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Comunhão Reformada
Difundindo a teologia e a identidade reformada

06/08/2009

Os Reformados e a Missão da Igreja no Mundo


Posted by José Luiz M. Carvalho under Eclesiologia, Missiologia
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Em artigo anterior, destacamos a visão de João Calvino acerca da Missão da Igreja no mundo. Aqui,
trataremos acerca da visão e da prática do movimento reformado posterior, a partir da obra do próprio
reformador genebrino. Sua influência se irradiou de Genebra especialmente para a França, a Holanda e a
Escócia e, concomitantemente, para toda a Inglaterra. Segundo Robert H. Nichols, “O protestantismo
reformado desenvolveu-se naquelas partes da Europa onde havia mais progresso intelectual resultante do
humanismo e onde havia mais liberdade política’[1]. Mais tarde, migrou para os Estados Unidos através dos
“pais peregrinos” e, posteriormente, expandiu-se para todo o mundo a partir do ministério missionário.

Em A Força Oculta dos Protestantes, André Biéler desdobrou seus estudos acerca das transformações sociais
proporcionadas pela difusão da fé protestante iniciados em O Pensamento Econômico e Social de Calvino.
Nesta obra, o autor parte de uma pergunta básica que reflete sobre o papel dos protestantes, especialmente
dos herdeiros da reforma calvinista, para as sociedades modernas: Oportunidade ou Ameaça? Na introdução
de sua obra, ele afirma:

Os julgamentos emitidos sobre o papel dos protestantes na sociedade moderna são contraditórios. Para uns, o
papel é benéfico, exemplar. Para outros, detestável, perigoso. Para uns ele está na origem das grandes
democracias e do desenvolvimento econômico ocidental. Para outros, ele é responsável pelo individualismo
destruidor da sociedade contemporânea e inspirador de todos os abusos do capitalismo.[2]

Tendo como base a análise de Biéler, convém buscar conhecer a prática do protestantismo reformado no que
se refere à relação entre a proclamação da Palavra e as transformações sociais.

A defesa da liberdade e o nascimento das modernas democracias

Segundo D. James Kennedy, “o cristianismo primeiro liberta as pessoas das cadeias do pecado. A seguir,
após a libertação espiritual ter sido experimentada, é também iniciada uma inevitável luta pela liberdade
civil”[3]. Esta vocação para a liberdade presente na essência do cristianismo, expressa-se perfeitamente
numa das doutrinas essenciais e basilares do protestantismo: o sacerdócio universal dos crentes. Esta
vocação para a liberdade norteou a ação dos protestantes em inúmeros momentos de sua história.

Robinson Cavalcanti lembra a obra Vindiciae Contra Tyrannos, que circulou entre os huguenotes
perseguidos na França no século XVII, atribuída a Théodore Beza, discípulo e sucessor de Calvino em
Genebra, que questiona atitudes autoritárias dos governantes a partir de perspectiva sócio-política onde o
poder do rei deriva de Deus, por meio do povo. O rei não pode exceder suas atribuições, das quais a principal
é a promoção do bem-estar dos seus súditos. Assim, estabelece-se a diferença entre o déspota usurpador e o
legítimo governante[4].
A partir desta cosmovisão política reformada, André Biéler identifica na herança dos próprios reformadores a
idéia de que a Igreja é a sentinela da democracia. É ela quem preserva o Estado das pretensões totalitárias
que comumente o assediam. Ele diz:

Essa era a convicção dos reformadores. Por isso, para eles a salvaguarda das liberdades consistia
em primeiríssimo lugar no anúncio do Evangelho libertador. E eles reivindicavam, para a Igreja
incumbida dessa missão eminentemente cívica, indispensável à regeneração da sociedade civil e
do Estado, a plena liberdade de ensino e de prática. Preservando-se rigorosamente de exercer
qualquer tipo de poder político, a Igreja, enquanto instituição, estava incumbida de exortar e
criticar se necessário, sobretudo, mediante o ministério dos pregadores, a conduta dos cidadão
tanto quanto a dos magistrados. Fazia-se necessário que o Estado, instituição profana, laica, mas
cuja vocação é divina, fosse mantido saudável, quer pela prece de intercessão proferida pelos
fiéis a favor das autoridades, quer mediante a Palavra de Deus anunciada ao povo e aos
dirigentes. Cumpria que o Estado fosse preservado, principalmente, de todas as tentativas de
sagração do poder, mais ou menos conscientes e incessantemente renovadas.[5]

As relações entre Igreja e Estado no protestantismo não ficaram imunes determinadas situações
contraditórias. Algumas igrejas foram estabelecidas como religião oficial por seus respectivos governos. Um
exemplo emblemático é o da Igreja Anglicana, cujo surgimento está umbilicalmente ligado à coroa inglesa,
sob Henrique VIII.

