunos e ao pessoal.” - Resolução do
Parlamento Europeu, 1984
A Educação na História Constitucional Portuguesa
• Constituição de 1822
Não havia consagração do direito universal à educação, a educação era vista, não como
um Direito, Liberdade e Garantia, mas como uma liberalidade do Estado e, em
especial, instituições privadas de solidariedade social. Como uma tarefa
programática, mas sem previsão da universalidade ou gratuitidade. Estas disposições
inseriam-se no Capítulo VI, relativo à administração e parte económica, e não no
capítulo de Direitos Fundamentais.
• Carta Constitucional de 1826
Há um “aparente progresso” com a educação passando a estar prevista no capítulo
relativo aos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Portugueses. No entanto,
materialmente, não houve qualquer mudança ao nível da previsão da educação como
direito fundamental. Sendo uma das constituições liberais, de forte cunho individualista,
centrados na trilogia “liberdade-segurança-propriedade”, havia pouco lugar à previsão
de direitos estruturalmente análogos aos DESC, que envolviam, mais do que uma
atitude de respeito e não ingerência pela parte do Estado, de prestação ativa.
Houve, porém, um importante avanço: a previsão do ensino primário gratuito a
todos. Que foi a primeira previsão constitucional da gratuitidade da educação.
Deixou-se de prever no texto constitucional a liberdade de criação de
estabelecimentos de ensino privados. Tratou-se, no entanto, de uma mera omissão,
sem quaisquer efeitos sobre este DF, que continuou a existir, sendo previsto por leis
infraconstitucionais.
• Constituição de 1838
Repetiu a inserção da matéria educativa no capítulo relativo aos direitos e garantias dos
portugueses, retomando o principio da gratuitidade do ensino primário e o dever do
Estado de criação de estabelecimentos que ensinem as ciências as letras e as artes
Ø Referência à liberdade de criação e funcionamento de estabelecimentos de
ensino privados (artigo 29.º) nos mesmos termos que os previstos pela
Constituição de 1822

Hugo Almeida 105


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• Constituição de 1911
É uma Constituição relativamente pobre em matéria educativa, no entanto é marcada
por dois grandes avanços:
i) consagra, não só a gratuitidade (do ensino primário), mas a obrigatoriedade do
ensino;
ii) prevê, pela primeira vez, a neutralidade religiosa do ensino. No entanto, esta
previsão, mais do que prever a secularidade do ensino público, prevê uma verdadeira
“laicidade”, sendo que, não só o ensino público, mas também o privado, estavam
sujeitos a esta neutralidade religiosa.
• Constituição de 1933
A liberdade de aprender e ensinar era prevista no título relativo às “liberdades e
garantias individuais” (análogos aos DLG) – regime cujo legislador constituinte
remete para a lei ordinário -, mas a Educação, Ensino e Cultura estavam reguladas
num título próprio.
Sendo a 1.ª Constituição portuguesa do Estado Social, foi a primeira a prever a dupla-
vertente da Educação, quer como DLG individual, quer como Direito Social:
Ø Na dimensão de direito social, apresenta quatro vetores fundamentais:
a. reforçar o papel das famílias na educação; (conceção
corporativista)
b. funcionalização da política educativa aos valores próprios do
Estado Novo; (em total oposição com o nosso art. 36.º/2 CRP,
que proíbe a programação ideológica do ensino)
c. verdadeira incumbência estatal de assegurar a oferta de ensino –
acentuada pela revisão constitucional de 1971 que estabeleceu
progressivamente a oferta generalizada dos vários graus de
ensino e elevou a obrigatoriedade do ensino primário para o
ensino básico;
d. garantia de existência do ensino privado, através do
reconhecimento da liberdade de criação e funcionamento de
escolas privadas, com “ampla margem de atuação”
e. Abandona-se a “laicidade educativa” preconizada na Constituição
de 1911, para prever um ensino público “independente de
qualquer religião, mas que não a deve hostilizar”, abrindo
caminho à admissibilidade da oferta do ensino religioso no ensino
público.
• Na Revisão constitucional de 1935, prevê-se que “o ensino público seria
orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs tradicionais do país”,
abandona-se o regime de isenção (independência a qualquer religião) da redação
original.
• Este movimento havia de culminar na Revisão de 71 que previa a religião
católica apostólica romana como religião tradicional danação portuguesa

v Constituição de 1976

Hugo Almeida 106


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Ø Inserção do Direito à Educação, na Parte I em dois núcleos de Direitos


