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Brasil 2000: qual

planejamento urbano?

Ermínia Maricato

O Planejamento Urbano no Período dos “Trinta


Gloriosos”

O planejamento modernista, que deve econômico, acompanhado, de um lado,


suas raízes ao iluminismo, ganhou espe- por uma significativa distribuição de
cificidades durante os anos do welfare renda e, de outro, por um maciço inves-
state, chamados por alguns autores de timento em políticas sociais.
“trinta gloriosos” (1945/1975) (Veltz,
1992, 1996; Mattos, 1997). De fato, du- Do modernismo esse planejamento
rante esse período, os países capitalistas urbano ganhou a herança positivista, a
lograram criar o que Fiori reputa “uma crença no progresso linear, no discurso
das obras institucionais mais complexas universal, no enfoque holístico. Da in-
e impressionantes que a humanidade fluência keynesiana e fordista o plane-
conseguiu montar”, resultado da ade- jamento incorporou o Estado como a
quação do processo de acumulação figura central para assegurar o equilíbrio
capitalista ao avanço da luta dos tra- econômico e social e um mercado de
balhadores (Fiori, 1997). O Estado com- massas. Mattos lembra que a matriz teó-
binou controle legal sobre o trabalho ao rica que alimentava o planejamento não
mesmo tempo que lhe assegurou ele- só nos países capitalistas mas também
vação do padrão de vida. O período foi nos socialistas e que embasou o ensino
marcado por um grande crescimento e a prática do planejamento urbano e

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XI, N os 1 e 2, 1997, p. 113-130


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regional na América Latina atribuía ao Inspirados por alguns pioneiros da


Estado o papel de portador da raciona- segunda metade do século XIX, os con-
lidade, que evitaria as disfunções do gressos internacionais de arquitetos,
mercado, como o desemprego (regula- ocorridos nas primeiras décadas do sé-
mentando o trabalho, promovendo po- culo XX, definiram os elementos funda-
líticas sociais), bem como asseguraria o mentais do urbanismo moderno. A
desenvolvimento econômico e social primeira fase dos CIAMs (1928/33) com-
(com incentivos, subsídios, produção da prometera-se mais com as questões so-
infra-estrutura, regulando preços, pro- ciais, contribuindo para a solução dos
duzindo diretamente insumos básicos “problemas urbanos” nos países capi-
para a produção etc.). talistas centrais, em especial o proble-
ma da habitação.
Segundo Veltz, a ocupação do terri-
tório (política de desconcentração) cons- Em resposta ao crescente movimen-
tituiu uma parte importante da estratégia to operário e à demanda por moradia,
do desenvolvimento monitorado pelo os arquitetos responderam com propos-
Estado, complementando as políticas tas inovadoras de mudança no design
dirigidas à produção (taylorismo) e à das unidades habitacionais, na tipolo-
macroeconomia (fordismo). gia dos blocos, nos novos padrões dos
serviços, na hierarquia da circulação,
O planejamento territorial teve um procurando diminuir custos e garantir
desenvolvimento inédito nos “trinta glo- um padrão mínimo de qualidade. A
riosos”, mostrando inclusive fortes re- busca do mínimo não significou reduzir
percussões na América Latina, com as os padrões vigentes; ao contrário, signi-
atividades da CEPAL. No Brasil, Celso ficou estabelecer um padrão aceitável a
Furtado pôde pôr em prática sua con- todos, considerando a grande dimensão
fiança na técnica do planejamento, da carência.
aliando às pesquisas acadêmicas as
atividades de planejador e administra- Foi no 2º CIAM – desenvolvido sob
dor, quando dedicou-se ao desenvol- o lema da “Habitação para o mínimo
vimento do Nordeste, sua região de nível de vida” – que essas questões
origem, durante três governos federais: foram mais debatidas, sob a liderança
Juscelino, Jânio e Jango. de Ernst May. A célula, ponto de partida
da nova proposta, previa um novo dese-
O planejamento urbano praticado nho para a cozinha considerando a mu-
no Brasil, nesse período, cujo papel, dança do papel da mulher na sociedade,
como veremos mais adiante, foi mais os novos produtos industriais domés-
ideológico, esteve distante da concreti- ticos (aparelhos e alimentos) e as novas
zação alcançada por esse planejamen- instalações prediais. Ainda vinculada a
to regional, voltado para a superação essa leitura da evolução da família e da
do atraso e da pobreza, mesmo consi- sociedade, parte das funções domésticas
derando a fragilidade dos resultados. foi transferida para o equipamento so-
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cial, mudando a relação entre o setor em massa de moradias; e financiamento


público e o privado. O 2º CIAM foi o subsidiado à habitação (Massiah,1995).
auge do engajamento do movimento in- Essas e outras medidas asseguraram a
ternacional de arquitetos na questão da regulação entre o salário e o preço da
qualidade de vida dos trabalhadores. 1 moradia, não só através do aumento do
poder de compra dos assalariados, mas
A garantia do direito à moradia, da produção massiva de moradia e, con-
reivindicada nas lutas sociais e efetiva- seqüentemente de cidade: transporte,
mente perseguida pelas políticas públi- saneamento, serviços públicos etc. A
cas, a partir de meados dos anos 40, produção moderna fordista implicava
exigia, entre outras medidas, a mudança em aumento da produtividade na cons-
da base fundiária. Para isso, os países trução dos edifícios e da infra-estrutura
capitalistas centrais fizeram uma “refor- urbana, o que, por sua vez, implicava
ma urbana” embasada em alguns eixos na regulação da terra e do financiamen-
estruturais: reforma fundiária (segundo to. O resultado desse enorme processo
Massiah, o fundiário foi integrado na cir- de construção que gerou os subúrbios
culação do capital, em outras palavras, americanos e as cidades expandidas
a propriedade e as rendas fundiárias européias garantiu o amplo direito à
mereceram forte regulação estatal); ex- moradia (mas não o direito à cidade,
tensão da infra-estrutura urbana para como lembrou Lefèbvre em seu clássico
atender às necessidades de produção trabalho O direito à cidade).

