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Orfandade e herança dos trabalhadores e a miséria da

sua ideologia
Jorge Nóvoa
 

Uma leitura científica do capitalismo, hoje, não pode passar ao largo das relações
existentes, não só entre a teoria e a prática do movimento dos trabalhadores, como também
do inter-relacionamento das expressões particulares deste — pensado como um fenômeno
mundializado. Para se pensar o Brasil como laboratório desta experiência, como qualquer
outro país, a démarche deve ser a mesma. Nela, as questões quotidianas, parciais e sua
articulação com os objetivos mais gerais e estratégicos assumem fundamental importância,
como elementos de formação de classe dos trabalhadores.1  Aqui, é pressuposto
metodo1ógico a história da formação da classe trabalhadora no Brasil como síntese de
múltiplas determinações, pois, ao universalizar a história dos diversos povos, o
capitalismo generalizou a sua essência em infinitas variações de formação de classe. Mas o
que será de fato examinado é a forma como tem sido tratada esta articulação, e como,
finalmente, o movimento operário tem sido vivido por políticas e objetivos estratégicos, que
mudam segundo as conjunturas históricas, mas que, em verdade, quase nunca atendem aos
seus reais interesses finalistas.

A unidade de contrários que se encontra na forma celular do capitalismo mundial, a


mercadoria, encerra a contradição fundamental deste modo de produção internacionalizado.
0 seu funcionamento se apresenta, pois, como uma imensa acumulação de mercadorias,2
propiciada pelo trabalho assalariado e hoje dominada pelo capital financeiro mundializado.3
Mas é também pressuposto aqui que os atores históricos desse processo produzem em
espaço global hierarquizado, onde as antigas compartimentações nacionais e econômicas,
que persistiram ao longo do século XX, não deixam o espaço econômico livre para a ação
livre dos cidadãos do mundo. Não é menos verdade ainda que, no nível político, os
homens e mulheres que compõem as categorias e as classes que vivem do próprio trabalho
são obrigados a enfrentar, sem se darem conta, a força avassaladora da última fronteira
ideológica do capitalismo. O neoliberalismo constrói uma globalização (econômica,
política e jurídica), procurando esconder que, a vida no planeta Terra se organiza a partir de
uma divisão internacional e desigual do trabalho, estruturada a partir de nações dotadas de
forças políticas desiguais. Nesse quadro, a livre ação dos Estados mais fortes submete os
outros, inevitavelmente, a uma hierarquia de interesses, na qual o famoso grupo dos sete
mais fortes domina o mundo. A mesma lógica faz com que o próprio grupo seja, ele
mesmo, dominado pelos Estados Unidos da América, muita embora essa dominação não
seja absoluta e não elimine a concorrência entre os sete países. Isto equivale a dizer que até
o presente momento não existe real vigência de um super-imperialismo americano.

A história e as culturas nacionais são, assim, submetidas pela força onipotente do demiurgo
que organiza o aparente caos inter/nacional: o mercado mundial. Nele, é importante que as
fronteiras nacionais permaneçam existindo para os trabalhadores, sobretudo se as "barreiras
jurídicas" permitirem a exploração desigual da força de trabalho. Pouco importa se as
moedas mudam de nome, pois é o quantun de trabalho, o único elemento comum, que de
fato permite a realização das trocas (que permanecem desiguais), mesmo se esse mercado
se chama Mercado Comum Europeu. O trabalho permanece o fundamento do valor. Mas a
sua lei, tal qual foi estabelecida por Marx, não é apenas a expressão científica de uma
relação exclusivamente econômica. É, também, a pedra de toque a partir da qual todos os
processos sociais se tornam cognoscíveis,4 inclusive os ligados aos fenômenos de
consciência, à subjetividade, à psicologia; e aí, também, não somente para a classe
trabalhadora.

Na pesquisa histórico-social, os aspectos superestruturais e ideológicos, os relativos à


consciência social, não deveriam escapar do olhar agudo da teoria do valor-trabalho.
Entretanto, é exatamente o que ocorre na maioria das vezes, mesmo nos estudos que
adotam o paradigma gerado por tal categoria. É impressionante o fato de que , depois de
Marx, e sobretudo ao longo do século XX, a economia tenha concentrado a sua atenção
sobre os preços, e abandonado o estudo do valor. Na verdade, tal fato, efeito da dominação
progressiva do capital financeiro, constitui exemplo de como a ideologia dominante age,
invertendo os termos das causações, e penetra também no saber instituído. Toma, portanto,
o efeito (a expressão monetária do valor), pela determinação (o valor-trabalho). É o mesmo
fetichismo que apresenta o salário como pagamento do trabalho realizado, e não como
reposição da quantidade de força de trabalho social despendida num determinado espaço-
tempo de trabalho.

A ação revelada da ideologia torna cientificamente inteligível que os trabalhadores, em


geral, no curso de sua história, se confrontem com a necessidade permanente de lutar para
fazer coincidir o valor da força de trabalho com sua expressão monetária no mercado, ou
seja, com o preço do trabalho simbolizado pelos salários. Ao realizarem esta tentativa
permanente, independentemente do grau de consciência real que detenham, pleiteiam não
apenas o pagamento do real valor da força de trabalho, mas, também, o valor do trabalho
realizado, ou seja, o fim da exploração da mais-valia. Mas para que cheguem à consciência
de tal necessidade, terão que ultrapassar as barreiras existentes em seus aparelhos psíquicos
individuais e em suas consciências coletivas, as deformações e inversões de percepção
provocadas pela ideologia dominante, nas suas mais diversas variantes, inclusive naquelas
que se manifestam através dos organismos que se reivindicam dos interesses dos
trabalhadores, como as associações, os sindicatos, os partidos etc. Este foi um fenômeno
que predominou ao longo do século. Mesmo nos Estados que viveram tentativas de
transição para o socialismo, como aqueles do Leste europeu, da ex-URSS e da China, este
fenômeno foi predominante. Nestes espaços, nas experiências realmente vividas neles,
também se tentou estabelecer uma separação, um corte, entre a aspiração por melhores
salários e a conquista de objetivos estratégicos, entre a construção da democracia e o desejo
coletivo de consecução do socialismo.

