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Introdugao Como nasce, se transforma e pe possivel produzir e reproduzir um meio que faca sentido quando se esti numa situagdo mareada por profundas transformagoes politicas esociais,em que os modos de vida ede pensamento soos ‘mais variados ¢ as crises demograficas parecem ter atingido pata- mares inigualiveis? Como, de modo geral, individuos ¢ grupos constroem eviv relagao como real numa sociedade ab por uma dominagao externa sem precedentes? Essas sio questoes ‘quese impoem quando se percorre terreno prodigi cons. titui o México conquistado e dominado pelos espanhiis, do sécu Joxvtaoxvm Nao para saciar uma sedede exotismo earcaismo que hada tem em comum com os procedimentos hist6ricos e antropo: \égicos, mas para compreender melhor o que pode ter significado a expansio do Ocidente moderno na América. Experiéncia total- ‘mente inédita,e ainda mais singular por sera América o nico con tinente que manteve pouqufssimo contato com o resto do mundo durante dezenas de milénios. Experiéncia notavel, pela riqueza dos {estemunhos que permitem elucidé-ta e pelas muiltiplas indaga- ‘goes que nao cessam de suscitar a respeito dos indios e, mais ainda, denésmesmos. Procurei, alhures, acompanhar a hist6ria do corpo, das alian- sas eda introdugio de uma sexualidade ocidental e, em seguida, 0 destino das representagSese das préticas do poder no mundo indi- xgena. Essas primeiras etapas ajudaram a descobrir e a reavaliar alguns dos desafios ¢ instrumentos da cristianizagao do México, a evidenciar a pluralidade dos registros culturais entreas populagdes indigenas e a analisar as modalidades de uma criatividade prati- camente incessante, Aqui, preferi examinar outros campos € construir outros objetos, mcentrando-me tanto em desvelar a modificagio das formase dasestratégias quanto em descrever con- tetidos.A revolugao dos modos de expresso e comunicagito,asub versio das memérias, as transformagdes do imaginério,o papel do individuo e dos grupos sociais na génese de expressoes sincréticas nao podiam deixar de interessaraohistoriador do México colonial. Tais vias permitem explorar os ganhos jé consideraveis da demogritica, econdmicae social e, ao mesmo tempo, ultrapassara isdo sem relevo, redutora ¢ longinqua dos mundos indigenas, ge- ralmente imposta pela aparente exaustividade das estatisticas e pela rigidez dos modelos prontos. istoria E preciso reconhecer que as trilhas abertas estavam pratica- mente desertas. A pesquisa mexicanista de certo modo deixou de lado esses trés séculos, preferindo, a0s indios da colonia, seus remo- tos descendentes ou seus prestigiosos antepassados. Afora algumas brilhantes excegdes,'aetnologia sistematicamenteevitouos tempos da dominagao espanhola que transformaram © México, escamo- teando numas poucas paginas processos de infinita complexidade. Do mesmo modo que a arqueologia e a historia pré-hispanicas .geralmente esqueceram que a maior parte dos testemunhos relati- vos a época pré-cortesiana foi elaborada ¢ redigida no contexto 4 conturbado da nascente Nova Espanha, e que constitui, antes de tudo, um reflexo desse periodo. Historiadoreseetndlogos, de maneira geral, negligenciaram a revolugao dos modos de expressdo, ou seja, a passagem da picto- grafia & escrita alfabética no México do século xv1. E, no entanto, trata-se provavelmente de um dos principais sustentaculos da dominagao espanhola: basta pensarmos que, em algumas décadas, as nobrezas indigenas nao apenas descobririam a escrita, como muitas vezes@aliariam as formas tradicionais de expressio— fun- dadasnna imagem — que continuavam a cultivar. A dupla natureza das fontes indigenas do século xv1 (pintadas levaa considerar a remodelagem ea alteragao do olharimplicados em colocar as coisas por escrito, e também incitaa medio contro- le que meios indfgenas continuaram ou nao a exercer sobre a comunicaga0, ou pelo menos sobrealgumas de suas modalidades. A utilizagao da escrita modificou modo de registrar o passado. Diante disso, nao ha como nao indagar acerca da evolugio da orga- nizagao da memoria indigena e das transformagées sofridas por seu contetido, acerca dos distanciamentos em relagio as antigas sociedadeseo grau