O Colapso do Planejamento Urbano Estatal

O colapso da crença no controle racio- Fiori lembra que a globalização não


nal e centralizado dos destinos de siste- é apenas resultado dos avanços tecnoló-
mas sociais faz parte de uma grande gicos ou da evolução dos mercados em
mudança que aprofunda a internacio- competição. É um fenômeno econô-
nalização das relações mundiais, erodin- mico, político e também ideológico. A
do a base territorial nacional sobre a qual estrutura internacional de poder, que in-
se fundamentou o Estado moderno. fluiu decisivamente para o desmonte do

1
A Carta de Atenas seria formulada numa segunda fase dos CIAMs (1933/47), quando se
consolida a visão essencialmente funcionalista, sob a liderança de Le Corbusier. Já os últi-
mos CIAMs, em particular o penúltimo, de 1953, criticavam o funcionalismo, sob a liderança
do Team X. Ver, a respeito, K. Framton. Historia crítica de la arquitectura moderna. Gustavo
Gili, 1991.
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welfare state, tem seu epicentro em algu- consumo – e, com ela, a quebra do Es-
mas centenas de grandes corporações tado-providência, da organização sindi-
(muitas delas mais importantes do que cal, do pleno emprego, enfim, da certeza
muitas nações mundiais) e nos países da estabilidade individual e familiar no
mais ricos, em especial os da chamada futuro (Harvey, 1992).
tríade – Japão, Alemanha e Estados Uni-
dos. Estes concentram a maior parte dos
investimentos das grandes corporações. A segregação espacial e a ordem rí-
gida decorrentes do urbanismo moder-
nista mereceram muitas críticas, que não
O gap entre países ricos e pobres se vieram apenas de setores neoliberais.
aprofunda, assim como a heterogenei- Para Jane Jacobs, o caos urbano –
dade entre regiões, entre cidades ou no ordem rica e complexa – foi sufocado
espaço intra-urbano. Segundo Fiori, pela ordem mecânica, redutiva, frívola.
“...a globalização é um fato mas é tudo, Para Berman, a cidade funcionalista se-
menos global.” (Fiori, 1997) gregou os espaços e “neutralizou as
forças anárquicas e explosivas que a mo-
dernização havia reunido”. Muito antes,
A vitória da chamada ideologia neo- em 1929, confirmando as críticas, Cor-
liberal é inconteste: a desregulamenta- busier declararia: “Precisamos matar a
ção deve assegurar liberdade às forças rua”. De acordo com ele, o novo homem
do mercado, pois dela, argumenta-se, precisaria de um outro tipo de rua. 2 A
decorre o equilíbrio. Aparentemente (de relação dos críticos ao planejamento
acordo com o ideário neoliberal), é o urbano e especialmente à técnica do
fim do intervencionismo, da burocrati- zoneamento é muito vasta. Lefèbvre foi
zação, da ineficácia, do autoritarismo, mais longe em sua atraente radicalidade,
das certezas e das receitas. identificando o planejamento (ou o ur-
banismo, indiferentemente) como o pior
inimigo do urbano por destruir a vida
Segundo Harvey, a marca da rigi- cotidiana. 3
dez acompanhou o período de acumu-
lação de capital fordista: o grande
capital convivia com o grande gover- Vários autores têm se dedicado ao
no e com o grande trabalho (gigan- estudo da alteração dos fatores deter-
tescas corporações sindicais). A essa minantes da geografia econômica na
rigidez a nova ordem contrapõe a flexi- globalização. Alguns falam no vendaval
bilidade – na produção, no trabalho, no que percorre o território com a mudan-

2
As citações foram retiradas de Falcoski, 1997, e se referem a trabalhos bastante conhecidos
de Jane Jacobs, Marshal Berman, Le Corbusier e Henri Lefèbvre.
3
Citado em Gottdiener, 1993.
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ça dos critérios de organização da pro- local/global em qualquer de seus pontos


dução. Outros se detêm nas mudanças (cujo território é marcado pela exclusão).
que podem ser observadas no espaço Ao invés “de se dissolver no universo
intra-urbano, destacando a segregação, espacial da tele-atividade, as cidades
a informalização e a exclusão. 4 mundiais concentram cada vez parte
mais considerável da riqueza e do
poder”. Uma rede arquipélago dos
Além da conhecida influência da grandes pólos monopoliza os centros de
informatização e das mudanças relacio- decisões. A distinção entre cidade e
nadas às comunicações, que revolucio- campo não é clara nessa nova ordem,
naram a relação entre tempo e distância, nem a distinção entre indústria e serviços
mudando também os fatores que antes (Veltz, 1992, 1996).
definiam as localizações de unidades
produtivas e empregos, Veltz lembra que
ganham mais importância as fases a O planejamento urbano está em
montante – concepção, inovação, pes- crise. Os paradigmas estão mudando a
quisa – e as fases a jusante – ligação tal ponto que diversas bandeiras da es-
com o mercado. O desmonte da hierar- querda democrática acabaram nas mãos
quia centralizada taylorista (cujo territó- conservadoras de agências internacio-
rio correspondente era marcado pela nais de desenvolvimento, tais como a
desigualdade) deu lugar a um sistema OCDE e o Banco Mundial. 5 Entre as
horizontal de redes, imersas na interação mais prestigiadas estão:

