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Não são poucos os brasileiros que estão encantados com o sucesso da música gospel “faz um
milagre em mim”, de Regis Danese. Lançada em outubro de 2008 em seu álbum
“Compromisso”, já havia ultrapassado a casa de mais de um milhão de cópias vendidas em
fevereiro de 2009, conforme dados disponíveis no site da gravadora Line Records e da
Comunidade Nova Aliança.
Seu sucesso é tão grande que a canção ganhou pelo menos duas novas versões: uma em
pagode e outra em funk. A primeira, através do grupo “Pique Novo” no álbum “Maravilhoso
Louvor”. A segunda, através do DJ Mc Festa de Reis em seu álbum “Festa de Reis”. Rádios
de pressupostos não evangélicos têm tocado uma ou outra versão para a música, como, por
exemplo, a Rádio Cidade do Aço FM (103,3 FM), parte do Sistema Sul Fluminense de
Comunicação, onde a canção ocupou o primeiro lugar do hit parade durante algumas semanas.
O deslumbre entre os evangélicos é geral, principalmente pelo sucesso entre os não
evangélicos. “Quem sabe não seria um excelente meio para a evangelização”, dizem alguns.
Entretanto, o que a grande maioria não percebe é que esse deslumbre demonstra a crise por
que passa a igreja evangélica brasileira. Este texto tem a intenção de demonstrá-la sob a ótica
da teologia reformada.
Um dos pressupostos da teologia reformada é a crença no princípio de Sola Scriptura
(suficiência das Escrituras). Isto pode ser testificado por obras que afirmam categoricamente
que “sendo a palavra escrita o meio escolhido por Deus para revelar a sua vontade ao homem,
ela não pode ser dispensada, igualada, acrescentada nem suplantada” (ANGLADA: 1998, p.
31). Assim, por Scriptura, os reformadores queriam dizer os 66 livros canônicos, inspirados e
inerrantes da Bíblia Sagrada. Por Sola, sua suficiência em matéria de fé (tudo o que devemos
crer para sermos salvos) e prática (como devemos viver para agradar a Deus). O princípio,
portanto, de Sola Scriptura, uma vez crido e praticado, seria capaz de libertar “o povo de Deus
de doutrinas e práticas impostas às suas consciências por autoridade meramente humana”
(SPEAR: 1996, p. 9), uma vez que ela é a palavra de Deus revelada aos homens e autoridade
final em matéria de fé prática.
Sabemos, contudo, que embora esta teoria, a saber, da Bíblia como única regra de fé e prática,
permaneça, grosso modo, no evangelicalismo brasileiro, há muito não se evidencia. Basta-nos
identificar o que muitos alegam ser verdade em certos arraiais e logo perceberemos a ausência
de princípios bíblicos que norteiem e emoldurem essa mesma verdade, bem como a sua
prática.
A letra da canção “Faz um milagre em mim” é um bom exemplo dessa crise a que me refiro.
De certo modo, ela está fundamentada numa falácia de leitura, como pretendo demonstrar,
revelando concomitantemente, o sistema de pensamento predominante na igreja evangélica
brasileira. A letra da canção diz:
Desejo destacar dois problemas perceptíveis aos meus olhos na letra dessa canção e dignos,
devido a sua gravidade, de consideração: (1) a inadequada leitura do texto-base para a canção,
a saber, Lucas 19.1-10; e (2) a identificação do sistema de pensamento predominante do
evangelicalismo moderno. Comecemos pela inadequada leitura do texto-base para a canção:
Lucas 19.1-10, de acordo com a Nova Versão Internacional.
"Jesus entrou em Jericó, e atravessava a cidade. Havia ali um homem rico chamado Zaqueu,
chefe dos publicanos. Ele queria ver quem era Jesus, mas, sendo de pequena estatura, não o
conseguia, por causa da multidão. Assim, correu adiante e subiu numa figueira brava para vê-
lo, pois Jesus ia passar por ali. Quando Jesus chegou àquele lugar, olhou para cima e lhe
disse: 'Zaqueu, desça depressa. Quero ficar em sua casa hoje'.
Então ele desceu rapidamente e o recebeu com alegria. Todo o povo viu isso e começou a se
queixar: 'Ele se hospedou na casa de um pecador'. Mas Zaqueu levantou-se e disse ao Senhor:
'Olha, Senhor! Estou dando a metade dos meus bens aos pobres; e se de alguém extorqui
alguma coisa, devolverei quatro vezes mais'. Jesus lhe disse: 'Hoje houve salvação nesta casa!
Porque este homem também é filho de Abraão. Pois o Filho do homem veio buscar e salvar o
que estava perdido'” (Lucas 19.1-10 - NVI).
De acordo com a letra da canção, Zaqueu nos é apresentado, através de uma linguagem
metafórica, como uma espécie de modelo a ser seguido. “Ele queria ver quem era Jesus, mas,
sendo de pequena estatura, não o conseguia, por causa da multidão. Assim, correu adiante e
subiu numa figueira brava para vê-lo, pois Jesus ia passar por ali”.
É difícil a pressuposição do autor da letra de que, realmente, Zaqueu quisesse “chamar sua
atenção”. Muito possivelmente, isso não teria passado por sua cabeça, homem acostumado
que era a ser desprezado pelos seus compatriotas. Zaqueu era um cobrador de impostos e, aos
olhos de seus irmãos, judeus, ele era considerado traidor, pois estava a serviço de Roma.