deassimilagio das novas formas de vida. Sobre- tudo porque, até agora, essa questdo tampouco suscitou interesse Mas as modificagies das relagdes com o tempo eo espago sugerem ‘uma interrogagao suplementar, mais global e mais dificil de en- frentar: em que medida a percepgao indigena do real e o imagind- rio dessas populagdes teriam mudado, de que maneira e sob que tipo de influéncia? A relativa pobreza das fontes, de fato, nao per- mite reconstituir um “inconsciente étnico” ou “cultural”, menos ainda perceber suas metamorfoses. £ preciso que nos limitemos a algumas constatagées modestas, colocando alguns pontos de refe- réncia. Equeacompanhemoscertos casos individuais,em suasten- tativas de produzir sinteses eelaborar compromissos entre esses mundos. Casos que fazem lembrar que a criagao cultural cabe, nanuscritas) nos 6 sempre, tanto aos individuos quanto aos grupos. Modos e técnicas de expresso, memérias, percepgdes do tempo e do espago eimagi- nérios fornecem, assim, matéria para explorar o vaivém dos em préstimos,a assimilagio dos tragos europeus e suas deformagoes, as dialéticas do mal-entendido, da apropriagio e da alienagao.Sem perder de vista as estratégias politicas e sociais em que se encon- tram imersos, que fazem com que cada trago reinterpretado, cada conceito, cada pritica, possam reafirmar uma identidade ameaca- da, ao mesmo tempo que sio passfveis,a longo prazo, de gerar uma Ienta dissolugao ou uma reorganizagao global do conjunto que os recebeu. Eassim que tenho a intengao de aprender a dinamica dos conjuntos culturais que os indios da Nova Espanha reconstroem incansavelmente. O conjunto dessas éreas de pesquisa searticula, nem é preciso dizer, em torno de uma reflexao que busca no tanto penetrar os ‘mundos indigenas ¢ dali retirar uma “autenticidade” milagrosa- ‘mente preservada ou irremediavelmente perdida, mas avaliar res séculos de um processo de ocidentalizagao em suas manifestagoes ‘menos espetaculares, eventualmente mais insidiosas. Tal escolha corresponde, devo reconhecer, tanto & orientagao deliberada de ‘nossa problemitica quanto aos limites inerentes as fontes. ‘Uma documentagao consideravel, espalhada pelo México, Espanha, Italia, Franga ¢Estados Unidos, permiteestudar os indios da Nova Espanha ou, mais precisamente, aprender o que eles representavam aos olhos das autoridades espanholas. Uma popu- lagao de tributirios, de pagios a serem cristianizados e, posterior- mente, de neéfitos a serem vigiadose denunciados, pueblosa serem ctiados, deslocados, concentrados, segregados dos povoados espa- his. 0 olhar colonial, que contabiliza os corpos, os bens e as almas, permite perceber perpetuamente 0 encontro, o choque entre uma vontade ilimitada de controle e grupos que (voluntaria- mente ou nao) concordam em se curvar a ela. Essas fontes inspira- 6 ram, aliés, uma historia institucional, demografica, econdmica e social dos indios da colonia, ilustrada com talento pelos trabalhos de Charles Gibson, Sherburne F Cook, Woodrow Borah ¢ Delfina Lopez Sarrelangue. Para completar esse olhar, dispomos da obra excepcional dos cronistas eclesidsticos do século xv1, Motolinia, Sahagiin, Durdn, Mendieta e varios outros, preocupados — para acabar com a idolatria— em descrever as sociedades indigenas de antes do contato, mas também preocupados em conservar delas 0 «que Ihes parecia melhor. Sua abordagem, notavel em seu tempo, prefigura o procedimento etnografico, mas sua densidade e seu cardteraparentemente exaustivo ameagam com freqiiéncia masca- rarasinflexdes sutis ou manifestasa que sujeitaa realidade indige- na. B, previsivelmente, esses autores exploram 0 mundo indigena utilizandoesquemase vocabuldrioseuropeus.’ Muitas vezes,0exo- tismo quesentimosao ler seu testemunho emana,na verdade, mais da Espanha do século xvi do que das culturas indigenas. Seja como for, essas fontes delineiam de modo incomparavel os esquemas fundamentais da percepsao global dos mundos indigenas no momento da Conquista e, acrescentemos, a0 longo de todo o sécu- Jo xvi. Pois lamentamos que esses textos, abundantemente explo- rados pelos arqueslogos e historiadores para descrever as “reli- sides’, as sociedades, as economias antigas, tenham tao raramente servido para langar luzes sobre o mundo que os inspirou e que ja estava cristianizado e aculturado quando de sua redacao. Restam as fontes indigenas. Por mais paradoxal ou surpreen- dente que possa parecer, 0s indios do México colonial deixaram uma quantidadeimpressionante de testemunhosescritos. Havia af ‘uma paixdo pela escrita, muitas vezes ligada a vontade de sobrevi- ver, de salvara mem@riada inhagem, da comunidade,ao intuito de preservaras identidades osbens...