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Fichamento: História das Religiões e Religiosidades

Jacqueline Hermann

A história das religiões como disciplina

1º momento

Longo processo que envolveu a configuração de uma história das religiões como disciplina,
dotada de objeto e metodologia próprios (relações entre a defesa do caráter racionalista do
homem ocidental e a persistência de formas de expressão ainda classificadas de religiosas) – p.
329

Resultado de um contexto de progressiva dessacralização – nos séculos XVII e XVIII, conheceria


uma poderosa oposição entre religião e magia, instaurava uma polarização da qual seriam
herdeiros os pensadores que, no século seguinte, se debruçariam sobre o fenômeno religioso
– p. 329

Contato com o “outro” – inaugurou uma sistemática hierarquização política e cultural, ganhou
no século XIX o reforço poderoso do discurso positivista e evolucionista para a análise de
sistemas religiosos diferentes e heterodoxos. Baseado sobretudo na teoria dos três Estados
formulada por Augusto Comte (1798-1857) em 1819; o teológico, em que predominaram as
forças sobrenaturais; o metafísico, caracterizado pela crítica vazia e pela desordem, fruto de
um liberalismo mal concebido; e o positivo, que superaria as explicações insuficientes do
mundo ao substituir as hipóteses religiosas e metafísicas por leis científicas inquestionáveis –
p. 330

Influências do positivismo de Comte, aliadas às teses evolucionistas de H. Spencer (1820-


1903), marcadas pelo modelo biológico e inspiradas pela teoria de C. Darwin (1809-1882).

E.B. Taylor (1832-1917); J.G. Frazer (1854-1941) – são referencias fundamentais no processo
de elaboração de uma história das religiões, não só procuraram demonstrar e comprovar a
validade de suas interpretações eurocêntricas, como encaminharam suas reflexões a partir de
uma busca da origem e da evolução da religião, aqui considerada no singular. (...) As teses de
Tylor, endossadas por Frazer, tiveram grande peso nas distinções que separavam, na passagem
do século XIX para o XX, magia e religião, dando-lhes agora uma conotação científica. Para
Frazer, o homem primitivo, vivendo no primeiro tempo de sua história, acreditava que as
regras da magia eram idênticas às da natureza, o que levava a esperar uma resposta adequada
e imediata da natureza para a solução de suas dificuldades – p. 331

2º momento – papel social das religiões: surgimento da sociologia


(...) O estudo do papel social das religiões, ou de suas crenças e práticas, beneficiou-se ainda
da constituição de um novo campo de conhecimento que se estruturava como disciplina
autônoma a partir do final do século XIX: a sociologia. Na medida em que as categorias social e
sociedade encontraram espaço como objetos privilegiados de estudo, seus diversos elementos
constitutivos – e entre eles a religião – passaram a merecer também maior atenção e estudos
mais objetivos e sistemáticos – p. 331

A produção de Émile Durkheim (1858-1917) demonstra bem este percurso, ao partir da análise
da divisão social do trabalho, passar pela definição das regras do método sociológico e chegar
ao trabalho que aqui mais nos interessa, As formas elementares da vida religiosa, publicado
em 1912. Ao procurar estabelecer a sociologia como disciplina objetiva e positiva, Durkheim
absorveu a base evolucionista da investigação comteana, tentando formular uma metodologia
científica para a apreensão das leis de funcionamento das sociedades e das relações entre os
diferentes grupos que as compõem. Partindo da análise dos casos mais simples para o mais
complexo, sendo este último o estágio vivido pela sociedade europeia de seu tempo, o autor
pretende alcançar as leis que regem o funcionamento orgânico das sociedades e compreender
suas representações coletivas, vistas pelo estudioso francês como resultado de uma
“consciência coletiva”, diferente de fenômenos psicológicos individuais. Durkheim postula a
autonomia dos fatos sociais, entendendo que estes devem ser analisados como respostas
coletivas, concretas, fruto de reflexões comuns e sociais anteriores.

