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Universidade de Brasília

Departamento de História

Nº 16, Ano 14, jan/jul 2010 ISSN 1517-1108


Em Tempo de Histórias Celso Silva Fonseca (UnB)
Publicação do Programa de Pós-Graduação Cléria Botêlho da Costa (UnB)
em História sob à direção do corpo discente Diva do Couto Gontijo Muniz (UnB)
PPG-HIS/DH/IH/UnB Eleonora Zicari Costa de Brito (UnB)
Ernesto Cerveira de Sena (UFMT)
Estevão Chaves de Rezende Martins (UnB)
REITORIA DA UNIVERSIDADE DE Flávia Biroli Tokarski (UnB)
BRASÍLIA Francisco F. Monteoliva Doratioto (UnB)
José Geraldo de Sousa Júnior Gerson Galo Ledezma Meneses (UFC)
Ione de Fátima Oliveira (UnB)
DIRETORIA DO INSTITUTO DE José Otávio Nogueira Guimarães (UnB)
CIÊNCIAS HUMANAS Juçara Luzia Leite (UFES)
Estevão Chaves de Rezende Martins Luzia Marcia Resende Silva (UFG)
Márcia Pereira dos Santos (UFG)
CHEFIA DO DEPARTAMENTO DE Maria Bernardete Ramos Flores (UFSC)
HISTÓRIA Maria Filomena da Costa Coelho (UnB)
Wolfgang Adolf Karl Döpcke Nancy Aléssio Magalhães (UnB)
Renata Senna Garraffoni (UFPR)
COODENADORIA DA PÓS- Ronaldo Vainfas (UFF)
GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Selma Alves Pantoja (UnB)
Albene Míriam Ferreira Menezes Teresa Cristina de Novaes Marques (UnB)
Tereza Cristina Kirschner (UnB)
ORGANIZADORES DO VOLUME Thereza Ferraz Negrão de Mello (UnB)
Ana Catarina Zema de Resende Vanessa Maria Brasil (UnB)
Leandro Santos Bulhões de Jesus Vicente Carlos R. Alvarez Dobroruka (UnB)
Paulo Raphael Feldhues Wolfgang Adolf Karl Döpcke (UnB)

CONSELHO EDITORIAL PARECERISTA AD HOC


Ana Catarina Zema de Resende Nancy Rita Sento Sé de Assis
Leandro Santos Bulhões de Jesus
Paulo Raphael Feldhues REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA
Patrícia Lisbôa
CONSELHO CONSULTIVO Joyce Maria Galdino
Adalberto Paranhos (UFU)
Albene Míriam Ferreira Menezes (UnB) EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E CAPA
Artur Cesar Isaia (UFSC) Paulo Raphael Feldhues
BULHÕES, Leandro Santos; FELDHUES, Paulo Raphael; RESENDE, Ana Catarina (orgs.).
Dossiê Discutindo a História: escrita e métodos. Em Tempo de Histórias: Publicação do
Programa de Pós-Graduação de História da UnB, Brasília: UnB, vol. 16, jan./jul. 2010.

Periodicidade Semestral
196 p.

1.Historiografia 2. Teoria da História 3.História Geral

ISSN 1517-1108 CDU – 930.9 (05)

Correspondências e contribuições devem ser enviadas para:


Revista Em Tempo de Histórias
Programa de Pós-Graduação em História, ICC Norte A, 648/10 - Subsolo - Universidade de Brasília.
CEP: 70910-900 Brasília – DF
Para entrar em contato conosco, envie um e-mail para:
emtempodehistorias@hotmail.com

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................................................06-11

DOSSIÊ
DISCUTINDO A HISTÓRIA: ESCRITA E MÉTODOS

O Jogo da Historicidade.
Rainri Back .............................................................................................................13-32

Responsabilidade Histórica e Direitos Humanos: considerações ético-sociais sobre a


profissão do historiador e o ―Impacto da Declaração dos Direitos Humanos no Estudo
da História‖.
Johnny Roberto Rosa ..............................................................................................33-53

História da Cultura Intelectual: possibilidades teóricas.


Pablo Spíndola ........................................................................................................54-72

Apontamentos de um Procedimento Hermenêutico-Fenomenológico: o conceito de


afro-futurismo na obra de Chico Science e Nação Zumbi.
Rodrigo Fernades da Silva .....................................................................................73-87

Ecos da Foto: acervos fotográficos e memórias de pessoas idosas.


Tati Lourenço da Costa ........................................................................................88-105

ARTIGOS LIVRES

―Anchieta, José do Brasil‖: cinema, representação e memória em tempos de ditadura


militar.
Eliane Cristina Deckmann Fleck e Fernanda Uarte de Matos ..........................107-130

Além do Modernismo Paulista: a revista Fon-Fon e os debates sobre a modernidade no


Rio de Janeiro da ―belle-époque‖.
Fabiana Francisca Macena ................................................................................131-153

The Doors, Joy Division e Nirvana nas Recusas do Fim do Tempo Juvenil.
Emília Saraiva Nery ............................................................................................154-166

Escravidão, Mistura Racial e Étnica e Hierarquias no Brasil.


Marinelma Costa Meireles .................................................................................167-180

ENTREVISTA

Teoria e Historiografia: uma entrevista com José Carlos Reis.


Eric de Sales .......................................................................................................182-189

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RESENHA

BECK, Ulrich; GRANDE, Edgar. La Europa Cosmopolita: sociedad y política en la


segunda modernidad. Barcelona, Buenos Aires, Mexico: Paidós, 2006, 392p.
Johnny Roberto Rosa ..........................................................................................191-196

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APRESENTAÇÃO

O destaque, nos jornais matutinos, para os estudos sobre o carro elétrico não tarda
em ser substituído por novas manchetes. As eleições presidenciais e o embargo econômico ao
Irã dividem espaços na televisão com as chamadas publicitárias, McDonald‘s, I‘m lovin‘s it.
Em um simples deslocamento pelo centro da cidade, a sucessão de imagens captadas pelo
observador aponta o excesso informativo e a velocidade do tempo vivido. Na dinâmica
seletiva da memória, a efemeridade dos fatos não encontra acolhimento, e o próprio cotidiano
apenas conduz o indivíduo em sua vida de desacontecimentos.
Ireneo Funes, o personagem memorioso de Jorge Luís Borges, apresenta-se como
o avesso da condição apresentada, mas, tampouco, é aquilo desejado. Esquecimentos e
lembranças compõem a historicidade humana, são categorias que alicerçam as identidades.
Enquanto que um passado desventurado pode produzir traumas sobre o presente, são de
vivências alegres que se formam as saudades. De um ou de outro modo, a experiência
constrói-se tão somente quando o vivido (social ou individual) passa a ser internalizado. Qual
a relação, portanto, entre o tempo social e aquilo que uma sociedade ou um grupo julga digno
de registro, de memória, de internalização e de orientação das práticas?
Não é preciso uma investigação muito aprofundada para se verificar que as
diferentes experiências sociais proporcionam formas de temporalidades outras, para além
daquela marcada pelos ponteiros do relógio. A sensação de que o dia escoou mais
rapidamente que o normal é um exemplo da subjetividade no trato da questão. O tempo, como
sublinhou o sociólogo Philippe Zarifian, é uma dimensão indispensável a todo fenômeno
social 1. Aqui se mostra uma das faces da atual conjuntura. Ao passo que se tem a impressão
de um super-aceleramento do tempo, também os desacontecimentos, que em nada somam à
experiência, oferecem ao cotidiano a fisionomia de estagnação. Mas a velocidade que causa
vertigem ainda é desassossego, desestabiliza expectativas, fragmenta narrativas.
A escrita da história não pretende desacelerar este movimento congelando suas
engrenagens sobre as páginas de um texto; seus argumentos não são absolutos, também ela
possui seus regimes de verdades, condiciona-se aos mecanismos de seu meio. O objeto de

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análise, sabe o historiador, jamais é conhecido em si mesmo, senão a partir de. Em seu métier,
o pesquisador vale-se da narrativa para tecer significados de uma experiência localizada e, por
ser subjetiva a própria concepção de tempo, é pela narrativa que as construções sociais de
temporalidades adquirem inteligibilidade. Nesse quadro, o aporte hermenêutico contribui com
a trama de narrar a experiência humana coletiva, uma vez que, como esboçou Paul Ricoeur,
busca apreender os sentidos dos fenômenos em sua historicidade 2.
O próprio fazer historiográfico possui sua historicidade; seus olhares, abordagens
e métodos são dinâmicos, incorporam questões do presente. Deste modo, também a narrativa
historiográfica desenvolve-se na instabilidade. Um bom exemplo pode ser observado no
declínio das metanarrativas. A história global, cuja retórica da sequência de acontecimento
pretendia fazer entender que a humanidade caminhava para um telos pré-determinado,
fragmentou-se, tornou-se ―histórias de‖, narrativas localizadas. Sob o argumento de ―fim da
história‖, passado e futuro foram reduzidos em detrimento do presente; criou-se uma espécie
de ―estar agora‖ autosuficiente, pretensamente autônomo de experiências ou de expectativas.
Mas o presentismo, que na voracidade de seu canibalismo qualquer outra temporalidade
devora, não é de tudo sem propósito. A burguesia internacional, conforme sublinhou
Boaventura de Souza Santos, pôde aqui finalmente ver o tempo consumado como repetição
automática e perpétua do seu controle 3.
A história, definitivamente, não se esgotou; mas ao pesquisador tampouco é
permitido ficar alheio às forças que o rodeiam. Ao problematizar a experiência humana em
seus tempos, a história reafirma-se como produtora de conhecimento válido à vida. Nesse
sentido, a análise historiográfica permite questionar, desnaturalizar práticas e fenômenos já
consagrados em sociedade, como o já citado presentismo.
Os estudos apresentados nesta edição da Revista Em Tempo de Histórias
pretendem não apenas promover por alguns instantes a desfamiliarização do leitor com
práticas do cotidiano, mais ainda aproximar experiências capazes de acentuar nossa condição.
Como sabiamente nos ensinou Hannah Arendt, as particularidades individuais ou de grupos
inscrevem-se sob a condição humana, uma igualdade relativa 4.
O dossiê Discutindo a História: escrita e métodos, o qual compõe a primeira parte
deste volume, conta cinco textos, cujas perspectivas dialogam sobre o fazer historiográfico.
No primeiro estudo da seção, o filósofo Rainri Back apresenta O jogo da historicidade, em
que argumenta que existir historicamente pressupõe apropriar-se do legado da tradição. O

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foco sobre a linguagem ganha particular espaço no estudo; aqui, dentre as possibilidade do
dizer algo, entende o autor que também o crivo dos outros deve ser considerado, isto é, ―as
coisas não estão a mercê do que queremos dizer sobre elas‖. Ao tratar da historicidade, três
autores são destacados: Dilthey, Heidegger e Gadamer. Se Back reconhece pontos
importantes de discussão nas obras destas autoridades, ainda assim não os poupa de sua
análise crítica, apresentando seus limites. O ―ser histórico‖ é compreendido como a existência
envolvida pela tradição na qual se formou antes mesmo de ter início a vivência pessoal e que
oferece possibilidades do vir a ser. Destarte é que o jogo da historicidade refere-se à
interpelação do passado sobre o presente sem que este passado ponha-se claramente visível.
Na sequência, Johnny Roberto Rosa expõe o artigo Responsabilidade Histórica e
Direitos Humanos, no qual o ofício do historiador é questionado a partir dos usos da história.
Não se trata de julgar valores, adverte o autor, porém se busca discutir os padrões éticos-
sociais deste profissional em meio à importância da narrativa sobre acontecimentos
coletivamente traumáticos. Os diálogos com os recentes trabalhos do professor Antoon de
Beats, da University of Groningen, oferecem um rico debate em torno do impacto da
Declaração dos Direitos Humanos sobre a proposta de um código de ética para os
historiadores. Nas linhas do texto de Rosa a história toma sentidos que impelem ao
profissional responsabilidades específicas: ―pertence à responsabilidade do historiador tornar
conscientes transtornos radicados nas experiências históricas negativas e reprimidas,
encerrando a obrigação da revelação e, quando possível, a dissolução de tal transtorno na
coerência temporal‖. A função terapêutica, como argumenta em seu estudo, não se desassocia
do fazer historiográfico.
Pablo Spíndola apresenta o terceiro trabalho desta seção. Em História da Cultura
Intelectual, são abordadas as condições de produção das ideias e seu registro pela
historiografia. Spíndola encontra na relação entre os conceitos de história das ideias, história
das mentalidades e história cultural um locus de nebulosidade, de imprecisão. O autor parte
então em busca de uma maior clareza sobre as especificidades das ideias enquanto objeto de
estudo, desenvolvendo fecundo diálogo com as obras de Francisco Falcon, François Dosse e
Roger Chartier. Mais que discutir um conceito, o estudo propõe um passeio pelos métodos
utilizados pela historiografia que visaram apreender, de alguma forma, as ideias. A história é
apresentada em sua historicidade. As aproximações entre a história e outros campos do saber
também são contemplados. Adverte Spíndola que, ao fechar a análise das ideias ao seu

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contexto de produção, o historiador corre o risco de ignorar as individualidades. A história da
cultura intelectual, desse modo, não se constrói pela procura de uma verdade pré-existente a
ser descoberta, conquanto pelos caminhos que apresentam as possibilidades.
Rodrigo Fernandes da Silva, em Apontamentos de um Procedimento
Hermenêutico-Fenomenológico, traz-nos seu recente estudo sobre a obra do grupo Chico
Science e Nação Zumbi. Sua argumentação não se prende à contextualização do movimento
manguebeat, mas focaliza o aspecto estético e político do grupo pernambucano. Dentre os
conceitos trabalhados pelo autor, um instigante caminho à pesquisa é encontrado na noção de
―afrociberdelia‖, pois, como entende Rodrigo Silva, conjuga tanto valores da modernidade
como da tradicão. Um passado de resistência negra, exemplificado sobretudo na figura de
Zumbi dos Palmares, ressoa nos acordes elétricos de um tempo moderno: ―o afro-futurismo
por sua percepção originária quanto ao passado, re-abre em fissuras os prédios, os carros, as
indústrias e injeta a intensidade primitiva de nossa ancestralidade em cada fissura aberta para
a construção de um novo software chamado afrociberdelia‖. As discussões do autor transitam
entre a história e a filosofia, travando, em diversos momentos, conversações com obras de
Edmund Husserl, de Gilberto Freyre, de Walter Benjamin e outros.
Fechando o dossiê, Tati Lourenço da Costa apresenta Ecos da Foto, em que
discute o fazer historiográfico a partir da memória, enquanto categoria de análise, e do recurso
às fotografias e entrevistas orais. No estudo, a autora compartilha parte de suas experiências
no projeto ―Memórias da Cidade-ecos‖, realizado em Londrina no ano de 2007. O olhar sobre
os álbuns de família constitui importante peça no trabalho da autora, as fotografias são
elementos construtores de memória, de narrativas, e fontes de integração entre gerações.
Em ―Artigos Livres‖ quatro estudos são apresentados, iniciando-se pelo trabalho
Anchieta, José do Brasil, de Eliane Cristina Deckmann Fleck e Fernanda Uarte de Matos. A
exposição tem como objeto o filme homônimo produzido no Brasil em 1977. Sob o contexto
da ditadura militar vivenciada no país, as representações e memórias vinculadas à película são
questões discutidas pelas autoras. Ao tratar de uma filmagem como objeto de pesquisa, Fleck
e Matos compreendem que o conteúdo desta vai além do controle de seus produtores; em
Anchieta, José do Brasil mostram que, mesmo sob um ambiente de vigilância, isso não
ocorreu de forma diferente.
Fabiana Francisca Macena contribui com seu artigo Além do Modernismo
Paulista. A autora traz um texto crítico à historiografia que concede ao modernismo brasileiro

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um fenômeno exclusivista da cidade de São Paulo e sacralizado, em parte, pela memória.
Macena parte do entendimento de que a modernidade não se acomodou unicamente no âmbito
estético e deve ser pensada como construtora de sentidos que abarcam outros campos da
experiência social. O período da Belle-Epoque (1907-1914) no Rio de Janeiro é o recorte de
sua pesquisa, e a revista Fon-Fon seu objeto de análise.
Na sequência, Emília Saraiva Nery expõe o estudo The Doors, Joy Division e
Nirvana nas Recusas do Fim do Tempo Juvenil. A autora encontra nas canções dos grupos
musicais selecionados evocações de desejos que vão além dos impulsos individuais, são
expressões de uma coletividade, de uma identidade cunjuntiva, particular aos jovens da
segunda metade do século XX. Nery toma a ansiedade identificada entre grupos da juventude
como perspectiva para interpretar a relação entre a consciência de enraizamento na história e
o desejo de ultrapassar tal condição. O sentimento de ânsia é compreendido como um rito de
passagem particular à cultura ocidental. Nas palavras da autora, ―o sentimento de uma perda
do referencial da identidade individual, o ‗eu‘, que sob a ação de uma temporalidade
irreversível culminaria numa morte ou fim irremediável ocasiona também o sentimento de
melancolia‖.
Encerrando a seção, Marinelma Costa Meireles apresenta o artigo Escravidão,
Mistura Racial e Etnica e Hierarquias no Brasil. A autora propõe uma discussão em torno
das identidades de escravos africanos e de seus descendentes, buscando compreender os
meandros de sua formação a partir das relações comerciais escravistas e do cotidiano
vivenciado na sociedade brasileira. Meireles demonstra que os espaços sociais foram pautados
no Brasil escravagista não apenas pela diferenciação entre escravo e homem livre, mas ainda
pela distinção entre os próprios africanos e seus descendentes.
A edição de número 16 traz ainda uma entrevista com o professor José Carlos
Reis, realizada por Eric de Sales. Em uma conversa descontraída, Reis comenta sua carreira,
experiência como historiador, e recentes trabalhos. Teoria e historiografia são alguns dos
pontos discutidos no diálogo entre Sales e Reis.
Na seção Resenha, Johnny Rosa comenta a obra La Europa Cosmopolita, de
Ulrich Beck e Edgar Grande. Humanismo Cosmopolitia é o título dado por Rosa ao seu
estudo, que interage também com os estudos de Jörn Rüsen.

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Gostaria, por fim, de agradecer aos amigos e colaboradores que participaram
direta ou indiretamente da realização deste volume, assim como desejar uma ótima leitura a
todos!

Paulo Raphael Feldhues

NOTAS

1. ZARIFIAN, Philippe. Temps et Modernité: Le temps comme enjeu du monde moderne. Paris:
L‘Harmattan, 2008.
2. RICOEUR, Paul. Do Texto à Ação. Porto: Editora Rés, [s/d].
3. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 2008.
4. ARENDT, Hannah. A Promessa da Política. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

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Dossiê

Discutindo a História: escrita e métodos

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O JOGO DA HISTORICIDADE 1

Rainri Back 2

Resumo: Nosso propósito geral consiste em mostrar que o jogo é o fenômeno estruturador de
toda a historicidade da existência humana. Mas, para realizá-lo, são necessários dois passos
preliminares. Primeiro, nos precaver de alguns problemas provenientes das interpretações de
Dilthey e de Heidegger a respeito da historicidade. Segundo, nos livrar da interpretação
determinista que Gadamer confere ao fenômeno do jogo. Por fim, mostraremos que a
transformação do que a tradição nos lega também é uma tarefa do jogo da historicidade.

Palavras-chave: Jogo, Historicidade, Transformação.

Abstract: My aim is to show that the game is a phenomenon that structures historicity of
human existence as a whole. In order to accomplish it, two preliminary steps are required.
First, we need to prevent some problems coming out of the interpretation of historicity put
forward by Dilthey and Heidegger. Second, we need to rid ourselves of a deterministic
interpretation of game such as that offered by Gadamer. I shall then proceed to show that the
transformation of what tradition provides us is also a task within the game of historicity.

Keywords: Game, Historicity, Transformation.

1
O presente artigo é uma versão revisada do capítulo ―O Jogo da Historicidade‖, que compôs a dissertação Nos
Rastros da Situação Hermenêutica, defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de
Brasília – UnB, no início de 2010, sob a orientação do Prof.Dr. Gerson Brea, e que contou o subsídio da CAPES.
2
Doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, sob orientação do prof. Dr.
Marco Antonio Casanova. Contato com o autor: rainri_bach@yahoo.com.br

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1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES.

Essencialmente, a linguagem surge e se mantém vigente a partir de relações inter-


humanas. Não se trata de um traço contingente do qual a linguagem pudesse prescindir.
Ninguém pode nem instituir uma linguagem contando apenas consigo mesmo nem se
considerar o único responsável por aquilo que diz. As palavras somente significam o que
significam em virtude de uma longa história cuja narrativa não para de fluir e de passar
adiante um legado.
Então estamos à mercê do fluxo da história? Ora, a tradição não nos acomete a
partir de fora, como se fosse algo com o qual nada tivéssemos em comum. Cada um é em si
mesmo história; cada um responde pela influência que a história exerce sobre si, na medida
em que a leva adiante com sua existência. Portanto, existir historicamente sempre nos impõe
uma tarefa: apropriar-nos daquilo que a tradição nos legou por meio das palavras da
linguagem.
Mas qual seria o teor preciso dessa tarefa? Essa apropriação visaria depurar as
palavras a ponto de fazê-las revelar, enfim, aquilo em virtude do qual a própria linguagem
veio-a-ser linguagem? Aquilo que, para se tornar manifesto, sempre requereu a escuta atenta
de um ―genuíno mensageiro‖? Aquilo que, todavia, se manteve oculto, porque durante um
longo período reinou a falta de tato para atender aos apelos silenciosos de um fenômeno assim
tão singelo?
Se assim fosse, então a linguagem deixaria de se realizar de modo inter-humano.
Primeiro, seria necessário suspender a influência dessa falta de tato de todos aqueles por
intermédio dos quais ainda hoje nos fala essa tradição. Só quando não houvesse a
interferência de ninguém, seria possível ver aquilo a cujos apelos todos respondem sem o
saber. Assim, seria necessário submeter a linguagem ao empreendimento absolutamente
particular de alguém.
Não é assim que pretendemos nos apropriar aqui dos conceitos. Só almejamos
contribuir tão bem quanto possível no debate com a tradição precedente e em vigor.
Cabe à linguagem revelar, mostrar coisas. Entretanto, essa revelação jamais chega
a ser inequívoca. Embora não se esgote no que é possível dizer a seu respeito, as coisas que se
mostram na linguagem também não são meras ―representações‖ subjetivas, como se houvesse
um fosso entre elas e o pensamento. Não. O que consideramos verdade é exatamente a

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experiência de um diálogo infindável de uns com os outros, que juntos fazemos valer uma
tradição, a respeito das próprias coisas; infindável, porque as coisas sempre podem se mostrar
a partir de si mesmas de uma maneira diversa daquela em que vinham se mostrando até então.
Isso não é um problema. Exatamente aí o pensamento descobre a sua maior
riqueza. Ele jamais se absolutiza na perspectiva de alguém particular, mas sempre se difunde
em um intenso e ininterrupto debate onde cada um pode tomar a palavra para, depois, passá-la
a outro. Essa situação não descamba em uma balbúrdia desenfreada onde cada um fala o que
dita o seu próprio capricho. O que cada um pode mostrar diversamente se faz valer por si
mesmo e passa pelo crivo dos outros. Em suma, as coisas não estão a mercê do que queremos
dizer sobre elas.
É sob esse panorama que as considerações seguintes devem ser interpretadas.
Feitas tais advertências, passemos ao tema propriamente. Já que pretendemos nos
apropriar dos conceitos em apreço na nossa investigação, primeiro, devemos nos perguntar: o
que se entende em geral por historicidade? Essa palavra geralmente é empregada para afirmar
a existência efetiva, real, de algo passado. Essa palavra também é usada para ressaltar a
importância de um acontecimento passado ou contemporâneo. Em ambos os casos, a
historicidade aparece sob a orientação da historiografia, que pretende conferir objetividade e
valor a acontecimentos que, todavia, já não se encontram mais presentes aqui e agora diante
de nós.
Mas ‗historicidade‘ também designa o modo de ser da história. Esse significado
envolve e fundamenta os dois primeiros, já que visa aquilo que ambos apenas pressupõem.
Ora, se uma investigação filosófica deve visar os fundamentos, devemos nos deter nesse
último significado. Mas, como já dissemos, as palavras da linguagem são resultado de um
longo debate em torno daquilo mesmo que elas podem nos mostrar. E se pretendemos entrar
nesse debate, devemos nos aproximar dos interlocutores pelos quais nos chegam as palavras
das quais nos valemos. Essa aproximação deve buscar o horizonte de pressuposições desde
onde eles falam conosco.