4
Ver, a respeito da reflexão sobre a geografia econômica, a coletânea organizada por Benko e
Lipietz, “Les régions qui gagnent”. (Benko e Lipietz, 1992); S. Sassen. Cities in a world
economy. Pine Porge Press, 1994; Veltz, 1996; W. Cano. Reflexões sobre o Brasil e a nova
(des)ordem internacional. Campinas: Unicamp, 1993; C. C. Diniz. Dinâmica regional recente
da economia brasileira. Brasília: IPEA, 1995; C. R. Azzoni. Formação sócio-espacial metropo-
litana: novas tendências ou novas evidências. Recife: SBPC, 1993. Ver também os trabalhos
de L. Lavinas para o IPEA, que fazem uma análise comparada das regiões brasileiras. Estes
últimos três trabalhos se referem ao Brasil. Sobre alguns impactos da globalização sobre o
campo intra-urbano, ver J. Mollenkopf. e M. Castells. The dual city: reestructuring New York.
N. York: Russel Sage, 1991; D. Massey. e N. Denton. American apartheid: segregation and
the making of the underclass. Cambridge: Harvard University, 1993; A. Lipietz. Berlim, Bagdá,
Rio. Paris: Quai Voltaire, 1992; L. C. de Q. Ribeiro e O. A. dos Santos Jr. Globalização,
fragmentação e reforma urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994; E. Preteceille e
L. Valladares. Reestruturação urbana: tendências e desafios. São Paulo: Nobel, 1990; M. Santos.
A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. Os três últimos se referem ao Brasil.
5
De um documento interno da OCDE, preparatório de reunião da qual fui convidada a parti-
cipar, foi possível extrair: “A participação, a democratização, a boa gestão pública e o respeito
aos direitos humanos favorecem um desenvolvimento durável.” Afirmava-se ainda “o prima-
do do direito, o fortalecimento da gestão pública, a luta contra a corrupção e a redução das
despesas militares excessivas.” (OCDE, Paris, outubro, 1996)
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a) a descentralização e a afirmação do como por exemplo a rede internacio-


poder local (reivindicação da esquer- nal de ONGs, HIC - Habitat Interna-
da européia durante muitos anos); tional Coalition. Esses e outros pontos
estão destacados na Agenda Habitat
b) as parcerias e a autogestão dos servi- II, resultante da Conferência da ONU
ços coletivos, bandeira onipresente para os Assentamentos Humanos, a
nos programas das ONGs e das enti- qual conferiu às cidades uma impor-
dades de movimentos populares tância ímpar no cenário internacio-
(OCBs - Organizações Comunitárias nal, em contraposição à situação de
de Base, segundo o jargão da ONU), declínio do Estado Nação. 6

No Brasil: o “Plano-Discurso”

É interessante notar como se faz no Segundo ele, entre 1875 e 1906, a


Brasil a mudança das matrizes teóricas elite brasileira tinha condições hegemô-
que fundamentam a desprestigiada ativi- nicas suficientes para debater aberta-
dade de planejamento urbano nesse mente (isto evidentemente significa entre
momento de transição, ou de esvazia- os iguais) planos de obras urbanas a
mento das verdades que o sustentavam. serem implantados. Esses planos se refe-
Para tanto, em primeiro lugar, seria pre- riam especialmente ao melhoramento
ciso fazer um balanço do que foi, entre e ao embelezamento das cidades. As
nós, o planejamento modernista. Quais elites tinham propostas para as cidades.
foram suas conquistas, quais foram seus Muitos planos foram executados por
resultados? Na impossibilidade de pro- diversos e sucessivos governos, o que
ceder a um levantamento histórico mais seria impensável atualmente, quando
acurado, vamos sintetizar, muito rapida- cada governo busca sua “marca” e igno-
mente, as conclusões da análise elabo- ra qualquer linha de continuidade, com
rada por Villaça no ensaio que leva o exceção dos casos de eleição de suces-
título “Uma contribuição para a história sores indicados. Até mesmo em 30 e 40,
do Planejamento Urbano no Brasil”. ainda é possível observar a implantação