(...) Ao procurar a essência do homem religioso e das religiões, o autor resgata a busca da
origem do sentimento religioso que os iluministas imputaram à natureza humana, agora
deslocada para o centro da vida social e das representações coletivas. Base original da vida
social, o totemismo seria a representação primordial do homem sobre o mundo e reuniria as
características essenciais de todas as religiões: a distinção entre os objetos sagrados e
profanos; a noção de alma e espírito; de personalidade mítica e divindade nacional; ritos de
oblação e de comunhão; ritos comemorativos; ritos de expiação – p. 332

Durkheim oferece, assim, um primeiro esboço teórico-metodológico para a análise de sistemas


religiosos, apesar de todas as ressalvas que se possa fazer aos princípios teóricos que
orientaram suas conclusões. Mas talvez a mais importante restrição ao papel de seu trabalho
no processo de elaboração de uma história das religiões seja o fato de o autor trabalhar com a
ideia de uma sociedade modelo e imutável, organizada por leis rígidas e imunes às
transformações da vida em sociedade, imunes portanto ao tempo e à história – p. 333

Mas não resta dúvida de que seria Max Weber quem levaria às últimas consequências a noção
de uma “sociedade ideal” e consolidaria a relação entre sociologia do conhecimento e
sociologia da religião, ao transpor para a análise das comunidades religiosas seu método de
construção de “tipos ideais” – p. 333

(...) esta seria a marca fundamental a distinguir sociologia e história, segundo Weber. A
primeira teria por objetivo a construção de “conceitos-tipo”, propondo-se a encontrar as
regras gerais dos fenômenos sociais, ao contrário da segunda, cuja preocupação seria a análise
e a explicação causal de estruturas e ações individuais, consideradas culturalmente
importantes. Parece claro, portanto, que o autor manter-se-ia ainda longe de uma proposta de
construção de uma história das religiões, procurando fundamentar metodologicamente uma
sociologia da religião através da observação e análise de tipos de comunidades religiosas – p.
333

Entendendo que toda ação originada por motivos religiosos ou mágicos é, em sua forma
primária, uma ação racional, a análise de Weber constituiu sem dúvida um avanço. Superou
decerto as análises de Tylor e Frazer, mas especialmente a de Lévy-Bruhl.

Com a preocupação fundamental de esquadrinhasr os elmentos que compõem e dão


organicidade a uma comunidade religiosa, procurando definir funções e hierarquias, Weber
focalizou aspectos e sistematizou conceitos que tiveram grande importância na configuração
do objeto da futura história das religiões. Ao definir “carisma” e “espírito”; ao distinguir as
funções e os atributos do mago, do profeta e do sacerdote; ao assinalar a importância da
mediação simbólica e do caráter analógico do pensar mitológico e ao refletir sobre a relação
entre o crescente processo de maturação, centralização e racionalização das seitas ou crenças
religiosas em congregações com as formas de organização socioeconômica das diferentes
sociedades, Weber levantou questões e problemas conceituais que, no momento em que seu
trabalho foi publicado (1922), ainda estavam longe de conhecer uma definição mais objetiva –
p. 334

(...) por meio de uma análise idealista e com objetivos mais descritivos e classificatórios que
explicativos, Weber acrescentou pouco à reflexão sobre o papel da religião na vida social, num
contraponto teórico evidente às reflexões de Marx que, já em 1842, afirmara que a “religião
não vive no céu, mas sim na terra”, aludindo claramente aos condicionamentos sociais e
políticos das idéias religiosas. Para Marx e Engels entretanto, o estudo das religiões só poderia
ser feito atrelado à luta de classes, na medida em que percebiam a religião como uma ilusão
destinada a mascarar e a justificar a desigualdade entre as classes sociais, cuja origem tinha
bases eminentemente econômicas. Atentos às possibilidades históricas de manipulação das
crenças para a dominação social e o exercício do poder, estes autores contribuiram pouco para
a valorização da história das religiões como objeto de investigação, mantendo a uma análise
formal e subordinada dos fenômenos religiosos. (discordo!)