2. HISTORICIDADE.
2.1. A interpretação epistemológica de Dilthey.

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Alguns filósofos conquistaram um reconhecimento mais amplo e duradouro no
debate sobre aquilo que concerne à historicidade. Se não o primeiro, Wilhelm Dilthey é ao
menos um dos mais importantes desses filósofos. Invariavelmente, todo debate relacionado à
história passa a considerar aquilo que ele buscou estabelecer a respeito disso. Decerto,
devemos muito a Dilthey o que hoje compreendemos por historicidade. Mas isso não o isenta
de alguns problemas que se devem, sobretudo, ao horizonte epistemológico de onde ele parte.
Portanto, devemos não só retornar a Dilthey como ainda denunciar alguns dos seus limites.
Em geral, as investigações de Dilthey se tornaram conhecidas pelo esforço para
demonstrar que as ―ciências do espírito‖ (Geisteswissenschaften), então emergentes, são
ciência em sentido genuíno e também muito particular. Já que as ciências da natureza se
tornaram padrão de conhecimento, tudo se passava como se o mundo fosse constituído
somente por relações de causa e efeito puramente físicas. Contra essa tendência, Dilthey passa
a defender a necessidade de uma ―crítica da razão histórica‖ (Id., 1978:304), pois no mundo
há outros fenômenos que também podem ser conhecidos e que, todavia, não se baseiam em
relações meramente físicas. Quando se trata de economia, política, religião etc., é necessário
compreender relações humanas cujo sentido se funda em vivências, em impulsos vitais, que
originariamente estão entretecidos uns nos outros.
Na seguinte passagem, notemos, sobretudo, o que Dilthey denomina ―referências
vitais‖ e a diferença disso em relação à ―conexão causal‖:

Não capto nela [na vida] outros homens e coisas apenas como realidades que
se encontram comigo e entre si numa conexão causal: referências vitais
partem de mim para todos os lados, relaciono-me com homens e coisas,
tomo posição perante eles, satisfaço as suas exigências a meu respeito e
deles espero algo. Alguns tornam-me feliz, ampliam a minha existência,
acrescentam a minha força; outros exercem sobre mim uma pressão e
restringem-me. (DILTHEY, 1992:111-112).

Notem: tomar posição perante alguém, satisfazer as exigências dos outros,


esperar algo deles, fortalecer-se ou acuar-se devido à ação alheia – nada disso pode ser
reduzido a meras relações mecânicas de causa e efeito! Entretanto, Dilthey ainda se deixa
levar pelas orientações epistemológicas das ciências naturais, já que submete a vida humana à
seguinte pergunta: como é possível conhecê-la de maneira necessária e universal? Enquanto
objeto científico, a vida deve conter leis cognitivamente necessárias e universais que, embora
não possam ser conhecidas pelos métodos das ciências naturais, devem sê-lo por meio de

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outros métodos. Só assim, segundo Dilthey, as ciências do espírito podem ter um estatuto
genuinamente científico.
Contudo, as ciências do espírito revelam um nexo essencial com a história que
parece ser um obstáculo intransponível para satisfazer esse critério de cientificidade. Para
Dilthey, cada indivíduo é um ―ponto onde se cruzam sistemas de relações‖ e onde se realizam
―bens de comunidade‖ (DILTHEY, 1978:178). As referências vitais que cada indivíduo
mantém consigo, com os outros e com as coisas arredor, formam em conjunto um sistema
cultural. Ele oferece estabilidade aos indivíduos cuja cooperação mútua, em compensação,
mantém esse sistema em vigor. Trata-se de uma reformulação curiosa do velho princípio da
reciprocidade entre partes e todo, oriundo da hermenêutica (Cf. SCHLEIERMACHER, 2000:
46s).
Enfim, a vida se concretiza em tais comunidades de indivíduos e nas obras aí
produzidas que são, como diz Dilthey, ―uma realização do espírito no mundo sensível‖
(DILTHEY, 1978: 170). Essa objetivação da vida revela duas características fundamentais.
Primeiro: qualquer manifestação da vida em um indivíduo singular somente pode ser
compreendida em referência à comunidade da qual ele faz parte, conforme reza aquele já
mencionado princípio da reciprocidade entre partes e todo. Há uma passagem em que Dilthey
nos diz isso muito claramente:

Toda manifestação de vida singular representa, no reino desse espírito


objetivo, algo comum. Cada palavra, cada frase, cada gesto ou forma de
cortesia, cada obra de arte e cada fato histórico, são inteligíveis porque há
uma ―comunidade‖ que une o que neles se manifesta ou se exterioriza com o
que o compreende; o indivíduo vive, pensa e trabalha sempre em uma esfera
de ―comunidade‖ e só em tal esfera compreende. Todo o que é
compreendido leva consigo a marca de familiaridade, de ser conhecido em
razão dessa ―comunidade‖. Vivemos nessa atmosfera que nos rodeia por
todos os lados. Encontramo-nos imersos nela. (DILTHEY, 1978:170).

A segunda característica da objetivação da vida é a diversidade de ordens sob as


quais os indivíduos podem formar comunidades. Entretanto, nos perguntamos aqui: qual a
origem da possibilidade de as comunidades diferirem entre si? Dilthey não nos oferece
claramente uma resposta, embora possamos depreendê-la daquilo que ele mesmo nos legou
em suas obras. Além disso, devemos suprir outra deficiência: mostrar a correlação entre a
primeira e a segunda característica da objetivação da vida e fazer ver em que medida uma

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esclarece a outra. Trata-se de uma questão sumamente importante para os fins particulares da
nossa investigação.
Uma comunidade não só proporciona consistência e estabilidade a cada indivíduo
como ainda lhe impõe várias restrições sob a forma de dogmas e preconceitos tradicionais
(Cf. DILTHEY, 1992:55). Mas o indivíduo também alimenta em si um impulso em favor da
satisfação e do alargamento de si mesmo, de sorte que sempre pode confrontar aquilo que o
restringe. Logo, há um âmbito na vida em comum onde vigoram a ―originalidade e
profundidade‖ pessoais – que não podem ser reduzidos ao comum vigente na comunidade, ao
que pode ser inteligível. Trata-se de uma herança de Schleiermacher presente no pensamento
de Dilthey: individuum est ineffabile (SCHLEIERMACHER. apud DILTHEY, 1978: 335).
Podemos ver assim uma constante tensão no interior daquela relação recíproca
entre partes e todo, entre indivíduos e sistema cultural. Somente porque os indivíduos, devido
à condição mesma de indivíduos, não podem ser reduzidos ao que uma comunidade em si
mesma representa, pode haver aqui e ali configurações distintas de sistemas culturais. Embora
Dilthey não diga nada a respeito, podemos depreender da diversidade uma terceira
característica da objetivação da vida: a possibilidade de uma mesma comunidade se
transformar ao longo do tempo. Isso só é possível porque a comunidade sempre passa pela
mediação do que cada indivíduo enquanto indivíduo pode fazer com aquilo que ele
compartilha em comum com os outros.3
Não é exatamente o que Dilthey nos diz, mas é aquilo que podemos fazer ver e de
que podemos nos apropriar a partir do que ele nos diz. Ser histórico, portanto, consiste em
trazer consigo tais características: ser fruto de algo comum e estável que, todavia, está sujeito
a transformações. Logo, as ciências do espírito, para fazer jus ao título de ciência, precisam
elaborar um conhecimento necessário e universal sobre algo que, paradoxalmente, sempre
pode ser de outro modo. O enredamento entre vida e história parece ser, portanto, um
obstáculo incontornável ao critério de cientificidade que Dilthey pretende reconhecer nas
ciências do espírito.
Não por acaso, ele se depara com o problema do historismo e nos chama a atenção
para ―a luta entre as tendências da vida e sua meta científica‖ (DILTHEY, 1978: 160). Nas

3
Aqui vale lembrar as preciosas observações de Hegel sobre a necessidade de que algum indivíduo assuma o
encargo de ―iniciador‖, para que a ―configuração incompleta de um Estado‖ possa adquirir uma unidade. Ora,
isso mostra o poder de influência que um indivíduo pode ter sobre toda a comunidade, e vale tanto para a
formação de um Estado quanto para as grandes revoluções políticas. Basta-nos lembrar de certas personalidades
históricas, como, por exemplo, Napoleão Bonaparte. Cf. HEGEL, 2003: 258s.

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ciências do espírito, a contingência é um aspecto distintivo tanto do ―objeto‖ (a vida) quanto
do conhecimento que é elaborado em torno dele. Os próprios cientistas do espírito se
encontram sob a influência de certas tendências da vida que, por sua vez, contrariam a meta
científica de conhecê-la necessária e universalmente. Essas tendências agem silenciosamente
sob a forma de dogmas e preconceitos relativos a uma época que, devido a essa relatividade,
limitam a validade do conhecimento a um momento da história. É isso o que devemos ler nas
seguintes palavras de Dilthey:

Como os historiadores, os economistas, os mestres do direito público, os que


estudam a religião se encontram na vida, querem também influir sobre ela.
Submetem os personagens históricos, os movimentos das massas e as
diversas tendências ao seu próprio juízo, e este está condicionado por sua
individualidade, pela nação a que pertencem, pela época em que vivem. [...]
toda análise levada a cabo dos conceitos de uma geração passada nos mostra
como nesses conceitos contêm elementos que procedem dos preconceitos da
época. Mas já sabemos que toda ciência exige validez universal. Se há de
haver, portanto, ciências do espírito, no sentido rigoroso da palavra ‗ciência‘,
terão de propor sua meta de um modo cada vez mais consciente e crítico.
(DILTHEY, 1978: 160).

Por ainda adotar o critério de cientificidade das ciências naturais, Dilthey define a
historicidade a partir de traços eminentemente negativos. A condição histórica das ciências do
espírito é, sobretudo, um limite epistemológico para a elaboração de um conhecimento
necessário e universal. Isso porque Dilthey também busca na vida o que as ciências naturais
buscam no mundo físico: encontrar, sob a constante transformação do que se mostra à
observação, algo estável, perene, em suma, cognoscível, 4 a respeito do qual é possível
formular leis.
Agora, então, a pergunta deve ser: podemos compreender a historicidade sem nos
orientar por esse critério de cientificidade?

2.2. A interpretação existencial de Heidegger.

Embora fosse profundamente influenciado por Dilthey durante os estudos de


juventude, Heidegger contorna o horizonte epistemológico de onde surge todo o projeto de
fundamentação das ciências do espírito. Assim como a Dilthey, também devemos muito a

4
Porque não parece ser possível conhecer o que muda a todo instante, desde Aristóteles, a constância de algo se
tornou critério de cognoscibilidade, de maneira que aquilo que fosse eterno (aidion) ensejaria também a mais
digna de todas as teorias, a ―filosofia primeira‖. Cf. ARISTÓTELES, 2005: 269s.

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Heidegger o que atualmente compreendemos por historicidade. Mas isso não quer dizer que
compartimos com tudo o que ele nos diz. Assim, passaremos propositalmente por cima da
relação íntima que Heidegger estabelece entre a historicidade e os modos em que cada ser-aí5
pode assumir a própria existência, a fim de nos precaver de alguns problemas sobre os quais
não poderemos tratar aqui. Concentraremo-nos apenas na correlação fundamental entre ser,
tempo e historicidade.
Tudo o que Heidegger nos diz a respeito da historicidade parte de uma
investigação acerca do sentido do ser em geral, cujo marco inicial é a obra Ser e tempo.
Segundo Heidegger, embora não saibamos definir claramente o que significa ‗ser‘, já nos
movemos em uma compreensão prévia desse fenômeno tão corriqueiro. Podemos dar um
exemplo bem simples. Compreendemos perfeitamente o que nos dizem em qualquer ocasião
onde o verbo ‗ser‘ é empregado: ―Essa casa é branca‖, ―Aquele sujeito é honesto‖, ―As
pinturas de Godá são belas‖ etc. Mas, se nos perguntassem: ―o que significa ser, afinal?‖, já
não saberíamos responder satisfatoriamente.
Ora, esse mesmo problema surge com respeito ao tempo. Como já nos diz Santo
Agostinho: ―Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também
o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo
perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem fizer a pergunta, já não sei‖ (AGOSTINHO,
2000: 322). Isso mostra que certos fenômenos, embora sejam efetivos, só se mostram para nós
de maneira obscura, de sorte que, inicialmente, não conseguimos defini-los com clareza. É o
que ocorre com ser e tempo.
Mas o parentesco entre ser e tempo não se esgota aí. A fim de poder nos expressar
com algum grau de clareza, tentaremos apresentar aqui uma compreensão provisória e geral
acerca do que significa ―ser‖. Tomemos como exemplo um caso em que demonstramos uma
compreensão, por assim dizer, ―mínima‖ a respeito do ser, quando simplesmente dizemos:
―Isso é‖. Essa experiência nos mostra que a coisa visada aí se revelou6 para nós a partir
daquilo que a determina enquanto tal e tal coisa. Deparamo-nos com algo e dizemos: ―Isso é‖.
Em geral, ser significa esse revelar-se de tudo aquilo com o qual podemos lidar, inclusive,
nós mesmos.

5
Ser-aí (em alemão, Dasein) é a palavra utilizada para designar o nosso modo específico de ser enquanto seres
humanos, em contraste com o modo de ser dos animais, das plantas, das pedras etc.
6
Ou ainda: tal coisa se mostrou, está disponível, para a compreensão.

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Mas importa mesmo é ressaltar a correlação essencial entre ser e tempo. Tudo o
que é somente pode ser em alguma determinação temporal. Qualquer coisa necessariamente é,
foi, será, vem sendo, tem sido etc. Aliás, enquanto ―negação do tempo‖, até a própria
atemporalidade provém de uma determinação temporal, visto que toda negação deve
pressupor aquilo que nega. Por se tratar daquilo somente a partir do qual o ser se torna
compreensível, o tempo é o que responde à pergunta de Heidegger acerca do sentido do ser
(Cf. HEIDEGGER, 2002a: 54).
Ora, dentre todos os entes, somente nós perguntamos pelo sentido do ser. Nenhum
animal, planta, pedra etc. pode fazer algo assim. Por conseguinte, somente em nós se realiza
aquilo devido ao qual o ser se torna compreensível, a saber: o tempo! Para retomar o que já
dissemos, só nos é possível reconhecer que as coisas são, porque aconteceu de nós existirmos
no horizonte onde isso é possível, ou seja: no horizonte do tempo. Nós temporalizamos.
Podemos dizer ―Isso é‖, porque reconhecemos a coisa aí visada na sua permanência enquanto
algo presente.
No entanto, o que Heidegger denomina temporalidade (Zeitlichkeit) não é
simplesmente o fato de existirmos no horizonte do tempo. Antes, a temporalidade nomeia um
―fenômeno uniforme‖ (einheitliche Phänomen) que, no dia-a-dia, é compreendido de modo
desconexo como presente, passado e futuro (Cf. HEIDEGGER, 2002b: 120).
Originariamente, não existimos em uma sucessão de instantes fragmentários que desaparecem
um após outro à medida que passam. Tudo o que se revela na condição de algo presente,
passado ou futuro, só pode ser reconhecido em um desses modos temporais, porque, na
temporalidade de sua existência, o ser-aí já-veio-sendo-o-que-é-vindo-a-ser.
Restringimo-nos a fornecer apenas um panorama geral do que Heidegger
descobriu acerca da relação fundamental entre ser e tempo. Nossa meta principal é mostrar
como a historicidade se enraíza na temporalidade da existência do ser-aí. Algo só pode ser
histórico para aquele a quem acontece existir temporalmente. Mais especificamente, um fato
passado só pôde ter passado para aquele a quem acontece poder passar; um fato futuro só
pode vir a acontecer para aquele que pode vir-a-ser e, como se diz, ―permanecer na
expectativa‖.
Há uma passagem sumamente importante no prólogo à conferência Tempo e ser
que nos fornece o desenvolvimento necessário ao que já dissemos sobre o tempo:

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[...] então encontramos no ausentar, seja aquilo que foi, seja o futuro, uma
maneira de presentar e de abordar (dirigir a) que, de modo algum, coincide
com o presentar no sentido do presente imediato. De acordo com isto, trata-
se de observar: nem todo presentar é necessariamente presente; coisa
estranha. Não obstante, encontramos tal presentar, a saber, a abordagem que
nos alcança, também no presente. Também nele é-nos alcançado presentar.
(HEIDEGGER, 1999: 260).

Aí toda a exposição se detém principalmente em dois modos temporais: passado e


futuro. Vejamos, então. Quando dizemos ―Isso é‖, fazemos a experiência de sermos
abordados por algo que se dirige a nós em um presente imediato. É isso o que Heidegger
chama ―presentar‖: o fato de que algo nos aborda ao tornar-se presente diante de nós. Mas,
quando se trata de algo passado ou futuro, isso também nos aborda, mas não na condição de
algo imediatamente à vista. Trata-se de uma abordagem específica que Heidegger chama
―ausentar‖. Daí o belo jogo de palavras: ―nem todo presentar é necessariamente presente;
coisa estranha‖.
Essa estranheza só se desfaz quando notamos a diferença entre presentar e
presente imediato. Esta mesa, por exemplo, me aborda em um presente imediato. Entretanto,
aquilo que me aborda segundo o modo temporal passado se dirige a mim de maneira ausente,
ou melhor, se faz presente – sem se fazer presente à vista. Eis a diferença! Apesar desse
caráter, por assim dizer, ―sorrateiro‖, a forma de abordagem do passado não deixa de surtir
efeitos sobre nós. É isso o que nos interessa nessa passagem. Aqui temos em vista a maneira
em que uma tradição histórica exerce a sua influência sobre nós, mesmo quando não lidamos
diretamente com ela.
Em Verdade e método, Gadamer afirma que a tarefa da hermenêutica consiste em
―fazer jus à historicidade da compreensão‖ (GADAMER, 2003: 354). Curiosamente, porém,
ele parece ter negligenciado a importância que as interpretações de Heidegger sobre o tempo
têm para a própria hermenêutica! Pois ainda não vimos Gadamer tratar seriamente essa
questão. Em contrapartida, Heidegger não parece ter deixado de relacionar o tempo ou aos
modos em que o ser-aí pode assumir a própria existência 7 ou à relação com o ser enquanto
ser. Até onde sabemos, não parece haver nas investigações de Heidegger uma interpretação do
tempo desvinculada dessas duas abordagens.8

7
Aqui, nos referimos aos dois possíveis modos de ser do ser-aí: a inautenticidade e a autenticidade, que ensejam
a possibilidade de existir segundo uma temporalidade própria ou imprópria, respectivamente.
8
Infelizmente, não podemos tratar aqui dos problemas daí decorrentes.

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Mas, graças a Heidegger esse fenômeno deixou de ser um fator
epistemologicamente negativo para se enraizar na temporalidade da própria existência
humana. Agora, ser histórico significa: existir de tal maneira, que aquilo que somos já
envolve em si o que já viemos sendo e o que viremos-a-ser. Sorrateiramente, o que nos aborda
no modo temporal passado se faz presente em nós sem se fazer claramente presente à vista.
Assim, jogamos sem saber ao certo quais as regras do jogo. Eis porque este artigo se intitula
justamente ―o jogo da historicidade‖.

3. O JOGO DA HISTORICIDADE.
3.1. O problema da independência do jogo.

Originalmente, o fenômeno do jogo teve de oferecer uma resposta à pergunta


acerca da ―verdade da obra de arte‖, ao passo que aqui se trata de um problema distinto, talvez
até bem mais abrangente. Porém, nas últimas páginas de Verdade e método, Gadamer9 mesmo
sugere que o jogo é o modo em que nos relacionamos com a tradição e com a verdade. Mas
não importa tanto se tais referências são insuficientes. A própria força daquilo que se tornará
manifesto ao longo da nossa exposição poderá fazer ver se a historicidade é efetivamente um
jogo.
A princípio, devemos enfatizar bem o propósito fundamental de Gadamer: libertar
o jogo do ―significado subjetivo que apresenta em Kant e Schiller‖ (GADAMER, 2003: 154).
Não podemos perdê-lo de vista, pois toda a exposição se norteará a partir desse propósito. Por
meio dele, Gadamer define a perspectiva sob a qual visa o fenômeno do jogo, qual seja, negar
essa tendência para determinar o jogo a partir de fatores subjetivos. A essência do jogo,
portanto, não está nem no comportamento nem no estado de ânimo nem na liberdade dos
sujeitos que participam do jogo.
É em virtude dessa perspectiva, pois, que o jogo revela a Gadamer algumas
determinações essenciais. A primeira delas consiste em que o jogo em si mesmo detém ―uma
natureza própria‖, ―independente da consciência daqueles que jogam‖ (Ibid.: 155). Daí: ―o
sujeito do jogo não são os jogadores. Ele apenas ganha representação através dos que jogam o

9
Basta-nos prestar atenção às últimas palavras de Gadamer em Verdade e método, onde nos diz, por exemplo: ―o
que nos vem ao encontro na experiência do belo e na compreensão do sentido da tradição tem realmente algo da
verdade do jogo‖; ou ainda: ―a melhor maneira de determinar o que significa a verdade será, também aqui,
recorrer ao conceito de jogo‖. Cf. Ibid.: 630-631. Além disso, o prof. Marco Casanova também procura mostrar
em um artigo que toda a experiência da compreensão se resume a um jogo. (Cf. CASANOVA, 2008).