No entanto, desde a época da Associação Internacional dos Trabalhadores, a crítica


científica do capitalismo passou a defender que os limites deste se achavam no próprio
capital, enquanto relação social com determinada historicidade, e no mercado, como
expressão universal dessa relação, espaço último da sua realização. Uma das manifestações
oriundas de sua acumulação, e a esta inerentes, são as crises de superprodução que a
ideologia, transformada em senso comum, apreende, simplesmente, como a produção além
das necessidades do conjunto da sociedade, e não como o resultado também do fato da
maioria dos indivíduos que a compõem não disporem de um poder aquisitivo que lhes
permita procurar no mercado tudo que necessitam e desejam. 5 A constituição dos
oligopólios internacionais, particularmente na segunda metade do nosso século, aprofundou
as contradições do capital na busca de sua reprodução ampliada. Não sem razão, alguns
analistas caracterizaram a época da dominação do capital financeiro como sendo a da
"reação em toda a linha". Relativizar esta fórmula implica numa concepção que considera
ser quase impossível aos setores médios e aos trabalhadores conquistarem concessões
materiais e mais democracia, de modo duradouro no interior do capitalismo. Poder-se-ia
afirmar que "o que é concedido com uma mão, é arrebatado com a outra". E isto ao nível
econômico, mas também político e jurídico.

Neste final de século, analistas dos mais variados matizes passaram a prognosticar a
inesgotabilidade histórica do desenvolvimento do capitalismo. Este é o caso de Fukuyama
por exemplo. Com a queda do Muro de Berlim e de tudo aquilo,6 este burocrata do
aparelho de Estado americano enxergou, como um novo Hegel, o fim da história e a vitória
do capitalismo liberal. Entretanto, se o caso Fukuyama é emblemático, não é apenas no seio
do Estado Maior dos Estados Unidos que encontramos tais argumentos para contestar as
premissa evocadas anteriormente. No próprio seio de uma boa parcela da intelectualidade
antes denominada de esquerda e até mesmo naquela que se auto-denominava marxista, a
sinalização direita-esquerda se inverteu. Porém, se se concorda com a crítica da economia
política, uma dedução se fará necessária: se as condições socioeconômicas da
mundialização do capital solaparam as bases reais para a conquista de reformas duradouras
no interior deste sistema, a realização de reivindicações imediatas (do ponto de vista dos
interesses de classe dos trabalhadores) não poderá ser tomada pelas organizações dos
trabalhadores, senão, fundamentalmente, como um momento transitório no longo, lento e
tortuoso processo de constituição de uma consciência real, superadora da ideologia
dominante e, portanto, de autoformação classista independente politicamente. De uma
perspectiva que se pode atribuir aos objetivos da imensa maioria da população do planeta,
outra forma de abordar a questão, não apenas semeia ilusões na possibilidade de reformas
duradouras, mas também age no interior da classe trabalhadora, amarrando os seus
interesses imediatos aos objetivos finalistas dos setores tradicionalmente dominantes.

A separação entre meios e fins desse processo ocorreu, pela primeira vez e de forma
sistemática, erigida ao estatuto de teoria, na obra de Eduard Bernstein, Socialismo teórico e
social-democracia prática. Sua tese central era que "o objetivo, final não é nada, e o
movimento é tudo".7 Para ele, a teoria do socialismo científico era uma sobrevivência do
romantismo humanista de Marx da época da Revolução de 1848. A tudo isso, pretendia
opor fatos novos que exigiriam uma "adaptação" da estratégia e da tática do movimento
social e operário. Tais fatos consistiriam principalmente no crescimento dos efetivos das
"classes médias" nos países onde o processo de industrialização desenvolvia-se
rapidamente, como na Alemanha, onde uma diminuição correlativa dos efetivos proletários
teria uma importância sociológica fundamental. Em conseqüência, a social-democracia
alemã devia lutar para obter a maioria das cadeiras no Richstag (parlamento alemão), para
assim promover as reformas e a transformação gradual da sociedade capitalista. A
experiência alemã, neste aspecto, é mais que simbólica. E o colapso da revolução entre
1918 e 1923, o reforçamento desta visão da social-democracia e a hegemonia progressiva
do stalinismo na III Internacional abriram um profundo vazio político preenchido pelo
nazismo.8 

Na época, Kautsky argumentava, contrariamente, em 0 marxismo e seu crítico Bernstein,


que se devia distinguir, no seio das classes médias, as camadas mais antigas (como os
agricultores, os pequenos comerciantes e os membros das profissões liberais) que, em
conseqüência das crises cíclicas, não paravam de diminuir em número, e as novas camadas
(técnicos, engenheiros, administradores, denominados posteriormente de quadros), cujos
efetivos cresciam, mas que economicamente não passavam de assalariados. Na verdade, os
fatos novos confirmavam a tese de Marx de que o número de trabalhadores assalariados
cresceria com a decomposição da antiga pequena-burguesia. Esta problemática parece ter
sido recolocada, com nova roupagem, pela história, neste último quartel de século, com a
intensificação dos processos tecnológicos que reduzem os efetivos numéricos de setores
importantes da classe operária, o que é não raro, apropriado intelectualmente, sem a
correlata da ampliação dos efetivos de assalariados em outros setores, como no chamado
terciário, ou em camadas anteriormente liberais como a dos médicos.

