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A imagem habitada: uma construção da experiência visual

imersiva através das imagens técnicas

Nathan Nascimento Cirino


Doutorando da UFPE
nathancirino@yahoo.com.br

Resumo: A imersão tem surgido como um dos grandes conceitos das experiências do
usuário de mídias digitais. Compreendida principalmente como um processo de fruição
intimamente ligado aos estímulos sensoriais e ao envolvimento imaginativo, o conceito
de imersão pode ser visto como fruto de um longo percurso de tentativas de controle
da atenção do observador através da evolução dos dispositivos ópticos. O conceito de
imersão aliado à história das imagens técnicas dos últimos séculos pode traduzir,
portanto, uma importante trajetória da experiência imersiva atual. Este trabalho tem
por objetivo a compreensão da construção da experiência imersiva através dos
dispositivos ópticos que precederam a tecnologia digital nos séculos passados,
ajudando-nos a vislumbrar uma trajetória midiática para surgimento do que temos hoje
por imersão. O presente estudo utilizará como base autores como Arlindo Machado,
Jonathan Crary, Peter Berger e outros pensadores atuais a respeito do tema, sendo um
trabalho de análise bibliográfica em sua essência.

Palavras-chave: Imersão. Atenção. Visualidade. Dispositivos ópticos.

Introdução
Quando a imagem técnica surge, destacando-se da chamada imagem tradicional, uma
nova gama de possibilidades de fruição se abre, uma vez que, de acordo com Flusser, “no
caso das imagens tradicionais, é fácil verificar que se trata de símbolos: há um agente
humano (pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu significado” (1985, p. 10). Ainda
segundo o autor, as imagens técnicas – aquelas que são resultado de processos ópticos,
químicos e mecânicos de algum aparelho – são tidas como janelas da realidade e não como
meras imagens, em um caráter aparentemente não-simbólico e objetivo.

As novas possibilidades que chegam através do surgimento dessas imagens-janelas


do real acabam por proporcionar uma busca por construções de aparelhos que tragam
consigo experiências visuais cada vez mais realistas, capazes de revelar ao observador novos
contextos e espacialidades. O cinema e a fotografia, como grandes expoentes das imagens
técnicas, traçam ao longo da sua breve história uma jornada através de tentativas que
abarcam as mais variadas estratégias de fruição da imagem, construindo um rico painel que
irá compor uma experiência bastante comum nas discussões atuais acerca das novas mídias:
a imersão.

Estaria a construção das imagens técnicas apontando para o processo imersivo de


fruição desde sua origem ou podemos vê-las meramente como meios de uma evolução
tecnológica com potenciais cada vez maiores de estímulos sensoriais?

Ao mencionar a caverna de Platão como um protótipo do que viria a ser a situação


cinema, Arlindo Machado (2011) nos deixa um caminho para construirmos uma resposta
para o questionamento acima. Segundo o autor: “Desde que o cinema se constituiu em
instituição, a partir de fins do século XIX, analistas e pensadores não cessam de apontar para
a extraordinária semelhança entre a cena da caverna de Platão e o dispositivo de projeção
cinematográfica” (MACHADO, 2011, p. 31).

Platão menciona uma caverna com pessoas que assistem sombras de estátuas de
homens e animais provocadas pelo fogo e guiadas por uma voz fantasmagórica. A situação
esconde, portanto, a realidade. O público que observa as imagens vive a ilusão de conhecer
o real, quando, em verdade, o mundo se descortina, de fato, fora da caverna. Vale salientar,
entretanto, que a situação cinema:

[...] se caracteriza, antes de mais nada, pelo completo isolamento do


mundo exterior e de todas a suas fontes de perturbação visual e auditiva.
Uma sala de cinema ideal deveria ser inteiramente vedada, para impedir
qualquer entrada de luz ou de ruídos do exterior. Qualquer outro ponto
luminoso que não a tela, mesmo que se trate apenas do letreiro com a
indicação de saída de emergência, já é suficiente para distrair a atenção e
perturbar esse estado de disponibilidade em que se acham os
espectadores. (MACHADO, 2011, p. 43)

Este isolamento sensorial do espectador exigido pelo cinema, limitando sua


percepção apenas ao que está no filme e ao que é filme, pode facilmente ser relacionado à
caverna de Platão e à experiência imersiva.
Assim como na caverna e no cinema, as novas tecnologias trabalham no sentido de
tragar o espectador para uma realidade paralela, de estímulos que não pertençam à sua
realidade cotidiana. Através do pensamento de Machado sobre o mito de Platão podemos
enxergar muito além do desejo não datado, ancestral, de construirmos o dispositivo cinema.
Estamos, de fato, diante de um desejo da construção da experiência de imersão, seja por
meio de sombras, de projeções, ou dos mais variados recursos disponíveis ao longo da
história das imagens técnicas.