6
A Agenda Habitat II constitui um texto pleno da defesa do direito à cidade para todos, contra
a exclusão social urbana, mesmo levando em conta a forma vaga de seu texto. Ela foi assinada
por todos os governos que tinham representação em Istambul (os que respeitam e os que não
respeitam os direitos humanos) e foi aprovada também pelas organizações não governamen-
tais. Sobre as contradições observadas na Conferência das Nações Unidas para os Assen-
tamentos Humanos - Habitat II, ver Maricato, 1997a.
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de planos de embelezamento, em que variavam: Plano Diretor, Planejamento


havia preocupação com a infra-estrutura Integrado, Plano Urbanístico Básico,
urbana. Plano Municipal de Desenvolvimento,
entre outros. Nos anos 60 foram produ-
zidos alguns superplanos, fortemente
O Plano Pereira Passos, de 1903, detalhados, contendo diretrizes e reco-
para a Cidade do Rio de Janeiro, foi mendações para diversos níveis de
cumprido à risca. De acordo com Villa- governo. Um deles, elaborado por um
ça, “isso nunca mais viria acontecer”. escritório grego liderado pelo urbanista
Dos Planos Agache para o Rio e Prestes Dioxiadis, para o Rio de Janeiro, foi
Maia para São Paulo, em torno dos anos redigido e impresso em Atenas e entre-
30, só foram cumpridas as propostas gue ao governador, em inglês. O PUB –
viárias. Plano Urbanístico Básico de São Paulo
(1969) – foi elaborado por um consórcio
de escritórios brasileiros e norte-ameri-
É mais exatamente a partir de 1930 canos. Segundo Villaça, suas 3.500 pá-
(enquanto alguns antigos planos de ginas foram diretamente do consórcio
melhoramentos ainda estavam sendo para as gavetas da Secretraria Municipal
elaborados e executados) que tem início de Planejamento.
um período de inconseqüência e inu-
tilidade da maioria dos planos ela-
borados no Brasil. De um lado, havia a Os planos tecnocráticos, resultado
impossibilidade de ignorar os “proble- de um saber especializado que vinha de
mas urbanos”, de outro, a impossibili- fora do município, que ignorava a opi-
dade de dedicar o orçamento público nião da população e, não pouco fre-
apenas às obras – especialmente às qüentemente, a dos quadros técnicos
obras viárias, vinculadas à lógica do que compunham a própria administra-
capital imobiliário –, de maneira aberta ção municipal, dominaram todo o perío-
ao debate, sem sofrer críticas. Quando do de vigência do SERPHAU, órgão que
a preocupação social surge no texto, o coordenaria nacionalmente a elabo-
plano não é mais cumprido. Ele se trans- ração de Planos de Desenvolvimento
forma no plano-discurso. No plano que Local Integrado, durante a ditadura
esconde ao invés de mostrar. Esconde militar, de 1966 até 1974, quando foi
a direção tomada pelas obras e pelos extinto. O planejamento urbano proli-
investimentos que obedecem a um ferou através de órgãos públicos muni-
plano não explícito. A elite brasileira não cipais, e as escolas de arquitetura viram
era suficientemente hegemônica para aumentar seus cursos ou disciplinas da
divulgar e impor seu plano. matéria, porque nos anos 70 o mercado
de trabalho oferecia emprego na área.
Sua eficácia foi entretanto, segundo
Para fugir ao desprestígio dos planos Villaça, fundamentalmente ideológica,
não implantados, as denominações ou de aplicação restrita, eu acrescenta-
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ria. Durante esse período, o planejamen- como muitos setores organizados da


to urbano no Brasil alimentou muitas e sociedade brasileira, ousaram produzir
diferentes atividades intelectuais: teses, uma proposta para uma sociedade mais
dissertações, congressos, reuniões, moderna, ou seja, mais democrática e
cursos. Foi exatamente o período em mais igualitária. A proposta de Reforma
que as grandes cidades brasileiras mais Urbana foi lançada no Congresso do
cresceram...fora da lei. De qualquer lei, IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil,
de qualquer plano, a tal ponto que pode- em 1963, em Petrópolis. Previa o con-
mos constatar que nos anos 90 cada trole sobre a propriedade da terra. Mas,
metrópole brasileira abriga outra, de como as demais propostas de reforma
moradores de favelas, em seu interior. de base elaboradas para o país na épo-
Parte de nossas cidades são não cida- ca, teve o destino selado pela solução
des: as periferias extensas, que além das da equação representada pelas forças
casas autoconstruídas contam apenas que disputavam a condução do futuro
com o transporte precário, a luz e a água. do país. Os democráticos não só não
E é notável como essas atividades refe- foram vitoriosos, como a construção da
ridas, de pensar a cidade e propor solu- via da Reforma Urbana, tal como esta-
ções para seus problemas, permaneceu va proposta, com o controle sobre a pro-
alienada da realidade que estava sendo priedade fundiária, foi silenciada.
construída. Mesmo a produção acadê-
mica de esquerda esteve mais voltada Apesar da história comprovada de
para o que se passava nos Estados falta de respeito em relação aos Planos
Unidos e na Europa do que para o que Diretores Municipais, durante décadas,
ocorria no Brasil urbano que crescia, a Constituição de 1988 determina a
comprometendo fortemente o meio am- obrigatoriedade de sua execução em
biente e as condições de vida da maioria todas as cidades com mais de 20.000
da população. habitantes, restabelecendo seu prestígio
e fortalecendo a idéia, muito comum na
Para fazer justiça aos arquitetos e a imprensa, de que nossas cidades são um
vários outros profissionais ligados à caos porque não têm planejamento
questão urbana, é preciso reconhecer urbano, o que não é verdade. Especial-
que em pelo menos um momento da mente nos anos 70, a produção de Pla-
história do Brasil esses profissionais, nos Municipais foi muito significativa. 7