Fundamentais, que juntos formam a chamada “Constituição da Educação”
i. No Título I como DLG, que exigem do Estado uma atitude de
reconhecimento e respeito – sobretudo o artigo 43.º.
ii. No Título II como DESC, que exigem uma atitude de contribuição e
efetivação por parte do Estado - artigos 73.º a 77.º, entre outros (como
veremos, nem todos os direitos previstos nesta parte têm natureza e estrutura
de DESC).
Regime do Direito à Educação como DLG, DESC e DF de natureza análoga

Ø Educação como Direito, Liberdade e Garantia.


v Artigo 43.º CRP (Liberdade de Aprender e Ensinar)
N.º 1: Previsão genérica da liberdade de aprender e ensinar;
N.º 2: Neutralidade doutrinária da educação e cultura (a não programação do
ensino público segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas,
ideológicas ou religiosas). – Contraste com o ensino funcionalizado segundo as
diretrizes ideológicas do Estado Novo e os princípios e morais tradicionais
católicas, na vigência da Constituição de 1933;
N.º 3: Não confessionalidade do ensino público (garantia da neutralidade
prevista no n.º anterior);
N.º 4: Direito de criação de escolas particulares (e cooperativas) – é uma
manifestação do Direito à Iniciativa Privada – art. 61.º (DF de natureza análoga)
e contraponto ao n.º3. Os n.ºs 3 e 4 do art. 43.º CRP devem ser conjugados com
o n.º 5 do artigo 41.º CRP, que garante a liberdade do ensino de qualquer
religião, o que permite a criação de escolas particulares de natureza confessional
(fiscalizadas nos termos da lei, de acordo com o artigo 75.º/2 CRP).

v Podemos considerar outras manifestações ou garantias de um “Direito à


Educação” no título relativo aos DLG:
v 36.º/5: Direito e dever dos pais de educação dos filhos.
v 26.º/1: A educação, na sua vertente individual, é uma forma de exercer o
direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

Ø Educação inserida nos DESC (enquanto no Capítulo dos “Direitos e deveres


culturais”).
v Artigo 73.º: Direito à Educação, cultura e ciência (esta trilogia forma o
núcleo dos Direitos Culturais, o Direito à Educação, para além de um
DF em si, é instrumental à Cultura e à Ciência, na medida em que
potencia a sua produção e fruição pelos cidadãos).
N.º2: Promoção da democratização da educação;
Promoção de condições para que, através da escola e de outros meios
formativos, se superem as desigualdades económicas, sociais e
culturais.
Desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância (…) para o
progresso social e participação democrática na vida coletiva.

Hugo Almeida 107


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

A educação enquanto “equalizador” das oportunidades (não só


económicas, mas também sociais e culturais – com vista à realização
espiritual e cultural do individuo e acesso a meios de fruição culturais.
É de especial importância a previsão da “democratização da educação” (a
Participação na gestão democrática das escolas, que é garantida a
professores e alunos pelo artigo 77.º CRP), de outros meios de formação
para além das escolas (formas extracurriculares de Educação também
são promovidas pelo Estado), e da Educação para a participação da vida
democrática – Educação e(m) Democracia.
v Artigo 74.º (Ensino)
N.º1: Direito ao ensino e garantia do direito à igualdade oportunidade de
acesso e de êxito escolar (como veremos, este direito tem natureza análoga à de
DLG).
N.º2: São normas programáticas, que exigem uma concretização do Estado:
a) Ensino básico universal, obrigatório e gratuito;
d) Garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos
graus mais elevados de ensino, da investigação científica e criação artística
e) Estabelecer a progressiva gratuita de todos os graus de ensino (é um DESC
que se vai concretizando progressivamente – aplica-se o Princípio da Proteção
da Confiança e da reserva do possível)

v Artigo 75.º ( Ensino público, particular e cooperativo)


Cabe ao Estado criar uma rede de estabelecimentos públicos que cubra as
necessidades de toda a população (sem prejuízo de, através de Contratos de
Associação, escolas particulares poderem suprir a falta de oferta pública numa dada
localidade) – n.º1; o Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo
nos termos da lei41 - n.º2.

v Artigo 76.º (Universidade e acesso ao ensino superior)


N.º1: Acesso à universidade (igualdade de oportunidades no acesso);
N.º2: Autonomia universitária (“as Universidades gozam de autonomia
estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira”).

v Artigo 77.º (Participação democrática no ensino):