Imersão

Para Janet Murray (2003, p. 102) imersão é “um termo metafórico derivado da
experiência física de estar submerso na água”. Esta definição, dotada de certa
superficialidade, nos permite divagar sobre as mais variadas experiências aceitando-as como
imersivas, uma vez que estar imerso seria o mesmo que estar hermeticamente rodeado de
outro contexto, ou seja, estar fisicamente arrebatado para outra espacialidade, mesmo que
esta seja apenas uma simulação. Segundo este prisma, a imersão está condicionada à
percepção sensorial e, de certa forma, mais independente de processos puramente
imaginativos.

Traduzimos aqui, no entanto, a imersão segundo outros autores, que bebem não apenas
das fontes voltadas às novas tecnologias como também daquelas que dialogam com a
literatura e a psicologia.

Quando aproximados da imersão no meio literário, temos, por exemplo, Charlotte


Bronte, que classifica o termo como “a projeção do corpo do leitor dentro do mundo
textual” (apud RYAN, 2001, p. 89, tradução minha). Podemos ainda aproximar o conceito
das palavras de Richard Gerrig, que simplifica a discussão ao definir que a leitura de um
texto cria uma viagem do leitor a um mundo paralelo, distanciando-o de seu mundo original
a ponto de romper determinadas conexões com este (apud RYAN, 2001, p. 95). Ainda
dentro do rico apanhado de Marie-Laure Ryan (2001) de definições, sobressaltam também
as categorias de Victor Nell para definir quatro graus de imersão (ou “Reading
entrancement” segundo o autor), sendo eles:

1) Concentração: Um estado frágil de conexão com o conteúdo, sujeito a fáceis


interrupções provenientes de interferências externas;

2) Envolvimento imaginativo: O leitor se transfere para o mundo textual, mas


permanece atento a características formais e estéticas do texto;

3) Transe: A leitura passa a ser não-reflexiva, pois o leitor está totalmente


capturado pelo mundo textual, perdendo até mesmo a capacidade de receber alguns
estímulos externos ao texto;

4) Vício: Estão presentes neste grau duas situações: (a) a atitude de procurar uma
experiência imersiva, mas não encontra-la devido a uma leitura compulsiva e rápida;
(b) a perda da capacidade de distinção entre o mundo ficcional e o mundo real,
adentrando o campo da patologia no que é chamado de Síndrome de Don Quixote.

A partir destes autores, podemos enxergar o processo imersivo tendo como berço a
literatura e a capacidade imaginativa humana como sua mola mestra, sua engrenagem
propulsora, diferentemente da visão de Murray que condiciona a imersão às hermeticidades
de um novo contexto sensorial e interativo.

Outros autores como Carolyn Handler Miller (2008), no entanto, concordam com Murray
ao entendem que a experiência imersiva é basicamente multissensorial e se torna possível
somente a partir do momento em que há uma produção não apenas de estímulos diversos à
percepção, como também se constitui como interativa e explorável, possibilitando uma
jornada virtual em ambiente rico de detalhes e envolvente, passível de manuseios de
objetos e interações nos mais diversos níveis. Para a autora, as produções interativas “te
capturam e envolvem de maneira que as formas passivas de entretenimento raramente
podem fazer” (MILLER, 2008, p. 57, tradução minha). Já para Novak existe um meio termo,
haja vista que “embora seja possível escapar para outros ‘mundos’, como nos livros e filmes,
as pessoas não participam desses mundos tão diretamente como nos games” (2010, p.45).
Para a autora, os games proporcionam um nível maior de uma experiência chamada
escapista, onde o usuário usufrui de uma fuga de sua realidade por necessidade de viver em
um ambiente diferente daquele abrigado em sua realidade cotidiana.

