Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Imagem Habitada Uma Construcao Da Expe PDF
A Imagem Habitada Uma Construcao Da Expe PDF
Resumo: A imersão tem surgido como um dos grandes conceitos das experiências do
usuário de mídias digitais. Compreendida principalmente como um processo de fruição
intimamente ligado aos estímulos sensoriais e ao envolvimento imaginativo, o conceito
de imersão pode ser visto como fruto de um longo percurso de tentativas de controle
da atenção do observador através da evolução dos dispositivos ópticos. O conceito de
imersão aliado à história das imagens técnicas dos últimos séculos pode traduzir,
portanto, uma importante trajetória da experiência imersiva atual. Este trabalho tem
por objetivo a compreensão da construção da experiência imersiva através dos
dispositivos ópticos que precederam a tecnologia digital nos séculos passados,
ajudando-nos a vislumbrar uma trajetória midiática para surgimento do que temos hoje
por imersão. O presente estudo utilizará como base autores como Arlindo Machado,
Jonathan Crary, Peter Berger e outros pensadores atuais a respeito do tema, sendo um
trabalho de análise bibliográfica em sua essência.
Introdução
Quando a imagem técnica surge, destacando-se da chamada imagem tradicional, uma
nova gama de possibilidades de fruição se abre, uma vez que, de acordo com Flusser, “no
caso das imagens tradicionais, é fácil verificar que se trata de símbolos: há um agente
humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado” (1985, p. 10). Ainda
segundo o autor, as imagens técnicas – aquelas que são resultado de processos ópticos,
químicos e mecânicos de algum aparelho – são tidas como janelas da realidade e não como
meras imagens, em um caráter aparentemente não-simbólico e objetivo.
Platão menciona uma caverna com pessoas que assistem sombras de estátuas de
homens e animais provocadas pelo fogo e guiadas por uma voz fantasmagórica. A situação
esconde, portanto, a realidade. O público que observa as imagens vive a ilusão de conhecer
o real, quando, em verdade, o mundo se descortina, de fato, fora da caverna. Vale salientar,
entretanto, que a situação cinema:
Imersão
Para Janet Murray (2003, p. 102) imersão é “um termo metafórico derivado da
experiência física de estar submerso na água”. Esta definição, dotada de certa
superficialidade, nos permite divagar sobre as mais variadas experiências aceitando-as como
imersivas, uma vez que estar imerso seria o mesmo que estar hermeticamente rodeado de
outro contexto, ou seja, estar fisicamente arrebatado para outra espacialidade, mesmo que
esta seja apenas uma simulação. Segundo este prisma, a imersão está condicionada à
percepção sensorial e, de certa forma, mais independente de processos puramente
imaginativos.
Traduzimos aqui, no entanto, a imersão segundo outros autores, que bebem não apenas
das fontes voltadas às novas tecnologias como também daquelas que dialogam com a
literatura e a psicologia.
4) Vício: Estão presentes neste grau duas situações: (a) a atitude de procurar uma
experiência imersiva, mas não encontra-la devido a uma leitura compulsiva e rápida;
(b) a perda da capacidade de distinção entre o mundo ficcional e o mundo real,
adentrando o campo da patologia no que é chamado de Síndrome de Don Quixote.
A partir destes autores, podemos enxergar o processo imersivo tendo como berço a
literatura e a capacidade imaginativa humana como sua mola mestra, sua engrenagem
propulsora, diferentemente da visão de Murray que condiciona a imersão às hermeticidades
de um novo contexto sensorial e interativo.
Outros autores como Carolyn Handler Miller (2008), no entanto, concordam com Murray
ao entendem que a experiência imersiva é basicamente multissensorial e se torna possível
somente a partir do momento em que há uma produção não apenas de estímulos diversos à
percepção, como também se constitui como interativa e explorável, possibilitando uma
jornada virtual em ambiente rico de detalhes e envolvente, passível de manuseios de
objetos e interações nos mais diversos níveis. Para a autora, as produções interativas “te
capturam e envolvem de maneira que as formas passivas de entretenimento raramente
podem fazer” (MILLER, 2008, p. 57, tradução minha). Já para Novak existe um meio termo,
haja vista que “embora seja possível escapar para outros ‘mundos’, como nos livros e filmes,
as pessoas não participam desses mundos tão diretamente como nos games” (2010, p.45).
