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planejamento urbano?
Ermínia Maricato
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A Carta de Atenas seria formulada numa segunda fase dos CIAMs (1933/47), quando se
consolida a visão essencialmente funcionalista, sob a liderança de Le Corbusier. Já os últi-
mos CIAMs, em particular o penúltimo, de 1953, criticavam o funcionalismo, sob a liderança
do Team X. Ver, a respeito, K. Framton. Historia crítica de la arquitectura moderna. Gustavo
Gili, 1991.
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welfare state, tem seu epicentro em algu- consumo – e, com ela, a quebra do Es-
mas centenas de grandes corporações tado-providência, da organização sindi-
(muitas delas mais importantes do que cal, do pleno emprego, enfim, da certeza
muitas nações mundiais) e nos países da estabilidade individual e familiar no
mais ricos, em especial os da chamada futuro (Harvey, 1992).
tríade – Japão, Alemanha e Estados Uni-
dos. Estes concentram a maior parte dos
investimentos das grandes corporações. A segregação espacial e a ordem rí-
gida decorrentes do urbanismo moder-
nista mereceram muitas críticas, que não
O gap entre países ricos e pobres se vieram apenas de setores neoliberais.
aprofunda, assim como a heterogenei- Para Jane Jacobs, o caos urbano –
dade entre regiões, entre cidades ou no ordem rica e complexa – foi sufocado
espaço intra-urbano. Segundo Fiori, pela ordem mecânica, redutiva, frívola.
“...a globalização é um fato mas é tudo, Para Berman, a cidade funcionalista se-
menos global.” (Fiori, 1997) gregou os espaços e “neutralizou as
forças anárquicas e explosivas que a mo-
dernização havia reunido”. Muito antes,
A vitória da chamada ideologia neo- em 1929, confirmando as críticas, Cor-
liberal é inconteste: a desregulamenta- busier declararia: “Precisamos matar a
ção deve assegurar liberdade às forças rua”. De acordo com ele, o novo homem
do mercado, pois dela, argumenta-se, precisaria de um outro tipo de rua. 2 A
decorre o equilíbrio. Aparentemente (de relação dos críticos ao planejamento
acordo com o ideário neoliberal), é o urbano e especialmente à técnica do
fim do intervencionismo, da burocrati- zoneamento é muito vasta. Lefèbvre foi
zação, da ineficácia, do autoritarismo, mais longe em sua atraente radicalidade,
das certezas e das receitas. identificando o planejamento (ou o ur-
banismo, indiferentemente) como o pior
inimigo do urbano por destruir a vida
Segundo Harvey, a marca da rigi- cotidiana. 3
dez acompanhou o período de acumu-
lação de capital fordista: o grande
capital convivia com o grande gover- Vários autores têm se dedicado ao
no e com o grande trabalho (gigan- estudo da alteração dos fatores deter-
tescas corporações sindicais). A essa minantes da geografia econômica na
rigidez a nova ordem contrapõe a flexi- globalização. Alguns falam no vendaval
bilidade – na produção, no trabalho, no que percorre o território com a mudan-
2
As citações foram retiradas de Falcoski, 1997, e se referem a trabalhos bastante conhecidos
de Jane Jacobs, Marshal Berman, Le Corbusier e Henri Lefèbvre.
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Citado em Gottdiener, 1993.
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Ver, a respeito da reflexão sobre a geografia econômica, a coletânea organizada por Benko e
Lipietz, “Les régions qui gagnent”. (Benko e Lipietz, 1992); S. Sassen. Cities in a world
economy. Pine Porge Press, 1994; Veltz, 1996; W. Cano. Reflexões sobre o Brasil e a nova
(des)ordem internacional. Campinas: Unicamp, 1993; C. C. Diniz. Dinâmica regional recente
da economia brasileira. Brasília: IPEA, 1995; C. R. Azzoni. Formação sócio-espacial metropo-
litana: novas tendências ou novas evidências. Recife: SBPC, 1993. Ver também os trabalhos
de L. Lavinas para o IPEA, que fazem uma análise comparada das regiões brasileiras. Estes
últimos três trabalhos se referem ao Brasil. Sobre alguns impactos da globalização sobre o
campo intra-urbano, ver J. Mollenkopf. e M. Castells. The dual city: reestructuring New York.