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jogo‖ (loc. cit.). Já vale notar que aqui, nessa independência do jogo, nasce o problema do
qual trataremos adiante.
Para tais determinações, Gadamer encontra um fundamento fenomenológico nas
metáforas da palavra ‗jogo‘, que realçam, segundo ele, o seu ―significado originário e
próprio‖ (Ibid.: 156). O que há de comum em: jogo das luzes, jogo das ondas, jogo das forças,
jogo das moscas, jogos das palavras e assim por diante? Ora, todas essas metáforas designam
em comum ―um movimento de vaivém‖ que não se fixa em nenhum alvo onde possa se
concluir; um movimento ―em constante repetição‖ onde não importa quem o execute –
moscas, ondas, palavras etc.; um movimento que, para se realizar, não requer nenhum sujeito
específico. De maneira geral, portanto, ―o jogo é a realização do movimento como tal‖ (Ibid.:
156). Sua determinação mais originária se encontra naquilo que acontece entre aqueles que
perfazem o jogo, ou seja, ―na forma medial‖ (Ibid.: 157).
Aqui, devemos explicitar uma conseqüência importante para os desdobramentos
posteriores da nossa investigação. Quando se propõe a desvencilhar o jogo daquilo que
acontece na consciência do jogador, Gadamer não visa qualquer forma de consciência, mas
sim a consciência humana. Isso se torna mais claro quando ele busca dissolver a distinção
entre uso próprio e metafórico da palavra ‗jogo‘. O emprego de uma palavra é considerado
metáfora quando transpõe e amplia o campo de aplicação em que essa palavra vinha sendo
empregada e que lhe conferiu um ―significado próprio‖. Assim, ―jogo das moscas‖ somente é
considerado uma metáfora devido a uma tradição que sempre considerou o jogo uma
atividade exclusivamente humana.
Portanto, Gadamer se contrapõe implicitamente a essa concepção antropológica
do fenômeno do jogo, o que parece se evidenciar nessa passagem:

Do fato de o modo de ser do jogo encontrar-se tão próximo da forma de


movimento da natureza, podemos extrair uma importante conclusão
metodológica. É claro que não podemos dizer que os animais também jogam
e que a água e a luz só ―jogam‖ em sentido figurado. Antes, deveríamos
dizer que também o homem joga. Também o seu jogar é um processo natural
[...] Assim, nesse âmbito já não faz sentido distinguir entre uso próprio e
metafórico. (GADAMER, 2003: 158, grifos nossos).

Notem bem. Aparentemente, Gadamer apenas diz que o ser humano não detém
nenhum privilégio sobre a possibilidade de jogar, mas é apenas um dentre muitos outros que
podem jogar. Todavia, essa crítica à concepção antropológica do jogo esconde um teor bem
mais incisivo. Se não há razão para considerar que o ser humano confere ao jogo um

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significado próprio, do qual derivariam aqueles empregos metafóricos, também não há razão
para atribuir esse encargo a nenhuma outra coisa. Assim, o fenômeno do jogo passa a revelar
uma generalidade tal, que leva Gadamer a defender a sua independência em relação à
consciência humana!
Mas aonde queremos chegar, afinal? Ora, se prestarmos atenção, o que Gadamer
nos diz implica a independência do jogo em relação à própria natureza dos jogadores, de
quaisquer jogadores, não importa se forem humanos, cores, moscas etc. Basta-nos deixar que
alguns desdobramentos da própria exposição de Gadamer falem por si mesmos:

Em princípio, percebemos aqui o primado do jogo faca à consciência do


jogador [grifo do autor], e se partirmos de fato do sentido medial do jogo [...]
fica claro que o jogo representa uma ordem na qual o vaivém do movimento
do jogo se produz como que por si mesmo [grifo nosso]. [...] A estrutura
ordenadora do jogo faz com que o jogador se abandone a si mesmo,
dispensando-o assim da tarefa da iniciativa [...] É o que aparece também no
impulso espontâneo para a repetição, que surge no jogador e no contínuo
renovar-se do jogo [...]. (Ibid.: 158).

Logo adiante, nos deparamos com uma conclusão, para nós, profundamente
problemática, porém, fatal e bem coerente com o que Gadamer já disse:

Dessa análise destaca-se um traço comum no modo como a natureza do jogo


se reflete no comportamento lúdico: Todo jogar é um ser-jogado. 10 O
atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside justamente no fato de que o
jogo se assenhora do jogador. [...] Justamente essas experiências em que há
apenas um único jogador demonstram que o verdadeiro sujeito do jogo não é
o jogador mas o próprio jogo. É o jogo que mantém o jogador a caminho,
que o enreda no jogo e que o mantém nele. (Ibid.: 160, grifos do autor).

Vejamos agora como as proposições de Gadamer decorrem umas das outras. Tudo
o que ele nos revela parte sempre de um único ponto: a ―forma medial‖, o movimento de
vaivém. É impossível que alguém queira jogar contando só consigo mesmo, pois assim não se
estabeleceria nenhuma relação medial. Mas, para haver jogo, também não são necessários
dois jogadores, mas apenas outra coisa com que se possa jogar e que, por si mesma,
―responda com um contralance ao lance do jogador‖. Por isso, Gadamer 11 traz à tona os jogos
feitos para apenas um jogador.

10
No original: Alles Spielen ist ein Gespieltwerden. Cf. GADAMER, 1990: 112.
11
Em outra passagem, ele toma como exemplo um gato que brinca com um novelo de lã. Cf. GADAMER, 2003:
159. É o que podemos ver também em outro exemplo, bem comum no futebol, quando gritamos: ―Apanhou da
bola!‖, para caçoar um jogador que pisa e tropeça na bola ao tentar um drible malsucedido.

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Ora, o que motiva Gadamer a dizer que o jogador, no fundo, é jogado pelo jogo é
justamente essa sujeição aos contralances possíveis daquilo com que ele joga. Segundo ele,
isso comprova que o agente do jogo não é a consciência do jogador. Logo, o ―verdadeiro
sujeito do jogo não é o jogador‖, mas sim ―o próprio jogo‖. Disso seguem outras implicações.
―O jogo se assenhora do jogador‖ e o leva a ―abandonar a si mesmo‖ em favor do movimento
do jogo que consiste naquele vaivém, ou ainda, no ―impulso espontâneo para a repetição‖.
Agora, se retomarmos o tema da nossa investigação, então veremos quão
problemático tudo isso deve ser. Se essa for mesmo a essência do jogo, a história deveria ter
uma natureza própria, independente daqueles que dela fazem parte. Mas não só. Seríamos
jogados pela história – ―o verdadeiro sujeito do jogo‖ – que imporia a todos um ―impulso
espontâneo para a repetição‖. Enfim, segundo Gadamer, o fenômeno do jogo deveria revelar o
caráter determinista e também relativista da história. Pois, se ela predeterminasse por si
mesma os nossos movimentos, tudo o que fazemos seria relativo aos ditames do período
histórico em que vivemos.
Mas a dialética de Hegel nos ensina que qualquer pensamento já traz consigo as
condições da sua própria superação. Isso não invalida e esvazia por completo tudo aquilo que
tal pensamento pôde nos mostrar; apenas exige que o elevemos mais uma vez ao nível do
conceito para aí preservar aquilo mesmo que o inquietou e o motivou. Seria um erro crasso
desconsiderar o que Gadamer, a partir do jogo, nos revela sobre a historicidade. Não podemos
deixar de reconhecer que um traço marcante do jogo da história é a sua tendência para nos
fazer repetir aquilo que veio vigorando desde muito tempo. Ora, em latim, ‗tradição‘ significa
―transmissão‖ e, ao transmitir algo, esperamos que isso permaneça vigente naqueles aos quais
o legamos.
Entretanto, há a possibilidade de realizar um contralance ao que Gadamer nos
legou. Prestemos atenção ao que ele nos diz nessa passagem:

[...] os jogos possuem um espírito próprio e pessoal. Isso tampouco se refere


ao humor ou ao estado psíquico daqueles que jogam o jogo. Ao contrário,
essa diversidade do estado de ânimo ao se jogar diferentes jogos ou ao sentir
prazer em tais jogos é consequencia e não causa da diversidade dos próprios
jogos. Os próprios jogos distinguem-se entre si por seu espírito. A única base
para isso está no fato de eles prefigurarem e ordenarem cada vez diferente o
vaivém do movimento do jogo. O que constitui a essência do jogo são as
regras e disposições que prescrevem o preenchimento do espaço lúdico.
(Ibid.: 160).

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Sim, o que promove a mudança de humor do jogador ao passar de um jogo a outro
é a própria natureza do ―espaço lúdico‖ aberto em cada jogo, mas não a disposição do jogador
para alterar o próprio ânimo. Isso nós não questionamos. Mas, se a essência do jogo se
encontra no movimento de vaivém entre os jogadores, mas não neles enquanto jogadores com
certa natureza – se assim for, como um jogo pode se diversificar de outro? Como o jogo das
moscas, por exemplo, pode se diferenciar do jogo das cores, uma vez que nem as moscas nem
as cores participam da essência do jogo, que reside exclusivamente na ―forma medial‖ comum
a ambos os jogos?
Ora, se considerássemos seriamente o que nos diz, a resposta de Gadamer seria
absurda. Se o que caracteriza um jogo fosse apenas o que ocorre entre os jogadores, deveria
ser possível que essa relação medial se instaure por si mesma sem que os próprios jogadores
existam! Assim, o movimento conjunto que fosse próprio a cada jogo e que lhe conferisse um
traço distintivo em comparação com os outros jogos – esse movimento poderia preexistir aos
jogadores, para somente depois submetê-los a si, a fim de instaurar concretamente a
diversidade de jogos. Se formos coerentes com o que Gadamer 12 nos diz, essa deveria ser a
resposta dele, que nos parece um total disparate. E é com essa inquietação que passamos à
próxima seção.

3.2. A transformação: uma tarefa do jogo da historicidade.

A nossa resposta para o problema com que concluímos a seção anterior deve sim
considerar o quinhão de verdade do que Gadamer nos diz. De fato, a ―forma medial‖ do jogo
não depende do que ocorre subjetivamente nos jogadores. Porém, isso não significa que ela
aconteça ―como que por si mesma‖! Pode haver ainda, eis toda a questão, a possibilidade de
que o jogo dependa dos jogadores de outra maneira. Como ainda mostraremos, a natureza dos
jogadores – e não a consciência subjetiva deles! – é determinante para a instauração do
movimento do jogo.
Na última passagem citada, Gadamer diz: ―O que constitui a essência do jogo são
as regras e disposições que prescrevem o preenchimento do espaço lúdico‖. Decerto, o
movimento de vaivém do jogo consiste em uma ordenação que abre um espaço lúdico e que
prefigura o que pode acontecer nele. Assim, os limites de um jogo são estabelecidos no
12
Vale ressaltar aqui as palavras de Gadamer já citadas anteriormente: ―[...] o vaivém do movimento do jogo se
produz como que por si mesmo [...]‖. Cf. Ibid.: 158.

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interior desse espaço, e não devido a alguma restrição externa. Segundo Gadamer, essa é a
―única base‖ para que um jogo se diferencie dos outros e se diversifique durante a realização
do seu próprio movimento.
Entretanto, ainda que possa prescindir do que ocorre subjetivamente com o
jogador, o jogo não pode prescindir da natureza mesma dos jogadores; não pode ser
indiferente para a ordenação que abre e prefigura o espaço lúdico que os jogadores sejam
moscas, ondas, cores, humanos etc. A ―forma medial‖ do jogo somente pode ser o que é
devido àquilo que os jogadores podem fazer uns com os outros. Ora, nenhum jogo pode
prefigurar um espaço lúdico que exija dos jogadores a execução de lances que estejam além
das suas possibilidades factíveis! É impossível organizar, por exemplo, um jogo de futebol
com dois times formados por cães sem realizar qualquer adaptação nas regras tradicionais do
futebol. – O jogo depende sim de quem joga.
Tudo o que dissemos coere plenamente com o propósito de livrar o jogo em si
mesmo do que acontece subjetivamente com os jogadores. Mas Gadamer negligencia uma
distinção importante. Temos diante de nós um fenômeno com dois aspectos distintos – porém,
correlacionados. Por um lado, a natureza do jogo em si mesmo e, por outro lado, a natureza
dos jogadores. E o primeiro não pode ser determinado sem o segundo. A natureza do jogo nos
revela o que determina o movimento conjunto; a natureza dos jogadores, o que determina
cada um como tal. Ora, o movimento conjunto depende do que cada um pode fazer consigo e
com os outros.
Quanto ao jogo humano particularmente, seguiremos apenas os apontamentos de
Gadamer que podem contribuir com a nossa investigação. Segundo ele, é característico do
jogo humano jogar alguma coisa (Cf. Ibid.: 161s). Mas o que quer dizer ―jogar algo‖?
Desempenhar a tarefa que o jogo designa e representá-la para os outros com os quais se
joga. Mas em que consiste essa tarefa? Decerto, isso dependerá da natureza particular do jogo.
No futebol, por exemplo, cabe ao lateral ocupar os flancos do campo, de modo que, no campo
de ataque, deve cruzar a bola para os atacantes e, no campo de defesa, deve auxiliar os
zagueiros na marcação desse setor.
Pois bem. Propomo-nos a tratar aqui do jogo da historicidade. Assim, a pergunta
passa a ser: que tarefa nos designa esse jogo? Não por acaso, começamos este artigo com
algumas considerações sumárias sobre o caráter essencialmente inter-humano e histórico da

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linguagem. Ninguém pode instituir linguagem recorrendo exclusivamente a si mesmo, 13 sem
contar com a linguagem já estabelecida em conjunto pelos outros. Assim, a fala é
necessariamente um ato de coexistência. Então, isso quer dizer que ao falar desempenhamos
uma tarefa? Qual?
Ora, a própria palavra ‗tradição‘ responde a essa pergunta. Cabe-nos transmitir
adiante o legado que os outros nos passam quando nos ensinam a falar. Essa é a tarefa que
devemos desempenhar inicialmente para que possamos tornar concreta a simples
possibilidade de falar. Aprender a falar implica aprender a pensar tal como uma longa tradição
já vinha pensando; implica aprender a compreender as coisas, a si mesmo e os outros tal como
já vinham sendo compreendidos. Existir historicamente é participar de uma ordem que abre e
prefigura um espaço de movimentação. Enfim, essa é a primeira característica do jogo da
historicidade.
Então só nos resta repetir o que é transmitido no vaivém do jogo da tradição? Já
que dependemos dos outros para fazer aquilo que nos cabe enquanto humanos: existir na
linguagem, então, de fato é necessário nos submeter à tendência para repetir a tradição.
Notem: trata-se apenas de uma tendência. É justamente aí que a interpretação de Gadamer
revela problemas sérios. Se o jogo histórico independesse da nossa natureza, deveríamos
sucumbir a uma interpretação determinista e relativista da historicidade; deveríamos sucumbir
à condição de ―sermos jogados‖ pelo jogo da história, de maneira que estaríamos condenados
a repetir o que a tradição já vinha transmitindo. Ora, nesse caso, já não está mais em questão
uma mera tendência.
Realmente, até fizeram várias críticas contra a hermenêutica de Gadamer que
denunciavam um problema similar. Talvez com o propósito de respondê-las, em um artigo
intitulado Até que ponto a linguagem prescreve o pensamento Gadamer escreve:

O fato de nos movermos no mundo da linguagem, de estarmos inseridos em


nosso mundo através da experiência pré-formada pela linguagem não
restringe nossa possibilidade crítica. Ao contrário. Abre-se para nós a
possibilidade de ultrapassar nossas convenções e todas as nossas
experiências pré-esquematizadas, dialogando com outras pessoas, pessoas
que pensam diferente, aceitando um novo exame crítico e novas
experiências. (GADAMER, 2004: 239, grifo nosso).

13
Quanto a essa questão, remetemos aos notórios argumentos de Wittgenstein contra a possibilidade de alguém
instituir uma linguagem que só ele pode compreender. (Cf. Wittgenstein, 2000).

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Por si, essa passagem não resolve nada, pois não dirimi a sua incoerência com os
problemas já mencionados. Ela apenas mostra que somos impelidos a manter com Gadamer
uma relação ambígua. Às vezes, temos de concordar com ele para, em outras ocasiões, dele
discordar. Sim, ―o mundo da linguagem‖ possibilita a convivência com pessoas que ―pensam
diferente‖. E umas podem proporcionar a outras um ―exame crítico‖ do que nelas está pré-
esquematizado. Ora, se assim for, o espaço de jogo jamais pode estar totalmente prefigurado.
De fato! Se, por um lado, a linguagem é essencialmente um fenômeno inter-
humano, por outro lado, porém, ela não pode ser instituída exclusivamente a partir do que
acontece entre os seres humanos. A linguagem também deve contar com a iniciativa de cada
um deles em particular. Ninguém pode fazer com que alguém fale. É necessário que cada um
tome a iniciativa de se apropriar disso sobre o qual ele pode falar! Por isso, é fundamental
considerar a diferença entre o movimento medial do jogo e aquilo que cada jogador pode
fazer por natureza.
Assim, concordamos com o que Gadamer diz no artigo Semântica e
hermenêutica:

O que constitui a vida da linguagem é o fato de jamais podermos nos afastar


completamente das convenções da linguagem. Aquele que fala uma língua
particular, que ninguém entende, simplesmente não fala. Por outro lado,
quem só fala uma língua inteiramente assolada pela convencionalidade, tanto
na escolha dos vocábulos quanto na sintaxe e no estilo, perde o poder de
interpelação e de evocação, apenas alcançável pela individualização do
acervo e dos recursos da linguagem. (Ibid.: 207-208).

Portanto, uma linguagem baseada somente no que os outros estabeleceram seria


tão impossível quanto uma linguagem exclusivamente pessoal. Se a possibilidade de falar se
baseasse estritamente em convenções preestabelecidas, não passaríamos de autômatos que se
restringem a aplicar mecanicamente regras gramaticais ao léxico de uma língua
completamente aistórica. Aí, sim, estaríamos condenados a simplesmente repetir a tradição.
Ao contrário, para participar de uma convenção, cada um de nós deve consentir
nesse acordo. Tal consentimento só acontece porque podemos fazer nós mesmos certas
experiências por meio daquilo que se estabeleceu por convenção. É necessário que
reconheçamos a nós mesmos naquilo que é comum, pois só assim podemos realizar projetos
que nos dizem respeito. Em uma palavra, se a possibilidade de falar dependesse somente
daquilo que já foi preestabelecido, o movimento conjunto de uma tradição sequer seria

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possível. Ele depende de que nós mesmos façamos as experiências que ele nos transmite, o
que ninguém mais pode fazer por nós.
É isso o que ganha voz na hermenêutica de Schleiermacher por meio da
proposição: individuum est ineffabile, e mais tarde ressoa nas investigações de Dilthey.
Porém, na ontologia de Heidegger, isso se converte na possibilidade de por entre parênteses
toda a tradição precedente em virtude de uma experiência existencial de singularização
extrema. Agora, isso se manifesta para nós como a necessidade de que aquilo que caracteriza
o movimento de uma tradição passe pela mediação da experiência irredutivelmente singular
de cada um.
Enfim, pretendemos evitar dois extremos. Por um lado, absolutizar a
singularidade de cada um a ponto de fazer dela um meio para nos livrar totalmente dos
influxos sorrateiros da tradição. Por outro lado, considerá-la nula perante a nossa tendência
para repetir o que a história nos transmite. Por isso, a transformação também deve ser uma
tarefa do jogo da historicidade. Sim, é uma condição necessária retomar a tradição para que
possamos fazer o que nos cabe: falar. Mas também não podemos estar perpetuamente
acorrentados a isso que, apenas inicialmente, nos foi imposto. Sempre o transformamos a
partir do que temos de singular.
Todavia, essa transformação não se manifesta apenas como uma determinação
puramente ontológica do ser humano. O fato de cada um ser singular e não poder transferir o
encargo da sua própria existência a outro – esse fato tem uma determinação eminentemente
prática. Cada nexo histórico só se pode ser estabelecido mediante a experiência efetiva e
singular daqueles que fazem parte desse nexo. É por isso que o movimento do jogo da
historicidade não pode ser completamente prefigurado. A transformação 14 se realiza a cada
instante em cada um, em um exercício infinito do qual podemos nos apropriar sem jamais,
porém, chegar a um termo.
Enfim, a realidade última da historicidade humana é o contralance aos lances do
jogo.

14
Por transformação, não compreendemos aqui ―revoluções políticas‖ ou mudanças explícitas, visíveis para
qualquer um, que trouxessem melhor qualidade de vida a camadas sociais desfavorecidas economicamente.
Transformação pode se referir também a meras reformulações que não promovem nenhuma mudança mais
radical na ordem vigente de uma sociedade. Ainda não estamos em condições de tratar desses assuntos, pois eles
demandam reflexões mais detidas acerca do que define em geral a transformação no jogo da historicidade. Este
artigo é apenas um ensaio, um primeiro esforço nesse sentido.

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RESPONSABILIDADE HISTÓRICA E DIREITOS HUMANOS:
CONSIDERAÇÕES ÉTICO-SOCIAIS SOBRE A PROFISSÃO DE HISTORIADOR E O
IMPACTO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS NO ESTUDO DA
HISTÓRIA

Johnny Roberto Rosa 1

Resumo: As reflexões deste trabalho procuram compreender as discussões dos padrões ético-
sociais do historiador enquanto profissional, bem como a relevância social e ―restauradora‖
que o estudo de temas historiográficos baseados em episódios traumáticos pode ter para os
pesquisadores e para a(s) sociedade(s) atingida(s) pelos eventos estudados por estes. Além
disso, intenta-se considerar quais as consequências teóricas e metodológicas que acarretam na
conjunção da discussão dos padrões ético-sociais do historiador e na relevância social e
―reparadora‖ (função terapêutica) que pode ter o estudo de episódios negativos, traumáticos.
Desta forma, dois elementos surgem: os usos (responsáveis) e maus usos (irresponsáveis) da
história, e a ética dos historiadores. Equidistante a estas questões axiológicas, intenta-se
debater o potencial impacto dos sistemas de valores da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) na adoção de um código de ética para os historiadores proposto por
Antoon De Baets.

Palavras-chave: usos e maus usos da história; código de ética; DUDH; Antoon De Baets.

Abstract: The considerations addressed in this work aim to understand the discussions
regarding the social-ethical standards from historians as professionals, as well as the social
and "repairing" relevance that the study of historiographical themes based on traumatic
episodes can have to researchers and to the society affected by the events studied by them.
Moreover, it is intended to consider which theoretical and methodological consequences bring
about the discussion of social-ethical standards from historians and the social and "amending"
relevance (therapeutic function) that the study of negative traumatic episodes may have.
Therefore, two elements arise: the uses (responsible) and misuses (irresponsible) of history
and historians ethics. In relationship with these axiological issues, the potencial impact of
values systems from the Universal Declaration of Human Rights (UDHR) in the adoption of a
code of ethics for the historians proposed by Antoon de Baets is also herein debated.

Keywords: uses and misuses of history; code of ethics; UDHR; Antoon de Baets.

1
Mestrando do curso de História da Universidade de Brasília – UnB. Bolsista Capes. Sou grato ao
amigo Raphael Feldhues pela atenta leitura e comentários feitos neste trabalho. Contato com o ator:
johnnyrobertorosa@hotmail.com

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In dem Gebiet der Geschichte liegt die ganze moralische Welt.