Essa inversão bernsteiniana, que se reproduz de diversas formas, por meio das
argumentações de diversos teóricos deste século, não é episódica, ou algo como um erro de
apreciação, um desvio no processo de elaboração científica. Ao contrário, ela é expressão,
no interior do movimento operário, da pressão do aparelho superestrutural, da compulsão
ideológica, política e econômica das classes dominantes e, em especial, do grande capital
financeiro. Tal fenômeno se consolida socialmente através da constituição de amplas
camadas burocratizadas, concentradas nos Estados onde a população foi vivida pela ilusão
do chamado socialismo real, mas também no Ocidente, através dos gigantescos aparelhos
sindicais e partidários, da social-democracia9 e da burocracia dos PCs, que estiveram à
frente do Estado-capital, em diversas conjunturas da história contemporânea. Esses
administradores tornaram-se hostis ao "movimento real" da classe trabalhadora, porque ele
constitui uma ameaça permanente aos seus privilégios, não somente econômicos, mas
sobretudo políticos, porque as prerrogativas materiais originam as últimas. Pense-se, em
especial, nos apparatchiques e nos gerentocratas soviéticos e chineses e na estrutura de
poder por eles constituída. Pense-se também na rica estrutura dos sindicatos ligados à
social-democracia alemã, sueca, francesa, americana, italiana e a todos os privilégios
salariais dos seus funcionários permanentes. O colaboracionismo tornou-se, assim, o
resultado de uma cooperação entre a burocracia e a classe dos capitalistas.

Este revisionismo teve, na maioria das vezes, portanto, pouca ligação com o atendimento de
imposições científicas, e se tornou, de fato, a expressão teórica dos interesses político-
materiais de uma, por assim dizer, "aristocracia operária" que se identifica com a chamada
pequena-burguesia. Poder-se-ia afirmar que, através da conquista de um espaço particular
no espectro político da luta entre as classes fundamentais, a pequena-burguesia transmutada
tenta sobreviver também econômica e politicamente. Este é um fenômeno do século XX.
Mas, evidentemente, ele não ocorre com a plena consciência dos seus atores. Assim, uma
consciência parcial se alimenta das necessidades e demandas reais dos setores concernidos,
realizando-as em alguma medida.
A política elaborada a partir da teoria bernsteiniana mostrou-se tão permanente, que a
adoção prática do ponto de vista crítico passou a ser comumente encarada como falta de
realismo político. A partir de 1927, com a dominação do stalinismo, a teoria do
"movimento é tudo" passou a ser a política oficial dos PCs no mundo e, sem dúvida, as
ondas revolucionárias que varreram a China, a Espanha, a França e a Itália não foram
imunes ao seu efeito nefasto. Nestes últimos países, por exemplo, a política das frentes
populares, continuada pela resistência partisana, não se traduziu na tão propalada
hegemonia dos trabalhadores.10 

As conseqüências não são, portanto, apenas teórico-científicas. As derrotas sucessivas


isolaram os trabalhadores da URSS. A teoria do "Socialismo num só país" se transformou
numa ideologia de justificação e endeusamento de um Estado cada vez mais distanciado
dos interesses, não só dos soviéticos, como também dos trabalhadores do resto do mundo.
Tem razão Castoriadis quando afirma que

a classe dirigente russa retém do marxismo apenas elementos de


"realismo" político convertido em cinismo vulgar e maquiavelismo, em
propaganda para exportação e consumo interno, havendo o marxismo-
leninismo tornado-se um cadáver.11 

