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KOWARICK, Lucio. A espoliação urbana / Lucio Kowarick. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

(Coleção
Estudos brasileiros; v. 44).

Cap. 2 A lógica da desordem (p. 29)

As condições de vida dependem de uma série de fatores, da qual a dinâmica das relações de trabalho
é o ponto primordial. Não obstante tal fato, é possível fazer uma leitura destas condições através da
análise da expansão urbana, com seus serviços, infraestrutura, espaços, relações sociais e níveis de
consumo, aspectos diretamente ligados ao processo de acumulação do capital (KOWARICK, 1979, p.
29).

<Grande São Paulo> Nos primórdios da industrialização e basicamente até os anos 30, as empresas
resolveram em parte o problema de moradia da mão-de-obra através da construção de “vilas
operárias”, geralmente contíguas às fábricas, cujas residências eram alugadas ou vendidas aos
operários. O fornecimento de moradia pela própria empresa diminuía as despesas dos operários com
sua sobrevivência, permitindo que os salários fossem rebaixados. Tal tipo de solução era viável na
medida em que a quantidade de força de trabalho a ser alojada era pequena – pois destinava-se de
modo especial aos operários menos disponíveis no mercado de trabalho – e o baixo custo dos
terrenos e da construção compensava a fixação do trabalhador na empresa (KOWARICK, 1979, p. 30).

Com a intensificação da industrialização, cresce rapidamente o número de trabalhadores,


aumentando a pressão sobre a oferta de habitações populares. (...) com a aceleração do fluxo
migratório, acumula-se um excedente de força de trabalho na cidade (KOWARICK, 1979, p. 31).

As empresas transferem assim o custo da moradia (aquisição, aluguel, conservação do imóvel)


conjuntamente com os gastos com transporte para o próprio trabalhador e os relacionados aos
serviços de infraestrutura urbana, quando existentes, para o Estado. Deste momento em diante as
“vilas operárias” tendem a desaparecer e a questão da moradia passa a ser resolvida pelas relações
econômicas no mercado imobiliário (KOWARICK, 1979, p. 31).

Como acumulação e especulação andam juntas, a localização da classe trabalhadora passou a seguir
os fluxos dos interesses imobiliários (KOWARICK, 1979, p. 31). (...) Desta forma a ação governamental
restringiu-se, tanto agora como no passado, a seguir os núcleos de ocupação criados pelo setor
privado, e os investimentos públicos vieram colocar-se à serviço da dinâmica de valorização-
especulação do sistema imobiliário-construtor (KOWARICK, 1979, p. 31-32).

(...)

A construção da casa própria, através da ajuda mútua, constitui a única possibilidade de alojamento
para os trabalhadores menos qualificados, cujos baixos rendimentos não permitem pagar aluguel e,
muito menos, candidatar-se aos empréstimos do BNH. Por outro lado, essa “solução” do problema
habitacional contribuiu para deprimir os salários pagos pelas empresas aos trabalhadores. (...)
(KOWARICK, 1979, p. 41).

A periferia como fórmula de reproduzir nas cidades a força de trabalho é consequência direta do
tipo de desenvolvimento econômico que se processou na sociedade brasileira das últimas décadas.
Possibilitou, de um lado, altas taxas de exploração de trabalho, e de outro, forjou formas
espoliativas que se dão ao nível da própria condição urbana de existência a que foi submetida a
classe trabalhadora (KOWARICK, 1979, p. 41).

Favelas, cassas precárias da periferia e cortiços abrigam a classe trabalhadora, cujas condições de
alojamento expressam a precariedade dos salários (KOWARICK, 1979, p. 41).
Importa reter não apenas que os níveis de remuneração e as condições de vida de grande parte dos
trabalhadores se deterioraram, mas que esta deterioração se acentuou justamente quando a
economia cresceu a uma significativa taxa de 10% ao ano dando origem ao que por muitos foi
designado de “Milagre Brasileiro”. Mas é de se perguntar: que tipo de milagre é esse que, ao mesmo
tempo, reflete um crescimento acelerado e exclui a maioria da classe trabalhadora? Trata-se,
certamente, de um santo perverso que com uma mão dá a alguns o que com a outra retira de muitos
(KOWARICK, 1979, p. 42).

O desgaste de uma força de trabalho submetida a jornadas de trabalho prolongadas e as espinhosas


condições urbanas de existência tornam-se possíveis na medida em que a maior parte da mão-de-
obra pode ser prontamente substituída (KOWARICK, 1979, p. 42).

<Aumento da desnutrição e mortalidade infantil de 1960 a 1975; proporção da população na capital


de SP atendida pelas redes de água (reduz de 61% em 1950 para 56% em 1973) e de esgoto
(manteve-se em 35%)> (KOWARICK, 1979, p. 45). (...) Com a diminuição do poder aquisitivo (queda
do salário real) as classes mais pobres têm suas condições de alimentação sensivelmente
prejudicadas (KOWARICK, 1979, p. 45).

