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A insegurança se estende às chances de uma vida digna no futuro. Sem emprego e sem
renda o trabalhador não poupa. Sem emprego formal ele não contribui para a previdência. A
velhice é uma zona cinzenta, insegura. E há também a insegurança quanto à representação de
interesses. Os sindicatos estão mais fracos do que nunca no Brasil. Estão mais pobres, tiveram
que negociar perdas de conquistas contratuais arrancadas a fórceps nos anos 1980, viram suas
bases de apoio reduzir-se brutalmente em razão do crescimento da informalidade e do
desemprego. E perderam legitimidade junto aos seus representados. A década neoliberal, ao
gerar insegurança sócio-econômica, acertou em cheio o poder sindical, trazendo-o a uma
encruzilhada de novo caráter no Brasil. Essa encruzilhada pode ser resumida em três enunciados:
1
Tomo de empréstimo a Gentili (1998) a expressão entre aspas, embora com outro sentido. Esse autor refere-
se à educação em sua relação com o emprego/desemprego.
2
Ver, por exemplo, Bielschowski (1996) para um apanhado compreensivo desse discurso ao longo das
décadas de 1950 e 60.
3
Dado extraído do notável Estatísticas do Século XX, recentemente editado pelo IBGE.
carteiras emitidas já estava em 3,5 milhões. Ou seja, para um crescimento de 16% na PEA, o
número de trabalhadores documentados aumentou mais de 300%. É claro que a documentação
não quer dizer que as pessoas estivessem empregadas. Mas o importante para o argumento é que
os trabalhadores aderiram à promessa integradora representada pela carteira. Isso seguiu assim
pelas décadas, até que, em 1976, o total de carteiras emitidas ultrapassou os 40 milhões de
unidades, para uma PEA de 39 milhões de pessoas. O Gráfico 1 mostra os dados. Note-se que, a
partir de 1960, as curvas do acumulado na emissão de carteiras e da evolução da PEA vão
encurtando a distância com os anos, até que uma (carteiras) suplanta a outra. Havia,
efetivamente, uma promessa integradora associada ao trabalho regulado, e essa promessa, e
também as expectativas que ela gerou entre os trabalhadores urbanos, ficou gravada no fato de
que os assalariados procuraram o registro profissional de forma crescente, em proporção
superior ao crescimento da PEA.
Gráfico 1:
Evolução da PEA e do número de carteiras de trabalho expedidas pelo Ministério do Trabalho:
Brasil, 1940-1976
45000000
40000000
"!# $&%'! ()# *# +&%-,"&. /(0/1 +23
35000000
46587:9 ;0<=>?'>A@0BC<D ?
30000000
25000000
20000000
15000000
10000000
5000000
0
Fonte: IBGE: Estatísticas do Século XX, Rio de Janeiro, IBGE, 2002. Seção “Trabalho e Sindicalismo” do CD-ROM.
II. Em segundo lugar, o Estado brasileiro deu uma virada de 180 graus em suas
relações com a economia. E não se está falando aqui apenas do fato de que ele se desfez de
propriedades. Sem exageros, o que se deu foi um processo mais geral de despolitização das
relações econômicas e da sociabilidade capitalista. Elemento certamente central desse processo
tem a ver com a desobrigação do Estado brasileiro em relação a aspectos da vida social antes
pensados como de sua responsabilidade. O desenvolvimentismo como razão de Estado, sob
Vargas e sob os militares mais fortemente, mas também sob Juscelino ou Sarney, implicou no
recorte das relações econômicas enquanto intrinsecamente politizadas, em diversos sentidos: (i)
o desenvolvimento dos capitais privados deu-se por acesso direto ao fundo público que, por
escasso, não tinha como servir a interesses universais (Oliveira, 1988). Em conseqüência, a
sobrevivência mesma da grande empresa capitalista nacional dependia fortemente da capacidade
das burguesias angariarem benesses em sistemas relativamente clientelistas de acesso àquele
fundo (Salum Jr., 1996). Essas relações de simbiose entre burguesias nacionais e círculos
burocráticos estatais, é bom lembrar, foram estudadas pelo então sociólogo Fernando Henrique
Cardoso sob a rubrica dos “anéis burocráticos”, onde a gestão da coisa pública confundia -se com
os interesses privados. Estado e economia, como dito antes, apareciam em conexão causal, e não
havia como pensar a configuração econômica da nação fazer referência direta às externalidades