Para a autora, os games proporcionam um nível maior de uma experiência chamada
escapista, onde o usuário usufrui de uma fuga de sua realidade por necessidade de viver em
um ambiente diferente daquele abrigado em sua realidade cotidiana.
Sobre a atenção, Crary (2013, p. 39) afirma que ela foi percebida por estudiosos do
século XIX como “um modo impreciso de designar a capacidade relativa de um sujeito para
isolar seletivamente certos conteúdos de um campo sensorial em detrimento de outros, a
fim de manter um mundo ordenado e produtivo”. Entende-se, desta forma, que a atenção,
em relação sinonímica com a categoria de concentração mencionada por Victor Nell, é a
base da construção de uma experiência imersiva. É a atenção que ordena nossa percepção
de mundo e nossos estímulos sensoriais e isto se aplica não apenas ao contexto real, como
também aos virtuais trazidos pelas mais variadas plataformas, do texto escrito ao texto
figurativista, da narrativa oral à realidade virtual interativa.
Para os autores Charles Féré e Alfred Binet, a atenção é entendida como “uma
concentração de toda a mente num único ponto, resultando na intensificação da percepção
desse ponto e produzindo em torno dele uma zona de anestesia; a atenção amplia a força
de certas sensações, enquanto enfraquece outras” (apud CRARY, 2013, p. 63).
O teatro fornece uma excelente ilustração desta atividade lúdica por parte
dos adultos. A transição entre as realidades é marcada pelo levantamento
e pela descida do pano. Quando o pano se levanta, o espectador é
"transportado para um outro mundo", com seus próprios significados e
uma ordem que pode ter relação, ou não, com a ordem da vida cotidiana.
[...] Todos os campos finitos de significação caracterizam-se por desviar a
atenção da realidade da vida contemporânea. Embora haja, está claro,
deslocamentos de atenção dentro da vida cotidiana, o deslocamento para
um campo finito de significação é de natureza muito mais radical. Produz-
se uma radical transformação na tensão da consciência. No contexto da
experiência religiosa isto já foi adequadamente chamado "transes".
(BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 43)
Estes campos – onde tempo e espaço lúdicos circunscrevem áreas e períodos específicos
da realidade cotidiana transformando-a em palco para uma outra – são, portanto, por
definição, campos de imersão.
Imergir, portanto, pode ser entendido como “habitar” o virtual, vivê-lo em suas
exigências de comprometimento cognitivo. Tendo este fato como resultado de um percurso
desenvolvido ao longo do surgimento das imagens técnicas, podemos então retornar a elas
com outra perspectiva: como e em que momentos, as imagens de aparelhos passaram a ser
utilizadas para capturar a atenção do observador e traçar os primórdios da experiência
escapista das mídias atuais? Trata-se, portanto, de perceber a história dos dispositivos
técnicos como tentativas de reconstruir mentalmente espacialidades previamente
capturadas, de indicar a vivência de realidades paralelas a partir da fruição de realidades
reproduzidas, em suma, trata-se de tentar, desde os primeiros momentos, habitar a imagem
virtual.
Poderíamos então conceber esse espaço fechado e escuro como um passo além da
mitologia da caverna de Platão já aqui mencionada. O indivíduo que ali adentra e
contempla, por ignorância, a magia da imagem-luz que se move na parede, está diante do
mundo exterior transmutado em espetáculo mágico, assistindo ainda com pouca definição
de linhas aquilo que seus olhos poderiam fazê-lo com perfeição há apenas alguns passos
dali.
Percebe-se então um grande maquinário que imobiliza o observador para que a imagem
o circunde, acabando por limitá-lo em seu campo perceptivo de forma que perca sua
autonomia de ação em prol da sensação de estar dentro de outro contexto espacial – virtual
– composto por figurativismos próprios e jogos de luz. A proximidade corporal e a
imobilidade do observador não eram exigências apenas do diorama, mas também de outros
aparelhos de jogos ópticos, a exemplo das primeiras imagens estereoscópicas, que surgiram
no século XIX antes mesmo da fotografia (CRARY, 2012; TURRIAGA, 2013). “As bases do
espetáculo e a ‘percepção pura’ do modernismo abrigam-se no território recém-descoberto
de um espectador plenamente corporificado, mas o triunfo final de ambos depende da
negação do corpo, de suas pulsações e seus espectros, como fundamento da visão.” (CRARY,
2012, p. 133, grifo nosso).