£0 caso doshistoriadorese dos pairocos indligenas, que os trabalhos de Angel Maria Garibay con- tribuiram a conhecer melhor, mas sobre os quaisainda ha muitoa ” dizer. £0 caso de uma abundante literatura mais obscura, geral- mente andnima, surgida no seio das comunidades indigenas —os Anais, 0s Titulos Primordiais —, que desvela em numerosas re- ‘ides a existéncia precoce de uma pratica da escrita e de um cuida- do com a expressio totalmente original. A que se junta por toda parte, mais estereotipado, mais sujeito as imposigdes do direito espanhol, 0 imenso acervo constituido por cartérios e municipali- dades indigenas, testamentos, atos de compra ¢ venda, doagoes, deliberagdes econtabilidades,redigidosem lingua indigena, para os quais James Lockhart e outros chamaram a atengao dos pesquisa: dores. E verdade que s6 0s nobres e notaveis escreviam. Mas, de qualquer modo, € preciso que nos livremos do cliché “povos sem escrita’, Em muitos pueblos do México, manejava-se a pena com mais freqiiéncia,e talvez melhor, do quem aldeias de Castela ou da Europa na mesma época. B, finalmente, numerosos indios tiveram de prestar contas oralmente de comportamentos ou crengas que a Igreja reprovava. Cada um dos processos e interrogat6rios traz um lote de informagoes, contanto que se saiba pesar 0 que o filtro da escrita, as intengdes do inquiridor, o questionério do juiz, a inter- vengio do notario e do escribano e os imponderaveis da conserva- «gio possam ter acrescentado (ou tolhido) ao testemunho original, Oconjunto dessas fontes é, assim, indissociavel de técnicasde expressdo européias ou de situagdes coloniais. $6 a arqueologiaea anilise das pictografias permitem, em principio, superar este obs- taculo. Em principio, poisaauséncia do filtro ocidental, paradoxal- mente, nao resolve grande coisa. Os indios que pintaram codex, ali nhando sobre papel de amate suas pictografias multicolores, nao deixaram guias de leitura (Figura 1). De modo quea chave eo sen- tido desse modo de expresso, sem equivalente em nosso mundo, escapam-nos ainda, por maisimportantes que tenham sido os tra- balhos realizados nesses titimos anos. Ainda mais na medida em ‘que muitas pecas “pré-hispinicas” foram, na verdade, pintadas 8 ap6s. Conquista e podem nos fazer tomar por trago indfgena uma assimilagdo sutil, uma primeira reinterpretagao quase impercep\ vel... Sombra préxima ou afastada de uma ocidentalizagao, que acompanha inseparavelmente os passos do historiador. A passagem sistematica para aescrita (em qualquer estagio) e, portanto, a impossibilidade de atingir a expressao oral,a inevitavel relagdo com 0 Ocidente na figura do paroco, do juiz, dos tribunais, dos administradores e dos impostos, marcam ¢ fixam os limites dessa travessia dos mundos indigenas. Mas isso nao deve levara crer que, na falta de coisa melhor, estamos condenados a decodificar 0 discurso-sobre-os-indios. Reconheramos, pois, que s6 apreende- mos do mundo indigena reflexos, aos quais se mescla invariavel- mente, e de modo mais ou menos confuso, 0 nosso. Pretender pas sar através do espelho, captar os indios fora do Ocidente é um exercicio arriscado, frequentemente impraticivel e ilusério. A me- nos que nos metamos num emaranhado de hipsteses, obrigados a reconhecer que estas devem ser incessantemente questionadas. Resta, assim, um campo ainda considerdvel, o das reagdes indige- nas aos modelos de comportamento e pensamento introduzidos pelos europeus, o da anélise de sua percepsao do mundo novo, gerado na violencia e muitas vezes no cas pela dominagio colo- nial, Resta captar e interpretar esses reflexos que, por si s6, consti- tuem testemunhos excepcionais, sem nenhum equivalente deste lado do oceano.

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