(Schiller)2

Frequentemente tem-se exigido dos historiadores o fornecimento de um


tratamento com diretriz que combine seu papel de crítico, com aquele de cívico e ético. Por
um lado, segundo François Bédarida, exige-se do historiador sua dissociação com a pretensão
de um discurso desmistificado e suportado pela evidência; e por outro, o historiador deve
contribuir para que se molde a consciência histórica e a memória de seus contemporâneos.
Assim sendo, ser pesquisador, não separa os historiadores de serem atores sociais. Por essa
razão, o público leitor frequentemente os invoca para o papel de árbitros, reconhecendo neles,
portanto, uma posição de mediadores entre passado, presente e futuro. No entanto, se a
história é um meio da sociedade adquirir uma compreensão do que ela representa, seria
necessário para a construção historiográfica respeitar um relacionamento coerente e
explicativo entre as fontes e a realidade referencial, adquirido por um método científico
controlado e apropriado ao seu objeto, seguindo uma lógica de comunicação e
inteligibilidade. Por esta razão, exercida pelos historiadores, a responsabilidade histórica deve
se basear na condição de independência, de autonomização interna, seja política ou
intelectual, social ou financeira – exigência de liberdade; e deve haver respeito aos cânones
da disciplina, responsabilização externa – exigência de veracidade. (Cf. BÉDARIDA, 1994:
01-03)
Um dos axiomas sobre a dimensão ética emerge porque o sujeito do conhecimento
histórico e o objeto pesquisado por este estão aparentemente separados. Desta forma, a ética,
para o conhecimento histórico, seria a dimensão através da qual o sujeito e o objeto negociam
os efeitos desta realidade passada. Assim, temos que reconhecer tanto a inevitabilidade da
projeção dos valores dos historiadores na realidade empírica de seus objetos – bem como a
objetividade deste conhecimento – como um empreendimento problemático de contrapostos
modos de projeção, indulgência e partidarismo. Entretanto, verdades sobre o passado são
possíveis, mesmo que não sejam absolutas. Partindo deste princípio, pode-se refletir a
constituição de sentido histórico por meio de ―fontes‖ e ―métodos‖ que permitam aproximar a

2
―No domínio da história encontra-se todo o mundo moral‖. Citado por Richard Vann. (VANN, 2004:03)

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reconstrução de uma realidade passada parcial e provisória que, todavia, não significa
indefinição de sentido. (Cf. VANN, 2004: 03-09)
Uma questão determinante que se deve reconhecer aqui é o fato de que os
historiadores precisam tomar cuidado contra a introdução de anacronismo em suas
considerações. Entretanto, o fato dos atos serem julgados de acordo com alguns princípios
independentes deles, pode ter alguma relevância para as avaliações morais dos fatos
históricos. Deste modo, se considerarmos somente o que os agentes fizeram sem pesar se isto
foi imoral, nos privamos de qualquer ponto de vista, como criticar valores como escravidão e
nazismo. (Ibidem: 18-26)
Richard Vann comenta que em sua experiência docente, não raro costuma ouvir a
declaração de que não importa no que se acredita, desde que a exposição seja sincera. Porém,
a sinceridade, segundo ele, seria um exagero de valor, especialmente a aderência sincera a
uma fundamentação ideológica de escravidão, fascismo, ou qualquer outra doutrina. A
proposta de que estas ideologias são más não deveria ser rejeitada por motivos categoriais
(Ibidem: 29). Portanto, o termo moralidade geralmente denota um código normativo de
comportamento corroborado por uma dada sociedade passada ou presente. Estas moralidades,
evidencia James Cracraft, costumam ser definidas em códigos de comportamento de certos
valores básicos necessários para a sobrevivência coletiva. A noção de um código de valores
comum tem sido confirmada por aqueles que têm partilhado de deveres de cuidado mútuo e
reciprocidade, de proibições com relação à violência, fraude e traição, e normas judiciais
rudimentares indispensáveis para a coexistência humana. Esta noção tem sido particularmente
atrativa para os historiadores encontrarem um motivo para que os julgamentos de valores, que
geralmente são compelidos de serem feitos, sejam feitos. (Cf. CRACRAFT, 2004: 40)
No entanto, essa noção não deve sugerir que a moralidade seja una, e não
perspectiva. Contudo, os historiadores trabalham através de um universo moral
interdependente, através de círculos de confiança entre seus pares, colegas e críticos, e seus
estudantes e leitores, cada qual validando, ou não, a história que esta sendo construída. Logo,
os historiadores deveriam refletir com mais cuidado acerca dos valores que informam seu
trabalho, e então poderiam articular uma adequada moralidade ao objetivo comprometido.
Não obstante, a noção de um código universal de valores comum tem sido suportada para os
historiadores encontrarem motivos para que os julgamentos de valores sejam feitos além da
questão que submete os trabalhos historiográficos aos seus pares de profissão como dimensão

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regulativa do trabalho histórico. Por conseguinte, a questão que diz respeito ao fato dos
historiadores deverem, ou não, ter responsabilidade ética, leva a discussão sobre os ―direitos‖,
os ―deveres‖ e as responsabilidades como tríade indissociável. Neste caso, precisa-se
especificar quem deve o que, o que é devido, e para quem é devido: o que, e quais são as
responsabilidades éticas dos historiadores e para quem elas são devidas.
Pensando nas dimensões temporais da responsabilidade do historiador com a
história, Jörn Rüsen sustenta que aos historiadores é dada a responsabilidade pelo presente,
pois a história é uma parte integral da orientação da vida cultural, sendo quem se ocupa dela
co-responsável por esta orientação. Deste modo, o trabalho historiográfico tem contribuído
para a valorização e legitimação da organização da vida social e política, encerrando, através
da história, a capacidade para a participação e aceitação da identidade coletiva. Nesta
perspectiva, a história seria responsável pela relação equilibrada entre a experiência do
passado e a expectativa do futuro. (Cf. RÜSEN, 2003: 52-56)
Entretanto, devemos notar que a lembrança histórica é, em princípio, seletiva e
também eficiente como trabalho de esquecimento. Assim sendo, pertence à responsabilidade
do historiador tornar conscientes transtornos radicados nas experiências históricas negativas e
reprimidas, encerrando a obrigação da revelação e, quando possível, a dissolução de tal
transtorno na coerência temporal. Metaforicamente, acrescenta Rüsen, poder-se-ia aqui falar
de uma função terapêutica da história, cujo cumprimento também é responsabilidade do
historiador. (Ibidem: 56-57)
O historiador, no presente, também se relaciona com o futuro, pois se vincula a
planos e programas políticos e faz juízos de valor condicionado pelas ocasiões. Dessa forma,
a história se deslocaria entre um espaço de observação e um horizonte de previsão que
determina um futuro tornado presente. Assim, experiência e expectativa se condicionam,
sendo a história, em última instância, o que é decidido pela autodeterminação das pessoas no
jogo da experiência e da expectativa temporal, das mudanças lembradas e intencionadas.
Portanto, cada orientação histórica contém uma perspectiva de futuro no lidar atual, sendo
esta dimensão temporal da responsabilidade da história estabelecida por Rüsen como
continuidade da tradição, critica de formas de vida, prolongamento do desenvolvimento ou
alternativa escatológica. Este interesse do conhecimento na responsabilidade dos atores do
presente para as condições de vida futura ascendeu, como mostra Rüsen, nos temíveis
problemas do meio ambiente, já que a continuação e desenvolvimento da indústria atual de

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exploração destruiria as condições naturais da vida humana no futuro. Esta responsabilidade é
determinada por um sistema de esperança e medo carregado de valores que habilitariam o
pensamento histórico em sua função prática. Uma tal apresentação de futuro como
consequência do passado, adverte Rüsen, pode querer dominar o decurso da história, ao
mesmo tempo em que enfraquece a orientação histórica privando a liberdade de negar ou
transcender restrições. (Ibidem: 57-60)
A terceira dimensão temporal da responsabilidade do historiador e,
consequentemente, da história, diz respeito ao passado, unindo o sistema de valores da
interpretação histórica, com o sistema de valores das pessoas interpretadas e suas ações e
omissões no passado. Um exemplo desta presença são as variadas formas no tratamento das
tradições. Neste caso, seria aceito um sistema de valores do passado que se acolhe no modo
de vida presente. Sem esta responsabilidade e suas correspondentes atividades de tratamento
da tradição, se desvaneceria a força de orientação das tradições. Normalmente, a
responsabilidade do historiador para com o passado está relacionada, por exemplo, à
declaração dos direitos dos cidadãos. A responsabilidade seria então realizada através da
afirmação (Ibidem: 60-62). Neste sentido, a dimensão ética parece envolver regras
prescritivas baseadas em valores que direcionam o que deveria ser feito. Logo, a afirmação
consiste, sub hoc signo, em um imperativo ideal, sendo que e a ética assume, neste contexto, o
sentido de um ―código‖ como base necessária para atos possíveis de enunciação.
Outra possibilidade de responsabilidade apresentada por Rüsen diz respeito à
crítica, à culpa e à vergonha como o contrário da responsabilidade realizada através da
afirmação. Neste caso, os historiadores se sentem responsáveis pelas ações no passado,
negando seu próprio sistema de valores. Um exemplo é o crescente significado do perdão
oficial político para crimes. Nesta concepção, não se aproveitaria nenhuma pretensão ética
que parta do próprio passado. A irresponsabilidade no lidar com episódios históricos quer
dizer, neste caso, que a representação histórica poderia privar a dignidade do poder de escolha
e de liberdade das pessoas do passado. Ou seja, a responsabilidade histórica significa que as
normas e valores utilizados por historiadores são também uma parte do próprio passado, uma
vez que o passado é uma moral pré-determinada para a intenção das ações presentes. Isto lida
com uma herança ética inerente à orientação cultural da vida presente. Neste respeito, o
passado não determina somente o factual-causal, mas também o moral-causal da
contemporaneidade dos historiadores. A possibilidade de responsabilidade, apresentada por

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Rüsen neste caso, diz respeito a aceitar a herança normativa, a aquisição e as falhas, mas
também os crimes de gerações passadas; na qual nós mesmos damos aos destinatários as
expectativas e receios das pessoas no passado. (Ibidem: 61-67)
A justiça dada aos mortos seria então possível quando consideramos seus sistemas
de valores com os juízos do próprio historiador em uma intrínseca relação viva. A própria
história, como desenvolvimento temporal do passado para o presente, salienta Rüsen,
descreve esta relação na junção dos diferentes atores a uma intersubjetividade temporal que
conecta os dois sistemas de valores em uma unidade normativa e obrigatória na própria
mudança temporal.3 Sendo assim, corrobora-se com Antoon De Baets, para quem os direitos
dos objetos estudados pelos historiadores determinariam, pelo menos em parte, os sistemas
posteriores da ética profissional dos historiadores. O conhecimento dos direitos dos vivos e
dos mortos, portanto, deveria proporcionar aos historiadores uma sólida infraestrutura para a
formulação de suas responsabilidades. Nesse sentido, De Baets aponta que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos poderia servir de base para uma aproximação desses
direitos, pois ela resume alguns deles. (Cf. DE BAETS, 2004: 130-139)
A atribuição desta intersubjetividade temporal, afirma Rüsen, é bastante
complexa quando tem o caráter criminal da herança. Isto pressupõe uma transferência
intergeracional de responsabilidade em uma subjetividade comum, através da separação da
culpa e da inocência. Quando recebemos a herança ética do passado, seja como
enriquecimento ou como carga, nos ocupamos com sua culpa e nos movemos através de suas
esperanças e receios. Para Rüsen, somente sob a condição de uma intersubjetividade temporal
essa transformação do passado teria a possibilidade da consolação ou da reconciliação. Com o
reconhecimento desta reflexão se abre uma teoria da história na qual a ética dos valores
históricos encerra uma filosofia da história como uma condição e possibilidade. Esta filosofia
da história subsiste na forma de uma antropologia das mudanças temporais, na qual mudança
e transformação respondem pela coesão da humanidade para cuja subjetividade interior e seu
dado aprisionamento de valor poderia nomear de humanidade. (RÜSEN, 2003: 70-72)

3
Essa expressão sugere uma relação de sentidos entre os seres humanos do passado e do presente. Deste modo,
expectativas, esperanças e angústias são transmitidas hereditariamente ao longo de gerações. Este ―nexo
intergeracional da orientação cultural representa, assim, um dos canais da intersubjetividade temporal. Em tal
nexo de sentido, os projetos de futuro que guiam o agir atual são conectados retrospectivamente ao passado
rememorado historicamente. Realiza-se com isso uma mediação entre os sentidos atribuídos pelos sujeitos do
passado ao seu agir e as intenções e planos de agir dos seres humanos do presente‖. (RÜSEN, 2003: 37-38)
Tradução de Arthur Assis.

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Esta transferência intergeracional de responsabilidade através da culpa e da
inocência pressupõe a relação entre a história e a justiça que se faz dela. A habilidade da
história para contribuir para a busca de justiça geralmente parece limitada ou mesmo
inexistente. A reconsideração do status (ontológico) da ―presença‖ do passado pode alterar a
relação entre os historiadores e o passado, tornando possível para a história contribuir mais
substancialmente para a busca por justiça, sendo que qualquer análise da ―presença‖ do
passado deveria ser combinada com uma critica do conceito de tempo histórico e suas
respectivas pressuposições metafísicas e compromissos ontológicos. Este conflito é
interpretado por Berber Bevernage como um antagonismo derivado de suas respectivas
ênfases na presença e na ausência, e com a (ir)reversibilidade dos eventos em questão. Essas
discussões pedem por uma melhor explicação entre o tempo da jurisdição – que
frequentemente assume um tempo reversível na qual o crime ainda está presente e disponível
para ser revertido, ou anulado, pela sentença – e o da história que, em contraste, faz uso de um
tempo fundamentalmente irreversível, e força os historiadores a reconhecerem as dimensões
das ―ausências do passado‖. O conceito de tempo da história desafia o da justiça, pois a
―retribuição‖ da justiça nunca pode ser rápida suficiente para inverter ou desfazer os danos
feitos, porque cada crime exibe uma dimensão de ausência. (Cf. BEVERNAGE, 2008: 150-
152)
Se, por um lado, essa discussão procura restaurar a injustiça história arriscando o
desacordo social, a desestabilização e um retorno da violência – é numerosa a defesa de
amnésia política, combinada a certo grau de perdão – por outro, objetiva um futuro
democrático à desvantagem das vítimas de um passado horrível. Aqui, o esquecimento
consciente frequentemente é defendido em nome da democracia e da emancipação, pois como
de certa forma corroboraria Rüsen, a lembrança e a punição do passado se tornam
subordinadas a uma política de futuro orientado. Uma alternativa razoável a este impasse,
apresentada por Bevernage, é a introdução de lembrança e de exposição da verdade como
formas alternativas de justiça, acompanhada por uma rejeição implícita quanto à
irreversibilidade das injustiças. Ao mesmo tempo, a ênfase na resistência de injustiça histórica
e na presença do passado é que permite comissões de verdade resistirem à amnésia e
impedirem o perdão, e a transformarem a lembrança e a verdade histórica em formas de
justiça. A persistência acentuada na resistência da injustiça histórica e a presença do

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aflingente passado adquirem uma posição central na procura por reparação.4 (Ibidem: 153-
155)
A antropologia de intersubjetividade temporal do agir humano na mudança do
tempo pode representar um elemento essencial de síntese de ambos sistemas de referência
moral discutidos por Bevernage – o da história e o da jurisdição.5 Aqui seria distinguida,
como dois lados da mesma moeda, a razão teórica e prática na ocupação da ciência da
história. (Cf. RÜSEN, 2003: 87) Nessa realização metódica, um código de ética para a
profissão do historiador é sugerido por De Baets, levando-se em conta a relação da dignidade
dos sujeitos dos estudos históricos. Um código deveria, segundo De Baets, conter uma sessão
das tarefas dos historiadores (pesquisa e ensino), uma sobre seus direitos (tanto direitos
universais como direitos dependentes de responsabilidade) e uma sobre suas
responsabilidades. As razões para tal preceito são sugeridas por De Baets, pois, segundo ele,
este código aumentaria a autonomia e a função autorregulatória de nossa profissão; criaria
claridade sobre suas funções para seus membros, para os estudantes de história, juízes,
potenciais pleiteantes, possuidores de dados ou fontes históricas, e para a sociedade em geral;
aumentaria a confiança dos outros em nosso trabalho. (Cf. DE BAETS, 2004: 158-159) Para o
autor, é nossa habilidade profissional que nos distingue de outros interessados no passado.
Isto criaria muitas responsabilidades, principalmente para nossos objetos de estudo.

***

Uma breve leitura dos textos apresentados no simpósio ―Encarando os maus usos
da história‖, organizado pelo Conselho da Europa no ano 1999, que procura esclarecer porque
e por quem a história poderia ser nocivamente usada, e quais as variedades de abusos e
distorções que poderiam ser cometidos por ela – como abusos pela negação de fatos

4
Quando discute esquecimento ativo, Paul Ricoeur sugere que o perdão requer um engajamento adicional no
―trabalho de recordação‖, que consiste em um tipo de esquecimento ativo que não se preocupa com os próprios
eventos, mas com a carga de culpa que paralisa a memória e, por extensão, a capacidade para uma orientação
criativa em direção ao futuro. Os que suportam a responsabilidade para os eventos que feriram a memória podem
pedir perdão e terão que encarar a possibilidade de recusa. Neste grau o perdão deve conhecer o imperdoável, a
dívida irredimível, e o erro irreparável. Todavia, a intenção do perdão não é extinguir a memória, mas é uma
forma de curá-la e de completar seu período de luto. (Cf. RICOEUR, 2006: 16-18)
5
A análise de Derrida, segundo Bevernage, ajuda a ver como ambos sistemas temporais estão engajados em uma
mesma lógica da presença que postula o passado ausente como a presença modificada de um passado presente,
postulando a inferioridade deste passado. Bevernage conclui que Derrida estava certo quando salientou o perigo
de desertar o passado e a imagem horrível de um tempo que se isola, anuncia o fim da história, e cancela a luta
por justiça histórica ou a adia eternamente. Somente reconhecendo a tirania do passado é que os historiadores
podem começar a unir o tempo da história e o da justiça. (Cf. BEVERNAGE, 2008: 164-167)

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históricos, por falsificação, fixação em um evento particular, omissão e ignorância, para
nomear apenas algumas possibilidades – incitou leituras para que essa proposta de trabalho
pudesse ser projetada.
No debate promovido pelo simpósio, chamou-se a atenção à análise dos possíveis
perigos da distorção na confusão de informações históricas. Isto coloca a questão de como
confrontar estes maus usos, estas irresponsabilidades do metié historiográfico. Para Laurent
Wirth, o papel de fiscalização não deve estar limitado ao mero monitoramento, mas é também
um papel de aconselhamento, assistência e vigilância, em que o que deve ser levado em conta
é o treinamento profissional dos historiadores. Isto é crucial para a manutenção de uma
conexão entre a pesquisa acadêmica e a história que é ensinada nas escolas. A pesquisa e o
ensino da história devem levar em conta que uma história plural é também uma história que
respeita as minorias e pode reconhecer suas contribuições. Entretanto, é crucial que tal
abordagem não guie a uma história que justapõe e exalta as histórias de comunidades
individuais. O perigo aqui é que podemos acabar em uma situação oposta à tolerância. A
história plural, e responsável, deve regular o objetivo de atingir concordância, habilitando
pessoas e comunidades diferentes a conseguirem se entender mutuamente para que possam
viver mais harmoniosamente.6 (Cf. WIRTH, 2000: 51-56)
Georg Iggers salienta que a produção de uma história exclusivamente designada a
confinar as pessoas em suas identidades nacionais poderia ser vista como uma fonte essencial
de abuso da história. Deste modo, Laurent Wirth sugere que uma história plural e tolerante, de
múltiplas identidades, do local ao universal, deve equipar os estudantes a se tornarem
cidadãos responsáveis em suas regiões e no mundo como um todo. A constituição de uma
história e uma identidade não seria alcançada em oposição a outras identidades, mas através
de um relacionamento complementar entre elas. Assim, a tentação de distorcer ou mal usar a
história seria correspondentemente reduzida. Neste sentido, determinado que os conflitos de
identidades normalmente envolvem distorções da história, é importante que reflitamos sobre o
que deveria ser feito para se confrontar tais abusos.

6
Para lidar com esta ideia, a dimensão social da identidade seria generalizada, pressupondo que todos
compartilham características básicas de humanidade. Ver: RÜSEN, Jörn. Towards a new idea of humankind –
unity and difference of cultures in the crossroads of our time. Working Papers n.2. Kulturwissenschaftliches
Institut, Essen; University of Witten/Herdecke; University of Duisburg-Essen. Essen, 2006. Citação autorizada
pelo autor; _____ Comparing cultures in intercultural communication. In. FUCHS, Eckhardt; STUCHTEY,
Benedikt. Across cultural borders: historiography in global perspective. Rowman&Littlefield, 2002; _____.
How to overcome ethnocentrism: approaches to a culture of recognition by history in the twenty-first century. In.
History and Theory. Theme Issue 43. Wesleyan University, 2004.

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***

A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem sido a base de muitas


codificações dos direitos humanos após 1945, e o sistema legal internacional está repleto de
acordos baseados nela. Inicialmente adotada ―como o ideal comum a ser atingido por todos os
povos e todas as nações‖, a Declaração exerce influência moral, política e legal. Ela tem
servido direta e indiretamente como um modelo para muitas constituições, leis e políticas que
protegem os direitos humanos fundamentais, e muitas de suas provisões têm sido
incorporadas ao direito internacional consuetudinário. Muitos corroboram que algumas
violações da Declaração são violações do direito internacional e poucos estados nacionais
rejeitaram explicitamente os princípios proclamados por ela, sendo que a Declaração constitui
uma parte fundamental da Carta Internacional dos Direitos Humanos (International Bill of
Human Rights). Ainda que a DUDH não se eleve completamente ao nível do direito
consuetudinário internacional, é impossível ignorar sua influência política e moral no
comportamento das relações internacionais. (HANNUM, 1998: 145-149)
O fato de que para certas situações estudadas por historiadores tenha sido
atribuído o status de violações de direitos humanos na DUDH, influencia as avaliações morais
dos mesmos. O Holocausto, assim como os massacres armênios, tem sido retroativamente
chamado de genocídio tomando como referência a adoção da Convenção do Genocídio de
1948. Também a Organização das Nações Unidas (ONU), em convenção realizada em 1973,
definiu o apartheid como um crime contra a humanidade; a Assembleia Geral da ONU
descreveu a ―limpeza étnica‖ como uma forma de genocídio em 1992; a Corte Criminal
Internacional considerou a servidão como crime contra a humanidade em 1998; uma
Conferência Mundial, patrocinada pela ONU, nomeou em 2001 a escravidão e o tráfico de
escravos crimes contra a humanidade. Designar tais rótulos a estes eventos altera seu status
legal e moral. Para violações mais remotas, os historiadores podem argumentar, e o fazem,
que rotulação retroativa é anacrônico. (Cf. DE BAETS, 2009b: 25)
Originalmente, o argumento de anacronismo se apoia no princípio de não-
retroatividade, incluso no artigo 11 da DUDH. Aplicado à nossa discussão, isto significa que,
por exemplo, não se deve chamar os crimes cometidos durante as Cruzadas, de genocídio ou
crimes contra a humanidade, pois estes conceitos eram inexistentes à época. Porém, não é
porque os conceitos não existiam na época que as realidades cobertas por eles não existiram.