 
A mumificação de Lenin foi apenas o começo simbólico da ossificação da teoria crítica e
de uma política transformadora, enquanto manifestação consciente e científica das
contradições irredutíveis e dominantes da nossa contemporaneidade. A ideologia
denominada "marxismo-leninismo", que serviu de incenso à elaboração do "Socialismo
num só país", tornou-se ao mesmo tempo, a expressão das contradições que haviam
submergido a URSS após o Outubro de 1917 e justificação de uma variante de
burocratismo-nacionalista, conciliador com os interesses políticos do capital financeiro
internacional. Tudo isso sob o manto pretensioso de real politik inevitável. Neste caso, esta
falsa consciência é promovida por uma burocracia incrustada no aparelho de um Estado que
pretendia, na sua origem, fundar o processo de abolição de todas as classes. A ideologia,
como problema científico, e as conseqüências da sua eficácia social tornam-se, assim, e
sem precedentes na história, um único e mesmo problema, da maior importância para
aqueles que são os produtores diretos de riqueza. Isto, sobretudo, porque ela, a ideologia,
não tem nem história própria, nem eficácia autônoma.12 
Não é por acaso que, paralelamente ao isolamento da Revolução Russa e às derrotas das
frentes populares, vemos o desenvolvimento de um chamado "marxismo ocidental", 13 num
processo que tenta preencher o vazio teórico do movimento operário no pós-guerra europeu
e que tem como uma de suas características a realização da marcha inversa à realizada pela
teoria crítica do século XIX. Enquanto esta foi da crítica da filosofia e da economia, para a
elaboração de uma alternativa política independente para os trabalhadores, o marxismo
ocidental fez o percurso oposto; deixou a pesquisa concreta e a reconstrução de uma
estratégia alternativa à ideologia dominante no movimento operário, até chegar à auto-
negação do ceticismo crítico de um Sartre, do misticismo religioso de um Garaudy ou
ainda, mais presentemente, do neoliberalismo não assumido de um Colletti. As grandes
referências inspiradoras passaram a ser Espinosa, Kant, Kierkegard, Bachelard, Sausurre,
Heidegger e depois do degelo estruturalista, os "novos filósofos", Glucksmann e Cohn-
Bendit, que, das barricadas do Quartier Latin, passaram a estabelecer identidade entre
socialismo e stalinismo, entre marxismo e totalitarismo. O irracionalismo filosófico não
penetrou apenas na consciência dos filósofos pós-modernos. O comunista italiano Massimo
Cacciori, por exemplo, afirmou, na Câmara dos Deputados, haver Nietzsche superado
Marx, vez que a vontade de poder mostrou-se mais fundamental que a luta de classes.
Exemplos como esse tornaram-se moeda corrente.
Foi essa a forma assumida pela tão propalada crise da teoria crítica de Marx, festejada pelos
órgãos da imprensa internacional e por infindáveis estudos acadêmicos. Essa falsa crise da
teoria de Marx procurou de fato esconder a verdadeira crise ideológica conjunta dos
Estados capitalistas e dos Estados denominados do "socialismo real". Do mesmo modo, a
crise do suposto "marxismo ocidental" é o resultado desta profunda crise real. Mas como
poderia ser de outra forma se a sua própria existência deveu-se ao distanciamento e ruptura
com a teoria e o método de Marx, realizados pelos partidos oficiais da classe operária, por
suas instituições acadêmicas, pelo Estado na União Soviética e pelo stalinismo enquanto
ideologia? O marxismo ocidental procurou ocupar o espaço científico e político do
marxismo-leninismo stalinista. Com o desaparecimento das estruturas que possibilitaram a
sua existência, é natural que este esteja se contorcendo. O corte epistemológico entre o
"marxismo ocidental" e a expressão científica da luta de classes possibilitou, como disse
Anderson, o modelamento daquele pela "cultura burguesa". A miséria teórica do
"marxismo ocidental" é a miséria de sua estratégia14 e é nisto que reside, em grande
medida, a mais grave herança e a orfandade dos trabalhadores ainda hoje.
Desta forma, pode-se dizer que, desde o início deste século, os trabalhadores internacionais
sofrem desta "miséria crônica", encontrando-se até os nossos dias à mercê de "um
movimento infinito" no interior do sistema capitalista mundial. No Brasil, a história não foi
diferente, não obstante tenha se manifestado com particularidades importantes. Na verdade,
o estabelecimento de uma cronologia científica do movimento operário brasileiro, além de
critérios estruturais, não poderia abdicar de critérios de natureza superestrutural e subjetivos
aqui referidos. É isto que se deve buscar na relação existente entre sindicato, partido e
Estado na história do operariado brasileiro. Não se trata, em absoluto, de privilegiar estas
três categorias e menosprezar a ação espontânea dos trabalhadores. Ao contrário, estes são
sujeitos históricos. Mas, dentro da problemática aqui exposta, aquelas assumem
importância fundamental na formação da classe trabalhadora, exatamente porque são as
instâncias de sua consciência, de sua ideologia, de sua organização.
O ciclo de longa duração da luta de classes, agindo na formação estrutural e subjetiva da
força de trabalho no Brasil, inicia-se ainda no período colonial, contra o fenômeno da
superexploração. Esta foi, portanto, uma das suas características dominantes e permanentes.
Sua luta foi também contra a opressão e os castigos oriundos da escravidão. Os quilombos
foram, assim, as manifestações mais acabadas das lutas escravas e o "socialismo" a eles
inerente é uma conseqüência natural do processo de autoproteção e organização alternativa
à sociedade colonial. Considerando o conjunto da força de trabalho e as condições de sua
existência, pode-se afirmar a vigência de incompatibilidade entre a sua auto-organização e
a sobrevivência desta forma de exploração. Não existia, portanto, a possibilidade de se
conquistar reivindicações no interior do sistema colonial-escravista. Assim, a irrupção de
explosões espontaneamente violentas dos escravos assemelhava-se àquelas dos
trabalhadores nas crises revolucionárias em regimes extremamente opressivos, como
verificou-se na Revolução Francesa, na Revolução de Outubro 1917, na rebelião da
Tchecoslováquia (1968) e em tantos outros.