7
A desmoralização dos planos urbanísticos pôde ser constatada na Emenda Constitucional de
Iniciativa Popular de Reforma Urbana. Promovida por seis entidades de categorias profissio-
nais ou de movimentos populares, a emenda, assinada por 130.000 eleitores de todo o
Brasil, não incorporou a proposta da obrigatoriedade do Plano Municipal. Ela foi mais obje-
tiva definindo instrumentos urbanísticos de controle fundiário e de participação democrática
na gestão urbana.
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A Convivência do Controle Estatal com Radical


La isser -F a ir e

“A participação indireta e direta que (Benko e Lipietz, 1992). São propostas


durante quinze anos tive na formulação que visam, sobretudo, atrair, através de
de políticas (...) convenceu-me de que movimentos de indução, mais investi-
nossa debilidade maior está na pobreza mentos diante da crise fiscal e da com-
das idéias operacionais. A esse vazio se petição pela atração de recursos. Ganha
deve que a atividade política tenda a or- mais importância a subjetividade. Os ce-
ganizar-se em torno de esquemas im- nários, plenos de significados, visam
portados, os mais disparatados.” (Celso criar um sentimento genérico positivo
Furtado, 1983, p. 40) com efeito sinérgico. Depois, como
lembra Portas, o Plano pode nem ser
O lugar do planejamento modernis- realizado, mas cumpriu o papel de des-
ta ainda não está vago nas academias e lanchar um processo cujos objetivos
nos departamentos governamentais sejam, inicialmente, mais econômicos
(embora estes estejam totalmente des- do que urbanísticos, stricto sensu.
prestigiados), pois não existe um modelo
em condições de consenso exigidas para O que se quer questionar aqui não
a substituição. Ainda prevalecem em são esses conceitos em si, mas o modo
muitas escolas e órgãos públicos a visão como são incorporados pelas institui-
positivista e a concepção do planeja- ções e pela sociedade brasileira. A crítica
mento neutro, implementado unicamen- ao planejamento modernista carrega o
te pelo Estado. Não faltam propostas, risco de ajudar a mover o moinho das
entretanto, que são oferecidas para idéias neoliberais, porém o que se tem
cumprir tal papel histórico. Aí estão as de evitar é a importação de idéias alheias
trazidas pelo vendaval neoliberal. à forma contraditória, desigual e preda-
tória ao meio ambiente como evoluem
O risco da incorporação de novos as cidades brasileiras. É muito depri-
modismos, de conceitos reificados, mente assistir à contraditória e alienada
como cidades mundiais, cidades globais, absorção de um modelo importado e
cidades estratégicas, planejamento depois absorver, também de fora, sua
idem, distritos, redes, pólos e nós, entre própria crítica, para em seguida colocar
outros, é muito grande. As técnicas sem mediações outro modelo no lugar.
também estão presentes: os planos es- A crítica não impede a constatação de
tratégicos (americano, catalão, alemão), que o planejamento modernista garantiu
o “urbanismo negocial” (Portas, 1993), boa qualidade de vida a uma parte da
o retorno do plano de obras, que utiliza população das cidades (que é exatamen-
a arquitetura como publicidade (Berlim), te a que ofereceu maior resistência à
os distritos de crescimento endógeno aprovação do Plano Diretor proposta
12 2 Brasil 2000: qual planejamento urbano?

pela gestão malufista em São Paulo). Oliveira, Roberto Schwarz, Paulo


Nada pode substituir o papel do Estado Eduardo Arantes);
na garantia da igualdade de oportunida-
des. Mas é preciso reconhecer também l cidadania apenas para alguns: re-
que há uma diversidade de atores na lações políticas baseadas na troca
cena urbana, e enquanto alguns aspec- de favores e no patrimonialismo
tos não podem ser flexibilizados, outros (Alfredo Bosi, José de Souza Mar-
podem e é até desejável que o sejam. tins) 8 ;
Uma relação entre o conhecimento teó-
rico e a realidade empírica do universo l industrialização com baixos salá-
urbano, social e institucional brasileiro rios: mercado interno restrito e
se impõe para definir técnicas, progra- concentrado com forte impacto na
mas e instrumentos que possam consti- estrutura de provisão da habitação
tuir uma ação de resistência à exclusão. da sua maciça produção domés-
tica (Francisco de Oliveira, Sergio
Nesta altura, convém lembrar algu- Ferro);
mas características da sociedade brasi-
leira, boa parte delas de raízes coloniais, l desemprego disfarçado: estrutura
explorada em farta bibliografia, e que o complexa de inserção da força de
planejamento urbano no Brasil tende a trabalho (Celso Furtado, Florestan
ignorar: Fernandes);

l privatização da esfera pública: dis- l relação internacional assimétrica,


criminação e arbitrariedade na reforçada pela burguesia nacional
ação do Estado, dirigido por inte- associada: impedimento da auto-
resses privados (idéias desenvol- nomia na aplicação do excedente
vidas nos trabalhos clássicos de econômico (Maria da Conceição
Maria Silvia de Carvalho Franco Tavares, José Luís Fiori).
e José de Souza Martins, entre
ou tros );
Um abundante aparato regulatório
l modernização excludente: cresci- normatiza a produção do espaço urbano
mento econômico combinado ao no Brasil – rigorosas leis de zoneamento,
desenvolvimento de relações exigente legislação de parcelamento do
arcaicas que resulta no “desenvol- solo, detalhados códigos de edificações
vimento moderno do atraso.” são formulados por corporações profis-
(Florestan Fernandes, Francisco de sionais que desconsideram a condição