De certa forma, a estrutura de fruição individual formada por múltiplas cabines, era um
precursor do invento de Thomas Edison que viria algumas décadas depois, com utilização de
imagens em movimento, o cinetoscópio. Segundo Machado (2011), o cinetoscópio de
Edison surge em 1895 com o grande diferencial de oferecer não apenas a imagem em
movimento em suas cabines individuais, mas também por ter som sincronizado,
proveniente de outro invento seu de quase duas décadas anteriores, o fonógrafo. Com
diversas dificuldades de sincronização e com estrutura projetada para atender apenas ao
alcance individual do som, Thomas Edison e seus inventos acabam por perder espaço no
mercado, que assumia, em 1895, a fruição coletiva de cinema em grandes salas dos Lumière
como padrão.
Inúmeros outros dispositivos ópticos acabam por reforçar a trajetória aqui demonstrada
para o controle da atenção do espectador, tomando-a por base do processo imersivo.
Faltava a algum destes dispositivos envolver não apenas as duas formas de imersão já
mencionadas, mas também a sua terceira modalidade: a imersão baseada no desafio. Essa
conquista viria décadas depois com a junção de narrativas, mídias e jogabilidade. Os
videogames podem ser, na verdade, a grande inovação dos processos imersivos iniciados na
câmara escura, os aparelhos técnicos que nos fazem pensar a imersão nos dias atuais com
todo seu caráter exploratório e interativo. Esta “proto-imersão” aqui levantada, no entanto,
deixa indícios de um percurso constitutivo para a imersão que conhecemos hoje.
Considerações Finais
O percurso apresentado neste estudo aponta para dois centros na discussão a respeito
da construção da experiência imersiva através da história das imagens técnicas. O primeiro
deles está ligado ao próprio conceito de imersão, que cabe ser entendido como três
aspectos fundamentais, com base no processo cognitivo da imaginação, com base no
processo cognitivo e/ou motor do desafio e, por fim, com base na percepção sensorial. É
justamente esta última forma de acesso ao transe imersivo que elencamos ao longo de
grande parte dos aparelhos ópticos dos séculos XVIII, XIX e XX.
O segundo centro das análises aqui levantadas não diz respeito à imersão em si, mas aos
recursos sensoriais explorados pelos dispositivos ao longo dos exemplos dados. Cabe-nos
neste momento uma observação que julgamos de suma importância: há entre todos os
aparelhos de controle da atenção aqui levantados duas constantes. A primeira delas é a luz.
Seja no campo filosófico da caverna de Platão, na câmara escura ou nos demais dispositivos
listados, a luz aparece como elemento norteador da atenção. Obviamente, poderíamos ser
categóricos ao afirmar que todos os processos de visualidade não existem sem a luz e,
portanto, a ressalva é tão simplória quanto banal, contudo, destacamos a luz como
elemento encantador de todos os processos. Não a luz que cerca os ambientes exteriores
aos dispositivos, ou seja, a luz da realidade cotidiana, mas sim a luz manipulada que dá vida
aos ambientes virtuais. Nos aparelhos ópticos mencionados (e também nos não
mencionados) a luz gera um foco de concentração, guiando a percepção para determinada
área física onde se manifesta uma virtualidade. Seja nos efeitos de iluminação do diorama,
nas pequenas lâmpadas do kaiserpanorama ou nas telas projetadas do cineorama e do
cinema, falamos de luz como janela construtora de um acesso ao mundo imaginário. De
forma complementar, outra constante aparece desde o princípio da discussão: a negação do
sujeito físico, a anulação do corpo do observador diante de um momento de contemplação
do ambiente imersivo. Seja pela debilidade, fruto do encantamento momentâneo, ou
mesmo pelas condições físicas de fruição do dispositivo, todos os estágios de concentração
levantados para este estudo consideram que o espectador/observador/usuário deve anular-
se para uma vivência plena de outro contexto espacial virtualizado.
Referências
BANISTER, Jim. Word of Mouse: the new age of networked media. Chicago, EUA: Agate,
2004.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: Tratado de
sociologia do conhecimento. 23 ed. Trad Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis, RJ: Vozes,
2003.
FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta: Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
São Paulo: Hucitec, 1985.
NOVAK, Jeannie. Desenvolvimento de Games. Trad Pedro Cesar de Conti. São Paulo:
Cengage Learning, 2010.