No Brasil, nenhuma tradição organizativa e/ou teórica foi legada aos trabalhadores do
período da I República. Foi apenas em finais do século XIX que o proletariado urbano
construiu suas primeiras organizações, através das ligas de socorro mútuo e associações de
solidariedade diversas, incorporando experiências trazidas do Velho Mundo pelos
imigrantes. Com eles, surgem os primeiros sindicatos que se consolidam na primeira
década do século XX, com a fundação do Confederação Operária Brasileira (COB). Tais
sindicatos, hegemonizados pelos anarco-sindicalistas, agiam, com freqüência, como
organizações de vanguarda, ocupando o espaço de possíveis partidos políticos, fazendo-os
agir em função do combate pelo fim do capitalismo. Assim, contrastando com este
finalismo estratégico vanguardista, esta primeira experiência da classe trabalhadora é
marcada por uma pobreza na elaboração tática, mas também pela total independência em
relação ao Estado. Com debilidades, mas também com características importantes, como a
combatividade e a capacidade que estes sindicatos tiveram de produzir eventos políticos de
massa, o que impôs às classes dominantes tomá-los definitivamente em consideração.
A chamada Revolução de 30, pondo fim à República Velha, elaborou, como um dos seus
objetivos na construção de uma hegemonia burguesa no Brasil, a "domesticação" dos
sindicatos e dos trabalhadores. Isto implicou, de fato, numa contra-revolução preventiva.
Nelas, várias gerações de sindicalistas e de sindicatos foram destruídos, literalmente.
Implicou também na elaboração de toda uma legislação disciplinadora, coercitiva e
restritiva, que moldou a evolução da classe operária brasileira, roubando-lhe o elemento
essencial de sua combatividade anterior a 1930: a sua independência política de classe
frente aos partidos, ao Estado burguês e a sua ideologia. Os sindicatos foram, deste modo,
integrados aos aparelhos do Estado, como organismos de cooperação. Se o corporativismo
já se manifestava antes da "era getuliana", foi, entretanto, através de uma sorte de
bonapartismo nacional-populista, que ele se desenvolveu, adquirindo todos os seus
fundamentos jurídicos, ideológicos e políticos. Estes instrumentos, que mantiveram os
trabalhadores presos aos pactos de unidade, à chamada "união nacional" e, em síntese, às
políticas de "colaboração de classes" dominadas pelos interesses do capital. Foi a partir de
então que as três categorias (sindicato, partido e Estado) mostraram sua organicidade e sua
importância na formação histórica da classe operária do Brasil, como agências geradoras da
subsunção real do trabalho ao capital.
Assim, é possível se afirmar que, dentre as heranças getulianas no domínio das relações do
capital com o trabalho, a maior delas é a estrutura sindical corporativista. Através dela,
Vargas pode fazer germinar uma ampla burocracia sindical e estatal que ampliou as bases
de sustentação do Estado e do capital no Brasil. Naturalmente, esta burocracia não via seus
interesses materiais coincidirem com aqueles dos trabalhadores assalariados. Então, para
ajudar a cimentar o imenso edifício social, institui-se o imposto sindical obrigatório, gerido
pelo Ministério do Trabalho. O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) tornou-se veículo
canalizador das ilusões políticas dos trabalhadores. O populismo nacionalista, como
ideologia dominante da consciência social, tornou-se o verdadeiro cimento que uniu as
"rachaduras sociais" do período compreendido entre 1943 e 1964. A sua base social foi a
dos setores médios da população — a pequena-burguesia urbana, a aristocracia sindical, a
burocracia estatal e oficialato militar — que havia originado o tenentismo. A sua essência
foi a idéia de colaboração entre o capital e o trabalho. Através dela, o Estado enxergava-se
acima das classes e imprimia concessões ao capital, para melhor subordinar o trabalho.
A força social da pequena-burguesia e dos setores médios da população, em particular a
urbana, progrediu de modo oscilante, mas persistentemente, ao longo do século XX, como
um fenômeno mundial, o que não poderia deixar de se traduzir politicamente. Mas, pela sua
própria debilidade estrutural, ela jamais seria capaz de viabilizar um projeto próprio. É
nesta fragilidade que reside a origem da conciliação dos seus interesses com os do capital e
o do Estado. Sob todos os pontos de vista, estes últimos não podiam deixar de levar em
conta a existência definitiva de uma grande massa assalariada urbana e isso como fato
universal. O nacional-populismo é a linguagem encontrada para dominar os trabalhadores
nesta fase particular da sua expansão social-urbana no Brasil. A pequena-burguesia tornou-
se a principal agência veiculadora de seus signos, de seus ícones, da sua ideologia. No
Brasil, ao nível político, duas categorias históricas se efetivaram como condutoras (embora
através de formas particulares) do conteúdo dessa ideologia: o PTB, que nasce diretamente
de um programa de conciliação; e o PCB, que se adapta e se torna um dos principais
agentes dessa política.15 O PTB surge quando Vargas elabora a continuidade do seu
programa, compreendendo os sindicatos como um prolongamento do Estado no interior da
classe operária. Embora muitos sindicalistas tenham participado da sua fundação, a
natureza do PTB (partido burocratizado cujos membros diretivos eram auxiliares diretos do
Estado) não permitiu que este possuísse a mesma maleabilidade alcançada pelo PCB. Este
último, por não ser identificado diretamente com o Estado, em setores e conjunturas
particulares, conseguia convencer, com mais facilidade, os trabalhadores, e aplicar melhor a
política populista.
Devido a sua origem, o PCB desempenhou um papel particular, graças à sua legitimidade
histórica, em especial a partir das vitórias do Exército Vermelho contra o nazismo. Nenhum
outro organismo político podia agir no seio dos trabalhadores como ele pôde. Porém, o
relativo prestígio e a inserção reconstruída nos anos 40 não impediram que ele terminasse
prisioneiro da ideologia e da política de conciliação nacional. Isso foi o resultado da
concepção dos seus dirigentes, mas sobretudo dos ditames do que restou da III