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Em 1968, a ONU determinou que não se aplicam limites de tempo para se processar esses três
crimes capitais (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra), independente da
data de seu cometimento. Este princípio de imprescritibilidade tem lentamente se tornado
uma norma de lei criminal internacional, desaparecendo, entretanto, depois que o último
perpetrador tiver morrido. O impacto dessa determinação sobre avaliações morais sugere que
qualquer genocídio, crime contra a humanidade e de guerra cometidos no curso da história
poderiam, e talvez deveriam, ainda ser chamados assim. Desde 1966, juízes e historiadores,
ao formularem julgamentos legais e históricos, têm sido forçados a levar em consideração
esses princípios. Por um lado, isto cria melhores condições para o exercício do direito de
lembrar o passado; por outro, arrisca introduzir anacronismos. Uma solução apresentada por
De Baets a este problema é a de que, se os historiadores abdicam seu direito ao silêncio e
fazem avaliações morais, eles deveriam encontrar uma forma de resolver a tensão entre
anacronismo e imprescritibilidade, distinguindo os valores dos contemporâneos da época
estudada de seus próprios valores, bem como daqueles incorporados nos padrões de direitos
humanos. (Ibidem: 26-27)
A mesma DUDH que confere aos historiadores seus direitos, também os confere
àqueles estudados pelos historiadores. Consequentemente, a livre expressão dos historiadores
pode ser restrita se invadir a privacidade ou difamar seus sujeitos, ou se for restrita pela
limitação ao acesso dos historiadores à informação oficial por razões de segurança nacional.
Com relação aos direitos autorais, a Convenção de Berna relativa à proteção das obras
literárias e artísticas reconhece a necessidade de se alcançar um equilíbrio entre os direitos
dos autores e o interesse público no acesso à informação, educação, e pesquisa. Já o direito de
liberdade acadêmica, assim como o de liberdade de expressão, é dependente de dever: ele
protege os historiadores engajados na procura honesta pela verdade histórica na pesquisa e no
ensino. Se os historiadores, argumenta De Baets, têm direito ao silêncio, eles têm um direito
limitado ao silêncio com relação aos seus fatos. (Ibidem: 27-29)
Como membros de uma comunidade de profissionais, os historiadores têm, como
princípio, a responsabilidade coletiva de investigar o passado para além de seus períodos de
glória. Mesmo que comumente se diga que os historiadores deveriam somente investigar os
momentos de orgulho da sociedade, lhes deve ser exigido investigações de seus momentos de
vergonha. Deste modo, De Baets sugere que os historiadores deveriam aceitar um moderado

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dever de lembrar-se. 7 A conclusão dessa discussão, apresentada pelo autor, é de que não
existe nenhuma relação direta entre a promoção de valores humanísticos recomendados na
DUDH e a busca pela verdade histórica na pesquisa e na educação. É questionável, porém,
que exista uma relação indireta. Uma historiografia confiável, afirma De Baets, reflete uma
sociedade democrática, que incorpora valores humanísticos e constitui uma demonstração
prática de valores centrais à democracia. O mesmo vale para os valores da profissão histórica
– autonomia e responsabilização. O equilíbrio entre esses valores geraria confiança social na
profissão, porque o resultado desta – uma forma de verdade temporária, testada – substituiria
mitos históricos por interpretações mais plausíveis. (Ibidem: 32-33)

***

O perigo da imposição de julgamentos morais se reflete no presentismo da leitura


de nossos valores sobre o passado, o que é uma questão de transferência de significado moral.
Deste modo, a memória é parte e parcela de mitos nacionais, com o potencial de curar e
infeccionar feridas, desenvolver uma ética de cuidado ou abandono, e comprovar ou deferir
culpa. Fazendo seu trabalho, os historiadores são parte deste processo moral de testemunhar.
A análise da memória, como praticada pelos historiadores, é moral no sentido destes estarem
sobrecarregados com uma responsabilidade moral com respeito aos mortos. Nesse sentido,
George Cotkin sugere algo como uma ―Carta dos Direitos dos Mortos‖ (COTKIN, 2008: 294-
312). Todavia, se os mortos possuem direitos, quais seriam estes? – é a pergunta feita por De
Baets. Esta questão tem sua origem em uma palestra que De Baets ministrou no XIX
Congresso Internacional de Ciência Histórica, realizado em 2000, como parte de uma sessão
sobre os usos e abusos da história.
Neste âmbito de discussão, De Baets afirma que o primeiro direito humano de
pessoas falecidas é que elas devem ser tratadas com dignidade, como seres humanos
passados; ou, segundo o autor, antigos seres humanos, pessoas do passado, ou antigas
pessoas. Portanto, os mortos não são mais seres humanos (ou pessoas), mas ainda são
lembranças deles; são menos do que seres humanos, porém mais do que cadáveres. Visto que
os mortos não são seres humanos, eles não possuem direitos humanos, são incapazes de ter
necessidades, interesses, ou deveres, ou de fazer escolhas ou reclamações. Contudo, ainda que
os mortos não possuam direitos e deveres, não implica que os vivos não tenham deveres para
7
Segundo De Baets, ―moderado‖ porque é amenizado pela liberdade dos historiadores e pelo peso de exigências
sociais conflitantes.

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com eles, como o de cuidar de suas sepulturas ou não difamar, ou ainda preservar sua
memória; porquanto, merecem respeito porque possuem dignidade. Esta dignidade póstuma
implica um apelo para respeitar a humanidade passada dos mortos e constitui a fundação para
os deveres dos vivos. (Cf. DE BAETS, 2009a:112-119)
Algumas pesquisas antropológicas corroboram que os vivos, quase
8
universalmente, respeitam os mortos e acreditam que esses possuem dignidade. Em varias
condições, a Convenção de Genebra salienta que os restos humanos devem ser respeitados.
Adicionalmente, todos os países possuem elaborados regulamentos para enterros e cemitérios,
assegurando um tratamento digno dos restos humanos, explicável somente pela importância
da dignidade póstuma. A evidência desta é reforçada pelo fato de que os mortos possuem um
status especial entre os seres humanos, e por que os vivos conservam traços simbólicos da
humanidade e personalidade dos mortos. Uma pessoa não pode assassinar um cadáver, mas
pode violá-lo simbolicamente, e poucas sociedades estão preparadas para tolerar essa
mutilação. Devido a esta desproteção e vulnerabilidade dos mortos é que De Bates sugere a
necessidade da proteção pelos vivos. O prospecto de que, uma vez mortos, nós seremos
tratados com respeito e nossos desejos não serão negligenciados, também contribui para uma
atitude de respeito. De Baets conclui que os mortos possuem dignidade e, portanto, merecem
respeito e proteção, o que, por sua vez, constitui uma base plausível para atribuição de
deveres aos vivos, e não se pode imaginá-los sem o par de conceitos: dignidade póstuma e
respeito póstumo. (Ibidem: 119-121)
Essas questões levam à discussão de como seria possível fazer mal, ou cometer
injustiça, a alguém que há muito tempo não existe. Joan Callahan sugere que nossas intuições
com relação a danos e injustiças cometidos aos mortos não são convicções genuinamente
morais, mas os julgamentos se fazem por que se pensa nos mortos como eles eram antes da
morte. Portanto, o tópico de Callahan, de que todos os argumentos para causar dano ou
injustiçar os mortos devem falhar, ocorre porque simplesmente não há sujeito para sofrer os
danos e injustiças. Assim sendo, não haveria razão para se assegurar a ideia de que se pode
fazer mal, ou cometer injustiça, aos mortos, e a convicção de que os mortos podem ser
prejudicados ou injustiçados é impedida de ser uma convicção genuinamente moral.
Entretanto, dado o forte conteúdo emotivo de que os mortos são lesados e injustiçados, e dado

8
Antoon De Baets aponta as seguintes pesquisas antropológicas: Tristes tropiques de Claude Lévi-Strauss; How
others die: reflections on the anthropology of death, de Johannes Fabian; e Dancing on the grave: encounters
with death (sobre a universalidade emocional da morte) de Nigel Barley.

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que esses sentimentos são compartilhados, que não parecem repousar no fato de que
pensamos nos mortos como eles foram antes da morte, parece óbvio se levar em conta
intuições de que os mortos são acometidos de danos e injustiças. (Cf. CALLAHAN, 1987:
347)
Procurando uma classe especial de injustiças cometidas aos mortos, Callahan
aponta como tais as que envolvem o ignorar provisões de vontades e testamentos, as que
quebram com premissas, como as violações dos expressados desejos dos mortos. Portanto,
Callahan sugere que nosso sentido de dever – com relação ao desejo dos mortos – está
profundamente atado a outros valores que são capturados nas vontades, testamentos e outros
requerimentos póstumos. Partindo destas disposições, parece plausível corroborar o fato de se
ter obrigações morais com os mortos. Se a manutenção dos danos e injustiças aos mortos em
nossas instituições é a forma mais efetiva de assegurar este conforto (bem como para
assegurar respeito e para dar os direitos aos sobreviventes e às causas protegidas), então
mantê-los é justificado. (Ibidem: 349-352)

***

Percebe-se, assim, que a personalidade moral implica no fato de que esta pode ser
tratada como um objeto de reflexão consciente, podendo transcender o tempo e o lugar de sua
vida biológica; e implica no fato de que as pessoas podem e defendem contratos formais,
como testamentos, e contratos informais, como promessas, que podem ser redigidos para
proteger os interesses dos vivos, enquanto vivos, e que afetam eventos além de sua morte –
ambos deliberado e pessoal, abstrato e hipotético. Com isso, nota-se que pelos vivos terem
expectativas e preocupações póstumas, eles também possuem um interesse em respeitar os
desejos dos mortos. Ou seja, é no interesse dos vivos que se mantém as instituições estáveis e
justas que asseguram os desejos expressados postumamente, sendo os interesses post mortem
dos vivos, enquanto vivos, protegidos pelas suas resoluções para respeitar o quase interesse
dos falecidos. Os vivos executam isso pela contribuição ao senso moral, pela manutenção de
uma comunidade moral, e suportando instituições justas e estáveis. Portanto, suportam as
próprias expectativas de que podem fazer planos nesta base. Se eles violam o quase interesse
dos mortos, eles diminuem suas próprias antecipações vivas de favorecimento, afetando as
condições da vida além do tempo de suas próprias vidas. Por este argumento, Partridge

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conclui que deveríamos ser moralmente responsáveis a dar aos mortos o que lhes é devido.
(Cf. PARTRIDGE, 1981: 243-264)
Contudo, De Baets adverte que quando os deveres dos vivos e dos mortos
conflitam, o dos vivos precede (por possuírem um status moral mais elevado do que os
mortos) – mas somente após a realização de um teste na qual esses direitos e deveres dos
vivos são cuidadosamente avaliados. Tal processo, se equilibrado, deveria basear-se em
princípios de transparência e prestação de conta, ou responsabilização (dessas ações tomadas)
e consentimento livre, priorizado e informado (dos mortos quando ainda vivos ou de seus
representantes). O equilíbrio, entretanto, não é entre dois interesses de igual importância; isto
deveria ser realizado com uma suposição em favor dos vivos. (DE BAETS, 2009: 123-124)
A tese de que a privacidade e a reputação não se estendem além da morte só se
sustenta quando a privacidade e a reputação são compreendidas como direitos, e não quando
os direitos são vistos como características. Portanto, a privacidade e a reputação póstumas
existem: elas são características e não direitos dos mortos. De Baets sublinha que esta área é
―judicializada‖, mas, talvez, uma exceção poderia ser feita para as preocupações científicas.
Segundo o autor, tem havido, em décadas recentes, um efervescente debate entre os povos
indígenas e os arqueólogos sobre a questão de se a estes últimos são permitidos escavar e
estudar os bens dos ancestrais indígenas sem a permissão deles. Como resultado dessa
discussão, os arqueólogos cifraram uma conduta responsável nesta área, mais bem servida por
um código de ética do que pela lei, porque o uso da lei conduz, frequentemente, a abusos
conspícuos neste domínio. Em suma, De Baets conclui que todos os deveres dos vivos
expressam a ideia de que a privacidade póstuma e a reputação póstuma não são nada mais do
que dimensões empíricas da dignidade póstuma dos mortos. (Ibidem: 124-126)
Para Antoon De Baets, se a DUDH oferece as ferramentas para manejar a
injustiça histórica recente, ela não o faz para a injustiça histórica remota. Quando De Baets
revisa os princípios da ONU de 2005 no domínio de reparo de injustiça histórica, as únicas
medidas que ele encontra mencionadas, que parecem aplicáveis aos mortos remotos, são
medidas de satisfação, de reparo simbólico, tal como ressepultamento solene e reabilitação
social e legal, e política póstuma. Entretanto, em um estudo sobre a impunidade de
perpetradores de violações de direitos econômicos, sociais e culturais, a Comissão de Direitos
Humanos da ONU explorou quatro práticas de injustiça históricas: apartheid, escravidão,

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pilhagem de herança cultural e colonização. Todas estas práticas históricas caem na categoria
de crimes contra a humanidade. (DE BAETS, 2009b: 37)
O que desencoraja a ação da ONU em nome das vítimas de injustiça histórica
remota é a distância no tempo, e o que encoraja é porque o retrospecto às injustiças parecem
ser crimes contra a humanidade. Se os fatos do passado não podem ser alterados, pois as
partes envolvidas em injustiças já morreram, esse problema poderia ser resolvido, segundo De
Baets, com o direito à verdade como um direito imprescritível. Logo, lidar com injustiça
remota histórica é uma missão não para juízes, mas para historiadores. Estes têm o poder de
reabrir casos e desafiar a amnésia e mitos históricos predominantes. Desnecessário dizer,
salienta De Baets, que pesquisar injustiça histórica é delicado, já que pode resultar em muita
recordação ou em esquecimento. (Ibidem: 37-38)

***

Para lidar com os problemas de impunidade e de reparo para as vítimas, novos


instrumentos começaram a ser discutidos. Desta forma, um direito uma vez chamado de
―direito a saber‖ e mais recentemente renomeado ―o direito à verdade‖ emergiu. Ele significa
que todos têm o direito de saber a verdade sobre os precedentes abusos de direitos humanos,
sejam vítimas sobreviventes e parentes de vítimas falecidas, sejam outros indivíduos e a
sociedade. É tanto um direito para alcançar alguma forma de reparo individual, como para
prevenir os mesmos abusos no futuro e para obter acesso à informação essencial à
democracia. O direito à verdade é imprescritível, inalienável, e irrevogável, ele não pode ser
nunca tirado de ninguém sob nenhuma circunstância por ser um direito procedural, um
direito autônomo, necessário para proteger outros direitos humanos. Como o habeas corpus,
ele surge após a violação dos direitos humanos; ele é violado quando não é fornecida a
informação relacionada às primeiras violações. O direito à verdade é importante aos
historiadores porque, de certa forma, o que é chamado de ―direito à verdade‖ no direito
internacional, nada mais é do que um componente essencial do ―direito à verdade histórica‖
ou do ―direito à história‖. (Ibidem: 35-36)
Yasmin Naqvi nota que o direito à verdade se entrelaçaria com amplos objetivos
da lei criminal internacional, incluindo o de restauração e manutenção da paz, facilitando
processos de reconciliação, contribuindo para a erradicação da impunidade, reconstruindo
identidades nacionais e estabelecendo um registro histórico. Naqvi também afirma que o

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direito à verdade assegura a investigação apropriada de crimes e transparência na forma de
procedimentos de hábeas corpus. Estas considerações, segundo Naqvi, fizeram com que a
Comissão dos Direitos Humanos (CDH) da ONU adotasse a resolução 2005/66, que
―reconhece a importância de respeitar e assegurar o direito à verdade para contribuir para o
término da impunidade e promover e proteger os direitos humanos‖. Neste sentido, ocorre um
esforço para determinar se este direito é real – identificável, esclarecedor de parâmetros e algo
que possa ser implementado – ou uma peça de ficção legal, uma narrativa usada para
preencher o vazio dos sistemas normativos. (Cf. NAQVI, 2006: 247-262)
Entre outras coisas, tal direito permitiria à dignidade ser restaurada e forneceria
recurso e reparação para violações de seus direitos. Portanto, o direito à verdade tem sido
salvaguardado contra a impunidade, sendo usado para contestar a validade de leis de anistia
obscurecida, protegendo perpetuadores de violações dos direitos humanos, bem como
encorajando um governo mais transparente e responsável. Como o direito à verdade não é
mantido em nenhum instrumento legal universal, ele costuma ser caracterizado sob lei
consuetudinária. A Comissão dos Direitos Humanos da ONU e o corpo monitorador do Pacto
Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) de 1966, reconsideraram o ―direito de
saber‖ como uma forma de banir, ou prevenir, a ocorrência de tortura psicológica em famílias
de vitimas de desaparecimentos forçados ou execuções secretas. Em nível regional, a Corte
Europeia dos Direitos Humanos também inferiu o direito à verdade como parte do direito de
ser livre de tortura ou maus tratos, do direito de um recurso efetivo, de uma investigação
efetiva e de ser informado dos resultados (Idem).
O objetivo de Naqvi é mostrar que a maioria dos instrumentos constitutivos que
fundamentam esse direito se referem à necessidade das vítimas, seus parentes e à sociedade,
de saberem a verdade para facilitar o processo de reconciliação, para contribuir para a luta
contra a impunidade, para reinstalar ou fortalecer a democracia; e para prevenir contra a
repetição de tais eventos. Outro instrumento constitutivo do direito à verdade se refere à
conveniência de tal aproximação para se alcançar determinadas metas. Enquanto a decisão
para estabelecer uma comissão de verdade pode ser uma questão decidida em nível nacional,
Naqvi sugere que poderia haver um princípio universal para requerer dos Estados a
preservação dos arquivos que permitem a sociedade exercerem seus direitos de saberem sobre
repressões passadas. Contudo, Naqvi adverte que quando a anistia exclui a possibilidade de

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trazer para julgamento os perpetuadores de sérias violências dos direitos humanos, um dos
mais comuns meios implementados de descobrir a verdade é frustrado9 (Idem).
Para Jonathan Gorman, os historiadores têm uma responsabilidade em dizer a
verdade, objetada pelo fato de que a responsabilidade em dizê-la é compartilhada por todos,
não sendo, portanto, obrigação apenas dos historiadores, enquanto profissionais. Entretanto,
salienta Gorman, essa objeção não é sólida, pois o erro, assim como o direito à verdade, varia
com a audiência que os historiadores têm com seu público. Sendo assim, os historiadores
devem a verdade histórica a todos que fazem parte de sua audiência. Quando se promulga um
conhecimento histórico está-se ―oferecendo‖ a verdade histórica aos leitores, que esperam
recebê-la pelos historiadores, o que dá aos leitores um direito mínimo, mas suficiente, de
esperarem a verdade. (Cf. GORMAN, 2004: 111-112)
A verdade que os historiadores devem a seu público, todavia, sugere que não pode
haver responsabilização externa sem autonomia interna, e é aqui que De Baets discute a
função de um código de ética profissional que, segundo ele, se adotado pelos profissionais de
história, seria tanto uma forma de responsabilização como garantia de autonomia profissional.
O autor sugere as seguintes razões para a adoção de um código de ética: ela é o foco de um
cuidado moral e debate entre historiadores, formulando seus direitos e deveres; é um
instrumento para ensinar o cerne da profissão aos estudantes, para detectar usos
irresponsáveis e abusos da história e para avaliar e julgar conflitos, ajudando a reduzir e
prevenir usos irresponsáveis e abusos da história; ela esclarece as fundações e limites da
profissão histórica para os que não são historiadores, ajudando a proteger os historiadores
contra constrangimentos e aumentando a autonomia, a transparência e a responsabilização da
profissão histórica, pressupondo um aumento da confiança do público na profissão do
historiador e na compreensão histórica. (DE BAETS, 2009a: 187-188)
Partindo desta justificativa, De Baets afirma que seu código de ética resulta das
advertências do artigo 22 da Recomendação Relativa à Condição do Corpo Docente do
Ensino Superior (Recommendation Concerning the Status of Higher-Education Teaching

9
De outro modo, as anistias atadas a obrigações de divulgar informações sobre violações, não somente
permitem a verdade de ser dita, mas são facilitadas por este processo. Estes tipos de ―anistias responsáveis‖
podem ser consideradas válida e reconhecidas sob a lei internacional, que adiciona influência à noção de que o
direito à verdade tem uma valor legal. Ao mesmo tempo, uma des-legitimação de qualquer anistia para crimes
internacionais está lentamente fechando a janela para a busca da verdade. (Cf. NAQVI, 2006: 266-267)

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Personnel)10, de 1997, da UNESCO e do artigo 1, de 2005, da Constituição do Comitê
Internacional de Ciência Histórica. 11 A reflexão sobre tais advertências, e o impacto da
DUDH e seus dois tratados sobre o estudo da história leva De Baets a concluir que DUDH
contém uma visão atemporal (ageless) da história, condenando atrocidades e ditadores
passados e defendendo uma sociedade democrática.
No que se refere ao impacto sobre os historiadores, ela é uma fonte de direitos de
liberdade de expressão e informação, de encontrar e fundar associações, de propriedade
intelectual e liberdade acadêmica; ela afirma que os historiadores têm um direito ao silêncio –
absoluto para opiniões e limitado para fatos (se feitas avaliações morais retroativas, deve-se
resolver a tensão entre anacronismo e imprescritibilidade). Ela é uma fonte indireta dos
deveres de produzir conhecimento especializado sobre o passado, de disseminá-lo e ensiná-lo,
sendo, porém, muda sobre o dever de dizer a verdade. Ela suporta a tese de que todos têm um
direito à memória, mas se opõe à de um dever de lembrar-se; fornece restrições nos deveres
dos historiadores porque estes podem conflitar com seus direitos e vice-versa, e porque ter
deveres os autoriza a exigir autonomia da sociedade. A DUDH se aplica aos vivos, mas não
aos mortos; apesar disto, os mortos possuem dignidade póstuma, sendo a Declaração fonte de
inspiração para nossos deveres para com eles. A Declaração oferece liderança para lidar com
injustiça histórica recente e alguns de seus artigos suportam o direito à verdade, o qual nada
mais é do que um direito à história. A DUDH oferece pouca direção para lidar com injustiça
histórica remota; entretanto, o direito à verdade é um direito imprescritível da sociedade, e o
conhecimento oferecido pelos historiadores sobre o passado pode ter um efeito reparador por
si só. (DE BAETS, 2009b: 41-42)
Vê-se, destarte, que o potencial impacto da DUDH é profundo. A leitura que dela
faz De Baets demonstra que dela fluem vários princípios éticos básicos que guiam a profissão
de historiador em seus direitos e deveres. Se a Declaração Universal dos Direitos Humanos é

10
Artigo 22 da Recomendação Relativa a Condição do Corpo Docente do Ensino Superior: ―Instituições de
educação superior (...) deveriam se responsabilizar pela (...) criação, através do processo colegial e(ou) através
de negociações com organizações que representam o corpo docente da educação superior, consistente com os
princípios de liberdade acadêmica e liberdade de expressão, de declarações ou códigos de ética para guiar o
corpo docente da educação superior no seu ensino, academia, pesquisa e trabalho de extensão‖. Disponível no
site das Nações Unidas. http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=13144&URL_DO=DO_TOPIC&URL_
SECTION=201.html. Acesso em 26 de janeiro de 2010. Tradução livre do autor.
11
Artigo 1 da Constituição do Comitê Internacional de Ciência Histórica: ―deve defender a liberdade de
pensamento e expressão no campo da pesquisa e ensino histórico, e se opões aos maus usos da história e deve
usar todos os meios a sua disposição para garantir a conduta profissional ética de seus membros‖. Disponível no
site do Comitê Internacional de Ciência Histórica: <http://www.cish.org/GB/Presentation/Constitution.htm>.
Acesso em 26 de janeiro de 2010. Tradução livre do autor.