Para a psicologia, poderíamos aproximar o termo imersão de um estado semelhante ao


de transe, que demanda a concentração do usuário de determinada plataforma a ponto de
desconsiderar os estímulos sensoriais de seu contexto real. Trata-se de uma troca de uma
realidade palpável por um mundo virtual que ganha contornos de real a partir da dedicação
cognitiva. Seja considerando a interatividade e os múltiplos estímulos sensoriais, como no
pensamento dos autores voltados às novas tecnologias, ou bebendo na fonte da literatura,
o que temos em comum em todas as definições é o estado limítrofe de concentração de um
observador atento, que por vezes tem na sua experiência de fruição um arrebatamento para
um campo imaginário.

Sobre a atenção, Crary (2013, p. 39) afirma que ela foi percebida por estudiosos do
século XIX como “um modo impreciso de designar a capacidade relativa de um sujeito para
isolar seletivamente certos conteúdos de um campo sensorial em detrimento de outros, a
fim de manter um mundo ordenado e produtivo”. Entende-se, desta forma, que a atenção,
em relação sinonímica com a categoria de concentração mencionada por Victor Nell, é a
base da construção de uma experiência imersiva. É a atenção que ordena nossa percepção
de mundo e nossos estímulos sensoriais e isto se aplica não apenas ao contexto real, como
também aos virtuais trazidos pelas mais variadas plataformas, do texto escrito ao texto
figurativista, da narrativa oral à realidade virtual interativa.

Para os autores Charles Féré e Alfred Binet, a atenção é entendida como “uma
concentração de toda a mente num único ponto, resultando na intensificação da percepção
desse ponto e produzindo em torno dele uma zona de anestesia; a atenção amplia a força
de certas sensações, enquanto enfraquece outras” (apud CRARY, 2013, p. 63).

Corroborando com o entendimento de que a atenção, e não a sensorialidade, está na


base da construção da experiência imersiva, Ermi e Mäyrä (2007) mencionam três tipos de
imersão: a sensorial, a baseada no desafio e a imaginativa. Para os autores, é possível
imergir através de três caminhos, sendo a sensorialidade apenas um deles. Esta definição
nos é rica por agregar todas as discussões apresentadas anteriormente. Por um lado, temos
a imersão como aquela voltada para os estímulos, aquela que tanto se aproxima dos óculos
de realidade virtual e da interatividade, por outro ainda podemos listar experiências de
jogos ou de leitura dentro da mesma categoria. Também estamos absortos em outra
realidade quando, por exemplo, jogamos xadrez, constituindo nesta fruição uma imersão
baseada no desafio; da mesma forma exploramos novos horizontes ao lermos um romance,
o que nos insere na imersão predominantemente imaginativa.

Com base nestas definições e raciocínios a respeito do conceito, podemos compreender


que a experiência imersiva tem por base a atenção e a partir daí desenrola-se em diversas
possibilidades, principalmente quando atrelamos ao seu escapismo natural a presença e
influência dos estímulos sensoriais das mídias. O que de mais concreto podemos retirar
destas reflexões é que, ao tentarmos retratar uma origem da construção da imersão, cabe-
nos destinar o foco de nosso estudo às tentativas de controle da atenção com fins de
desenvolvimento de campos finitos de significação. Berger e Luckmann (2003) mencionam
este termo quando caracterizam o que define aquilo que chamamos de realidade. Em seus
estudos, percebemos claramente a formação de vários níveis de realidade, abrangendo
desde aquela com a qual não temos contato direto até aquela que nos cerca no dia-a-dia, a
realidade cotidiana. É justamente dentro deste campo – próximo e palpável, que surgem os
campos finitos:

O teatro fornece uma excelente ilustração desta atividade lúdica por parte
dos adultos. A transição entre as realidades é marcada pelo levantamento
e pela descida do pano. Quando o pano se levanta, o espectador é
"transportado para um outro mundo", com seus próprios significados e
uma ordem que pode ter relação, ou não, com a ordem da vida cotidiana.
[...] Todos os campos finitos de significação caracterizam-se por desviar a
atenção da realidade da vida contemporânea. Embora haja, está claro,
deslocamentos de atenção dentro da vida cotidiana, o deslocamento para
um campo finito de significação é de natureza muito mais radical. Produz-
se uma radical transformação na tensão da consciência. No contexto da
experiência religiosa isto já foi adequadamente chamado "transes".
(BERGER; LUCKMANN, 2003, p. 43)

Estes campos – onde tempo e espaço lúdicos circunscrevem áreas e períodos específicos
da realidade cotidiana transformando-a em palco para uma outra – são, portanto, por
definição, campos de imersão.