Todavia, surgiram mesmo no seio do protestantismo inglês vozes divergentes e, neste caso específico, Biéler
[6] identifica a primeira revolução democrática de uma grande potência européia, que mais tarde ficou
conhecida como “Revolução Gloriosa”. Os principais expoentes deste movimento Oliver Cromwel, no início
do século XVII e levado a termo por Guilherme III d’Orange, os ideais libertários deste movimento de matiz
teológica notadamente calvinista dão origem à primeira grande democracia européia, ainda que na forma de
uma monarquia parlamentarista[7].

A luta por um desenvolvimento justo e a ética social

O mundo moderno conheceu a prosperidade econômica de maneira nunca antes vista na História.
Primeiramente com o surgimento da classe burguesa no final da Idade Média e, posteriormente, com o
advento da Revolução Industrial, no século XVIII, e, finalmente, com o estabelecimento da economia de
mercado a partir do final do século XIX, o acentuado desenvolvimento econômico tornou-se uma realidade
em todo o hemisfério norte ocidental.

Entretanto, este desenvolvimento, muitas vezes, também proporcionou situações de exploração e


desigualdade cada vez mais freqüentes e numerosas. Isto porque, por si só, este desenvolvimento econômico
não possuiu qualquer mecanismo que pudesse distribuir de maneira eficiente as riquezas que ele mesmo
produziu.

André Biéler faz aqui uma importante ressalva. Mesmo não questionando a tese central de Max Weber, isto
é, à idéia de que a economia capitalista se desenvolveu a partir da ética social protestante, ele faz um
esclarecimento extremamente necessário:

Constatar que os protestantes foram os artesãos do desenvolvimento econômico ocidental, como


foram nas origens das grandes nas origens das grandes democracias é uma coisa. Mas constatar,
também, que tal desenvolvimento assumiu no curso dos últimos séculos a forma do capitalismo
liberal contemporâneo, mais ou menos radical conforme os lugares, com seus benefícios e
malefícios, é outra coisa.[8]

Robinson Cavalcanti enfatizou a participação do protestantismo no desenvolvimento do capitalismo a partir


da ética social do pensamento protestante, mas também esclareceu que esta participação ensejou mais os
benefícios do capitalismo do que as suas agruras:

É uma realidade que, de modo não intencional e indireto, o protestantismo concorreu para o
desenvolvimento do capitalismo: tirando o homem da massa estamental e do fatalismo,
afirmando a sua individualidade, sua dignidade e seus direitos de empreender e de mudar de
vida. O protestantismo alfabetizou esse homem, dando-lhe acesso a um mínimo de instrução.
Libertou-o de uma série de vícios danosos à sua saúde, nocivos à sua capacidade de trabalho, e o
conduziu às virtudes de uma vida sóbria. Integrou o homem em uma comunidade, que é também
um grupo de ajuda mútua. Ensinou que o homem deve buscar o seu papel social como uma
vocação, um chamado de Deus. Ensinou que a atividade econômica e financeira deve ser um
direito de todos, sem privilégios ou exclusividade da parte do Estado ou da Igreja.[9]

A este novo modelo de participação econômica e social de cada indivíduo, o protestantismo estabeleceu nas
sociedades sob sua influência um mecanismo pela busca da igualdade e da justiça: a ética da Palavra de
Deus. Biéler enfatiza o papel da proclamação da Palavra de Deus pelos protestantes na promoção de um
desenvolvimento justo: “A Palavra de Deus proclamada, difundida pelo Evangelho, pode ser acolhida ou
negligenciada, vivida ou deformada. E essa diferença de acolhimento determina o comportamento dos
homens e molda o destino das sociedades”[10].

A promoção da solidariedade e da justiça social

Desde os seus primórdios, o cristianismo ficou notabilizado pela sua preocupação com os pobres,
marginalizados e excluídos da sociedade. Nos escritos neotestamentários e dos pais da Igreja, pode-se
perceber claramente essa preocupação e até mesmo a adoção de mecanismos e práticas que visavam amparar
aqueles que estavam sob opressão neste mundo. Mas e no protestantismo, como se deu essa prática?

André Biéler constata que os cristãos protestantes engajaram-se no enfrentamento de desigualdades sociais
desde o nível pessoal até o coletivo. Especialmente no que se refere ao socorro aos pobres, cristãos
protestantes de todos os matizes se envolveram no auxílio material e na formação moral e espiritual de
populações inteiras, ainda mais especificamente com o advento da já citada Revolução industrial e da
colonização[11].

Biéler lembra do envolvimento de John Wesley e seus discípulos com os trabalhadores extenuados pela
intensa atividade industrial da Inglaterra de seus dias, dando origem aos sindicatos e suas lutas por melhores
condições de trabalho. Ele cita também do esforço anti-escravagista de William Wilberforce que iniciou a
luta que culminou na abolição da escravatura nos domínios ingleses. Ele aponta, ainda, para a criação de
sociedades missionárias na Inglaterra, na Suíça, na França e na Alemanha que tinham por objetivo
evangelizar e melhorar as condições sociais de diversas classes de pessoas, além de outros diversos esforços
de cristãos individuais[12]. E, finalizando, ainda menciona a participação dos cristãos protestantes na origem
da elaboração das leis sociais[13].