Internacional e de seu aparelho burocratizado, na aplicação de uma política que visou,
sobretudo, a sobrevivência do Partido e a sua legitimação e legalização junto ao Estado-
capital, articulada à estratégia de colaboração e coexistência exercida em função da
sobrevivência do Estado na URSS. Na Europa, esta política denominou-se de "frente
popular" e no Brasil, de "união nacional". Mas, de fato, o PCB torna-se o porta-voz das
aspirações das camadas médias urbanas, no interior da classe operária. Para tal, elabora
uma linguagem capaz de mobilizá-las, segundo as oportunidades em causa. Os
trabalhadores não são considerados como classe em si, mas como objeto de mobilizações,
como uma mercadoria a ser chantageada, trocada. Evidentemente, este grau de percepção e
perspectiva de olhar não é alcançado por todos os analistas. Os militantes desse partido
tinham uma consciência crítica muito limitada das relações desses problemas, quando
tinham. A base do partido, quando muito sentia os problemas, mas quase sempre eram
chantageadas com o seguinte slogan: "o partido nunca erra".
A atuação conjugada dos referidos organismos políticos se dá já no início dos anos 40,
prolongando-se, com coerência, até o golpe militar de 1964. É ela que explica, finalmente,
que amplas camadas da população tenham acreditado de fato no programa "getuliano e
goularista" e abraçado a ideologia nacional-populista como "verdadeira". É ela que
possibilita, em grande parte, explicar que a consciência real dos trabalhadores seja de fato
uma falsa consciência. É este mesmo descompasso que permite explicar também as
explosões espontâneas da classe, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade (e a necessidade)
de tornar o movimento objetivo, instintivo da classe, num movimento consciente. As
ideologias dominantes e as suas variantes, gestadas nos setores intermediários entre os
assalariados e o capital, e nos organismos políticos citados, serão eficazes apenas até que o
desenvolvimento social encontre saída dentro das relações sociais existentes. No governo
JK, a industrialização do Brasil se dá de forma sem precedente, imprimida sobretudo pela
internacionalização da economia brasileira. O golpe de 1964 radicalizará essa
internacionalização solapando as bases sociais que deram origem ao projeto nacional-
populista que Goulart tentou reimplementar. Hoje, as condições são outras. Se os governos
posteriores a 1964 destruíram a forma e as pretensões veiculadas na ideologia dominante
precedente (expressão da aliança entre a pequena-burguesia e setores nacionalistas da
burguesia), não fizeram o mesmo com a sua essência mais fundamental: a idéia da
conciliação necessária entre os interesses do capital e do trabalho. O projeto anterior de
uma suposta "burguesia nacional" industrial, articulado à atuação dos aparelhos políticos e
sindicais, como no governo de Goulart, mostrou-se frágil obstáculo ao projeto
multinacional e globalizante e que hoje encontrou sua forma acabada no neoliberalismo.
Mas a sua fragilidade não foi argumento impeditivo da repressão policial-militar que impôs
aos trabalhadores no Brasil a sua mais amarga experiência, não apenas fruto da coerção
política, mas também conseqüência da superexploração econômica. Estas conseqüências
não foram suficientes para que setores da pequena-burguesia deixassem de tentar reviver o
antigo projeto, ainda que sob nova forma: populismo e colaboração de classe andam pari
passu.
Dessa forma, fica evidente, pela análise histórica, a existência de uma pesada herança à
qual os trabalhadores necessitam renunciar. Sem dúvida alguma, o seu papel objetivo (e
insubstituível para a sobrevivência do capitalismo), na produção da mais-valia, não será
apreendido automaticamente pelo conjunto da classe operária, em lugar nenhum do mundo.
O processo da sua formação subjetiva passa assim por vários estágios. Neles, o seu ser tenta
encontrar, numa luta dialética permanente entre consciente e inconsciente social, um ponto
de equilíbrio entre os seus impulsos quase instintivos, de sobrevivência, e os ditames
superestruturais. Para a construção de sua auto-organização, as associações, os sindicatos e
os partidos permanecem entre as instâncias mais importantes. Porém, nenhuma delas pode
fazer economia da experiência ou substitui o próprio movimento da classe. Isto significa
que, quando as condições sociais e econômicas estão desenvolvidas, as contradições
mais influentes e determinantes do processo histórico de formação se concentram no
fator subjetivo. Este parece ser o caso que se vive neste fin de siècle, quando, depois de
haver monopolizado os setores estratégicos da economia mundial organizando trustes e
cartéis internacionais, depois de haver utilizado a máquina do Estado para investir nos
setores de altíssima concentração de capital e de lucratividade demorada, o capital
reinventa o neoliberalismo16 e a política de privatizações na escala do planeta.
Na verdade, esse processo concreto de liberalização do espaço econômico (que desde os
anos 30 vem sendo ocupado, progressiva e sistematicamente, pelo Estado-capital), para o
grande capital privado mundializado, com tudo que isso representa, se acompanha de uma
gigantesca operação reconstrutiva, não apenas do próprio aparelho produtivo do planeta,
mas ainda de todas as condições superestruturais que exprimem (refletem e são
condicionadas) e recondicionam as condições gerais de existência da humanidade. A este
fenômeno de reestruturação ideológica, a subjetividade da classe trabalhadora responde de
forma mais ou menos inconsciente, assimilando e buscando novas adaptações
circunstanciais e pragmáticas, mas também reagindo com expressões conscientes
localizadas em algumas áreas da geografia do planeta. É forçoso constatar que a formação
de classe dos trabalhadores está enfrentando uma nova mutação do seu ser social.
Mas, não basta determinar qual a nova inserção dos trabalhadores na base material da
sociedade para, a partir daí, deduzir-se a constituição de uma nova consciência. É preciso
perceber que esse processo não é automático. Ao contrário, é necessário entendê-lo como
tortuoso e, como sempre, contraditório. Os setores imediata e diretamente atingidos por