O quadro das condições de saúde é ainda agravado pelo fato de parte considerável dos trabalhadores
não contar com os benefícios da Previdência Social. Deixando de lado os 490 mil trabalhadores
autônomos da Grande São Paulo em 1972, cuja imensa maioria não tem carteira de trabalho, e
tomando-se os assalariados, verifica-se que não mais de 70% possuem sua carteira de trabalho
assinada (KOWARICK, 1979, p. 47).

Apontou-se que a lógica da acumulação imperante na sociedade brasileira tem levado à dilapidação
na força de trabalho. (...) Isso ocorre também com os financiamentos públicos na construção civil: é
elucidativo mostrar que 80% dos empréstimos do Banco Nacional da Habitação foram canalizados
para os estratos de renda média e alta, ao mesmo tempo que naufragaram os poucos planos
habitacionais voltados para as camadas de baixo poder aquisitivo. É contrastante neste sentido que
as pessoas com até 4 salários mínimos constituam 55% da demanda habitacional ao passo que as
moradias colocadas no mercado pelo Sistema Financeiro de Habitação raramente incluíam famílias
com rendimento inferior a 12 salários. O que ocorre no setor da construção acontece também no
plano urbano (KOWARICK, 1979, p. 50).

Por sua vez, num contexto em que as iniciativas populares encontram-se controladas, a política
governamental baseia-se em parâmetros que alimentam os interesses da apropriação privada. Tais
parâmetros são ditados pelos imperativos do processo de acumulação, excludentes e predatórios, e
não pelas “necessidades sociais” que transcendem a lógica da engrenagem econômica. Reordenam,
quando possível, os efeitos negativos de tal processo na medida em que afetarem a lógica da
acumulação, dentro da qual a classe trabalhadora, enfraquecida na sua dimensão política e social,
tem sido equacionada como um mero instrumento produtivo a serviço da expansão do capital
(KOWARICK, 1979, p. 52-53).

As coisas simples precisam constantemente ser ditas: é o capital – e não a sua força de trabalho – que
deteriora a vida metropolitana. Para o capital, a cidade e a classe trabalhadora interessam como
fonte de lucro. Para os trabalhadores a cidade é o mundo onde devem procurar desenvolver suas
potencialidades coletivas. Entre os dois existe um mundo de diferenças. E um mundo de
antagonismos (KOWARICK, 1979, p. 53).
Cap. 3 Autoconstrução de moradias e espoliação urbana (p. 55)

O “problema” habitacional não pode ser analisado isoladamente de outros processos socio-
econômicos e políticos mais amplos, não obstante nele se condensar um conjunto de contradições
específicas. (...) o sistema capitalista pressupõe a destruição dos meios autônomos de vida,
basicamente , na expropriação da terra e dos instrumentos produtivos (...) Esta é a marcha histórica
geral do processo de acumulação, (...) o desenvolvimento das forças produtivas não se dá de maneira
uniforme e linear; ao contrário, ocorre de modo desigual, no qual coexistem de forma articulada
empresas com alta densidade de capital constante e unidades cujas modalidades produtivas
dificilmente poderiam ser caraterizadas como plenamente capitalistas (KOWARICK, 1979, p. 55).

Mas não é só do ângulo do preço da terra urbana, das características do setor imobiliário-construtor
ou do papel do Estado que a questão deve ser equacionada. O padrão habitacional enquanto
elemento básico da reprodução da força do trabalho decorre do conjunto da composição social do
capital e da forma como se reparte o Trabalho excedente necessário (KOWARICK, 1979, p. 57-58).

Assim, o chamado “problema” habitacional deve ser equacionado tendo em vista dois processos
interligados. O primeiro refere-se às condições de exploração do trabalho propriamente ditas, ou
mais precisamente às condições de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos os
diversos segmentos da classe trabalhadora. O segundo processo, que decorre do anterior e que só
pode ser plenamente entendido quando analisado em razão dos movimentos contraditórios da
acumulação do capital, pode ser nomeado de espoliação urbana: é o somatório de extorsões que
se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se
apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam
ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho (KOWARICK, 1979, p.
59).

Em ambos os processos o papel do Estado é fundamental. Em primeiro lugar, por criar o suporte de
infraestrutura necessário á expansão industrial, financiando a curto ou longo prazo as empresas e por
agir diretamente como investidor econômico. (...) Em segundo lugar por manter a “ordem social”
necessária à realização de um determinado “modelo” de acumulação (KOWARICK, 1979, p. 59). (...) o
Estado, para viabilizar semelhante “modelo de ordem social” de características selvagens para a força
de trabalho, só pode assumir feições nitidamente autoritárias e repressoras. O controle e contenção
dos movimentos reivindicativos passam a ser condição para a efetivação de semelhante modelo
excludente de repartição dos benefícios, que, por sinal, tem sido a tônica do processo de acumulação
recente no Brasil (KOWARICK, 1979, p. 59-60).

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