Nesse sentido, se o trabalho de Weber manteve uma leitura etnocêntrica, evolucionista e


mesmo idealista da história das religiões, contribuiu imensamente para lançar a temática das
religiões no campo das reflexões conceituais, indispensáveis para sua estruturação e
sistematização como disciplina – p. 335
3º momento – organização de uma “ciência das religiões”

Paralelamente à constituição da “sociologia religiosa”, outra proposta importante ganhava


corpo a partir da segunda metade do século XIX: a organização de uma “ciência das religiões”,
cujo objeto era a análise dos elementos comuns às diversas religiões, suas leis evolutivas e a
“forma primeira da religião”. (...) era também chamada de “ciência comparada das religiões”,
ciência que orientou a primeira disciplina como o nome de história das religiões nomeio
universitário, em Genebra no ano de 1873. (...) Neste período era frequente a confusão entre
os nomes “ciência das religiões” e “história das religiões”, momento em que se operou uma
separação intelectual mais nítida entre os estudos de religião e de teologia, já que estes
últimos passaram a ser excluídos do “congrès d’histórie des religions”, realizado em Paris, em
1990.

Diferentemente dos objetivos da “sociologia religiosa”, que inseriu suas preocupações com o
fenômeno religioso na busca de leis gerais do funcionamento da sociedade, a “ciência das
religiões”, ou a “história das religiões”, passou a ter um objeto específico: a origem das
religiões, de um lado, e a essência da vida e do homem religioso, do outro – p. 335

O representante mais consistente, e com a obra mais sólida dedicada a este tipo de enfoque,
foi certamente Mircea Eliade, cujo trabalho O sagrado e o profano, a essência das religiões
espalha bem a opção dos que entenderam ser mais importante a análise das estruturas do
fenômeno religioso para a compreensão da essência da religião (no singular), do que decifrar a
sua história. Nesse caminho, e apesar de assinalar que seu trabalho pretende ser uma
introdução geral à história das religiões (entendida como descrição das diversas modalidades
do sagrado), Eliade procura desvendar o sentido da experiência religiosa, estando atento,
fundamentalmente, às suas estruturas originais – p. 335-6

Apesar de ancorada num conjunto de questões razoavelmente definido, e algumas propostas


metodológicas esboçadas, a histórias das religiões levaria ainda algum tempo para construir
seus próprios conceitos e adaptar-se a análises que levassem em conta as diferenças espaciais
e temporais das mais variadas manifestações religiosas. Um pouco deste percurso é o que
procuraremos resgatar – p. 336

Definição conceitual e propostas teórico-metodológicas

Modelos: o objeto e seus problemas

Sociologia religiosa, história ou ciência das religiões, qualquer um destes novos campos de
conhecimento estruturou-se ao postular a definição de um objeto de estudo que, pela sua
complexidade e talvez mais decisivamente pelo próprio percurso epistemológico das ciências
humanas, só muito lentamente esboçou-se teórica e metodologicamente – p. 337
Angelo Brelich afirma que para descobrir qual é o verdadeiro objeto desta disciplina é preciso
enfrentar o problema de como definir o conceito de religião, de forma que este seja
suficientemente abrangente para dar conta do sentido desse tipo de manifestação nas mais
diversas sociedades. (...) estrutura num contexto de lenta e definitiva laicização , o conceito de
religião conheceu vários significados, de Durkheim a Eliade, passando por Lévi-Strauss, Freud,
Gramsci, entre outros, para chegar às formulações apontadas no texto de Brelich. – p. 337

Investigação: alguns campos temáticos

A grande produção dos historiadores sobre o que seria uma história religiosa não deixa dúvida
sobre a consolidação de uma disciplina específica e de suas variadas possibilidades teórico-
metodológicas. Como apontamos, alguns temas têm sido freqüentados já há algum tempo,
com maior ou menor densidade teórica, dentre os quais destacaremos alguns