essa mutação tenderiam a adquirir uma maior consciência. No entanto, a vulnerabilidade,
diante das novas tecnologias e do excedente de força de trabalho no mercado, pode torná-
los refratários a ações imediatas. Entretanto, o crescimento incessante dos contingentes
excluídos cria uma potência numérica e de qualidade que pode se tornar um fator de
afirmação de sua auto-consciência. Isto vem sendo negligenciado permanentemente por
analistas das mais diversas correntes e mesmo pelos representantes e pesquisadores mais
rigorosos. Esse fenômeno também pode-se traduzir pela afirmação de setores inusitados.
No Brasil, a centralidade adquirida pelos "sem-terra" pode ser indicativo disto.
É possível entender-se, então, que a crise do trabalho (e a orfandade dos trabalhadores), no
mundo e no Brasil, concentra-se na falta de uma alternativa estratégica consolidada,
enraizada, em especial, nos setores-chave dos assalariados. Entretanto, parece evidente que,
ao mesmo tempo, um fenômeno de síntese está em curso nas consciências coletivas.
Elementos de avanço e de recuo se mesclam nesse refazer-se da classe trabalhadora. No
nível geral, é possível constatar de modo positivo por exemplo, que a desagragação das
burocracias do Leste europeu e de suas estruturas partidárias e sindicais abriu um
espaço político não de todo reocupado, nem pelas formações político-ideológicas ligadas
diretamente ao capital, nem por aquelas oriundas da social-democracia. Na França, por
exemplo, em 1981, o povo impôs uma estrondosa vitória nas urnas ao projeto de
capitalismo giscardiano, derrotando 35 anos de regime gaullista e que sobreviveu a De
Gaulle, em parte através do próprio Giscard. Contudo, a população inteira foi frustrada
porque Mitterrand e o Partido Socialista aplicaram uma política semelhante àquela do seu
opositor eleitoral. Na Inglaterra, o trabalhista Tony Blair tornou-se, circunstancialmente, o
veículo de expressão de uma parcela considerável da população, contra a política neoliberal
de Tchatcher e de seu sucessor. Mas é previsível que seu governo irá fazer o mesmo que
Mitterrand fez na França, Mário Soares, em Portugal, e Felipe Gonzales, na Espanha —
onde o índice de desemprego atinge 25% da população economicamente ativa.
A falência do modelo social-democrata na Alemanha, nos países nórdicos e na Itália, e a
transformação dos antigos PCs em partidos filiados à Internacional Socialista permitem
afirmar, com clareza, que não se tratam mais dos Partidos Socialistas da época de Leon
Blum, na França, ou de Largo Caballero, na Espanha, dos anos 30, nem muito menos
daqueles da época de Jean Jaurés, quando, às vésperas da Primeira Grande Guerra, as
contestações à teoria bernesteinianas já se faziam com polêmicas acaloradas. Naquela
época, discutir a antinomia relativa reforma/revolução, como finalidades estratégicas, tinha
coerência com a conjuntura e com os objetivos que a chamada II Internacional se havia
fixado. Mas hoje, quando o trabalhista Blair, que se encontra na direção do governo inglês,
afirma ser o Labour Party um "party business", é mais do que pertinente se perquerir se não
teria ocorrido uma mudança de qualidade na natureza desses partidos. Tradicionalmente, os
partidos, as associações, sindicatos e "líderes" da classe trabalhadora faziam questão de, ao
menos, manter as aparências.
No entanto, ao que tudo parece indicar, os últimos anos aprofundaram, de modo radical,
uma característica iniciada no começo do século. Hoje, de mais a mais, facções importantes
da cúpula político-sindical está assumindo claramente as suas reais opções pelos partidos
que defendem a política neoliberal, como é o caso do importante sindicalista Luiz Antônio
de Medeiros, dirigente máximo da Força Sindical — que disputa com a Central Única dos
Trabalhadores a hegemonia de frações importantes dos assalariados brasileiros — que
aderiu ao Partido da Frente Liberal. Isto quer dizer que, antes de mais nada, diante da
ofensiva neoliberal, uma parte significativa dos dirigentes dos trabalhadores sentem
ser mais lucrativo (econômica e politicamente) prestar sermão primeiramente ao
grande capital, que às suas próprias bases sindicais ou associativas. Isto relativiza a
importância política que a referência nominal ao trabalhismo e ao socialismo, dos antigos
partidos, tem para esses "condutores" que se reivindicam da classe trabalhadora. De
maneira semelhante, isto também tem caracterizado a visão de setores consideráveis dos
trabalhadores que observam que estes antigos partidos só lhes têm sido útil para, nas
disputas eleitorais, fazer barragem aos projetos assumidamente excludentes e neoliberais.
Fora isso, o que se tem verificado é que esses partidos não mantêm (nem dentro, nem fora
dos governos) quase nenhum compromisso efetivo de defesa sequer das reivindicações
mínimas dos assalariados (vez que tudo pode ser negociado), que dirá com qualquer
projeto de transformação social, seja ele reformista ou revolucionário. Ao contrário, ou
fazem de conta que o problema não existe, ou propõem e aplicam mudanças a favor das
políticas de reestruturação industrial-produtiva, de liquidação das conquistas sociais e
integram, cada vez mais diretamente, as máquinas político-sindicais que controlam
aos aparelhos político-ideológicos do capital, dos governos e dos Estados. Nesse
sentido, realmente as linhas de demarcação direita-esquerda, nascidas com a tentativa de
construção da república burguesa de 1789-92, na França, não faz mais o mesmo sentido,
vez que a social-democracia ou os partidos socialistas são tão neoliberais quanto o partido
de Bill Clinton.
Como conseqüência à exclusão, à dissolução social de setores da classe trabalhadora —
com as políticas de reestruturação industrial e de privatizações no mundo (México,
Argentina, Brasil, Inglaterra, Espanha, França etc.) — é necessário observar que o objetivo
estratégico do grande capital, na atual fase, é manter intacta a dominação da ideologia de
conciliação e união de interesses nacionais (leia-se de classe) e, na prática, realizar a
integração dos aparelhos organizacionais de classe à política neoliberal. E, em um grau
relativo, ele já conseguiu isso. Entretanto, fenômenos como o zapatismo, no México, e o