impostas pela intervenção do Estado; (ii) o Estado empreendedor cumpriu a tarefa de dar
condições infra-estruturais ao movimento dos capitais privados, tanto no sistema financeiro
quanto no setor produtivo, urbano ou rural. Os grandes investimentos em serviços de transporte e
comunicação, na indústria pesada e na geração e distribuição de energia a preços subsidiados são
exemplos salientes. Foi fundamental, também, o papel dos bancos estatais no financiamento do
empreendimento privado, nos âmbitos federal e estadual igualmente, e incidindo sobre a
agricultura, o comércio, os serviços e a indústria. A dívida externa federal, que estrangulou o
desenvolvimento na década de 80, como é sabido, tem sua origem mais conspícua na “compra”,
pelos militares, da dívida privada num momento em que as taxas de juros internacionais
cresciam exponencialmente (Appy, 1993). O desenvolvimento como razão de Estado imiscuiu de
tal modo os interesses privados com o Estado, que se tornou difícil distinguir “bem público” de
“acumulação capitalista”; (iii) mais do que externalidades em sentido econômico, o papel do
Estado na regulação das relações de classe adquiriu peso considerável na história moderna do
país. O corporativismo Varguista será, talvez, sua expressão mais saliente.4 Não apenas os
parâmetros dos encontros entre capital e trabalho no mercado, dando-se no interior das estruturas
normativas estatais, mas sobretudo a regulação do mercado de trabalho, conferiram a marca
específica à politização das relações de classe no Brasil. Para dizer de outro modo, a CLT
desmercantilizou a força de trabalho (no sentido de Offe, 1984), e juridificou as relações de
classe (no sentido de Habermas, 1987), ao mesmo tempo em que encarava como razão de Estado
a intermediação do conflito de interesse. Esses elementos vigoraram com maior ou menor
intensidade até o governo Itamar Franco, e as câmaras setoriais talvez tenham sido o último
suspiro, na década de 1990, de uma certa concepção de Estado como aquele que assume como
seus os riscos da acumulação e da regulação das relações de classe.
III. Em terceiro lugar, o Estado liberou as amarras que atavam a ele o sindicalismo,
impedindo que operassem, na prática, os mecanismos que tornavam a organização sindical
dependente dos humores da política. Refiro-me à revogação dos preceitos legais que davam ao
Ministério do Trabalho o poder de registrar e reconhecer os sindicatos, de regular seus estatutos,
fiscalizar suas contas e intervir nas eleições sindicais, mecanismos utilizados sem peias nos mais
diferentes momentos da vida política brasileira até 1988. Ora, a liberação do controle político
deu-se paralelamente à manutenção do poder dos sindicatos arrecadarem impostos como se
fossem agências estatais, e dispor desses impostos sem prestar contas de qualquer natureza a
qualquer poder público, ou mesmo a seus representados. O que se fez foi, precisamente,
desregular a competição entre elites sindicais e lideranças trabalhistas, liberadas para fundar
4
A literatura sobre isso é vasta, e o interesse no período Vargas é crescente. Exemplos recentes são Levine
(1998), Williams (2001) e French (2001).
sindicatos a seu livre arbítrio aproveitando-se dos interstícios e silêncios da CLT, e tendo para tal
o poder de taxar aqueles que supostamente representam. A conseqüência foi a fragmentação sem
precedentes do sindicalismo no país, que chegou ao final da década de 1990 com mais de 16 mil
instituições reconhecidas e outros milhares em processo de reconhecimento. Ou seja, a estrutura
sindical corporativa, que garantiu a rápida reestruturação do sindicalismo em nível nacional nos
anos 1980, revelou-se um Frankenstein incontrolável na década seguinte, já que permitiu a
fragmentação de bases sindicais antes solidamente protegidas por lei. O que é importante para o
argumento aqui desenvolvido, porém, é que os sindicatos não puderam recorrer ao poder público
para que regulasse esse processo, impedindo a fragmentação, porque o Estado brasileiro, sob
Fernando Henrique Cardoso, abdicou inteiramente de seu papel de regulador da instituição
sindical, encarada como da ordem das relações privadas entre capital e trabalho, porém e
paradoxalmente, com direitos de poder público, já que cobra impostos.