No entendimento de Jorge Miranda, o artigo 77.º aplica-se, não só para a
participação democrática no ensino público, mas também no ensino particular e
cooperativo.
N.º1: Direito de participação (de alunos e professores) na gestão democrática das
escolas;
N.º2: Direito de participação (de associações de professores, de alunos, de pais e
de instituições de carácter científico) na definição da política do ensino.
v O “Direito à Educação” noutros DESC:
• 70.º/1 al. a) – Os jovens gozam de especial proteção no ensino, na formação
profissional e cultura;
• 67.º/2 al. c) – Incumbe ao Estado cooperar com os pais na educação dos filhos;

41
Atualmente: DL n.º 152/2013 – Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo não superior.

Hugo Almeida 108


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

• Art. 66.º/2 al. g) – Promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do


ambiente;
• Art. 58.º - Promover a formação cultural e técnica e valorização profissional dos
trabalhadores.
v Enquanto Tarefa do Estado – art. 9.º al. f) Assegurar o ensino e a valorização
permanente (da língua portuguesa).
Jorge Miranda considera que, no elenco dos arts. 74.º a 77.º CRP, que estão no título
dos DESC, podemos encontrar quatro DF de natureza análoga (art. 17.º CRP), que
têm a natureza e estrutura de DLG:
• Art. 74.º/1: Tem densidade suficiente para ser considerado um DLG, impõe
sobre um Estado um dever de reconhecer e não prejudicar a igualdade de acesso
ou de êxito individual;
• 76.º/2: É também um direito que exige um reconhecimento e respeito, por parte
do Estado, da autonomia das Universidades, não exigindo nenhuma
efetivação.
• 77.º/1 e 2: É de entendimento unívoco, quer do Tribunal Constitucional, quer de
JM, que são DF de natureza análoga (tem uma natureza semelhante aos
direitos de participação da vida pública);
Considerando, assim, para além do “Direito à Educação” como DLG (art. 36.º) e como
DESC (p.ex., 74.º/2 ou 75.º) , também os DF de Natureza Análoga (74.º/1, 76.º/2 e
77.º), podemos distinguir três níveis orgânicos de quem pode legislar em matéria de
educação:
Ø Primeiro nível – Todos os DF ou parte deles, que estejam incluídos nas Bases
do Sistema de Ensino42 – é reserva absoluta de competência – artigo 164.º al. i)
CRP; Só a AR pode legislar.
Ø Segundo nível – Dimensões do direito previsto no artigo 43º. CRP e DF de
natureza análoga (como o art. 74.º/1 CRP), que não estejam abrangidas pelas
bases do sistema de ensino – regime orgânico próprio dos DLG (artigos 18.º e
165.º/1 al. b). Reserva Relativa de Competência da AR – pode ser objeto de
legislação através de Lei ou Decreto-Lei Autorizado.
Ø Terceiro nível - todos os demais (DESC, que não tenham natureza análoga ou
não estejam abrangidos pelas Bases do sistema de ensino) não estão sujeitos a
um regime orgânico particular, são competências concorrenciais.

Direito Fundamental da Educação e Direitos Fundamentais Culturais

Ø Como vimos, é na Constituição Cultural (arts. 73.º-79.º CRP) que em primeiro


plano vamos encontrar os principais pontos de contacto dos direitos
fundamentais da educação com os restantes DF. A Constituição da Educação,
não só é subsidiária à Constituição Cultural, como encontra nela a sua
referência.

42
Conteúdo da Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro – Lei de Bases do Sistema Educativo.

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Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Ø Implicações ainda da dignidade da pessoa humana (art. 1.º CRP). Sendo a


DPH o princípio ou valor que radica todos os DF e que serve de critério último
de interpretação, as questões levantadas pelo Direito à Educação têm
implicações na Dignidade da Pessoa Humana. Olhando para DPH da perspetiva
da Liberdade/Autonomia individual, o direito à educação é instrumental ao livre
desenvolvimento da personalidade. De igual modo, a não programação
ideológica, religiosa, etc. da educação, é uma garantia do respeito pela liberdade
de consciência e reserva da vida privada (na vertente moral), que também se
radicam na Dignidade Humana.
O artigo 43.º/2 CRP, que proíbe o dirigismo e programação da educação é um
verdadeiro DF, sendo:
• Oponível ao Estado (eficácia vertical que resulta diretamente da CRP proibir
estas diretrizes na educação pública);
• Também é oponível a entidade programadora privada, na media em que a
liberdade de aprender e ensinar, é incompatível com a ideia de um ensino
totalmente arredado de espírito crítico e não pluralista. Ou seja, seja a
entidade pública ou privada, impõe-se sempre um ensino pluralista e baseado no
ensino crítico, rejeitando-se a pura doutrinação acrítica.