Movimento dos Sem-terra, no Brasil, a greve geral de dezembro de 1995, na França, por
exemplo, parecem indicar que setores significativos da população do planeta, com algum
grau de consciência política, já perceberam isso. No caso brasileiro, é possível constatar
que a luta pela independência frente ao capital e ao Estado, que parecia haver sido
resgatada nos anos 80, de modo permanente, para o processo de formação de classe pelo
sindicalismo classista, sofreu retrocessos em setores importantes dos movimentos sociais
(inclusive no interior da própria CUT). O mesmo se verificou com a construção de uma
alternativa política que tem se mostrado uma aquisição, de fato bastante parcial, e não raro
ambígua, sujeita a retrocessos. Cabe assinalar alguns exemplos sugestivos à reflexão. Um
deles traz à lembrança o sindicato/partido Solidariedade. Nos anos 70 e 80 ele foi uma das
expressões máximas da vontade de uma busca pela autogestão democrática e de um auto-
engendramento consciente. Hoje parece ter perdido completamente as antigas
características. No Brasil, o Partido dos Trabalhadores vive progressivamente o dilema de
ser um partido com ampla penetração no conjunto da população (com foi também o caso do
Solidariedade), nascido de um profundo movimento de contestação ao regime militar,
impulsionador de uma central sindical orientada pela política de independência de classe
(que foi capaz de colocar em causa a estrutura sindical herdada da era getulista), mas que
hoje não consegue viver processos institucionais sem entrar em choque com as suas origens
socialistas e antiburocráticas. Provavelmente os partidos do movimento negro na África do
Sul estejam vivendo isto de modo ainda mais agudo depois que Mandela assumiu o
governo daquele país. Este não foi também o caso da Frente Sandinista quando, no poder,
procurou adaptar-se para sobreviver e, ao mesmo tempo, manter coerência com as suas
tradições históricas.
Dessa maneira, se as organizações dos trabalhadores são vulneráveis às pressões das classes
antagonistas e aos processos pragmáticos de adaptação e institucionalização que são
obrigados a viver, é possível perceber-se que, em última análise a sua formação deve dar
centralidade ao seu auto-engendramento objetivo e subjetivo. Do que se conclui que a
formação de classe dos trabalhadores se define, em última análise, na autoformação — que
não é o resultado de nenhum processo pedagógico, doutrinário de conscientização, em que
o partido seria uma espécie de pedagogo, de Messias. Ela não pode fazer economia da
própria experiência histórica. É ela que, em última instância, forma a classe e a sua teoria
científica. Até agora, as heranças dominantes e a orfandade dos trabalhadores têm se
traduzido na miséria da maioria das suas organizações, mas também da sua filosofia, da sua
ideologia, da sua "ciência", da sua cons/ciência, mais, muito mais que a miséria da sua
existência social e de sua exploração. As conquistas parciais, em todos os domínios, têm-se
mostrado de modo muito curto no tempo e nada definitivas. Assim, a emancipação das
heranças negativas e da orfandade só serão superadas, quando os trabalhadores assumirem
progressivamente o seu auto-engendramento histórico permanente. É, pois, preciso
deslocar a investigação e a reflexão teórico-científica para o centro de confluência das
determinações da totalidade histórica da experiência dos trabalhadores, para o movimento
real destes e para a sua subjetivação. Tornar realmente consciente essa dialética
universal, ainda muito inconsciente, poderá fazer brotar uma consciência histórica e crítica,
mais que necessária, pelo menos para setores-chave dos trabalhadores.
Notas
(1) THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase. Barcelona: Critica, 1979. ______. A formação da classe operária inglesa. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v.3.
(2) MARX, K. Le capital. Paris: Sociales, 1977. v.1, p.42.
(3) CHESNAIS, F. La mondialisation du capital. Paris: Syros, 1994.
(4) Cf. FOUGEYROLLAS, P. Les processus sociaux contemporains. Paris: Payot, 1980. p.14-5.
(5) GILL, L. Fondements et limites du capitalisme. Montreal: Boréal, 1996.
(6) NÓVOA, J. (Org.). A história à deriva: um balanço de fim de século. Salvador: EDUFBA, 1993.
(7) BERSTEIN, E. Socialisme theorique et social-démqocratie pratique. Paris: Editions P.V. Stock, 1900. Também LUXEMBURGO, R. Réforme
sociale ou révolution? - Greve de masses, parti et syndicats. Paris: François Maspero, 1976. p.16.
(8) SERGE, V. Notes d’Allemagne (1923). Montreuil: s. n., 1990. BROUÉ, P. Révolution en Allemagne. Paris: Les Editions de Minuit, 1971.
REICH, W. Psicologia de massa do fascismo. Porto: Escorpião, 1974.
(9) GILL, L. Les limites du patenariat. Montreal: Boréal, 1989.
(10) Cf. ANDERSON, P. A crise da crise do marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.18. Esse fenômeno foi bem ilustrado no filme 1900,
dirigido por Bertolucci.
(11) Cf. CASTORIADIS, C. Os destinos do totalitarismo. Porto Alegre: LPM, 1985. p.11.
(12) Cf. FOUGEYROLLAS, P. Sciences sociales et marxisme: savoirs et ideólogie dans les sciences sociales. Paris: Payot, 1980. p.207.
(13) Cf. ANDERSON, P. Le marxisme occidental. Paris: François Maspéro, 1977. p.39-40.
(14) ANDERSON, P. A crise da crise do marxismo, op. cit., p.17-20; p.32-3.
(15) WEFFORT, F. Origens do sindicalismo populista no Brasil: a conjuntura do após guerra, Revista de Estudos Sebrap, n.4, 1973. ________.
Democracia e movimento operário: algumas questões para a história do período (1945-64). Revista de Cultura Contemporânea, n.1, 1978.
SPINDEL, A. O partido comunista na gênese do populismo. São Paulo: Símbolo, 1980.
(16) NÓVOA, J. Sindicato, partido e Estado na formação de classe dos trabalhadores no Brasil. Sitientibus, n.1, 1982. _______. O sindicalismo
brasileiro em perspectiva histórica: hipóteses para o estudo do Novo Sindicalismo na Bahia. In: Anais do seminário Nordeste, o que há de novo?.
Natal: UFRN, 1988.
 

Jorge Nóvoa é professor doutor (Paris VII) do Departamento e Mestrado em História


da UFBA, Coordenador Geral da Oficina Cinema-História e editor responsável da
revista O Olho da História e dos cadernos de textos Interfaces da História.

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