Em seu livro Word of Mouse, Jim Banister (2004), conselheiro norte-americano de


estratégias de mídia junto a empresas como Time Warner e Disney, disserta sobre a era da
mídia em rede sob diversos aspectos, dentre eles a construção da narrativa imersiva. Para o
autor, o computador está nos possibilitando conhecer não apenas a tradicional narrativa
contada (storytelling), como também as narrativas formadas (storyforming) e habitadas
(storydwelling). De forma bastante sucinta, podemos classificar a visão do autor sobre a
história formada como toda aquela passível de manipulações estruturais, interações e
reorganização de fluxo narrativo em consonância com a vontade da audiência. Incluem-se aí
os jogos eletrônicos e filmes interativos, por exemplo. Por outro lado, o conceito de
narrativa habitada representa toda a narrativa que constrói sobre si um universo explorável
e interativo, ou seja, plenamente imersivo por abarcar tanto os estímulos de desafio dos
jogos, quanto as diversas percepções sensoriais, bem como a capacidade imaginativa da
experiência lúdica. É olhando para a narrativa habitada de Banister, em um primeiro
momento completa em seus graus imersivos, que enxergamos a imersão na sua forma atual
neste longo caminho evolutivo nas mídias.

Imergir, portanto, pode ser entendido como “habitar” o virtual, vivê-lo em suas
exigências de comprometimento cognitivo. Tendo este fato como resultado de um percurso
desenvolvido ao longo do surgimento das imagens técnicas, podemos então retornar a elas
com outra perspectiva: como e em que momentos, as imagens de aparelhos passaram a ser
utilizadas para capturar a atenção do observador e traçar os primórdios da experiência
escapista das mídias atuais? Trata-se, portanto, de perceber a história dos dispositivos
técnicos como tentativas de reconstruir mentalmente espacialidades previamente
capturadas, de indicar a vivência de realidades paralelas a partir da fruição de realidades
reproduzidas, em suma, trata-se de tentar, desde os primeiros momentos, habitar a imagem
virtual.

Atenção, Visualidade E Som

Antes mesmo de conseguirmos atingir o nível tecnológico de replicação da imagem real


em sais de prata, havia métodos para se reproduzir com fidelidade as formas da natureza. A
base destes métodos perpassa a chamada câmara escura, que durante os séculos XVII e
XVIII foi, segundo Crary:

[...] o modelo mais amplamente usado para explicar a visão humana e


representar tanto a relação do sujeito perceptivo quanto a posição de um
sujeito cognoscente em relação ao mundo exterior. Esse objeto
problemático foi muito mais do que apenas um aparelho óptico. Por mais
de duzentos anos, subsistiu como metáfora filosófica, como modelo na
ciência da óptica física e também como aparato técnico usado em uma
variedade de atividades culturais. (2012, p. 35)

Através de um pequeno orifício em um espaço escuro, a luz do ambiente exterior entrava


projetando uma imagem invertida na parede oposta. Inicialmente sem o auxílio das lentes, a
imagem era borrada, mas mesmo assim ainda servia para auxiliar a produção de registros
pictóricos de paisagens e pessoas. Não raro podemos encontrar discussões sobre grandes
pintores que se utilizaram da câmara escura para criar suas obras com um alto grau de
realismo, através da cópia da imagem projetada. Ainda podemos destacar, no entanto, que
este uso era apenas uma das finalidades da câmara escura, pois

Para os que compreendiam seu funcionamento óptico, ela oferecia de


maneira transparente o espetáculo do funcionamento da representação;
para os que ignoravam seus princípios, ela proporcionava os prazeres da
ilusão. [...] Muitas descrições contemporâneas da câmara escura
consideram a representação do movimento como seu aspecto mais
impressionante. (CRARY, 2012, p. 40)

Poderíamos então conceber esse espaço fechado e escuro como um passo além da
mitologia da caverna de Platão já aqui mencionada. O indivíduo que ali adentra e
contempla, por ignorância, a magia da imagem-luz que se move na parede, está diante do
mundo exterior transmutado em espetáculo mágico, assistindo ainda com pouca definição
de linhas aquilo que seus olhos poderiam fazê-lo com perfeição há apenas alguns passos
dali.