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uma ―Magna Carta de todos os homens em todos os lugares‖, como mantinha Eleanor
Roosevelt, é, também, com certeza para todos os historiadores (Idem).
Para Georg Iggers, não há investigação histórica não ideológica ou livre de
valores. A história tem sido, por repetidas vezes, usada e mal usada para ajudar a criar
memórias coletivas tanto a serviço de um nacionalismo agressivo, de uma intolerância
religiosa e de um imperialismo cultural, bem como a serviço de particularismos étnicos,
religiosos ou feminismos radicais. Os historiadores não podem evitar as perspectivas
orientadoras de valor que informam suas questões, mas devem fazê-las explícitas e evitar
distorções. O fato de que valores entram em todo julgamento histórico não quer dizer que
todos os julgamentos possuem os mesmos valores de verdade ou sejam igualmente falsos.
(Cf. IGGERS, 1999: 21)

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HISTÓRIA DA CULTURA INTELECTUAL: POSSIBILIDADES TEÓRICAS.

Pablo Spíndola

Resumo: O trabalho propõe investigar as possibilidades teóricas da história da cultura


intelectual, que pode ser entendida como a pesquisa sobre as condições de produção de uma
idéia, levando em consideração os componentes internos e externos desta. Os componentes
internos analisam a argumentação do autor, já os externos se debruçam sobre os contextos de
produção, a recepção da obra e os diálogos desse autor com os demais. Nesse sentido, será
buscado um diálogo com autores que trataram da temática, mas, sobretudo, que fizeram
reflexões teóricas. Os autores são Claude Lefort, no livro As formas da história; J. G. A.
Pocock em Linguagens do ideário político; Carlos Altamiro no artigo Idéias para um
programa de história intelectual; François Dosse em outro artigo intitulado Da história das
idéias à história intelectua;l e Richard Tuck em História do pensamento político. O objetivo
é perceber como esses autores resolveram ou propuseram questões para o estudo da história,
pois mesmo não tendo tratado da história da cultura intelectual, eles podem ter suas obras
tomadas como uma contribuição ao estudo desta. Com isso, é aberta a possibilidade de tomar
como objeto de análise autores, textos e teorias ao associar a historicidade de uma obra com a
discussão de suas apropriações.

Palavras-chave: teoria da história; história da cultura intelectual; metodologia.

Abstract: The paper propose investigate the theorical possibilities of the cultural intelectual
history that suposes the research about the conditions of production of one Idea considering
the its internal and external components. The internals components analysis the author speech
while the external ones analysis the contexts of production, the reception of the work and the
dialoges of that autor with another ones. In this way we`ll seek a conversation with authors
that studies this theme, mainle that ones that made theorical refletions. This authors are
Claude Lefort in his book As formas da história; J. G. A. Pocock in Linguagens do ideário
político; Carlos Altamiro in the paper Idéias para um programa de história intelectual; and
Richard Tuck in História do pensamento político. The objective is realize as this authors
resolve or propose questions for the studies of history, in spite of his approach not be in
intelectual culture history, the works of them can be taked like a contribution to the studie of
this kind of history. So, the possibilities of make analysis about authors, texts and theories
associating the historical context of an work with the discussion of yours appropriations are
open.

Key-words: History theory; cultural intelectual history; metodology.

Mestrando do programa de pós-graduação em História Social da USP, bolsista CNPq. Contato com o autor:
phst@usp.br

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Ao pensar o passado como um mosaico, muitas são as possibilidade de sua
montagem, um bom número de artefatos podem estabelecer essa composição, dentre eles as
ideias. A história da cultura intelectual estabelece as ideias como documentos, porém leva em
consideração os debates levantados pela historia cultural, no sentido de se compreender as
ideias dentro de uma historicidade, buscando, com isso, entender a relação de uma ideia com
outra, assim como em que temporalidade esta foi inserida. Não se trata de investigar a ideia
pela ideia, seu relacionamento com as demais, modelo mais próximo da filosofia; assim como
não se trata de estudar o contexto em que essas ideias estão inseridas e explicá-las e justificá-
las por isso. Nem ideias desencarnadas, sem historicidade: nem uma contextualização que
serve a tudo. O caminho a ser adotado por esse modelo é mais modesto, no sentido de
perceber que não é possível entender um sem o outro, porém há implicações para isso, estudar
a temporalidade das ideias requer um diálogo, maior com a filosofia assim como uma visão
mais abrangente do contexto histórico.
Esse caminho metodológico está associado às questões levantadas durante o
trabalho de pesquisa, questões que o pesquisador leva ao seu objeto, assim como as que o
objeto suscita ao pesquisador. Não se trata, portanto, de um modelo pronto e acabado a ser
empregado a todo custo durante a pesquisa. Nem tão pouco, uma forma de fazer história
inédita ou novidadesca, pelo contrário, podem ser constatadas algumas incursões sob essa
batuta em história e em outras áreas. Além disso, áreas como ciência política, sociologia,
linguística, teoria da história da arte, para citar algumas, podem ser tomadas para realizar
aproximações, sem o pudor de estar corrompendo a práxis historiográfica.
Outra questão a ser levantada é a interferência do próprio historiador da cultura
intelectual, ou seja, como lidar com as próprias ideias e, então, estudar as ideias do passado. A
premissa da imparcialidade, além de ingênua, é impossível. Como antídoto para minimizar o
impacto das ideias do historiador é importante evidenciar o seu ponto de partida, sendo esta
uma maneira eficaz por deixa que o interlocutor localize as interferências do pesquisador e
escolha se deve segui-las ou não.
Essa necessidade de evidenciar os caminhos adotados na escrita não é recente, ao
menos entre os historiadores. Michel de Certeau explica que essa preocupação advém da
relação que o historiador tem com o seu tempo, pois como lembra: ―o discurso, hoje, não
pode ser desligado de sua produção, tampouco o pode ser a práxis política, econômica ou
religiosa, que muda as sociedades e que, num momento dado, torna possível tal ou qual tipo

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de compreensão científica‖ (CERTEAU, 2002: 41). Demonstrar o lugar de que se fala é
mostrar as escolhas feitas na busca pela compreensão. O passado, na sua inacessibilidade
imediata, é construído como uma organização de unidades de sentido.
Para não incorrer na crítica feita por Certeau, uma definição torna-se salutar: ―a
história será encarada como um texto que organiza unidades de sentido e nelas opera
transformações cujas regras são determináveis‖ (Ibidem: 51). A determinação destas regras
implica os critérios de validação para o meio social em quem elas são escritas. O corpo social
que legitima tal ou qual discurso como sendo integrante de tal ou qual categoria é o próprio,
ou seja, historiadores escrevem amparados numa legitimidade composta pelos próprios
historiadores. Porém, isso não é exclusividade deles, assim como também não é o fato de
estarem ancorados em concepções nem sempre formuladas em suas respectivas áreas do
conhecimento. O resultado desse acordo de legitimação igualmente estabelece e/ou guia o
padrão do limite de ―dizibilidade‖ dos discursos e com isso indica os limites do que pode ser
tomado como fonte ou não. Daí a importância das escolhas, pois ―da reunião dos documentos
à redação do livro, a prática histórica é inteiramente relativa à estrutura da sociedade‖
(Ibidem: 74).
O começo da relação entre a importância do lugar de que se fala com o historiar 1 é
dado pelo gesto que, provavelmente, deu origem à pesquisa histórica, ou seja, o ato de
selecionar. Ao selecionar e depois reunir em determinados grupos de informações,
transformando essas informações em documentos e, assim, redistribuir de outra maneira esse
conhecimento, o historiador produz. A mudança de estatuto do documento ao ser manuseado
é, em certo sentido, uma invenção. Pois como lembra o professor Durval Muniz Albuquerque
Jr., o fazer histórico é um inquérito estabelecido pelo interlocutor que analisa no intuito de
reorganizar as fontes pesquisadas: ―O que se chama de evidência é fruto das perguntas que se
fazem ao documento e ao fato de que, ao serem problematizados pelo historiador,
transformam-se, em larga medida, em sua criação‖ (ALBUQUERQUE Jr, 2007: 63). A
história é concebida como uma construção narrativa, derivada das fontes arquivísticas, orais,
textuais e literárias, as quais servirão para esculpir a obra do historiador.

1
O termo historiar está no dicionário como verbo com três acepções: ato de fazer o relato histórico de; narrar,
contar; embelezar com ornatos; enfeitar. Dessa forma, entende-se aqui o conceito de historiar como o exercício
teórico-metodológico que o historiador realiza ao selecionar seus arcabouços intelectuais. Isto desde o início da
pesquisa histórica até os fins de sua redação, ou seja, o próprio fazer histórico, levando-se em conta o
emaranhado temporal no qual ele está inserido. Tomar-se-á essa definição como ponto pacífico, pois o
desenvolvimento dela já seria por si só um novo estudo a ser realizado em outro momento.

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O historiador é um tecelão que trabalha com muitos retalhos de tempo e que está
produzindo inserido em um determinado lugar, e a forma como ele une estes pedaços indica
várias temporalidades. ―Mais do que explicarmos os fatos, interpretá-los, devemos seguir suas
linhas de constituição, o rendilhado de lutas, experiências e falas que deram origem ao seu
desenho, atentos para os silêncios que são incontornáveis, mas são também elementos de sua
tessitura‖ (Ibidem: 153).
Cabe agora pensar sobre este tipo específico de pensamento sobre o passado, a
história da cultura intelectual. As definições não são unívocas, nem mesmo ponto pacífico,
existe uma longa tradição de estudos nesse sentido, mais comum em língua inglesa e
associados à filosofia e à política (ALTAMIRANO, 2007: 09). Como exemplo, o historiador
estadunidense Carl E. Schorske2 apresenta uma definição mais ampla e significativa sobre
história intelectual:

O historiador procura situar e interpretar temporalmente o artefato, num


campo onde se cruzam duas linhas. Uma é vertical, ou diacrônica, com a
qual ele estabelece a relação de um texto ou um sistema de pensamento com
expressões anteriores no mesmo ramo de atividade cultural (pintura política,
etc.). A outra é horizontal, ou sincrônica; com ela, o historiador avalia a
relação do conteúdo do objeto intelectual com as outras coisas que vêm
surgindo, simultaneamente, em outros ramos ou aspectos da cultura.
(SCHORSKE, 1988: 17).

Esta concepção de história intelectual entende o objeto como sendo uma junção de duas
especificidades. Numa são estabelecidas as relações com fatores externos ao texto (atividade
cultural) e na outra o conteúdo do texto é tomado como objeto, analisando seus argumentos,
constituindo uma observação dos fatores internos.
Carlos Altamirano defende que a história intelectual ―privilegia certa classe de
fatos – em primeiro lugar, os fatos do discurso – porque eles dão acesso a uma decifração da
história que não pode ser obtida por outros meios e porque proporcionam pontos de
observação únicos sobre o passado‖ (ALTAMIRANO, 2007: 11). Ele entende que essa classe
de fatos não deve pender para um dos lados dessa relação, seja interna ou externa. O autor

2
Carl E. Schorske é referido em três textos que são: FALCON, Francisco. História das ideias. In: CARDOSO,
Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia, 1997.
CHARTIER, Roger. História intelectual e história das mentalidades. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia:
a história entre incertezas e inquietude. 2002.DOSSE, François. Da História das ideias à História intelectual. In:
DOSSE, François. História e ciências sociais. 2004.

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alerta que não é possível estabelecer o sentido de um texto sem levar a pesquisa nessas duas
abordagens:

Contudo, para estabelecer o sentido intelectual dos textos (ou os sentidos,


caso se prefira) não basta vinculá-los ao campo da ação ou, como se costuma
dizer, ao seu contexto. Associá-los a seu ―exterior‖, as suas condições
pragmáticas, contribui sem dúvida para a sua compreensão, mas não evita o
trabalho de leitura interna ou da correspondente interpretação, mesmo se os
considerarmos documentos da História. (Ibidem: 14).

Interessa notar que tanto Carl E. Schorske, como Carlos Altamirano, estão interessados em
fazer um tipo de conciliação entre os argumentos internos e externos do texto. A História
intelectual preconiza, assim,

uma mistura multidimensional onde utiliza ao mesmo tempo a lógica própria


das ideias, a da vida intelectual e a política cultural, considerando portanto
essa história não uma área a parte, mas o componente de uma história total
das formas do pensamento e de suas práticas. (DOSSE, 2004: 297).

Entretanto, o caminho percorrido para se chegar a estas formas de definição, ou mesmo estes
parâmetros, não é simples e direto.
O conceito de história intelectual está associado diretamente ao de história das
ideias, que em muitos casos são usados como similares. Também existe uma certa confusão
no que ser refere a estes dois conceitos e ao de história cultural. Para se perceber isso é
possível consultar três exemplos de autores que escreveram sobre o assunto, visando elaborar
distinções, explicações e propor novas abordagens. São eles: Francisco Falcon no texto
História das ideias; Roger Chartier em História intelectual e história das mentalidades; e
François Dosse no Da História das ideias à História intelectual.
A escolha destes autores não foi aleatória. O texto de Francisco Falcon tem um
viés de divulgação e mapeamento no Brasil da história das ideias. O texto de Roger Chartier,
por sua vez, investiga porque a história intelectual tem uma recepção diferenciada na França.
O terceiro exemplo, François Dosse, além de trazer um apanhado do percurso da história
intelectual, propõe alternativas para um debate da prática desta. Sendo assim, deter-se-á mais
pormenorizadamente em cada um desses autores e suas contribuições.
O primeiro exemplo, do professor Francisco Falcon, está na coletânea temática –
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia – e é intitulado História das ideias. Ele

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inicia tentando explicar as diferenças conceituais entre história das ideias, história intelectual
e história da cultura. Essa é uma confusão comum e de difícil decifração. Segundo ele, deve-
se levar em consideração os componentes geográficos, pois de acordo com a localização de
origem, as expressões supracitadas podem significar a mesma coisa, podem ser
completamente diferentes, ou ainda terem seus significados alternados.
Na tentativa de minimizar essas confusões, Falcon cita autores como Robert
Darnton, Roger Chartier (que será abordado dentro em breve) e Leonard Kriegger, sendo que
este último apresenta distinções terminológicas importantes sobre o tema. As diferenças, para
Kriegger, estão relacionadas ao conteúdo e ao método, pois a história das ideias

remete a textos nos quais os conceitos articulados constituem os agentes


históricos primários, vindo a seguir as pessoas dos portadores desses
conceitos, enquanto as chamadas relações externas são entendidas como
simples condições de existência das ideias propriamente ditas. (FALCON In:
CARDOSO & VAIFAS, 1997: 93).

Assim sendo, este campo de pesquisa limítrofe poderia/faz parte do departamento de filosofia,
não como campo de estudo, mas como objeto. Já a história intelectual ―remete a textos bem
mais abrangentes, uma vez que ela inclui as crenças não-articuladas, opiniões amorfas,
suposições não-ditas, além, é claro, das ideias formalizadas‖ (Idem). A história intelectual está
voltada também à articulação dos argumentos com as suas condições externas.
Francisco Falcon faz uma divisão por períodos para estudar a história das ideias
no século XX. No primeiro período, os debates giravam em torno do problema da
consciência, o da natureza e o papel do inconsciente; os significados complexos das noções de
―tempo‖ e ―duração‖; as especificidades reais do conhecimento na esfera das ―ciências do
espírito‖ ou ciências humanas e seus problemas para a teoria da ciência; a introdução de
novos conceitos como ―representação coletiva‖, ―mitos políticos‖, ―derivações‖, ―elites
políticas‖, ―visões de mundo‖, ―espírito de época‖ (Ibidem: 104). Todos estes problemas
gravitavam sobre a égide da história das ideias.
No segundo momento, a forma de abordagem muda e é subdividida em quatro
grandes modelos: o historicismo; o marxismo; a École des Annales e a história das ideias; e a
história das ideias Norte-Americana: da New History de J. H. Robinson à History of Ideas de
Arthur Lovejoy. Não se pretende entrar nos meandros dessa divisão, mas cabe notar os
critérios de ordenação por separação geográfica: o historicismo alemão; o marxismo oriental

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(principalmente russo) e ocidental (os formados pelos soviéticos); a forma francesa (École des
Annales); e a forma estadunidense/inglesa (New History, History of Ideas).
O terceiro período que vai das décadas de 60 e 70 do século XX até os nos 90,
ressalta uma geração que seria herdeira teórica das divisões anteriores, mas que não segue
exatamente as mesmas referências historiográficas. Na Alemanha, os debates migram para a
história dos conceitos, a exemplo de Reinhart Koselleck e Gadamer. Entre os marxistas, os
nomes relacionados são os trabalhos da New Left, como Eric Hobsbawm, Edward Thompson,
Perry Anderson. No caso dos Estados Unidos e Grã-Bretanha acontece o New Intellectual
History, com autores como J. G. A. Pocock e Quentin Skiner. Na França, entretanto, há uma
fragmentação maior, pois a história das mentalidades (nome que recebeu lá) é associada à
história cultural. Além disso, outros autores propõem leituras que não são associadas a esta
forma de história das ideias, a exemplo de Paul Ricoeur, Michel Foucault, Michel de Certeau,
Roger Chartier, Pierre Bourdieu, Paul Veyne. Todavia, todos eles trabalham com ideias e suas
relações com o tempo (Ibidem: 113-120).
Falcon recorre novamente a Kriegger e toma emprestado sua tipologia repartida
em grupos: a) os sócio-intelectuais, que identificam as ideias e atitudes como produtos de uma
função social distinta, reconhecendo uma certa autonomia ao papel histórico das ideias e a
necessidade de métodos históricos específicos para a sua compreensão, sem que isso
signifique, contudo, abordar as ideias somente como ideias (Ibidem: 117-119); b) os que
justapõem ideias a algum tipo de contextualização, ou seja, ideias e circunstâncias
comportamentais em dois níveis autônomos da realidade histórica, cujas relações são o
problema que o historiador deve resolver (Idem); c) os ―internalistas‖ que não se interessam
por referências ―extratextuais‖ para o estudo das ideias (Idem). Essa tipologia tentou resolver
a forma de lidar com a história das ideias, porém não fica exatamente claro como isso
funciona, e menos ainda resolve a confusão de termos empregada até então.
O segundo exemplo de autor que tentou apresentar um levantamento da história
intelectual foi Roger Chartier, em sua obra À beira da Falésia, especificamente no capítulo
História Intelectual e história das mentalidades. Assim como Francisco Falcon, inicia seus
comentários afirmando a dificuldade de definição e menciona as muitas nomenclaturas que o
campo recebe (CHARTIER, 2002: 23).

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Chartier também tenta diferenciar conceitualmente história das ideias, de história
intelectual, de história social das ideias, e da história cultural. Tomando por empréstimo as
definições de Robert Darnton ele diz:
a) história das ideias é o estudo dos pensamentos sistemáticos, geralmente em tratados
filosóficos;
b) a história intelectual é o estudo dos pensamentos informais, das correntes de opinião e das
tendências literárias;
c) a história social das ideias é o estudo das ideologias e da difusão das ideias;
d) a história cultural é o estudo da cultura no sentido antropológico, incluindo visões do
mundo e as mentalidades coletivas (Ibidem: 24-25).
Em seguida funde um conceito mais amplo e que tenta abarcar as quatro
definições anteriores: ―o campo da história dita intelectual recobre, na verdade, o conjunto das
formas de pensamento e que seu objeto não tem mais precisão a priori do que aquele da
história social ou econômica‖ (Idem). Chartier lança mão das definições entendendo que o
mais importante é a maneira que em um momento específico, historiadores tratam as suas
unidades de observação. A partir daí a investigação passa a ser como a história intelectual à
francesa iniciou e se desenvolveu.
A investigação é subdividida em duas partes, Os primeiros ―Annales‖ e a história
intelectual, e a História das mentalidades/História das ideias. A divisão discute por que o
modelo de história intelectual não foi bem recebido na França.
Chartier observa que a história intelectual na França esteve associada a um
discurso externo, do período entre as duas grandes guerras, o qual impunha debates com uma
comunidade de historiadores contemporâneos ao período. Os dois historiadores que vão
encabeçar essa postura são Lucien Febvre e Marc Bloc. ―Para Febvre pensar a história
intelectual é primeiramente reagir àquela que se escreve em sua época‖ (Ibidem: 26). A
postura assumida pela historia intelectual é uma afronta à tradição marxista que é
compartilhada por esses autores.
Febvre, segundo afirma Chartier, critica a história intelectual por isolar sistemas
de pensamento das condições que autorizam a produção e por separá-los radicalmente das
formas da vida social (Ibidem: 28). Ele acusa a história intelectual de ser desencarnada, ao
instituir um universo de abstrações onde o pensamento parece não ter limites dado que está
fora do tempo e do espaço, como se estivesse urdindo estranhas cadeias de anéis ao mesmo

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tempo irreais e fechados. Também critica a postulação de uma relação consciente e
transparente entre as intenções das produções intelectuais e a criação intelectual apenas como
inventividade individual. Afora isso, desconfia das concordâncias entre diferentes tipos de
produção intelectual de um tempo, seja pelo jogo de empréstimos, seja pela referência a um
―espírito de uma época‖ (Ibidem: 29).
Marc Bloch, também segundo Chartier, igualmente questiona a legitimidade dessa
proposição de história que toma ideia como fulcro, não concordando com o que seria a
ausência de substância social. No livro A sociedade feudal (escrito por Bloch em 1939) dedica
um capítulo chamado Maneiras de sentir e pensar para hierarquizar níveis de língua e
universos culturais em função das condições de formação intelectual, mas o faz associando
sua análise ao social. Esta forma de pensar, talvez tradição, dos Annales, pesa sobre os
posicionamentos teóricos assumidos pelos historiadores que os sucederam.
Na segunda parte, a década de 1960, começa a se falar em história das
mentalidades, mas quase como uma oposição à história intelectual, pois ―a mentalidade de um
indivíduo, mesmo sendo um grande homem, é justamente o que ele tem de comum com
outros homens de seu tempo‖ (Ibidem: 34-35). A história das mentalidades trabalha com o
nível do cotidiano e do automático, é o que escapa aos sujeitos individuais da história porque
revela o conteúdo impessoal de seu pensamento (Idem). E aí ela se antepõe ao objeto da
história intelectual, que seria para pensadores como Jacques Le Goff, a construção consciente
de uma mente individual e sem as representações e julgamentos dos atores sociais (Idem).
Vale salientar que Chartier, ao colocar essas problemáticas por autores os quais
teve como referência, busca um tipo de reconciliação com um programa diferente de história
intelectual, o qual ele vai chamar de história cultural. Ele diz ainda que: ―a história intelectual
deve então estabelecer como central a relação do texto com as leituras individuais ou coletivas
que, cada vez, o constroem (isto é, decompõem-no para uma recomposição)‖ (Ibidem: 55).
Chartier evoca a definição proposta por Schorske para aventar uma posição onde
―Ler um texto ou decifrar um sistema de pensamento consiste, pois, em manter juntas essas
diferentes questões que constituem, em sua articulação, o que se pode considerar como objeto
mesmo da história intelectual‖ (Ibidem: 57). Ao falar em diferentes questões, ele se refere à
citação de Schorske sobre a força vertical diacrônica e a horizontal sincrônica, também
entendida como uma composição a partir das argumentações externa e interna ao texto. Nesse
apanhado feito por Roger Chartier, chama atenção uma certa confusão de termos, pois história

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das ideias e história intelectual se confundem invariavelmente, e a tentativa do autor em se
apropriar de uma formulação mais geral pode ser uma evidência dum descompasso da
recepção francesa.
O terceiro exemplo que descreve o estado da arte é o de François Dosse, Da
história das ideias à história intelectual, apresentado num Colóquio internacional que foi
publicado no Brasil como um capítulo do livro História e Ciências Sociais. O autor abre o
texto comentando o fato da história das ideias não gozar de boa reputação na França e que
isso se deve à formação propriamente filosófica do público escolarizado francês, fazendo com
que esse corpus fosse legado à filosofia. E o outro motivo é o sucesso da história das
mentalidades durante a década de 1970, para ele, um tipo específico de história intelectual.
Esta ficou restrita a um apêndice da história literária, como sonho solitário de Jean Ehrard que
trabalhou e estimulou a criação de um ensino de história das ideias (DOSSE, 2002: 283-284).
O autor segue sem propor uma definição, ou mesmo, uma distinção entre história
das ideias e história intelectual, utilizando os termos, em algumas passagens, como sinônimos.
O ponto de partida é a formação do pensamento estruturalista que esteve em evidência
principalmente na década 1960, pois tomou a história das ideias de maneira sincrônica, ou
seja, estrutural.
Cabe perceber que a preocupação de Dosse serve para preparar os argumentos de
suas hipóteses fazendo uma ligação entre uma forma de entendimento estrutural (ou
estruturalista) com o pensamento de Paul Ricoeur, tendo em vista que Ricoeur define ―uma
perspectiva de articular o exercício de uma consciência crítica na herança kantiana e o de uma
hermenêutica ligada à tradição.‖ (Ibidem: 292) Isso faz sentido quando pensado na ótica de
aproximação da história intelectual, pois a dificuldade também

é pensar a restituição de um pensamento por si próprio, em sua lógica


singular, em seu momento de enunciação, em seu contexto histórico preciso
de aparição, sem deixar de lado a mensagem que ele carrega tempo afora até
nossa atualidade, o modo como nos fala de nossa contemporaneidade.
(Ibidem: 294).