- História das doutrinas

Neste campo de estudos alguns trabalhos caracterizaram-se por tentarem contar a história das
chamadas “grandes religiões”, inventariando suas crenças, rituais etc., numa abordagem que
privilegia a busca das origens da evolução histórica observada, via de regra, por seu
desdobramento linear e cronológico

(...) Há ainda os que procuram relacionar o surgimento de certas religiões a transformações


históricas globais, como é o caso do estudo das origens do calvinismo, bastante freqüentado
pelos que viram no puritanismo a gênese de uma sociedade moderna e organizada,
estruturada a partir de elementos notadamente burgueses. Neste grupo estaria Marx Weber,
R. Tawney, Trevor-Roper, Jean Delumeau – p. 339

Para uma abordagem mais microscópica, relacionando aspectos da doutrina religiosa com a
estratificação social e a vida cotidiana, há, por exemplo, o trabalho de Georges Duby, ou o
estudo de Edmund Leites – p. 340

- Histórias eclesiásticas

Dedicada ao estudo do funcionamento, estrutura e organização do clero e da pregação


religiosa, incluindo as formas de proselitismo religioso, a disciplina clerical e a normatização do
ritual, aqui encontramos obras gerais, a exemplo das diversas histórias institucionais da Igreja,
como a História da Igreja em Portugal, de Fortunato de Almeida, ou a História da Companhia
de Jesus no Brasil, de Serafim Leite.

Quanto ao trabalho desempenhado pelos missionários na expansão colonial há, entre outros,
a obra de Charles Boxer sobre o papel da Igreja na expansão Ibérica – p. 340
- História das crenças: mentalidades

Escola dos Annales

Febvre e Bloch - autores de estudos que se mantiveram como referências obrigatórias para a
compreensão e análise das crenças coletivas, embora tenham permanecido durante muito
tempo como iniciativas isoladas, já que só muito recentemente esta temática foi retomada
pela historiografia contemporânea - p. 341

Marc Bloch, em seu clássico Los Reyes taumaturgos, publicado em 1924, procurou reconstruir
o longo processo de formação da crença no poder de cura das escrófulas através do toque
real, demonstrando sua importância na consolidação das monarquias francesa e inglesa (...)
Boch, ao descrever as formas rituais de culto aos reis traumaturgos e relacionar religião a
política de forma tão estreita, inaugurou uma nova história política, ou ainda, uma
antropologia política histórica, criando espaço para o estudo do que poderíamos chamar de
"messianismo político", além de apontar possibilidades concretas para um enfoque teórico-
metodológico ancorado nos pressupostos da história das religiões. E, a propósito da obra de
Marc Bloch, é preciso não esquecer toda a sorte de movimentos milenaristas e/ou messiânicos
de cunho notadamente popular que acabaram também revelando-se temas expressivos para a
análise das relações entre religião e poder - p. 341

(...) Mas foi em 1942, com o estudo sobre o problema das descrença no século XVI, que Febvre
enfrentou o tema das crenças coletivas. Ao refutar a interpretação de Abel L'efranc, que
tomava François Rabelais como um ateu que escrevia contra o cristianismo Febvre encontrou
nas piadas blasfemas utilizadas pelo autor de Pantagruel uma raiz medieval que expressava
uma paródia do sagrado, aceita sem maiores problemas pelos religiosos de seu tempo.