A situação cinema composta pelo isolamento do espectador frente a uma projeção,


estava sendo gerada, mas faltava ainda nos séculos XVII e XVIII a possibilidade de levar para
esta virtualidade mágica realidades distantes ou até mesmo ambientes frutos da imaginação
humana, longe de qualquer registro de aparelhos técnicos como viria a ser a fotografia e o
cinema no século XIX. Destacamos então, a partir do momento histórico do surgimento da
câmara escura e sua utilização para contemplação e entretenimento, o início dos
dispositivos de controle de atenção do observador para ambientes imersivos primevos.

Seguem-se à câmara escura os diversos aparelhos ópticos que trabalhavam as ilusões de


movimento e fusão de imagens, tais como o fenascistoscópio, o zootrópio e o taumatrópio,
sobre os quais a literatura já tem dissertado de forma abrangente. Cabe-nos, no entanto,
ressaltar alguns outros dispositivos que melhor exemplificam nosso objeto de estudo: o
controle da atenção aliado à busca da imagem habitada. Para tanto, destacamos
primeiramente o diorama, de Louis J. M. Daguerre no início da década de 1820.

A pintura panorâmica circular ou semicircular rompeu com o ponto de vista


localizado da pintura em perspectiva ou da câmara escura, conferindo ao
espectador uma onipresença móvel. Era forçoso, no máximo, que se
virasse a cabeça (e os olhos) para ver toda a obra. O diorama multimídia
retirou essa autonomia do observador, com frequência situando o público
em uma plataforma circular que se movia lentamente, possibilitando visões
de cenas diferentes e efeitos de luz variáveis. Assim como o
fenascistoscópio e o zootrópio, o diorama era uma máquina de rodas em
movimento, da qual o observador era um componente. (CRARY, 2012, p.
113)

Percebe-se então um grande maquinário que imobiliza o observador para que a imagem
o circunde, acabando por limitá-lo em seu campo perceptivo de forma que perca sua
autonomia de ação em prol da sensação de estar dentro de outro contexto espacial – virtual
– composto por figurativismos próprios e jogos de luz. A proximidade corporal e a
imobilidade do observador não eram exigências apenas do diorama, mas também de outros
aparelhos de jogos ópticos, a exemplo das primeiras imagens estereoscópicas, que surgiram
no século XIX antes mesmo da fotografia (CRARY, 2012; TURRIAGA, 2013). “As bases do
espetáculo e a ‘percepção pura’ do modernismo abrigam-se no território recém-descoberto
de um espectador plenamente corporificado, mas o triunfo final de ambos depende da
negação do corpo, de suas pulsações e seus espectros, como fundamento da visão.” (CRARY,
2012, p. 133, grifo nosso).

Se os aparelhos começavam a condicionar a fruição a certa imobilidade e fixação do


olhar, faltava ainda à imagem, em si, a maior aproximação com o real através da tactilidade:
a expressão plena da visão não apenas no realismo da fotografia, mas também na
profundidade que os campos de visão do real proporcionavam. Iturriaga (2013, p.29,
tradução nossa) esclarece que “o primeiro aparato de visão estereoscópica, o
estereoscópio, foi apresentado publicamente em 1838 pelo inglês Charles Wheatstone”,
embora frise que o termo “descobrimento” não se aplica ao mencionado aparelho, uma vez
que a conquista da representação estereoscópica foi fruto de um esforço coletivo prévio de
diversos outros cientistas. O autor ainda afirma que:

[...] efetivamente houve uma febre estereoscópica. Estima-se que somente


no Reino Unido, em 1854, havia um milhão de estereoscópios circulando.
Além deste visor portátil, foram aparecendo outros dispositivos de
visualização como as pequenas cabines, ou peep shows, que foram os
suportes onde diversos técnicos experimentaram com imagens
estereoscópicas em movimento desde 1850. Na década seguinte se
obtiveram, em nível de protótipos, diversos sistemas de projeção
estereoscópica em telas, que permitiram passar do consumo individual ao
coletivo. (ITURRIAGA, 2013, p. 30, tradução nossa)

Considerando que estereoscopia e dispositivos para simulação de imersão sensorial


começaram a se desenvolver juntos, recaímos sobre nosso primeiro grande exemplo de
controle da atenção aliado a imagens em três dimensões: o kaiserpanorama. Uma estrutura
de 4,5 metros de diâmetro que podia acomodar até vinte e cinco espectadores, segundo
Crary, que