Ao apontar essa questão, Dosse procura na abrigo da escola de Cambridge, na figura central
de Quentin Skinner, este último ao escrever sobre Thomas Hobbes, insiste na formação de
Hobbes como humanista e no contexto preciso que está inserido a escrita do Leviatã. John
Pocock também faz um trabalho seguindo essa linha, mas com Maquiavel como objeto de seu

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estudo. Dosse associa estes autores ao linguistic turn, pois ao privilegiarem uma história dos
conceitos, teriam reposicionado o seu uso historicamente, aproximando-se dos trabalhos de
Reinhart Koselleck (Ibidem: 295).
A iniciativa de Dosse de contrapor uma visão da história intelectual preocupada
com as estruturas, que estabelece a relação entre objeto intelectual e aquilo que se fez na
mesma época, com uma perspectiva cuja preocupação está focada no sistema de pensamento e
o que o precedeu, tem a função de sugerir um caminho do meio. Dessa forma, o intento é
propor uma alternativa que vá além do ―externalismo‖/―internalismo‖, pois o resultado de
uma abordagem ao mesmo tempo ―internalista‖ e ―externalista‖ é a explicitação de
correlações. Como ele explica:

O que pode emergir de uma abordagem ao mesmo tempo internalista e


externalista não são mecanismos de causalidade mas, mais modestamente, a
explicação de correlações, de simples vínculos possíveis, como hipóteses,
entre o conteúdo exprimido, o dizer, de um lado, e a existência de redes, o
pertencimento de geração, a adesão a uma escola, o período e suas
problemáticas do outro.(Ibidem: 299).

A proposta lida com uma pluralidade maior de informações a respeito do passado e


simultaneamente desobriga o estabelecimento da relação de determinação, o efeito causal é
suprimido pela possibilidade. Sem perder os critérios de verificabilidade e legitimidade do
historiar, a história intelectual passa a ser feita tanto a partir do conteúdo explícito quanto dos
contra-sensos que ele suscita, bem como das reapropriações sucessivas que são feitas
posteriormente (Idem).
A possibilidade teórica de fazer uma historia intelectual, atenta à participação do
pensamento no acontecimento, sem nada ceder na analise, é a junção que torna possível
inscrever as obras na história sem nada sacrificar de sua leitura interna, e, ao contrário,
contribuindo para a sua inteligibilidade (Ibidem: 310-311). A saída encontrada concilia pontos
indispensáveis para o historiar de uma ideia, conceito ou sistema de pensamento, mas também
aumenta as responsabilidade de quem busca essa opção. Os problemas metodológicos
encontrados nas duas formas de abordagem, ou seja, a participação do pensamento no
acontecimento e a análise do pensamento, estão presentes, o labor da pesquisa é duplicado, e
as respostas não são as causas, mas as possibilidades.
Neste sobrevôo sobre a historicidade da história intelectual percebe-se que os
comentadores estavam preocupados com questões específicas e distintas: um em apresentar,

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outro em fazer observações relativas ao seu país e outro em propor uma nova abordagem.
Todavia, a dificuldade de precisar os termos é patente nos três, já que se revezam sem ficarem
nítidas as distinções entre história das ideias e história intelectual, usados muitas vezes como
sinônimos. Igualmente é o que acontece sobre a precisão argumentativa ao se evocar aspectos
de funcionamento internos e externos no estudo de um objeto tão melindroso e transversal.
Uma semelhança que se soma é o fato dos três comentadores terem como grande divisão os
fatores internos e externos. A partir de agora, a preocupação se voltará para as possíveis
problematizações a respeito dos componentes internos e externos de um texto, um conceito ou
ainda um sistema de pensamento.

***

Os componentes internos analisam a argumentação do autor; os externos se


debruçam sobre os contextos de produção, a recepção da obra e os diálogos desse autor com
os demais, que podem ser seus contemporâneos ou referências da formação. Estas
perspectivas foram tradicionalmente desenvolvidas em outros campos, como por exemplo na
filosofia, na ciência política, ou ainda na história do pensamento político. Em filosofia, o filão
de pesquisa que investiga sistemas de pensamento ou conceitos entendeu que os argumentos
internos de um texto são a forma mais fidedigna de estudo.3 Na ciência política as relações de
produção, principalmente no que se convencionou chamar de escola de Cambridge 4, tiveram
uma ênfase maior nos argumentos mediante seus meios externos.
Ao observar o ―internalismo‖, o argumento é de que um autor só pode ser
entendido nos movimentos do pensamento num determinado texto e este é uma unidade
indissolúvel por inventar teses e métodos indissociáveis à sua própria elaboração
(GOLDSCHMIDT, 1970: 141). Logo tomar informações fora do texto é romper com a
exegese argumentativa da produção de pensamento do autor. As informações de contexto não
interessariam por serem um tentativa de explicação causal sem fundamento, pois não
pertencem ao sistema argumentativo desenvolvido. O contexto também pode ser criticado por

3
Refere-se aqui ao texto de Victor Goldschmidt, Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas
filosóficos. In: GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. 1970.
4
Ver o artigo de Richard Tuck, História do pensamento político. In BURKE, Peter (org.). A escrita da história:
novas perspectivas. 1992.

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sobrepor a validação externa à concatenação de pensamento, sem compreender os caminhos
desenvolvidos por este último.
Outrossim, tem-se um determinismo que entende só ser possível compreender
uma obra ou um autor pelo contexto, o que indiretamente afirma que pessoas de uma mesma
época responderiam aos problemas de maneira semelhante, obliterando-se as individualidades
que tornam diferentes os contemporâneos entre si.
Claude Lefort, no capítulo A obra de pensamento e a história, do livro As formas
da história: ensaios de antropologia política, ao estudar os comentários de Maquiavel sobre a
obra de Tito Lívio, fala em planos do texto. Para ele, o texto está dividido em quatro planos:
a) contexto da época; b) do que o texto está falando; c) análise realizada pelo texto (livro a
respeito de livro, livro a respeito de objeto); d) as ideias analisadas e utilizadas no texto
(LEFORT, 1979: 159-161).
O contexto da época compreende os aspectos políticos, econômicos e sociais, mas
apenas no que toca ao objeto. No segundo plano se percebe o aspecto mais direto e geral do
texto, acerca de que ele está tratando. O terceiro plano refere-se ao objetivo do texto, quais
inferências podem ser percebidas do intento do autor. O quarto plano é um tipo de
desdobramento do terceiro, pois busca entender como se fez, ou seja, quais ideias foram
utilizadas na construção do argumento, quais foram defendidas e quais foram atacadas.
A perspectiva de Lefort nota que não é possível descartar o ―contexto da época‖,
pois como diz: ―o intérprete visa certos fragmentos da realidade fora da obra e descobre ao
mesmo tempo um recorte singular desta realidade, que considera como próprio ao escritor‖
(Idem). Um outro problema deriva deste, pois como é possível delimitar um momento para
estudo que não seja condição e consequência de todos os outros, e qual o recorte a ser dado no
intuito de evitar construir um objeto grande demais, a ponto de todo tempo de uma vida não
ser suficiente para estudá-lo. O caminho utilizado pelo autor passa pela abordagem dos
aspectos relacionais:

[...] o espaço da obra se declara quando os ―elementos‖ de que é feito se


mostram remeter necessariamente uns aos outros; quando as instituições, os
personagens, os acontecimentos e as ações que consideramos e as ideias que
são tecidas na narrativa, ou fazem a matéria dos juízos, deixam de ser
referências pontuais de nossa leitura e se refletem uma na outra ou – como
gostaríamos de dizer – estão voltadas umas para as outras. (Ibidem: 165).

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Em outro artigo dedicado às Reflexões sociológicas sobre Maquiavel e Marx: a
política e o real, Lefort propõe uma conciliação maior entre as faces internas e externas do
argumento. Para compreender a proposições enunciadas por um autor é necessário situar a
obra cultural em um meio social e histórico (Ibidem: 184). Ele explica que:

Podemos muito bem reconstruir o mundo que o escritor procurou conhecer –


graças aos meios de investigação de que dispomos e em virtude da posição
privilegiada que o presente confere – enquanto quadro de uma experiência
social definida, que dá um acesso a sua obra. (Idem).

Assim, os argumentos externos ao texto servem ao entendimento da obra. Em seguida ele


soma a estes os argumentos internos dizendo que:

nem por isso é menos verdadeiro que logo que visamos a obra, somos
induzidos por meio dela a visar seu objeto, a participar de sua interrogação,
em busca, tal como o autor, embora diferentemente dele, de uma
inteligibilidade que nenhuma determinação particular seria capaz de esgotar.
(Idem).

Lefort apresenta a ligação entre as formas argumentativas e alguns dos cuidados


necessários para seu estudo, os desdobramentos do seu modelo obedecem as especificidades
do seu objeto, no caso Maquiavel. As questões diagnosticadas por ele, guardando-se as
diferenças especificadas pelos objetos, podem e devem ser levadas a cabo no desenrolar da
pesquisa histórica.
John Pocock, ao comentar os estudos de Quentin Skinner enumera quatro
questões pertinentes à dualidade interno/externo. A primeira delas é ―se podemos resgatar as
intenções do autor a partir da análise de seus textos sem nos tornarmos prisioneiros do círculo
hermenêutico‖ proposto (POCOCK, 2003: 27). A resposta dada por ele é que quanto mais
informações o historiador puder ter sobre as intenções do autor maiores serão as
possibilidades de escapar ―ao círculo hermenêutico‖. Evitando, assim, ser convencido sem
problematizar, à luz da temporalidade, seu objeto por definição.
A segunda é ―se um conjunto de intenções pode ser isolado como algo que existe
na mente do autor, a cuja efetivação ele então procederia, escrevendo e publicando seu texto‖
(Idem). A réplica do autor se dá pelo fato de que as informações reunidas sobre o escritor
podem ser utilizadas para entender quais as possibilidades de ações que tinha e qual foi a sua
escolha levando em consideração suas intenções, vistas no descarte e alternativa realizada.

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Recuperar o momento desta escolha é historiar, é perceber, diante das circunstâncias, os
caminhos selecionados e excluídos ao lidar com o objeto.
A terceira proposição é ser ―possível perguntar se um ator ‗sabia o que estava
fazendo‘, sugerindo, com isso, a possibilidade de uma lacuna entre intenção e efeito, ou entre
a consciência do efeito e o efeito propriamente dito‖ (Ibidem: 29). Com isto, a preocupação
em relação ao autor passa a ser também a respeito da ação indireta, ou seja, sua ação póstuma,
medida na cadeia de atores subsequentes. Para perceber a intencionalidade do autor e sua
eficiência, as condições de possibilidade devem ser conhecidas e trabalhadas, não causais,
evitando com isso erros de associação argumentativa e elucubrações sem fundamento.
A quarta questão é ―que as palavras de um autor não são dele próprio, que a
linguagem que ele usa para efetivar suas intenções pode ser tomada dele e utilizada por
terceiros em vista de outros efeitos‖ (Idem). Em consequência, abre-se o entendimento de que
o ―autor é tanto o expropriador, tomando a linguagem de outros e usando-a para seus próprios
fins, quanto o inovador que atua sobre a linguagem de maneira a induzir momentâneas ou
duradoras mudanças na forma como ela é usada‖ (Idem). Nesse sentido, a investigação das
argumentações de um autor não podem ser dissociadas dos empréstimos que este faz, seja da
linguagem ou do pensar, pois o diálogo argumentativo é tanto interno como externo.
O intuito é se apropriar destas discussões para perceber como um autor molda um
determinado conceito, ou ideia, ou sistema de pensamento, e a partir dele pensa uma
temporalidade. As observações feitas tanto no estudo da argumentação interna de um texto,
como as feitas aos elementos externos são importantes na análise dessa forma de historiar. A
intencionalidade argumentativa é um objeto historicamente localizável e diferentemente de
indicar causas percebe as possibilidades. Peter Gay lembra que ―a cada época, os escritores
têm à disposição modos específicos de expressão‖ (GAY, 1990: 26). Isso implica que o
historiador, pois este é também escritor, tem uma historicidade, está igualmente passível de
ser objeto de estudo.

***

Ao se ter como objeto a apropriação de um conceito, por exemplo, e estabelecer


um historiar preocupado com as escolhas do autor, a intenção é uma ideia que precisa ser
explicitada. O historiador e crítico de arte estadunidense Michael Baxandall, no seu livro

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Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros, problematiza a intencionalidade do
pintor elaborando uma compreensão significativa. Ele propõe refletir acerca das causas de um
quadro e suas explicações históricas. Ele prefere chamar de ―crítica inferencial‖, ou seja, o
que podemos inferir quando historiamos as causas de um quadro.
Isso implica dizer que a explicação causal não é a única via possível para a
história da arte e que dentre as várias maneiras, uma delas é entender um quadro como um
produto intencional (BAXANDALL, 2006: 27). Baxandall se coloca como um historiador que
mesmo partindo de um ceticismo de obter a verdadeira intenção do artista, vê esse ceticismo
como afirmativo e animado, pois a impossibilidade de um conhecimento certo e definitivo é
que empresta agudeza e força à crítica inferencial (Ibidem: 28). Para ele:

O papel do historiador das ideias não é apresentar vagas generalizações


prescritivas sob o rótulo de ―teorias‖, mas verificar como proposições muito
simples se comportam diante de casos complexos, pelo menos tão
complexos quanto permitam o tempo e a energia disponíveis. Não se trata de
imitar os especialistas em metodologia, mas de desempenhar uma função
complementar à deles. (Idem).

O autor lida com a perspectiva que, longe de uma relativização letárgica, propõe entender
objetos complexos através de inferências críticas. Para tal, o primeiro exemplo que ele toma é
da construção de uma ponte que, mesmo sendo uma explicação genérica, permite a
exemplificação de sua teoria.
A teoria proposta é que um ―pintor ou autor de um artefato histórico qualquer se
defronta com um problema cuja solução concreta e acabada é o objeto que ele nos apresenta‖
(Ibidem: 48). O que se pretende é ―reconstruir ao mesmo tempo o problema específico que o
autor queria resolver e as circunstâncias específicas que o levaram a produzir o objeto tal
como é‖ (Idem). Numa outra explicação, o artista que recebe a encomenda de um quadro tem
um problema a resolver: pintar de acordo com suas características sem perder de vista a
satisfação de quem o encomendou. Historiar essa relação é entender como um pintor dentro
dos limites da técnica, dos materiais, das suas especificidades e das do seu cliente, resolveu e
interligou essas premissas. Baxandall argumenta que sua

Atividade será sempre relacional – tratamos das relações entre um problema


e sua solução, da relação entre o problema e a solução com o contexto que o
cerca, da relação entre nossa interpretação e a descrição de um quadro, da
relação entre uma descrição e um quadro. (Idem).

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O princípio defendido pelo autor é que é possível explicar objetos históricos considerando-os
como soluções de problemas que aparecem em determinadas situações, e tentar reconstruir
uma relação lógica entre esses três elementos (objetos históricos – solução de problemas –
determinadas situações).5 Essa teoria permite mapear o tecido de intenções de uma imagem,
pois relaciona o problema apresentado ao artista para pintar com sua obra acabada e em quais
contextos de possibilidades ele estava inserido. Mesmo sendo pensada para história da arte, o
autor ao tomar como exemplo uma ponte, possibilita sua propagação para diferentes objetos.
A intenção é um elemento fundante dessa forma de compreensão, pois os quadros
são produto de atividade humana, logo obedecem a propósitos. Baxandall elabora sua
hipótese da seguinte forma:

A hipótese de fundo é que todo ator histórico e, mais ainda, todo objeto
histórico têm um propósito – ou um intento ou, por assim dizer, uma
―qualidade intencional‖. Nessa acepção, a intencionalidade caracteriza tanto
o ator quanto o objeto. A intenção é a peculiaridade que as coisas têm de se
inclinar para o futuro. (BAXANDALL, 2006: 81).

A relação entre o objeto e a circunstância é que vai demonstrar a intencionalidade,


apontando com isso, uma visão mais simplificadora que entenda intenção como um estado de
espírito a ser reconstruído. Sendo assim, a palavra intenção é ampliada:

Posso querer estender o sentido da palavra ―intenção‖ para abranger a lógica


interna da instituição ou das condutas que contribuíram para essa
predisposição, e das quais o indivíduo talvez não tivesse consciência no
momento em que produziu determinado objeto. Mesmo quando o autor
descreve seu estado de espírito, esses relatos têm pouca validade para uma
explicação da intenção do objeto; é preciso compará-los com a relação entre
o objeto e as condições em que foi produzido, retocá-los, ou ajustá-los, ou
inclusive descartá-los se houver incoerência. (Idem).

Com esta extensão do sentido do termo ―intenção‖, a compreensão de uma ideia, forma de
pensamento ou conceito pode ser entendida através de uma relação entre as camadas
discursivas e argumentativas de um texto com os seus elementos externos, compondo seus
padrões de intenção.

5
O exemplo tomado é a construção de uma ponte sobre o rio Forth que fica pronta em 1889, a escolha da ponte
enquanto objeto serve para entender como um objeto destinado a resolver um problema, em um determinado
contexto, encaminhou a uma sequência de questões que ora se relacionavam com fatos individuais, ora com fatos
gerais. A ponte é o exemplo da solução do problema que, dentro de um contexto específico, possibilitou
reconstruir a relação entre objeto – solução – situação. (BAXANDALL, 2006: 45-79).

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Retomando mais precisamente as possibilidades teóricas apresentadas por
Baxandall, uma analogia pode ser enriquecedora de uma forma de investigação histórica que
se debruce sobre a cultura intelectual. Entender a historicidade de uma ideia, forma ou sistema
de pensamento ou conceito é notar seus padrões de intenção, é perceber as relações entre o
escrito, o lido e o inventado. Se for necessário nomear esta forma de pensar a história, o mais
adequado seria uma história da cultura intelectual, pois se está historiando a apropriação que
um autor faz de outro conceito, mas o foco não é a adequação, e sim o que resulta dessa
apropriação.
Essa possibilidade teórica – história da cultura intelectual – mais que a busca pela
verdade, se interessa pelas possibilidades. A ligação não causal desse modelo pode gerar o
desconforto do não universal, da certeza probabilística, da conjectura. Sendo assim, a busca
não é pelo certo, mas como um homem em uma dada época respondeu às inquietações no ato
de historiar. O que sem dúvida remonta a um questionamento antigo entre os historiadores: o
que fazem os historiadores quando escrevem/fazem história? A resposta não é simples, fácil,
ou objetiva, ela é possível e datada, tem uma historicidade que pode ser contada, pesquisada e
questionada por todos que se interessem pela pergunta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007.
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APONTAMENTOS DE UM PROCEDIMENTO HERMENÊUTICO-FENOMENOLÓGICO:
O CONCEITO DE AFRO-FUTURISMO NA OBRA DE CHICO SCIENCE E NAÇÃO
ZUMBI

Rodrigo Fernandes da Silva 1

Resumo: O presente texto busca desenvolver um pequeno conjunto de pressupostos teórico-


filosóficos com a finalidade de fundamentar algumas aproximações iniciais em torno da obra
de Chico Science e Nação Zumbi. Trata-se, basicamente, de a partir da fenomenologia
discutir a relação entre estética e política, sendo um texto mais filosófico que empírico.

Palavras-chave: Afrociberdelia, afro-futurismo, dialética, originário, fenomenologia.

Resumen: El presente texto busca desenvolver un pequeño conjunto de presupuestos teórico-


filosóficos con la finalidad de fundamentar algunas aproximaciones iniciales en torno a la
obra de Chico Science e Nação Zumbi. Se trata básicamente a partir de la fenomenología
discutir la relación entre estética y política, siendo un texto más filosófico que empírico.

Palabras claves: Afrociberdelia, afro-futurismo, dialéctica, originário, fenomenologia.