Ø Problema da confessionalidade do ensino – Artigos 41.º/4 e 5 (deve ser


entendido como limites imanentes ao artigo 43.º/3). A liberdade religiosa, na
vertente da sua liberdade de ensino é também um DLG.
Direito Fundamental da Educação e Direitos Fundamentais dos Trabalhadores

Ø Liberdade de escolha da profissão de docente – Artigo 47.º (conjuga-se com a


liberdade de ensinar – art. 43.º/1)
• A liberdade de ensino não implica a liberdade de qualquer um poder ensinar.
Admitem-se restrições e condicionamentos ao acesso à profissão de docente. No
entanto, não podem nunca ter como fundamentos razões de ordem politica,
filosófica, religiosa ou outras análogas, nem tão pouco uma qualquer capacidade
moral, mesmo que travestida no critério vago de idoneidade43: o vetor essencial
deve ser o da capacidade cientifica e pedagógica.
• Estas restrições têm como fim garantir-se que se preenchem requisitos
mínimos pedagógicos e científicos.
Artigo 59.º/2 al. f) – Incumbe ao Estado assegurar a proteção das condições de trabalho
dos trabalhadores estudantes.
Direito Fundamental da Educação e Direitos Fundamentais da Economia e
Propriedade
Argumentos que um individuo pode invocar para criar uma escola particular: ar tigo
43.º/4 CRP, artigos 61.º e 62.º CRP (livre iniciativa privada e cooperativa, direito de
43
Critério que foi usado durante o Estado Novo para restringir o acesso a cargos públicos e políticos.

Hugo Almeida 110


Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

propriedade privada). 75.º/2 – o ensino particular está sujeito à fiscalização do Estado,


que deve assegurar a qualidade pedagógica e científica do ensino/conformidade com os
programas, bem como, na interpretação de Jorge Miranda, à luz do artigo 43.º/2 que este
ensino particular respeita o raciocínio crítico e o pluralismo.
Ø Jorge Miranda entende que, o artigo 77.º/1 também se deve aplicar a
estabelecimentos de ensino particulares, sendo garantindo o direito dos alunos e
professores de participação na gestão democrática.
Formas de interação entre o Estado e os particulares:
• Contratos de Associação: visam assegurar o ensino de alunos do ensino básico
onde a oferta estatal é insuficiente, embora a necessidade do carácter
subsidiário dos contratos de associação tenha vindo a ser questionada.
• Cheque-Ensino: o Estado, em vez de financiar diretamente o estabelecimento,
distribua um cheque por todos os alunos. Opera numa lógica de concorrência
entre a oferta pública e privada – e já não de supletividade.

Questão das propinas universitárias


Ø São um preço ou uma taxa? Cf. Ac. 148/94 TC, no qual estava em causa uma lei
que previa o aumento do valor das propinas. Considerou-se que art. 74.º/2 al. e)
CRP – progressiva gratuitidade de todos os graus de ensino) dispõe de densidade
normativa suficiente para vincular o Estado. Não impede a atualização do valor
das propinas (por exemplo, conforme a inflação), ou o seu congelamento, apenas
impede que o legislador “subverta o funcionamento de um sistema de ensino
público, claramente definido na mesma CRP”, ou seja, não se admitem
aumentos drásticos num sentido manifestamente contrário da Constituição.
• Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, admite-se a “reserva do possível”,
como fundamento de restrições admissíveis numa conjetura de incapacidade
financeira do Estado. No entanto, devem-se sempre salvaguardar o conteúdo
mínimo e a necessidade e proporcionalidade da restrição (artigo 18.º/2 e 3
CRP).

Questão do ensino em casa (homeschooling)


• Os pais podem invocar: art. 43.º CRP e art. 2.º do Protocolo 1 da CEDH.
Artigo 4.º Decreto-Lei n.º 70/2021, entende-se por:
a) «Ensino doméstico» aquele que é lecionado no domicílio do aluno, por um
familiar ou por pessoa que com ele habite;
b) «Ensino individual» aquele que é ministrado por um professor habilitado a
um único aluno fora de um estabelecimento de ensino;

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