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Instituto de Letras
TRABALHO FINAL:
Quatro-Olhos faz uma crítica muito singular a ditadura quando por meio da trajetória
do personagem-título relaciona-se a situação política do Brasil nos anos 70 com as angústias
da vida capitalista e seus dilemas existenciais. Tal trajetória é, de acordo com Gyorgy
Lucáks, justamente colocar as características e as ações do personagem em ressonância com
seu tempo histórico.1
1
Especialmente de seu ensaio ‘O romance como epopéia burguesa’ e do livro ‘O romance histórico’.
Mais ou menos dos 16 aos 29 anos passei no mínimo três a quatro
horas todos os dias, com exceção de um ou outro sábado e de certa
segunda-feira, escrevendo não me lembro bem se um romance ou um
livro de crônicas. Recordo com perfeição, porém, tratar-se de obra
admirável, a pôr a nu de modo confortavelmente melancólico a
condição humana universal e eterna, particularizada com emoção
discreta nas dimensões nacionais e de momento. 2
Esse narrador (ainda) sem nome é um bancário “restolho da classe média” 3 casado
com uma militante de esquerda que leva uma vida absolutamente medíocre, tediosamente
enervante. Condição muito próxima àquela do clássico personagem mediano do romance
histórico segundo Lucáks: “um solo neutro sobre o qual forças sociais opostas possam
estabelecer uma relação humana entre si.”4
Levei sempre vida rotineira, com raro rolo alarmante, súbita velhice
momentânea em dois ou pouco mais entrechos de pisaduras sofridas.
Passo os dias assim calado e à noite falo algo, quando estou com
alguém que não me ouve ou, se escuta, não é a mim. 5
Lucáks dirá que desse abismo em que a realidade prosaica triunfa sobre a poesia, da
reificação do trabalho, da estandardização do consumo e do nivelamento e isolamento
individual surgem as mais variadas formas de protesto subjetivo.7
Por quê? Por que a narrativa tresandou a tratar de uma cebola? O narrador fala como
se a narrativa fosse alguma coisa, algo mesmo, com vontade e destino. O narrador descreve a
cebola como um vegetal antigo e nobre reverenciada pelos “partidários dos costumes sãos”.
Seriam “os partidários dos costumes sãos” a classe média que descasca cebolas enquanto “lá
fora” a humanidade é descascada? Quatro-Olhos afirma ser seu conhecimento literário que
permite essa escrita imprecisa, descontínua, fragmentária e, especialmente, lacunar, mas
engana-se quem vê aí simplesmente uma aventura estética com um quê parnasiano. Essa
narrativa está carregada de intencionalidades. Há crítica ao estilo sem ética, à arrogância da
classe média “erudita”, mas há também disfarce. Há medo. Há qualquer horror não-dito nas
tentativas de não-pensar por meio da cebola. Quatro-Olhos é a personificação de uma classe
média que participa do tempo histórico de forma “confortavelmente melancólica” até que a
necessidade histórica modifique seu ser social:
Antes o narrador fugia de uma realidade permeada por sombras sussurrantes e cruéis
projetadas pela violência social no vazio existencial da classe média, da qual o único refúgio
era sua imaginação: “Estava agora imerso no livro e o vivia mais que a vida.” 14 Imaginação
que não lhe permitia transcender a realidade, como num sonho que se transforma em
pesadelo:
No livro, as bombas sempre explodiam à mesma hora, mas não
todos os dias. [...] Todos estavam condenados à tortura, em
ambientes infectos e sujos e poucos protestavam, pois sempre
havia a hora de escovar os dentes, o intervalo das refeições; à
noite havia o lazer fabricado vindo de longe, sempre elétrico e
não era proibido urinar. A vida era suportável; nos intervalos
das torturas era permitido estar com a família e ver as crianças.15