8
Schwarz lembra acertadamente que “o favor é nossa mediação quase universal.” As relações
clientelistas comprometem claramente uma parcela dos parlamentares de esquerda, nos anos
90, após um período inicial de maior resistência a essa marca tradicional das relações políti-
cas no Brasil.
Ermínia Maricato 123

de ilegalidade em que vive grande parte ção da lei é instrumento de poder arbi-
da população urbana brasileira em rela- trário. A leitura das justificativas de
ção à moradia e à ocupação da terra, planos ou projetos de leis urbanísticas,
demonstrando que a exclusão social no Brasil, mostra quão ridículo pode ser
passa pela lógica discriminatória na apli- o rol de boas intenções que as acompa-
cação da lei. A ineficácia dessa legislação nham. Ridículo sim, porém não inocen-
é, de fato, apenas aparente, pois cons- te. Cumpre o papel do plano-discurso.
titui um instrumento fundamental para Destaca alguns aspectos para ocultar
o exercício arbitrário do poder. A ocu- outros. É de conhecimento geral que no
pação ilegal da terra urbana é não só Brasil há “leis que pegam” e “leis que
permitida como parte do modelo de de- não pegam”. Tudo depende das circuns-
senvolvimento urbano no Brasil. Não há tâncias e dos interesses envolvidos. O
como refutar a evidência, por exemplo, mais freqüente é que ou parte do plano
da significativa proporção da população é cumprida ou ele é aplicado apenas a
moradora de favela em relação ao uni- uma parte da cidade. Sua aplicação
verso da população urbana. Ao lado da segue a lógica da cidadania restrita a
detalhada legislação urbanística (fle- alguns.
xibilizada pela pequena corrupção, na
cidade legal), é promovido um total Como demonstra Vainer, em sua
laisser-faire na cidade ilegal (Maricato, descrição sobre a implementação do
1996). A dimensão da ilegalidade na plano estratégico da Cidade do Rio de
provisão de moradias urbanas é funcio- Janeiro, gestão Cesar Maia (93/96), o
nal para a manutenção do baixo custo Conselho da Cidade tinha função mais
de reprodução da força de trabalho, formal que poder de decisão. A parti-
como também para um mercado imobi- cipação da sociedade se restringiu for-
liário especulativo (ao qual correspon- temente à elite empresarial carioca,
dem relações de trabalho atrasadas na propiciando o que o autor chama de
construção), que se sustenta sobre a es- “democracia direta... da burguesia.” Na
trutura fundiária arcaica. Caberia, ainda busca do consenso perseguido pela
hoje, levantar as demandas do Congres- metodologia adotada, não havia lugar
so do IAB, de 1963, em parte reafir- para identificação “dos mecanismos
madas na emenda constitucional de geradores da crise das cidades”. (Aliás,
Reforma Urbana, em 1988, de controle uma das características desse tipo de pla-
social sobre a terra (o que implica em nejamento é o otimismo: não mencionar
controle na direção dos investimentos os problemas e, se for impossível ignorá-
públicos), como forma de democratizar los, destacar-lhes o lado positivo, já que
o acesso à moradia. constituem sempre oportunidades para
mudar o jogo. Insistir nos “problemas”
As recorrentes discussões técnicas ou em suas causas é atitude “catastro-
detalhadas sobre posturas urbanísticas fista”). Todos eram tidos como igual-
ignoram esse fosso existente entre lei e mente, solidariamente, responsáveis na
gestão e ignoram também que a aplica- perseguição dos objetivos. “Desiguais,
12 4 Brasil 2000: qual planejamento urbano?

porém unidos”, segundo Vainer. A cida- simplesmente um projeto de lei para fle-
de como ator político implica em trégua xibilizar a lei de zoneamento (aumentar
às diferenças. O quadro foi completado o potencial construtivo e portanto aden-
pela fragilidade e falta de consenso dos sar a ocupação do solo) na maioria do
setores excluídos do processo, incapazes território da “cidade do mercado imo-
de abrir espaço na grandiosa operação biliário legal”. A isto se deu o nome de
de marketing, promovida pela parceria Plano Diretor de São Paulo. Mas é preci-
entre o setor público e o privado, que so reconhecer que os excluídos estavam
contou com a consultoria do escritório lá, na introdução e na justificativa do
do urbanista catalão Jordi Borja (Vainer, projeto de lei. 10
1996). 9

Enquanto este “Plano Diretor” es-


A proposta de Plano Diretor apre- tava em discussão, um outro, não explí-
sentada pela gestão Maluf (93/96) e pos- cito, estava sendo implementado. Em 11
teriormente pela gestão Pitta (97), para obras viárias a prefeitura gastou a incrí-
a Cidade de São Paulo, ignorou a cidade vel soma de US$ 7 bilhões, aproxima-
ilegal (mais de 50% dos moradores do damente, comprometendo a cidade com
município que estão em favelas, lotea- dívidas que iriam inviabilizar até mes-
mentos ilegais e cortiços) e ignorou mo os serviços básicos da gestão seguin-
também a relação entre circulação e uso te. Dessas 11 megaobras, apenas duas
do solo. Sem falar dos aspectos que não não estavam no interior ou próximas da
são exclusivamente urbanísticos: comér- região que concentra os bairros de mais
cio informal, segurança, pobreza, saúde, alta renda de São Paulo. Aparentemen-
educação... Para uma cidade que apre- te, tratou-se da estratégia de construir
senta congestionamentos que somam, uma “ilha de primeiro mundo”, com
com freqüência, mais de 200 km, a condições para abrigar a São Paulo, ci-
Secretaria do Planejamento apresentou dade mundial. 11 No mesmo período, o