Esta é, por si mesma, uma reversão decisiva na natureza das relações de classe em
nosso país. O caráter liberal das políticas públicas na década neoliberal trouxe de volta a
mercantilização da força de trabalho, ou a re-privatização das relações de classe. Isso se deu,
porém, não exatamente pela flexibilização do código do trabalho existente, a CLT, mas sim pela
extensão dos contratos ilegais de trabalho a áreas antes imunes a relações informais de emprego,
como a indústria e os serviços modernos. A remercantilização das relações de trabalho significa,
também, que o Estado não é mais o intermediário no conflito de interesses entre capital e
trabalho. Ele passa a ser, apenas, um intermediário de grande importância nos conflitos
individuais de direito, crescentes num ambiente de aumento do desrespeito à lei pelos
empregadores e de aumento, entre os trabalhadores, da sensação de que os patrões estão
flexibilizando a legislação a “sangue frio”, simplesmente deixando de pagar direitos trabalhistas
durante a vigência dos contratos. O resultado, como pude demonstrar em outro lugar5, é a
explosão de demandas na justiça do trabalho, que chegaram a dois milhões de processos no ano
2000.
Ora, a juridificação das relações de classe é algo muito diferente de sua politização. O
judiciário individualiza as demandas trabalhistas, mesmo quando impetradas por grupos de
trabalhadores. A associação que nesse caso ocorre, é em torno de um advogado que, por
expertise profissional, domina os meios de acesso ao trâmite processual e, nesse sentido, é
tecnicizada, liberta de qualquer veia política. Esse tipo de associação não constitui identidades
coletivas, mas apenas um grupo efêmero que, tendo seus direitos conquistados ou perdidos,
desfaz-se nas agruras do desemprego, da informalidade ou da atomização do mercado de
trabalho. O Estado ainda é o avalista do direito que se busca, mas apenas na medida em que é o
5
Adalberto Cardoso: A década neoliberal e a crise dos sindicatos no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2003.
guardião em geral de direitos civis ou de cidadania. Relações de classe juridificadas são relações
de classe despolitizadas.
6
Esses dados foram analisados em Cardoso (2003).
7
É possível esperar que ocorreu recuo ainda maior em 1999, em razão da recessão desatada pela crise cambial
do início do mesmo ano. O DIEESE ainda não divulgou esses estudos, porém. Os dados mencionados foram
capturados em www.dieese.org.br/bol/esp/estmar98.html e www.dieese.org.br/bol/esp/estjan99.html.
8
Dados em http://www.dieese.org.br/bol/esp/estjan98.html.
Tamanho abalo na instituição sindical, atingida em sua capacidade de representar
eficazmente interesses e de galvanizar identidades coletivas, não parece decorrer apenas do que
se poderia denominar “forças cegas” da globalização que, aportando entre nós pela desregu lação
neoliberal, corroeu as condições que antes lhe davam sustento. Parece-me que as lideranças
sindicais se acomodaram complacentemente à estrutura sindical frankensteiniana que emergiu da
Constituinte de 1988, preferindo postergar as pressões por reforma nos regulamentos para um
período menos conturbado na economia e na política. Essa decisão estratégica, sobretudo dos
sindicalistas da CUT, mostrou-se uma arapuca bem pesada. A luta frenética por manutenção dos
“aparelhos” em que muitas entidades sindicai s foram transformadas, fonte de recursos cada vez
mais escassos, porém ainda assegurados por lei, pôs os interesses de auto-preservação (material)
das lideranças muito adiante dos interesses propriamente coletivos das categorias formalmente
representadas. Parte importante da perda de legitimidade dos sindicatos, mesmo entre seus
representados, decorrerá desse fato preciso: no salve-se quem puder do desemprego, da
precariedade das condições de vida e da insegurança sócio-econômica, uma proporção
considerável de sindicalistas decidiu salvar-se primeiro.