N. York: Russel Sage, 1991; D. Massey. e N. Denton. American apartheid: segregation and
the making of the underclass. Cambridge: Harvard University, 1993; A. Lipietz. Berlim, Bagdá,
Rio. Paris: Quai Voltaire, 1992; L. C. de Q. Ribeiro e O. A. dos Santos Jr. Globalização,
fragmentação e reforma urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994; E. Preteceille e
L. Valladares. Reestruturação urbana: tendências e desafios. São Paulo: Nobel, 1990; M. Santos.
A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. Os três últimos se referem ao Brasil.
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De um documento interno da OCDE, preparatório de reunião da qual fui convidada a parti-
cipar, foi possível extrair: “A participação, a democratização, a boa gestão pública e o respeito
aos direitos humanos favorecem um desenvolvimento durável.” Afirmava-se ainda “o prima-
do do direito, o fortalecimento da gestão pública, a luta contra a corrupção e a redução das
despesas militares excessivas.” (OCDE, Paris, outubro, 1996)
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No Brasil: o “Plano-Discurso”
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A Agenda Habitat II constitui um texto pleno da defesa do direito à cidade para todos, contra
a exclusão social urbana, mesmo levando em conta a forma vaga de seu texto. Ela foi assinada
por todos os governos que tinham representação em Istambul (os que respeitam e os que não
respeitam os direitos humanos) e foi aprovada também pelas organizações não governamen-
tais. Sobre as contradições observadas na Conferência das Nações Unidas para os Assen-
tamentos Humanos - Habitat II, ver Maricato, 1997a.
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A desmoralização dos planos urbanísticos pôde ser constatada na Emenda Constitucional de
Iniciativa Popular de Reforma Urbana. Promovida por seis entidades de categorias profissio-
nais ou de movimentos populares, a emenda, assinada por 130.000 eleitores de todo o
Brasil, não incorporou a proposta da obrigatoriedade do Plano Municipal. Ela foi mais obje-
tiva definindo instrumentos urbanísticos de controle fundiário e de participação democrática
na gestão urbana.
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Schwarz lembra acertadamente que “o favor é nossa mediação quase universal.” As relações
clientelistas comprometem claramente uma parcela dos parlamentares de esquerda, nos anos
90, após um período inicial de maior resistência a essa marca tradicional das relações políti-
cas no Brasil.
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de ilegalidade em que vive grande parte ção da lei é instrumento de poder arbi-
da população urbana brasileira em rela- trário. A leitura das justificativas de
ção à moradia e à ocupação da terra, planos ou projetos de leis urbanísticas,
demonstrando que a exclusão social no Brasil, mostra quão ridículo pode ser
passa pela lógica discriminatória na apli- o rol de boas intenções que as acompa-
cação da lei. A ineficácia dessa legislação nham. Ridículo sim, porém não inocen-
é, de fato, apenas aparente, pois cons- te. Cumpre o papel do plano-discurso.
titui um instrumento fundamental para Destaca alguns aspectos para ocultar
o exercício arbitrário do poder. A ocu- outros. É de conhecimento geral que no
pação ilegal da terra urbana é não só Brasil há “leis que pegam” e “leis que
permitida como parte do modelo de de- não pegam”. Tudo depende das circuns-
senvolvimento urbano no Brasil. Não há tâncias e dos interesses envolvidos. O
como refutar a evidência, por exemplo, mais freqüente é que ou parte do plano
da significativa proporção da população é cumprida ou ele é aplicado apenas a
moradora de favela em relação ao uni- uma parte da cidade. Sua aplicação
verso da população urbana. Ao lado da segue a lógica da cidadania restrita a
detalhada legislação urbanística (fle- alguns.