[...] viam imagens estereoscópicas diferentes, iluminadas por 25 pequenas


lâmpadas. O interior continha um motor que girava as placas de um
espectador para o outro, em intervalos de aproximadamente dois minutos.
Uma campainha tocava pouco antes da mudança de placas. Assim, se o
consumidor quisesse, a experiência poderia durar até cinquenta minutos –
um longo período de imersão nesse mundo de vistas aparentemente
tridimensionais de cenas locais e distantes, com legendas descritivas.
(2013, p. 149)

O peep show no formato kaiserpanorama representou no meio do século XIX o ambiente


imersivo construído a partir do controle da atenção do observador, que se traduzia na
anulação de sua presença física diante de um contexto espacial virtual. Através das
limitações sensoriais impostas ao mundo externo e uma indução de percepção dos
elementos exibidos nos binóculos, o kaiserpanorama prenunciava o processo imersivo
através de seu apelo sensorial, distante de suas portas de acesso através da imaginação ou
do desafio, sendo estas bem mais antigas e conhecidas do grande público. Com as imagens
técnicas, a indústria do entretenimento descobria que para imergir em realidades paralelas,
algo mais do que uma boa história narrada ou um bom desafio poderia ser acionado na
mente dos espectadores.

De certa forma, a estrutura de fruição individual formada por múltiplas cabines, era um
precursor do invento de Thomas Edison que viria algumas décadas depois, com utilização de
imagens em movimento, o cinetoscópio. Segundo Machado (2011), o cinetoscópio de
Edison surge em 1895 com o grande diferencial de oferecer não apenas a imagem em
movimento em suas cabines individuais, mas também por ter som sincronizado,
proveniente de outro invento seu de quase duas décadas anteriores, o fonógrafo. Com
diversas dificuldades de sincronização e com estrutura projetada para atender apenas ao
alcance individual do som, Thomas Edison e seus inventos acabam por perder espaço no
mercado, que assumia, em 1895, a fruição coletiva de cinema em grandes salas dos Lumière
como padrão.

O formato coletivo, já utilizado no diorama, era mais viável para o cinema


economicamente. Em menos de um século, o grande salto dado entre estes dois
dispositivos tinha por base a mudança dos desenhos e pinturas do primeiro modelo para a
imagem em movimento do segundo. O cinema, com sua tela iluminada em sala escura,
refletia uma realidade diferente e estimulava os sentidos da audiência, conseguindo de
forma magistral trabalhar a imersão não apenas pelos estímulos multissensoriais, mas
também pela construção de narrativas, em estímulos de imaginação típicos dos livros e
narrativas gráficas. Era possível experimentar a imersão não apenas em uma das duas
formas, mas nas duas concomitantemente.

Um fator, no entanto, colocava o diorama em situação vantajosa quanto à sua


capacidade imersiva: a imagem do cinema não circulava o espectador, mas era ainda
obediente aos moldes da câmara escura do século XVII. Salienta-se, entretanto, o
experimento do cineorama como alternativa frustrada de solucionar o problema, pois ele:

[...] implicava em várias fotografias projetadas, lado a lado, em uma tela


circular e usando filtros para suavizar as juntas. No Cineorama, dez
projetores jogavam simultaneamente suas imagens em diversas telas, cada
uma medindo cerca de 9 por 9 metros; estas eram dispostas de modo que
abrangiam 360 graus. [...] No entanto, o calor gerado pelos projetores
criava um risco de segurança, e a atração foi abandonada depois de um
acidente durante a sua quarta exibição. (COMMENT, 1999 , p. 76, tradução
nossa)

A ousada proposta do cineorama tentou unir a coletividade a uma vivência do espaço


virtual que circundava o espectador no início do século XX, mas a ideia se mostrou além das
competências técnicas disponíveis na época. Caberia ao cinema, então, exercitar o
dispositivo que uniria a imersão imaginativa e a sensorial pautada na anulação do sujeito em
sua sala escura.