Aos médicos que, à semelhança dos generais na ditadura organizavam a vida dos
internos com intervenções e autoridade incontestáveis:
Nutria verde desprezo pelo resto da raça humana que não fosse ele
mesmo, mas, como gato em busca do borralho, costumava lamber
imaginariamente as partes pudentes de seus superiores ou de pessoas
mais fortes do que ele, como Quatro-Olhos, que lhe dera certa ocasião
vermelhante bofetada em plenas faces, deixando Opontolegário
babando de prazer ou de dor, até hoje não se sabe. 20
Gosto de sofrer o sol sobre a flor de minha pele e nesse rito pontual, a
cada fim de semana, sinto a vida a escorrer-me entre os dedos, sem
que eu possa segurá-la; viver parece-me então um pouco ir morrendo
e nesse encadear sinistro meu raciocínio se vai limitando até ficar
duro como metal, a apontar rigidamente para o tempo involuntário
que me domina.21
A primeira parte do seu livro é, sobretudo, uma exploração do silêncio, do inominável
no trauma, mas não só, de elevar esse sofrimento à condenação da ditadura, como o faz neste
trecho em que menciona uma roseira:
Como a liberdade política vítima das práticas autoritárias, a roseira está coberta de
fuligem e é somente pelo cuidado de mãos anônimas que ela sobrevive. As muitas lutas que a
roseira simboliza consistem primordialmente na batalha coletiva pela consciência da verdade,
enquanto necessidade histórica do ser-precisamente-assim do presente 23 contra a propaganda
mentirosa militar que confunde a população, chamando repressão de garantia da liberdade,
ditadura de revolução democrática. Nesse sentido, a roseira é a verdade que uma experiência
social violenta tenta destruir ou esconder. Mas Pompeu não encerra a questão aí, no parágrafo
acima, o narrador conclama:
Para o médico, por exemplo, sua busca do livro era inútil e sem
cabimento, já que o livro deveria estar perdido em algum porão
policial, se é que não tinha sido queimado uma vez que não poderia
servir de prova nenhuma. Mas quando Quatro-Olhos contava suas
“deambulações” a um paciente como Opontolegário, mesmo este,
apesar das suas ambições e de seu desinteresse pelos outros, entendia
perfeitamente que não havia outra coisa a fazer senão procurar o livro
por toda a cidade.25
Para Quatro-Olhos, deixar de procurar o livro seria como deixar de procurar um filho
desaparecido. Não há paz até encontrá-lo. O que uma parte da classe média dos anos 70
experimentou com a ditadura é o que a população periférica vivencia cotidianamente no
Brasil: não existe paz sem justiça.26
Na última parte do romance, “De volta”, Quatro-Olhos afirma a um médico que não
foi a fuga de sua esposa a origem do seu estado de desorientação mental, mas sua reação a
ela, o fato de não ter dito: “eu vou com você”. Então o médico pergunta: “Mas o senhor não
foi e foi preso no lugar dela. Isso não foi outro choque?” Ao que Quatro-Olhos simplesmente
responde: “Não sei, estou tão acostumado de acontecerem essas coisas neste país...”27
BIBLIOGRAFIA
JABLONKA, Ivan. La historia es uma literatura contemporánea: manifiesto por las ciencias
sociales. Tradución de Horacio Pons.Ciudad Autonoma de Buenos Aires: Fondo de Cultura
Económica, 2016.
LUKÁCS, Gyorgy. A teoria do romance. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.
_______________. Arte e sociedade. Org., Introd. e Trad. de Carlos Nelson Coutinho e José
Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
________________. O romance como epopéia burguesa. In: CHASIN, J. (org.) Ensaios Ad
Hominem. Trad. de Letizia Zini Antunes. Tomo II (Música e literatura). São Paulo: Ad
Hominem, 1999. p. 87-136.
________________. O romance histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2011.
POMPEU, Renato. Quatro-Olhos. São Paulo: Ed. Alfa-omega, 1976.