xibilizada pela pequena corrupção, na
cidade legal), é promovido um total Como demonstra Vainer, em sua
laisser-faire na cidade ilegal (Maricato, descrição sobre a implementação do
1996). A dimensão da ilegalidade na plano estratégico da Cidade do Rio de
provisão de moradias urbanas é funcio- Janeiro, gestão Cesar Maia (93/96), o
nal para a manutenção do baixo custo Conselho da Cidade tinha função mais
de reprodução da força de trabalho, formal que poder de decisão. A parti-
como também para um mercado imobi- cipação da sociedade se restringiu for-
liário especulativo (ao qual correspon- temente à elite empresarial carioca,
dem relações de trabalho atrasadas na propiciando o que o autor chama de
construção), que se sustenta sobre a es- “democracia direta... da burguesia.” Na
trutura fundiária arcaica. Caberia, ainda busca do consenso perseguido pela
hoje, levantar as demandas do Congres- metodologia adotada, não havia lugar
so do IAB, de 1963, em parte reafir- para identificação “dos mecanismos
madas na emenda constitucional de geradores da crise das cidades”. (Aliás,
Reforma Urbana, em 1988, de controle uma das características desse tipo de pla-
social sobre a terra (o que implica em nejamento é o otimismo: não mencionar
controle na direção dos investimentos os problemas e, se for impossível ignorá-
públicos), como forma de democratizar los, destacar-lhes o lado positivo, já que
o acesso à moradia. constituem sempre oportunidades para
mudar o jogo. Insistir nos “problemas”
As recorrentes discussões técnicas ou em suas causas é atitude “catastro-
detalhadas sobre posturas urbanísticas fista”). Todos eram tidos como igual-
ignoram esse fosso existente entre lei e mente, solidariamente, responsáveis na
gestão e ignoram também que a aplica- perseguição dos objetivos. “Desiguais,
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porém unidos”, segundo Vainer. A cida- simplesmente um projeto de lei para fle-
de como ator político implica em trégua xibilizar a lei de zoneamento (aumentar
às diferenças. O quadro foi completado o potencial construtivo e portanto aden-
pela fragilidade e falta de consenso dos sar a ocupação do solo) na maioria do
setores excluídos do processo, incapazes território da “cidade do mercado imo-
de abrir espaço na grandiosa operação biliário legal”. A isto se deu o nome de
de marketing, promovida pela parceria Plano Diretor de São Paulo. Mas é preci-
entre o setor público e o privado, que so reconhecer que os excluídos estavam
contou com a consultoria do escritório lá, na introdução e na justificativa do
do urbanista catalão Jordi Borja (Vainer, projeto de lei. 10
1996). 9
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A fragilidade dos setores sociais excluídos do debate sobre o planejamento e a gestão das
cidades somente pode ser vencida com o apoio decidido do governo, que deve investir na
sua capacitação. Tanto na elaboração do Plano Diretor de Angra dos Reis (89/92) quanto na
do PD de Diadema (93/96), a participação popular foi garantida e incentivada pela gestão
municipal. Sobre a primeira experiência, ver Gonçalo Guimarães. Uma cidade para todos.
Rio de Janeiro: Forense, 1997. Sobre a segunda, ver o vídeo Plano Diretor de Diadema,
PMD, 1994.
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Felizmente, forte reação da mídia e de setores organizados, especialmente dos bairros que
contam com alta qualidade de vida, impediu até mesmo que a proposta fosse enviada para
a Câmara Municipal. Encontra-se agora, no início de 1998, em reformulação. Faltou hegemonia
do capital imobiliário para impor seu plano à elite, em seu conjunto, e também a todas as
forças organizadas da cidade.
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Diversos autores desenvolvem os conceitos de cidades mundiais ou cidades globais. Uma
bibliografia a respeito pode ser encontrada em Marques e Torres, 1997.
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No artigo citado, publicado na Revista Caramelo, editada pelo Grêmio dos Alunos da FAU-
USP, incorporei um mapa da localização das obras viárias referidas, bem como das localiza-
ções dos projetos habitacionais denominados Cingapura, para evidenciar, das primeiras, o
caráter segregacionista e, dos segundos, a função publicitária, predominantemente.
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Referências bibliográficas