Inúmeros outros dispositivos ópticos acabam por reforçar a trajetória aqui demonstrada
para o controle da atenção do espectador, tomando-a por base do processo imersivo.
Faltava a algum destes dispositivos envolver não apenas as duas formas de imersão já
mencionadas, mas também a sua terceira modalidade: a imersão baseada no desafio. Essa
conquista viria décadas depois com a junção de narrativas, mídias e jogabilidade. Os
videogames podem ser, na verdade, a grande inovação dos processos imersivos iniciados na
câmara escura, os aparelhos técnicos que nos fazem pensar a imersão nos dias atuais com
todo seu caráter exploratório e interativo. Esta “proto-imersão” aqui levantada, no entanto,
deixa indícios de um percurso constitutivo para a imersão que conhecemos hoje.
Considerações Finais

O percurso apresentado neste estudo aponta para dois centros na discussão a respeito
da construção da experiência imersiva através da história das imagens técnicas. O primeiro
deles está ligado ao próprio conceito de imersão, que cabe ser entendido como três
aspectos fundamentais, com base no processo cognitivo da imaginação, com base no
processo cognitivo e/ou motor do desafio e, por fim, com base na percepção sensorial. É
justamente esta última forma de acesso ao transe imersivo que elencamos ao longo de
grande parte dos aparelhos ópticos dos séculos XVIII, XIX e XX.

O segundo centro das análises aqui levantadas não diz respeito à imersão em si, mas aos
recursos sensoriais explorados pelos dispositivos ao longo dos exemplos dados. Cabe-nos
neste momento uma observação que julgamos de suma importância: há entre todos os
aparelhos de controle da atenção aqui levantados duas constantes. A primeira delas é a luz.
Seja no campo filosófico da caverna de Platão, na câmara escura ou nos demais dispositivos
listados, a luz aparece como elemento norteador da atenção. Obviamente, poderíamos ser
categóricos ao afirmar que todos os processos de visualidade não existem sem a luz e,
portanto, a ressalva é tão simplória quanto banal, contudo, destacamos a luz como
elemento encantador de todos os processos. Não a luz que cerca os ambientes exteriores
aos dispositivos, ou seja, a luz da realidade cotidiana, mas sim a luz manipulada que dá vida
aos ambientes virtuais. Nos aparelhos ópticos mencionados (e também nos não
mencionados) a luz gera um foco de concentração, guiando a percepção para determinada
área física onde se manifesta uma virtualidade. Seja nos efeitos de iluminação do diorama,
nas pequenas lâmpadas do kaiserpanorama ou nas telas projetadas do cineorama e do
cinema, falamos de luz como janela construtora de um acesso ao mundo imaginário. De
forma complementar, outra constante aparece desde o princípio da discussão: a negação do
sujeito físico, a anulação do corpo do observador diante de um momento de contemplação
do ambiente imersivo. Seja pela debilidade, fruto do encantamento momentâneo, ou
mesmo pelas condições físicas de fruição do dispositivo, todos os estágios de concentração
levantados para este estudo consideram que o espectador/observador/usuário deve anular-
se para uma vivência plena de outro contexto espacial virtualizado.

Ao aproximarmos os dados referidos da imersão atual, tão presente nos aparelhos de


realidade virtual e videogames, percebe-se que, ainda, luz e anulação do corpo são peças
chaves para o processo imersivo. Embora não caibam aqui maiores explanações sobre a
presença da luz nestes novos jogos ópticos, dada a simplicidade da associação, cabe-nos
pensar sobre a anulação do corpo do sujeito fruidor. Atualmente, os processos de imersão
das novas mídias, ao contrário do que fora dito há algumas linhas atrás, exigem cada vez
mais o corpo do indivíduo, com controles dotados de câmeras e sensores de movimento.
Onde estaria a lógica de afirmarmos, no desfecho desta análise, que o processo imersivo
atual continua prezando pela anulação o sujeito físico?

Percebamos que a proposta aqui se desenrola em múltiplas possibilidades de


aprofundamento, mas podemos também perceber que os movimentos exigidos hoje pelos
novos dispositivos não são movimentos que pertençam à realidade do sujeito. Pelo
contrário, são movimentos que pertencem ao mundo virtual, o que nos coloca diante de um
pensamento que julgamos pertinente para esta conclusão: conseguimos, enfim, habitar a
imagem.

Ao explorarmos mundos virtuais, resultados de todo o avanço técnico aqui apresentado,


podemos interagir com lugares totalmente gerados por computador, ambientes imersivos
lúdicos e descompromissados com as leis da natureza, ou, por vezes, criadores de suas
próprias leis. São universos erigidos em luz, que continuam a nos anular enquanto sujeitos
físicos de uma realidade cotidiana e começam a nos tragar o corpo e os movimentos rumo a
realidades paralelas. Aquilo que chamamos de “proto-imersão” e a imersão atual somam-
se, desta maneira, em um caminho extenso rumo à fruição plena do nosso próprio
imaginário.

Referências
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