(...) Ao conjugar o desenvolvimento e a vivência de crenças religiosas a uma conjuntura


histórica bem delineada, e problematizar a idéia da descrença no século XVI a partir do que
chamou de "outillage mental", Febvre descortinou um leque de temas e questões que,
oriundos muitas vezes da antropologia, terminariam por estimular trabalhos que seriam
posteriormente classificados como de "psicologia histórica". Destes, talvez o exemplo maior
seja o de Robert Mandrou que, em Magistrados e feiticeiras na França do século XVI, publicado
em 1968, pretendia fazer "uma análise de psicologia histórica", esboço do que chamariam os
franceses, pouco tempo depois, de história das mentalidades

Mas apesar da importância da escola francesa no campo das religiosidades e das crenças
coletivas, vale lembrar a crítica de Stuart Clark de que grande parte da historiografia francesa
da religião e da feitiçaria foi herdada da "má antropologia", na medida em que, muitas vezes,
mergulha a religião no irracionalismo, sem atentar para a estrutura de organização e
significados culturais do "outro", do desconhecido. Por outro lado, não é possível esquecer que
as continuadas tentativas de superação desse obstáculo etnocêntrico terminariam por
fomentar novas abordagens que hoje se enquadrariam no conjunto de produções que tem
dado corpo à chamada história cultural.

- História das crenças: circularidades e hibridismos culturais

O percurso que trouxe a história das crenças do campo das mentalidades para uma abordagem
calcada nos pressupostos deste novo campo temático, no qual se constituiu a história da
cultural, tem na obra do historioador italiano Carlo Ginzburg um marco e uma referência
fundamental para o enfrentamento de importantes questões surgidas no processo de
construção da história das religiosidades

(...) O fundamental do trabalho de Ginzburg para as reflexões metodológicas aqui introduzidas


diz respeito à forma como o autor trabalha a relação entre os isomorfismos míticos e rituais
(resultado de trocas de culturas diversas) e o processo de difusão, conservação e reelaboração
a que estão periódica e historicamente submetidos, ilustrando claramente esse vínculo entre
morfologia e história. Como a transmissão das estruturas profundas da linguagem, as
reelaborações míticas e rituais também guardam seu aspecto inconsciente, sem que isso
indique, para o autor, a existência de um inconsciente coletivo, já que o mito e o rito
propagados por mecanismos históricos contêm, implicitamente, as regras de sua reelaboração.
(...) Longe de buscar a origem do mito, para sempre inacessível, mas reatualizado pela
narrativa mitológica, o autor procura explicar historicamente as releituras míticas e rituais
possíveis dentro de uma formação social determinada, sugerindo que se adote com prudência
a noção de "sistema mítico-religioso" - p. 344-5

Inserida no contexto da chamada história cultural, sua obra tem-se revelado inspiradora para a
reflexão entre as possíveis relações da cultura popular ou folclórica e da cultura erudita ou,
mais especificamente dentro de nosso tema, entre religião e/ou vivências religiosas e poder.
Nessa perspectiva, são de fundamental importância os diversos filtros sociais que recebem e
reelaboram as mensagens religiosas, a partir de vivências culturais específicas e determinadas,
permitindo a identificação de formas diferenciadas de entender e viver a experiência religiosa.
Curiosamente, portanto, se no século XIX o estudo de mitos e ritos só parecia aplicável às
chamadas sociedades primitivas, contemporaneamente a análise dos variados rituais de
investidura de poder, as diferentes formas de consagração do Estado e de seus chefes através
das festas locais e nacionais, além das mais diversas expressões das religiosidades populares,
parecem não deixar dúvida da variedade de temas que, lentamente, têm contribuído para uma
contínua redescoberta de novos objetos de investigação pela história das religiões e das
religiosidades - p. 345

- Religião e religiosidades na historiografia brasileira

Transformado em objeto de análise também em meio a um franco processo de dessacralização


da vida política e cultural brasileira, e portanto inscrito no período que marcou a passagem da
monarquia para a república, as primeiras reflexões sistemáticas, e de cunho notadamente
científico, sobre a religiosidade brasileira acompanharam o discurso anticlericalista radical dos
positivistas que acreditaram ser a única e definitiva "religião da humanidade" - p. 345-6
(...) Mas se foi a radicalização da dicotomia religião/ciência que deu a roupagem intelectual ao
embate político entre monarquia e república, ou ainda entre bárbarie e civilização, coube às
práticas culturais consideradas populares, percebidas como frutos nefastos de uma
miscigenação perigosa e cientificamente condenável, o papel verdadeiramente deletério no
esforço de construção de uma sociedade moderna. Se na Europa as "sociedades primitivas"
podiam ser objeto de análises geograficamente distintas, no Brasil a convivência do "primitivo"
(o interior) e o "civilizado" (o litoral) tornava, no mínimo, incômoda a adoção das teorias
européias sem maiores adaptações.