Além destes esforços, Robinson Cavalcanti lembra também do surgimento do Exército da Salvação, com
William Booth, que cuidava dos mais necessitados com o lema: “Sopa, sabão e salvação”[14]. Cavalcanti
define assim o desenvolvimento do padrão da ação social no cristianismo protestante neste período:

O padrão de ação cristã no campo social foi, então, seguindo a diversidade de vocações: 1) o uso
do poder político para reformar as estruturas; 2) a promoção humana e a organização social; 3)
os cuidados filantrópicos para as carências urgentes.[15]

A vocação crítica da ética cristã na história do protestantismo reformado

O princípio protestante se volta contra a cristalização do que é relativo tentando tomar o lugar do que é
absoluto. Assim, a consciência crítica está no cerne da ética cristã reformada. Só por essa consciência crítica,
o protestantismo pode livrar-se da tentação de cristalizar-se e perder sua essência de proclamar verdades
transformadoras. André Biéler enfatiza a insubstituível vocação crítica da ética cristã. Em suas próprias
palavras:

Se, como se viu, o Cristianismo reformado foi e permanece fator determinante para o
desenvolvimento econômico, democrático e cultural dos povos, importa sublinhar que ele só
pode desempenhar esse papel se os crentes, nutridos da forte Palavra de Deus para regeneração
do mundo, mantiverem, diante dos sistemas econômicos e políticos, a distância crítica que lhes
prescreve o Evangelho. E isso é válido para todos os crentes de todas as confissões cristãs. Se os
protestantes têm, a tal respeito, responsabilidade particular em virtude de sua história, não
possuem por si mesmos qualquer predisposição especial de que possam prevalecer-se.[16]

Desta forma, fica claro que a própria história do protestantismo coloca sobre ele ainda mais responsabilidade
no proclamar da Palavra de Deus com vistas às transformações da sociedade. É a própria proclamação da
Palavra que evita que os crentes esqueçam-se de sua missão essencial e voltem-se unicamente para si
mesmos.

Para Biéler essa essência crítica da ética cristã provém de sua própria identidade, derivando diretamente do
próprio Jesus Cristo: “Não se deve esquecer que a crítica positiva, mas firme, das autoridades religiosas,
políticas, econômicas e sociais constituídas foi sempre serviço que os cristãos conscienciosos acreditaram
dever prestar à sociedade, para sua salvaguarda, a exemplo de Cristo”[17].

E ele ainda faz uma ressalva acerca da necessária consciência crítica e sabedora dos obstáculos deste intento:

Mesmo nos países protestantes, e em Genebra como em outros lugares, a idéia de que a fé cristã
deveria levar os crentes e suas comunidades a levar em consideração os problemas sociais da
cidade foi incessantemente combatida por todos os tipos de ideologias, notadamente pela
ideologia do liberalismo integral. [...] Sabe-se que, em todos os tempos, tais recriminações foram
dirigidas aos cristãos engajados por amor nos combates em prol da justiça. Dá-se a mesma coisa
com a multidão de minorias cristãs, especialmente nos países pobres, todas as vezes que as
atitudes assumidas em matéria de ética social atingem, de perto ou de longe, interesses
particulares, seja qual for a natureza política.[18]

Por isso, é necessário e urgente que o protestantismo reformado, fiel ao seu caráter histórico, busque na sua
própria identidade inspiração e alento para continuar proclamando a Palavra de Deus e promovendo as
transformações necessárias a partir dos valores do Reino dos Céus nos diversos contextos sociais, políticos,
econômicos e culturais pelos quais ele passa.

[1] NICHOLS, R. H. História da Igreja Cristã, p.191.

[2] BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes. p. 27.

[3] KENNEDY, D. J. E se Jesus não tivesse nascido?, p. 115.

[4] Cf. CAVALCANTI, R. Cristianismo e política, p. 130s.

[5] BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 67.

[6] BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 79ss.

[7] Ver NICHOLS, R. H. História da Igreja Cristã, 195-200,232-235. BIÉLER, A. A Força Oculta dos
Protestantes, p. 79-82. KYLE, J. M. Nota Histórica. In: A Confissão de Fé de Westminster, p. 7-11.

[8] BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 116.

[9] CAVALCANTI, R. Cristianismo e Política, p. 138.

[10] BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 116.

[11] Cf. BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 171.

[12] Cf. BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 171s.

[13] Cf. BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 174s.

[14] CAVALCANTI, R. Cristianismo e Política: teoria bíblica e prática história, p. 154.

[15] CAVALCANTI, R. Cristianismo e Política: teoria bíblica e prática história, p. 155.

[16] BIÈLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 143.

[17] BIÉLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 144.

[18] BIÈLER, A. A Força Oculta dos Protestantes, p. 143.


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