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Pochmann: Um retrato do Brasil dos precarizados

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19 de dezembro de 2022

No pós-golpe, o sistema produtivo complexo do país foi esvaziado. Impera o modelo


agrário-exportador. A economia popular e de subsistência, antes em queda, volta a
crescer. Sonhos de trabalho e vida dignos tornaram-se distantes…

Por Marcio Pochmann


Publicado 19/12/2022 às 17:09
Atualizado 19/12/2022 às 19:30

O processo de urbanização no Brasil, que vinha sendo acompanhado pela passagem


dos espaços geográficos dos circuitos econômicos do inferior para o superior, foi
interrompido a partir dos anos 1990. De acordo com os estudos seminais de Milton
Santos (O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países
subdesenvolvidos, 1978), os circuitos econômicos revelariam a dinâmica diferenciada da
produção e circulação sobre o território nacional.

A partir dos anos 1880, com a dominância do modo de produção e distribuição capitalista
no Brasil, a escravidão foi interrompida, dando lugar ao regime de trabalho assalariado.
Sua trajetória foi crescente, avançando continuamente sobre as relações de produção
não tipicamente capitalistas até então vigentes.

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Um século depois, quando o país ingressou de forma passiva e subordinada na
globalização durante a última década do século 20, o regime de trabalho assalariado
típico das atividades capitalistas (circuito superior) passou a retroceder significativamente
no país.

Há oito décadas, a ocupação no segmento não tipicamente capitalista (circuito inferior)


era majoritária no país. Em 1940, por exemplo, a ocupação pertencente à economia
popular e de subsistência que opera geralmente sem o objetivo do lucro – próprio do
processo de acumulação de capital – respondia por 53% do total da População
Economicamente Ativa do Brasil (PEA). Para o mesmo ano, o regime de trabalho
assalariado vinculado ao setor privado da economia capitalista empregava 44%. Ao
mesmo tempo, o setor público, que não funciona segundo a lógica capitalista, era
responsável por cerca de 3% do total da força de trabalho.

No auge da sociedade urbana e industrial transcorrida na virada dos anos 1970 para
1980, o regime de trabalho assalariado nas atividades capitalistas atingiu a sua maior
expressão. Em 1989, por exemplo, 57% do total da População Economicamente Ativa
pertencia às atividades tipicamente capitalistas, ao passo que o emprego público
respondia por 11% da PEA e a economia popular e de subsistência com 32% da força de
trabalho.

Mesmo com todo o dinamismo da organização capitalista de produção e distribuição no


país, a economia popular e de subsistência não desapareceu. Ao contrário, subsistiram e
até emergiram diante de oportunidades abertas pelo próprio processo de acumulação de
capital.

Nota-se que em quase meio século, o regime de trabalho capitalista se tornou dominante
com expansão média anual de 0,5% entre 1940 e 1989. Para o mesmo período de
tempo, o emprego público cresceu ainda mais rápido (2,4% em média anual), enquanto a
ocupação na economia popular e de subsistência regrediu 0,7% em média ao ano.

Naquele contexto, as instituições de representação de interesses próprias da sociedade


urbana e industrial floresceram (sindicatos, associações, partidos), apesar dos períodos
autoritários (Estado Novo, 1937-1945, e Ditadura civil-militar, 1964-1985). A ampliação
da classe operária e dos segmentos assalariados classificados como intermediário e
superior da estrutura ocupacional indicaram o quanto a mobilidade social era
ascendente, ainda que profundamente desigual.

A perda do dinamismo econômico no Brasil neste início da terceira década do século 21


revela o quanto o sistema produtivo complexo, diversificado e integrado regrediu para a
simplificação da especialização direcionada à exportação primário-exportadora e

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financeirizada. O resultado disso foi a alteração substancial na composição das
ocupações no total da força da População Economicamente Ativa.

O regime de trabalho assalariado no segmento capitalista declinou 0,4% ao ano, em


média, entre 1989 (57% da PEA) e 2022 (49%). No idêntico período de tempo, a
ocupação no setor público em relação à PEA se manteve estabilizada em 11%, ao passo
que a economia popular e de subsistência aumentou a ocupação, em média, 0,7% ao
ano (32%, em 1989, para 40%, em 2022).

Com isso, a trajetória de mobilidade social ascendente foi interrompida, acompanhada


que foi pelo rebaixamento geral das condições de ocupação e vida da classe
trabalhadora. Na sequência, houve o esvaziamento das instituições tradicionais da
representação de interesses políticos e sociais.

Para além da descrição das consequências geradas no interior do mundo do trabalho, é


necessário compreender o equívoco acerca da insistência da ação governamental
continuada quase que exclusivamente às organizações capitalistas de produção e
distribuição, pois, especialmente do ponto de vista do trabalho, o setor público e a
economia popular e de subsistência compreendem a maior parte das ocupações em
relação ao conjunto da População Economicamente Ativa.

Nas atividades não tipicamente capitalistas prevalece a presença dos trabalhadores sem
proteção social e laboral, distantes da Justiça do Trabalho e da organização sindical.
Também se destaca a ausência de políticas públicas adequadas justamente quando o
circuito inferior da economia mais avança.

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Marcio Pochmann

Economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual


de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020,
presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário
municipal de São Paulo de 2001 a 2004. Concorreu duas vezes a prefeitura de
Campinas-SP (2012 e 2016). Publicou dezenas de livros sobre Economia, sendo
agraciado três vezes com o Prêmio Jabuti.

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