Nesse sentido, relegada como braço do Estado e como expressão de manifestações populares
genuinamente nacionais, o tema da religião e das religiosidades só foi observado a partir de
uma análise depreciativa pelos precursores das ciências sociais no Brasil. Fora das lentes de
nossos cientistas sociais mais prestigiados, a temática manter-se-ia ainda por um bom tempo
ausente do elenco de questões que deveriam merecer uma atenção especial, ou mesmo ser
considerada matéria de estudo relevante para a compreensão de nossa história

(projeto - ver)

Introduzido pelo projeto missionário dos jesuítas, que aqui chegaram em 1549, o catolicismo
organizou-se segundo as regras da instituição do padroado, que fez da Coroa portuguesa a
responsável pelas missões católicas e instituições eclesiásticas de seus espaços coloniais.
Integrada à estratégia ofensiva da Igreja, a missão jesuítica deveria cumprir a tarefa de
converter massivamente populações urbanas e rurais do ultramar, aliando a Fé e o Império no
grandioso projeto colonizador.

Mas apesar do esforço da Companhia de Jesus e de seu inquestionável papel na disseminação


do catolicismo em terras brasileiras, a organização da instituição eclesiástica deu-se de forma
extremamente lenta no Brasil. (...) A colônia brasileira teria seu primeiro bispado, e durante
muito tempo único, criado na Bahia em 1551

Esta fragilidade institucional, aliada a um encontro racial e cultural múltiplo no Brasil colonial,
explicaria, para muitos autores, a heterogeneidade e mesmo a mistura de crenças diversas nas
variadas formas de expressão da religiosidade popular, tema que lentamente ganhou
expressão e esboçou um quadro bastante amplo de questões que os estudos sobre religião e
religiosidade conheceriam no Brasil

Nesse sentido, e curiosamente, os estudos sobre o que se chamaria religiosidade popular


receberiam mais atenção dos intelectuais brasileiros que as histórias institucionais e/ou das
ideias ou doutrinas religiosas. (...) cabe ressaltar o esforço de autores que produziram
importantes histórias da Igreja no Brasil, como é o caso de Riolando Azzi e Eduardo Hoornaert.

Desde o início do século, o estudo do papel e da influência do elemento africano na cultura


brasileira tem sido alvo de elaborações variadas e significativas para o desenvolvimento das
ciências sociais, em geral, e para o estudo das religiões populares, em particular - p. 347
O clássico Casa grande e Senzala de Gilberto Freyre (1933), o responsável por uma guinada nas
interpretações de caráter de religiosidade colonial, conferindo-lhe um aspecto afetivo e de
maior intimidade com a simbologia católica. Forjado pelo poder aglutinador dos engenhos de
açucar e pela integração Casa Grande/senzala/capela, conformou uma estrutura que daria
sustentação à tese do papel da família patriarcal em nosso processo de colonização. Não
obstante as críticas de que suas reflexões teriam fortalecido, se não criado, o mito da
democracia racial brasileira, Gilberto Freyre aponta para uma interpenetração cultural e racial
violentamente negada desde fins do século XIX, além de defender a tese, ainda hoje atual, de
que as desigualdades sociais do Brasil foram resultado mais de diferenças de classes do que de
preconceitos de cor ou raça

Em Bastide, encontramos a maior contribuição teórica para a compreensão de nossa realidade


cultural e religiosa múltipla.

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