9
A fragilidade dos setores sociais excluídos do debate sobre o planejamento e a gestão das
cidades somente pode ser vencida com o apoio decidido do governo, que deve investir na
sua capacitação. Tanto na elaboração do Plano Diretor de Angra dos Reis (89/92) quanto na
do PD de Diadema (93/96), a participação popular foi garantida e incentivada pela gestão
municipal. Sobre a primeira experiência, ver Gonçalo Guimarães. Uma cidade para todos.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. Sobre a segunda, ver o vídeo Plano Diretor de Diadema,
PMD, 1994.
10
Felizmente, forte reação da mídia e de setores organizados, especialmente dos bairros que
contam com alta qualidade de vida, impediu até mesmo que a proposta fosse enviada para
a Câmara Municipal. Encontra-se agora, no início de 1998, em reformulação. Faltou hegemonia
do capital imobiliário para impor seu plano à elite, em seu conjunto, e também a todas as
forças organizadas da cidade.
11
Diversos autores desenvolvem os conceitos de cidades mundiais ou cidades globais. Uma
bibliografia a respeito pode ser encontrada em Marques e Torres, 1997.
Ermínia Maricato 125

governo municipal descumpriu a lei que compromisso, de fato, com a eficácia


obrigava o município a investir 30% do exigida pelo capital numa cidade mun-
orçamento em educação. Os dados dial. Até que ponto é possível insistir na
mostram evasão escolar nos quatro anos estratégia das elites urbanas brasileiras
do governo (Maricato, 1997b). 12 de produzir um cenário de modernida-
de ou, agora, de pós-modernidade, em
uma ilha cercada pela não cidade? A
Esses investimentos não obede- dimensão que a pobreza e os proble-
ceram a um plano explícito. O Plano mas estão atingindo é que configura a
apresentado à sociedade foi outro: um crise desse modelo.
projeto de lei que se resumia basicamen-
te na mudança da lei de zoneamento,
como já foi visto. As obras não tinham Não se pode dizer, entretanto, que
um plano (aparentemente), e o Plano o cenário construído não teve eficácia
não apontava obras. Mais do que o esta- ideológica: Maluf se firmou mais uma
belecimento das condições para exercer vez como um grande empreendedor (até
seu papel de cidade mundial – embora nesse sentido, o “tocador de obras”
uma certa região da cidade, que concen- lembra uma imagem arcaica mas que
tra as sedes das grandes corporações, ainda tem um sentido moderno no
tenha ganhado novos e significativos senso comum) e elegeu seu sucessor nas
melhoramentos –, é possível nela identi- eleições municipais seguintes. Apenas
ficar os mesmos interesses que confor- após alguns meses do novo governo,
mam o atraso no Brasil: a presença das quando a prefeitura de São Paulo reve-
megaempreiteiras de construção, obras lou estar sem recursos para fazer a lim-
superfaturadas e a promoção da valori- peza regular das ruas, para completar a
zação fundiária e imobiliária com inves- merenda das creches, para fazer a ma-
timentos públicos dirigidos. nutenção da pavimentação asfáltica, é
que a mídia se deu conta dos fatos que
se recusou a enxergar durante a gestão
Os congestionamentos na cidade Maluf: a cidade foi quebrada financei-
aumentaram, já que as obras viárias, ramente (embora sua asfixia financeira
voltadas para o automóvel, não obede- tenha sido aliviada momentaneamente
ceram a um plano que pudesse dar mais pelo empréstimo do governo de FHC,
eficiência ao transporte de massa. O sis- que providencialmente chegará em ano
tema municipal de saúde piorou. A vio- eleitoral, 1998).
lência aumentou. Não se verifica um

12
No artigo citado, publicado na Revista Caramelo, editada pelo Grêmio dos Alunos da FAU-
USP, incorporei um mapa da localização das obras viárias referidas, bem como das localiza-
ções dos projetos habitacionais denominados Cingapura, para evidenciar, das primeiras, o
caráter segregacionista e, dos segundos, a função publicitária, predominantemente.
12 6 Brasil 2000: qual planejamento urbano?

Qual Planejamento Urbano para a Próxima Década?