Lucas deixa isso bastante evidente, ao afirmar que houve uma queixa do povo quando Jesus
disse que ficaria em sua casa naquela dia.
Entretanto, o ponto que realmente chama a atenção é o fato de que se tomarmos Zaqueu como
parâmetro a ser seguido – e me parece que é exatamente isso que o autor da letra faz –, na
canção, é Zaqueu quem convida a Jesus para ir até a sua casa. A letra diz: “Entra na minha
casa”. O modo verbal é o imperativo. Um convite! A implicação é que, de acordo com a
música, parte de Zaqueu o convite para que Jesus entrasse em sua casa.
Mas quando nos voltamos ao texto-base, logo percebemos que é o Senhor Jesus quem o
convida a descer da figueira brava para se hospedar em sua casa. Não é Zaqueu quem convida
a Jesus, mas Jesus, a Zaqueu. Portanto, a frase “entra na minha casa” não precisa aquilo que o
autor inspirado recebeu e relatou. Isso nos leva a uma reflexão daquilo que pode estar por
detrás desse pensamento: a predominância de um sistema que esvazia o evangelho, uma vez
que concede ao homem o lugar que somente a Deus pertence.
Tem sido assim, ultimamente. Cada vez mais, nos arraiais da igreja, o homem, e não Deus,
tem estado no centro da obra redentora (não esqueçamos que este é o contexto do convite de
Jesus a Zaqueu). Predominantemente, o evangelho anunciado desvia o foco de Jesus e coloca
sobre o homem. É o homem quem decide. É o homem quem escolhe. Estes pressupostos,
estão presentes, por exemplo, em telenovelas de redes de televisão. Cada dia mais, elas se
encarregam de fazer certa apologia ao livre arbítrio. E a igreja, sem qualquer critério bíblico –
voltamos à questão de Sola Scriptura – mastiga e engole sem quaisquer dificuldades.
Paulo Cezar, autor de inúmeras canções e vocalista do Grupo Logos, em seu álbum
“Conteúdo”, incluiu uma canção de sua autoria que descreve muito bem toda essa situação.
Em parte da letra dessa canção, ele relembra, e muito bem, a realidade do evangelho,
criticando o que se passa em nossos dias:
Absorvida pelo sistema mundano de pensamento, o que a igreja, normalmente, faz? Ela
determina, ordena e Deus, que é Senhor, é tratado como servo. Entretanto, um evangelho onde
Deus não é Senhor absoluto (isto me soa redundante, mas...) não é o evangelho (cf. Marcos
10.17-31).
Se não estou equivocado em minhas percepções – gostaria muito de ser advertido caso esteja
–, a ausência de dificuldades para que as multidões entoem tal canção denuncia a crise que
demonstro existir. Dessa maneira, concluo, e talvez de forma bombástica, afirmando que a
canção “faz um milagre em mim” não deveria ser cantada entre os evangélicos, uma vez que
as entrelinhas fazem apologia a um sistema de pensamento que se opõe ao sistema de
pensamento das Escrituras, portanto, do próprio Deus, e frágil teologicamente.
Sua fragilidade teológica é tão notória que não há qualquer hesitação ou dúvida de
consciência, quando presenciamos a Igreja Católica Romana utilizando a canção em suas
missas, conforme a exibida pela Rede Vida, no dia 14 de março de 2009, à tarde, sob a voz do
padre Marcelo Rossi, o que demonstra, de certo modo, a proximidade doutrinária entre
evangélicos e católicos atualmente, o que seria completo absurdo há 15 ou 20 anos atrás. O
que me consola, contudo, é que eles jamais poderão cantar “escolhido fui, escolhido sou,
desde o princípio por Deus Criador”; consola-me o fato de que jamais poderão cantar "... a
santa e eleita Igreja fundamentada está somente em Jesus Cristo, outro não seguirá".
Doutrinas como as da graça não são por eles toleradas. Se não são toleradas, não são cantadas.
Fica aqui a advertência, principalmente aos pastores – que devem ser capazes de, no mínimo,
ler e interpretar, para o bem do povo de Deus, as Escrituras Sagradas – para que sejamos mais
criteriosos acerca do que ensinamos, pregamos, oramos e cantamos. Como disse o apóstolo
Pedro: “O fim de todas as coisas está próximo. Portanto, sejam criteriosos e estejam alertas;
dediquem-se à oração” (1 Pe 4.7 – NVI). Mas é verdade também: “‘...eu não os enviei nem os
autorizei; e eles não trazem benefício algum a este povo’, declara o Senhor”, como disse o
profeta Jeremias (23.32 – NVI), acerca daqueles que falavam em nome Deus, sem que
tivessem sido enviados.
Seja Deus gracioso para conosco!
A Deus toda a glória!
Paulo César Valle
http://paulocesarvalle.blogspot.com/2009/04/007-faz-um-milagre-em-mim-e-crise-da.html
BIBLIOGRAFIA
ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura: a Doutrina Reformada das Escrituras. São Paulo: Os
Puritanos, 1998.
SPEAR, Wayne. The Westminster Confession of Faith and Holy Scripture. Glasgow: Free
Presbyterian Publications, 1994.