A crise é profunda, pois. Ela combina efeitos estruturais com opções estratégicas das
lideranças sindicais para produzir um quadro de aparente falência de um modelo de
representação de interesses que vigeu, sem grandes mudanças, por mais de 60 anos. O paradoxo
é gritante: temos cerca de 16 mil sindicatos hoje, segundo o último censo sindical do IBGE, mas
eles representam proporcionalmente menos gente, já que o mercado formal de trabalho murchou.
Principalmente, representam mal. O temor dos sindicalistas no que respeita a uma reforma da
9
No momento em que escrevo, o Ministério Público do Trabalho investiga as contas da Força Sindical, que
fez jus a 37 milhões de Reais do FAT e teve suas contas rejeitadas pela Ouvidoria da União.
estrutura sindical, que extinguisse o imposto sindical e, com ele, a unicidade sindical, impediu
que pressões nessa direção chegassem ao parlamento, resultando em brutal fragmentação da
estrutura representativa.
É claro que esse cenário é grosseiro. Um olhar mais atento encontrará fogo sob as
cinzas, como a ainda importante presença dos sindicatos de metalúrgicos do ABC, de petroleiros
Brasil afora, de professores de São Paulo. O problema relevante é saber se, passada a tormenta
neoliberal (ou seja, retomado o crescimento econômico, reposta a economia nos trilhos da
formalidade e da industrialização, renascidos os empregos de que necessitamos para dar comida
aos nossos filhos, enfim, se tivermos mesmo uma política de crescimento sustentado não
subserviente às finanças internacionais, como continua prometendo o governo Lula), as
lideranças sindicais também retomarão seu ânimo reformador pré-1994, e que fiz questão de
louvar com entusiasmo em livro anterior (Cardoso, 1999). Espero que seja esse o caso. Nossa
sociabilidade não pode prescindir de mecanismos eficazes de representação de interesses, e cabe
às lideranças dos trabalhadores lutar contra a letargia que se abateu sobre a instituição sindical e,
com isso, fazer renascer, quem sabe, a promessa integradora do trabalho registrado.
REFERÊNCIAS
Appy (1993)
Bernard Appy: “Questão fiscal: crise e concentração de renda” in Bernard Appy et alli.
Crise brasileira, anos oitenta e governo Collor. São Paulo, DESEP/CUT, pp. 7-82.
Bielschowsky (1996)
Ricardo Bielschowsky: Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do
desenvolvimentismo. Rio de Janeiro, Contraponto (3ª edição).
Cardoso (1999)
Adalberto M. Cardoso: Sindicatos, trabalhadores e a coqueluche neoliberal: a era
Vargas acabou? Rio de Janeiro, FGV Editora.
Cardoso (2003)
Adalberto Moreira Cardoso: Os sindicatos e a insegurança sócio-econômica no Brasil.
In José Ricardo Ramalho e Marco Aurélio Santana, orgs: Trabalhadores, sindicatos e
a nova questão social. São Paulo, Boitempo.
French (2001)
John French: Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores
brasileiros. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo. Levine (1998)
Robert M. Levine: Father of the poor? Vargas and his era. Cambridge: Cambridge
University Press.
Gentili (1998)
Pablo Gentili: “Educar para o desemprego: a desintegração da promessa integradora”,
in Frigotto, Gaudêncio (org). Educação e crise do trabalho: perspectivas de final de
século. Petrópolis, Vozes, pp. 76-99.
Habermas (1987)
Jürgen Habermas: The theory of communicative action. Lifeworld and system: A
critique of functionalist reason. Boston, Beacon Press.
Offe (1984)
Claus Offe: Contradictions of the welfare state (Edited by John Keane). Chicago, MIT
Press.
Oliveira (1988)
Francisco de Oliveira: O surgimento do antivalor. Novos Estudos (22) São Paulo,
CEBRAP, outubro.
Williams (2001)
Daryle Williams: Culture wars in Brazil. The first Vargas regime, 1930-1945. Duke:
Duke University Press.