Quando se debatem as matrizes teóricas - o conjunto delas forma um cenário


do planejamento urbano e regional, apli- destinado a firmar uma imagem ex-
cadas à realidade brasileira, convém clusiva em espaço segregado;
sempre lembrar de que Estado se trata,
de que sociedade se trata. O que foi o - as leis se aplicam apenas a uma parte
Estado-providência no Brasil? Quais são (freqüentemente minoritária) da ci-
as forças que estão conduzindo a inser- dad e.
ção do país no contexto da globali-
zação? Quais são as diferenças entre os Sabemos também que tanto o con-
territórios expandidos e polinucleados trole quanto a flexibilidade podem ser
americanos e europeus, servidos por relativizados num contexto de aplicação
transporte de alta velocidade (afinal a arbitrária das regras.
informática não diminuiu as viagens, ao
contrário), e nossas regiões e metrópoles Segundo Harvey, a estética estável
colapsadas pela infra-estrutura sucatea- da modernização fordista foi substituída
da (com raras exceções)? O que se en- pela instabilidade, pela efemeridade,
tende por parceria? O que se entende pelo espetáculo, pela mercantilização da
por participação e autogestão? O que cultura. Ganham importância inédita a
se entende por descentralização? Quais marca, a imagem. O investimento na
são os temas sobre os quais o Estado marca chega a ter, para a indústria, a
não pode fazer concessões? Quais os mesma importância que o investimento
que podem ser flexibilizados? Em função nas máquinas (Harvey, 1992). Isso é
de quais objetivos? A reflexão sobre verdade também para a cidade competi-
essas e outras questões pode mostrar tiva, empresarial. É a condição pós-mo-
que há algo mais determinante das rela- derna exigida por um capital que precisa
ções de poder, por trás do debate reduzi- acelerar seu tempo de giro para a sobre-
do às questões estatiza/privatiza, regula/ vivência. No caso brasileiro, a condição
flexibiliza. Sem levar em conta as formas pós-moderna se articula com a rede de
contraditórias que essas questões assu- relações atrasadas: os yuppies do mer-
mem na sociedade brasileira, podemos cado financeiro convivem com os coro-
estar praticando um urbanismo arcaico néis regionais, e a estética pós-moderna
sob o discurso pós-moderno: nas cidades, com os velhos empreiteiros
corruptos de sempre. São Paulo está
- as obras são definidas pelas megaem- mostrando que a lógica dos interesses
preiteiras que financiam as campanhas localizados pode inviabilizar a cidade
eleitorais; como força produtiva (como define
Lefèbvre) para o capital globalizado. O
- suas localizações obedecem à lógica exemplo mais gritante está na política
da extração da renda imobiliária; de transportes: ineficácia dos transportes
Ermínia Maricato 127

públicos e gigantescos e custosos con- ritorial. Especialmente se considerarmos


gestionamentos. E tudo isso após o in- o modo como as leis são aplicadas entre
vestimento de US$ 7 bilhões em obras nós ou como se exerce o chamado
viárias que não levaram em considera- poder de polícia municipal.
ção a exigência de uma eficácia mínima
da circulação em uma “cidade mun- Os projetos de renda mínima (Cam-
dial”. pinas, Brasília), relacionados à perma-
nência das crianças na escola, são os
A crise do planejamento urbano e a instrumentos mais eficazes para retirar
busca de uma nova matriz teórica consti- as crianças das ruas e dar-lhes alguma
tuem um importante impulso para uma esperança de tornarem-se futuros cida-
produção intelectual comprometida com dãos.
a democracia no Brasil. A oportunidade
é de “replantear” a questão em novas As AEIS - Áreas Especiais de Inte-
bases, através de uma militância inte- resse Social - mostraram eficácia tanto
lectual que impeça a consolidação de na regularização de áreas irregulares e
uma matriz que, sob nova forma, novos degradadas como na ampliação de
rótulos, nova marca, cumpra o mesmo novas formas de construção de mo-
e antigo papel de ocultar a verdadeira radias populares a baixo preço. Muitos
orientação dos investimentos ou dos pri- foram os casos de aplicação da lei a
vilégios nas cidades. partir da experiência pioneira do Recife,
mas merece destaque, pelo registro de-
No que se refere a programas e ins- talhado, o caso de Diadema (Hereda,
trumentos, não nos faltam pontos de 1997). O filão das boas soluções para
apoio, e aqui vamos citar apenas alguns, os problemas habitacionais é muito ex-
claramente bem-sucedidos. tenso e diversificado, para que o des-
fiemos aqui.
O orçamento participativo (Porto
Alegre, Santo André) não tem apenas a O final dos anos 70 e toda a década
virtude de ampliar a cidadania através de 80 foram marcados pelo avanço da
de um processo pedagógico, de abrir participação política no Brasil. A crise
caixas pretas, de mudar o caráter do de hegemonia política das elites ficou
poder municipal, de distribuir rendas, de bastante clara em vários momentos du-
proporcionar melhorias e oportuni- rante os quais as oposições operária,
dades. Ao quebrar os monopólios na parlamentar e popular avançaram. Nos
definição dos investimentos em infra- anos 90, assistimos à remontagem “da
estrutura, equipamentos e serviços ur- tradicional coalizão em que se sustentou
banos, ele atinge frontalmente a lógica o poder conservador no Brasil”, sob a
de funcionamento da valorização imobi- liderança do sociólogo presidente. Há
liária. Talvez seja mais eficiente do que um evidente recuo da oposição e um
a legislação urbanística em relação ao nítido avanço do projeto neoliberal,
objetivo de diminuir a segregação ter- marcado pelo retorno da posição inter-
12 8 Brasil 2000: qual planejamento urbano?

nacional imperial americana (Fiori, cionários públicos e dos professores


1977). Mesmo considerando o esva- envolvidos com o tema. Não vamos es-
ziamento das instâncias políticas, subs- perar passivamente que um novo “mo-
tituídas crescentemente pela mídia, e a delito” ocupe esse vazio para depois nos
fragilização das instâncias de planeja- restringirmos a fazer nossas brilhantes
mento urbano, o momento de transição críticas em mais um congresso nacional
é favorável ao debate, pois apresenta ou internacional, com o patrocínio das
um vazio preenchido apenas, por en- agências de fomento.
quanto, pela perplexidade dos fun-
Ermínia Maricato 129

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