1
Mestrando em História Cultural pela Universidade de Brasília – UnB. Bolsista CNPq. Contato com o autor:
rodrigothp@gmail.com

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O presente texto busca uma aproximação à obra estética de Chico Science e
Nação Zumbi (CSNZ) elaborada nos anos 1990 e construída no contexto maior do movimento
de magnetização de idéias conhecido por manguebit (ou manguebeat), colocado em
desenvolvimento nesta mesma década na cidade de Recife. Neste estudo, serão apresentados
os resultados iniciais de uma pesquisa ainda em curso; trata-se da explicitação dos referenciais
filosóficos que estão como fundantes para os aportes teóricos da investigação iniciada. O
conceito de ―originariedade‖, o qual será tratado mais adiante, norteia a interpretação aqui
oferecida e, mais que isso, suscita o levantamento de questões que nem sempre poderemos
apresentar respostas imediatas.
Pois bem, começo por uma citação de Walter Benjamin, na qual é discutido o
movimento surrealista francês e desta citação parto à análise propriamente dita.

Seria o momento de pensar numa obra que como nenhuma outra iluminaria a
crise artística, da qual somos testemunhas: uma história da literatura
esotérica. Não é por acaso que essa história ainda não existe. Porque
escrevê-la, como ela exige ser escrita – não como uma obra coletiva, em que
cada ‗especialista‘ dá uma contribuição, expondo, em seu domínio, ‗o que
merece ser sabido‘, mas como a obra bem fundamentada de um indivíduo
que, movido por uma necessidade interna, descreve menos a história
evolutiva da literatura esotérica que o movimento pelo qual ela não cessa de
renascer, sempre nova, como em sua origem – significaria escrever uma
dessas confissões científicas que encontramos em cada século. (BENJAMIN,
1985: 27)

A história da literatura esotérica à qual Benjamin faz referência não é apenas uma
história dos elementos de transe que fundamentam a experiência de alguns dos surrealistas. O
transe foi um elemento fundante como um modo de experienciar os dados sensíveis do ser-no-
mundo e a forma como esses dados podem ser alterados caleidoscópicamente na experiência
surrealista. Entretanto, como o próprio Benjamin discute em seus textos acerca das
experiências com o haxixe, essas experiências devem ser tomadas como índices de uma
profundidade e não como a profundidade mesma. (Ibidem, 463). Dizer isso não é diminuir o
lugar da experiência de uma consciência alterada, antes, conduz-nos a uma visão mais clara
do lugar em que a experiência se encontra. A experiência surrealista por meio da alteração da
consciência apenas retoma uma noção de totalidade que influenciará em muito sua arte. Ela
reinsere a dimensão não-conceitual da experiência humana e, de dentro da não-
conceitualidade, ela conceitualiza noções estéticas.

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Gostaria de ater-me aos dois trechos grifados na citação de Benjamin. Eles serão
fundamentalmente o eixo desta exposição. Buscarei nesses trechos os elementos filosóficos
que eles possuem e como estes elementos serão postos como fundantes para pensar a estrutura
surrealista da obra afrociberdélica 2. No entanto, uma análise da Afrociberdelia levando em
consideração apenas o elemento mágico (surrealista) de sua estrutura estética e ideológica se
tornaria insuficiente, caso não se possa demonstrar como a embriaguez da experiência
surrealista flui numa relação intrínseca com a ação política, e como esta assume tanto
esteticamente quanto ideologicamente o lugar da reflexão sobre a ciência e a tecnologia; neste
caso, sob a particularização do termo cibernética. Por fim, ainda permaneceria incompleto
caso não se possa dar clareza acerca dos vínculos históricos, ou seja, a historicidade presente
na natureza da obra. Trata-se, portanto, de um texto que faça fluir os temas que convirjam
para uma postura existencial, configurando ações políticas (Cf. RANCIÈRE 1995:22).
Não seguirei, entretanto, a ordem morfológica do termo, antes começo pela última
partícula que assinala o elemento mágico da obra afrociberdélica. Com isso poderei tornar
claro o elemento surrealista aí presente, permitindo então lançar a base de uma filosofia da
história que está por trás da análise. É nesse sentido que o texto de Durozoi e Lecherbonnier
se torna muito frutífero.

O que, na mentalidade mágica, parece primordial aos surrealistas é que ela


precede à separação dos poderes do homem, esses poderes que o projeto
surrealista tem precisamente como fim reunificar: anteriormente à
instauração de uma distinção entre poesia, filosofia e ciência, é preciso
admitir que um denominador comum, que não pode deixar de ser a magia,
une o feiticeiro, o poeta e o louco... A arte primitiva, nas suas realizações
plásticas e literárias, prova que a magia permite ao homem manter-se em
estreito contato com a totalidade do universo. (DUROZOI &
LECHERBONNIER, 1972: 12)

Essa totalidade, essa fonte primitiva de poderes unificados estão presentes na


experiência surrealista como modo de adestrar o olhar, de aguçar a imageticidade da
experiência perceptiva. Mas em que sentido, uma análise que inicie por pensar o elemento
mágico da obra poderia tornar profícua a transição para a primeira partícula que forma o
termo Demonstrando a historicidade produtora de uma consciência histórica ao mesmo
tempo em que explicita a filosofia da história que toma forma esse texto A resposta consiste

2
Os termos Afrociberdelia ou seus derivados, como afrociberdélico etc., são termos (como será posteriormente
discutido) que foram construídos esteticamente e filosoficamente para servirem como conceitos dentro do
movimento manguebeat. Tomá-lo-emos no uso feito por Chico Science e Nação Zumbi.

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em demonstrar como a Afrociberdelia conjuga valores da modernidade – como a estética
futurista – com valores eminentemente tradicionais. Um exemplo claro que poderei explorar
mais adiante, é o fato de que no futurismo italiano, o passado é colocado no banco dos réus
para que se pudesse por meio da supervalorização da máquina construir uma antropologia
desvinculada dos valores tradicionais. Dois trechos extraídos do Manifesto Futurista de 1909,
escrito por F. T. Marinetti elucida essa afirmação:

Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Porque haveríamos de


olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível
O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto,
pois já criamos a eterna velocidade onipresente... Nós queremos destruir os
museus, as bibliotecas, as academias da natureza, e combater o moralismo, o
feminismo e toda vileza oportunista e utilitária... É da Itália, que nós
lançamos pelo mundo este nosso manifesto de violência arrebatadora e
incendiária, com o qual fundamos hoje o ―Futurismo‖, porque queremos
libertar este país de sua fétida gangrena de professores, de arqueólogos, de
cicerones e de antiquários. Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado
de belchiores. Nós queremos libertá-la dos inúmeros museus que a cobrem
toda de inúmeros cemitérios. Museus: cemitérios!... Idênticos, na verdade,
pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus:
dormitórios públicos em que se descansa para sempre junto a seres odiados
ou desconhecidos! Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores,
que se vão trucidando ferozmente a golpes de cores e de linhas, ao longo das
paredes disputadas! Admirar um quadro antigo equivale a despejar nossa
sensibilidade numa urna funerária, no lugar de projetá-la longe, em violentos
jatos de criação e ação... Mas nós não queremos mais nada com o passado,
nós, jovens e fortes futuristas! (MARINETTI, 1980: 34-35)

Em seu louvor à maquina e à velocidade, não puderam prever que com o tempo a
máquina de tão veloz poderia aniquilar o homem, definhá-lo e torná-lo exausto de um
movimento tão frenético, no qual ele se desfragmentaria e um tal movimento findaria por
gerar o anverso do que se pretendia; de um movimento veloz para uma inércia causticante e
medonha. O afro-futurismo por sua percepção originária quanto ao passado, re-abre em
fissuras os prédios, os carros, as indústrias e injeta a intensidade primitiva de nossa
ancestralidade em cada fissura aberta para a construção de um novo software chamado
afrociberdelia. Nesta, o passado define de forma pujante a conformação de um futurismo
marcado pelos valores de resistência negra nos processos de colonização 3 e como essa

3
Essa diferença insere um problema importante quanto a uma definição do que seria efetivamente o futurismo
no caso da afrociberdelia. Lendo os manifestos futuristas italianos e a perspectiva futurista afrociberdélica e
comparando-os, a solução dessa clara diferença seria o estabelecimento de uma fenomenologia do tempo como
forma de definição dos múltiplos sentidos que o termo futurismo assume. O que só será possível discutir em

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resistência se torna a produtora de uma nova concepção de sociedade. Dessa forma, ao
tomarmos como perspectiva o elemento mágico, abre-se caminho para o lugar fundante da
tradição na obra. O elemento mágico é, pois, o elo com a cosmologia negra que criava os
espaços das ações políticas. Então, de posse da compreensão desse poder, pode-se,
finalmente, discutir a que tipo de modernidade CSNZ deseja vincular-se, discussão essa
articulada através do campo das questões que envolvem a cibernética e teorias da informação
contemporâneas.
Tomo como ponto de partida para análise de algumas músicas, a melodia
Salustiano Song. Nela, CSNZ expressa a aura das frequências assimétricas4 do tecido
fenomenológico universal. 5 Observa-se na melodia a presença do elemento que irrompe da
tradição como presença, um passado-presente. São os instrumentos típicos das tradições
musicais do Brasil no período pré-republicano, como a alfaia, por exemplo. Juntamente a este
elemento da tradição há o som da guitarra frenética e envolvente, expressão estética moderna.
Realiza-se com CSNZ uma identidade pós-colonial rica e permanente. A afirmação de que
CSNZ em sua postura antropofágica conjuga uma identidade pós-colonial funda-se no fator
híbrido da construção de sua obra. (VARGAS, 2007: 15-34). A proposta de uma música que

trabalhos posteriores. Sobre essa diferença ver FABRIS (1987) e ainda alguns manifestos do futurismo italiano
em BERNARDINE, Aurora Fornoni (1980).
4
Uso o termo frequências assimétricas para salientar a natureza vibrante, constantemente tencionada e
espacialmente profusa do tecido. Como pensar essa assimetria A partir da noção de sentido. Se sentido é a
forma de organizar-se numa determinada circunferência espiritual (individuação), o que ocorre quando esses
sentidos ordenadores se confundem Confusão dos sentidos é, pois, o novo modo de se organizar de quem
experiencia a psicodelia (termo um tanto contemporâneo e não aplicável à magia da cosmologia negra). Mas isso
nos coloca outro fato ainda mais fundamental. O mundo da vida é caótico A pergunta é até mesmo dúbia,
imprecisa! De um lado o Dasein é ordenado em uma estrutura ontológica existente. A veracidade dessa
afirmação se confirma pelo fato de que se assim não fosse, qualquer sentido seria impossível. Mas se é, ao
contrario, possível, então; o ser possui organização estrutural. Todavia, a forma como o Dasein é visto insere
uma assimetria entre o Dasein e o ente (que não podem ser confundidos). E a partir dessa assimetria instaura-se
o caos. Assim que toda tentativa de dotar a realidade de significado é uma luta contra o caos, uma diminuição da
assimetria! Uma tentativa de estabilização das forças antagônicas que vibram no tecido fenomenológico
universal (Método Dialético)
5
A idéia de um tecido me vem pela imagem constante do céu. Podendo imaginar um tecido sem limites
demarcáveis. Sua imagem se apresenta como que formada por raios em profusão, coloridos, caóticos. Entre eles
grandes passagens, portais que vão se formando, são como estrelas; possuem uma vida findável. Estas passagens
representando o pensamento, digo pensamento em duplo sentido, por um lado, pensamento como totalidade, por
outro, pensamento como o que é posto nesta totalidade, o pensamento afrociberdélico, por exemplo. De outro
modo, todo conteúdo de sentidos que são objetivados não podem estar na consciência. Seria impossível uma vez
que a cognoscibilidade individual se dá numa facticidade limitada, finita. Isso nos leva a pensar que há uma
distinção entre consciência para com conteúdos factivelmente experienciados, e portanto estão na consciência, e
conteúdos fácticos, que permanecem como potencialmente experienciáveis. Esses últimos são a somatória
constante entre conjuntos simbólicos que se dialetizam e formam constantemente sentidos possíveis que
permanecem facticamente aí no Dasein e estão-para-o-ente existente. A este estar aí no Dasein, chamo tecido
fenomenológico universal. A discussão sobre o conceito de todo originário deixará o que digo mais claro.

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conformasse ingredientes tipicamente tradicionais, como o maracatu, com aqueles de feição
modernas, presentes em várias expressões estéticas contemporâneas, como o Rap, Rock,
levadas eletrônicas entre outras, faz com que o resultado desta postura antropofágica não
simplesmente recrie, antes, coloque ou desvele6 um novo7 ente na estética contemporânea.8
Aqui, é apropriado citar as palavras de Homi Bhabha, as quais confirmam esta
percepção:

A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma


negociação complexa, em andamento, em um andamento que procura
conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de
transformação histórica. O ‗direito‘ de se expressar a partir da periferia do
poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição;
ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das
condições de contingência e de contraditoriedade que presidem sobre as
vidas dos que estão ‗na minoria‘. (BHABHA, 2003: 21).

Apenas uma ressalva deve ser acrescentada aqui, a saber, de que no processo de
construção de sua obra, CSNZ encontrava-se em um contexto histórico onde a tradição já era
um elemento enfatizado como manifestação fundamental da cultura nordestina. Entretanto, as
formas institucionalizadas de promoção da cultura criavam uma estrutura de poder fechada à
releitura feita pelo manguebit. A tradição era, pelos mecanismos estatais e acadêmicos,
―resgatada‖ em sua ―pureza‖, de modo que toda inserção de uma estética contemporânea
deveria ser tomada como deturpação do que é puro.9 Nesse sentido, o manguebit, como um
movimento que busca antropofagicamente articular a diferença, ou seja, fazer uma leitura que

6
Desvelar significa um movimento tanto ôntico quanto fenomenológico. De um lado trás do pólo ser/inexistente
para o pólo ser/existente. Este movimento se dá pela percepção fenomenológica que por sua vez é originária. Isto
no contexto amplo do estabelecimento de fundamentação da cultura, numa frequência de ruptura e continuidade.
7
O termo novo possui carga filosófica essencial, ele estará conectado com o cerne de toda reflexão acerca da
afrociberdelia.
8
Esta frase pode ser tomada como o vértice de todo esse texto. O desvelar dos entes é em Heidegger a forma de
tratar o problema da relação sujeito/objeto na tradição filosófica ocidental. Heideger pretende apontar um
caminho não fundamentado num eu cartesiano, mas uma relação na qual, embora, sujeito e objeto não possam
ser equacionados a ponto de fundir uma identidade absoluta, ainda assim, eles estão ―posicionados‖ um em
relação ao outro, dentro de uma totalidade ontológica estrutural. E é precisamente essa estrutura que delineia
modos específicos no qual os entes se mostram. Assim, fundamentar uma interpretação da Afrociberdelia a partir
desta ontologia pressupõe que a obra será vista em seu visar (aqui o conceito é husserliano) surrealista, que
concebe pela radicalização do pensamento imagético um mundo caótico no qual cintilam sinais.
9
Ver VARGAS, 2007:35-57 e TELES, 2000:15-34.

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realize uma supersoma10 entre tradição e modernidade, transforma-se, a principio, em um
movimento de minorias ante a cultura institucionalizada.
Essa estética é pós-colonial. Nela, CSNZ demonstra um movimento em filosofia
da história onde o caráter redentivo bejaminiano em que o presente deve fundar-se nas lutas
do passado, neste caso referindo-se à vinculação à resistência negra no Brasil por parte de
CSNZ, a partir da figura de Zumbi dos Palmares. Trata-se de demonstrar (por isso é pós-
colonial) como o negro trazido ao Brasil expressou sua resistência não só através da luta
material, física, mas, sobretudo, pelo legado espiritual por eles deixado, que no caso
específico é realizado por outras formas de resistência, como as relações afetivas que
possibilitaram a mestiçagem. (FREYRE, 2004: 55)
A formação da expectativa não está limitada à realização cronológica das
faticidades desejadas. A cronologia estabelece apenas meios imaginativos em que os atores
sociais podem procurar ―preencher‖ os espaços do tempo social destinado à realização dos
desejos. (BENJAMIN, 2007: 436-437). Mas, e quando a imaginação não consegue
efetivamente dar conta de tornar realizáveis os desejos faticamente planejados Não consegue
preencher o tempo social, formando, antes, brechas que não terão passado de expectativas. O
que ocorre então com a noção fenomenológica de agora-futuro, enquanto elemento
constituinte da experiência temporal Pensemos isso a partir do termo resistência. Os atos de
indivíduos como Zumbi dos Palmares foram tomados como atos-símbolo da resistência negra
no Brasil. A resistência se efetivou em práticas de luta, em manifestações estéticas, em
formação de grupos sociais que obedeciam a uma lógica própria daqueles que se viam
obrigados a negar o outro para não sucumbir, afirmando o si-mesmo como permanência. O
que fica entre o realizado e o realizável em termos de expectativa da ação A resistência negra
no Brasil pode efetivamente ser mantida por atores sociais que não participaram dos
caracteres sociais pertencentes aos negros escravizados Se sim, como
Uma resposta afirmativa pode ser oferecida à questão levantada acima. Há um
―núcleo‖ temporal da ação que, seguindo Jörn Rüsen, podemos chamar de déficit de
intencionalidade (Cf. RÜSEN, 2001). Essa intencionalidade não realizada fica como esse
núcleo, que pode vir a gerar facticidades completamente outras. Dessa forma os conteúdos
10
O conceito de supersoma vem da teoria da psicologia Gestalt, com o fim de explicar os conteúdos psíquicos. O
que pede ser expresso da seguinte maneira, dado a + dado b produz dado ab1. A soma nunca é uma mera adição,
antes, a formação de um conteúdo inteiramente novo. Utilizo com determinadas reservas, uma vez que minha
perspectiva é assegurar também o valor da reflexão completamente abstrata, portanto quando o utilizo me refiro
também ao pólo noético (Husserl) e não apenas aos conteúdos psíquicos.

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imaginados, esperados, desejados são interrompidos, mas os fluxos intencionais permanecem
no horizonte temporal infinito, que acaba por ser visado por atores em atos criativos. Mas,
como esse núcleo intencional se fixa No documento, nos vestígios. Os vestígios são dados
materiais de uma intencionalidade completamente indeterminada a priori. Só se pode
apropriar-se dela pelo vinculo subjetivo que atores sociais subsequentes criam com o passado,
e esse é um ato livre. No entanto, essa apropriação não é tão simples de ser teorizada e
analisada historicamente. Os vínculos criados não saltam aos olhos. É necessário um trabalho
de decantação dos discursos para descobri-los. É importante saber disso para se poder
compreender efetivamente como o núcleo temporal interrompe as práticas históricas por ele
engendradas e passa a constituir faticidades novas, resignificadas pelo ―contato‖ originário e
subjetivo dos atores sociais. Num conjunto simbólico podemos perceber uma extensão
temporal delimitada, na qual notamos o que há de agora-passado como sendo ponto-fonte do
núcleo de resistência e todos os elementos tensionados com esse agora que não estavam
disponíveis aos atores negros escravizados. Assim, cabe notar como um agora-passado como
agora-originário da resistência é resignificado pelos atos livres da imaginação dos grupos
sociais subseqüentes, engendrando novas extensões temporais constituídas de outros agora-
originários, os do presente.
Assim, compreender a prática de resistência contemporânea pressupõe poder
destrinchar conjuntos simbólicos em suas várias extensões temporais (o termo é categorial)
acessando os dois núcleos originários, o da resistência negra no Brasil e o da resistência de
atores sociais contemporâneos. É nessa perspectiva que a vinculação histórica entre CSNZ e a
resistência negra no país deve ser pensada. Levantemos, então algumas questões: como o
núcleo originário, percebido nas práticas religiosas, nas cosmologias africanas, em suas
percepções estéticas foi reafirmado nas cosmologias e práticas estéticas do grupo
pernambucano? Como a abertura negra para o sagrado pode ser discutida à luz da psicodelia
moderna presente nas letras e na construção estética da banda? Como as noções de negação
do outro, como forma de não sucumbir é tratada pelo grupo como forma de resistência
contemporânea à miséria social que se articula nas políticas brasileiras? Nos termos da mesma
abertura ao sagrado do negro africano, como a tecnologia é transformada em fonte pelas
práticas psicodélicas e realiza uma nova noção de totalidade?
Pois bem, é pela cartografia fenomenológica dos dois núcleos originários que
podemos definir as bases historiográficas deste trabalho. Por ela posso definir as linhas de

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análise que deverão criar um vértice principal para que possamos entender o termo
afrociberdelia. A dor, o lamento, que criam lapsos de morte, em que se nasce o vindouro. O
amor que vive no ódio, a alegria que nasce no lamento. Reconhecer nas revoltas negras no
Brasil como o corte de uma chibata fez reverberar a força, como o sangue fez nascer o desejo
gerando intencionalidades que permaneceram para além da consciência empírica e puderam
ser vistas pelos atores sociais modernos. Conceber dois mundos e conferir vínculos sob a
metáfora maior, a Flor. A experiência da modernidade se vincula pela perda irreversível da
totalidade como esfera maior de sentido. Uma dor se instaura no centro de toda articulação de
sentidos. A relação entre tradição e modernidade não trás de volta a tradição, antes, imagina a
matiz desta para uma figuração da última.
Gostaria de inserir um trecho de Laura de Melo e Souza em que a autora investiga o
lugar onde o sagrado, do ponto de vista cristão, se encontra no Brasil colonial e como desse
lugar saltam perspectivas sincréticas em que se pode ver a debilidade conceitual do
cristianismo.

A monstruosidade achava-se muito ligada ao desconhecido geográfico, que a


experiência das navegações e dos descobrimentos acabou lançando por terra.
Já o homem selvagem não dependia do desconhecido, mas da representação
hierárquica da sociedade cristã. (SOUZA, 1986: 55).

A afirmação de Laura de Mello e Souza nos abre um caminho reflexivo


interessante para se pensar uma estrutura possível de análise que vincula a resistência negra e
a expressão estética/política de CSNZ. Trata-se de criar vínculos dialéticos quanto aos
conteúdos da ordem paradigmática do tempo (RICOEUR, 1994: 90). O que corresponde a
suspender o tempo estrutural e linear a fim de que se possam ampliar as relações criadas entre
conteúdos cronologicamente muito distantes. Tratemos, por exemplo, da visão do europeu
que, carregada de imagens forjadas pela leitura e relatos dos viajantes medievais os faziam ver
nos homens americanos um híbrido de humano e animal e, concomitantemente, ou por
consequência, de demoníaco. Essas imagens correspondem à incapacidade dos coloniais de
reconhecerem as estruturas sagradas dos negros escravizados. A sacralidade africana
demonizada torna o imaginário religioso africano o sinônimo da origem e continuidade do
mal em termos de essência. Com isso, fecha-se o caminho para uma sacralidade
estruturalmente muito diversa daquela concebida pelo cristianismo. Fecha-se
consequentemente para uma percepção dos estados de consciência mítica que afasta o homem
de uma profusão de pensamentos acerca do infinito, uma vez que a racionalidade cristã

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durante e pós-reforma protestante, bem como o acirramento dos movimentos de contra-
reforma, torna o sagrado algo de definitivo e passível de ser encaixado na mentalidade pós-
tradição, ou seja, a modernidade pensada em seus vínculos mais longínquos – não meramente
identificada ao Iluminismo oitocentista. Todo esse movimento é uma desfragmentação
completa de toda uma noção de consciência que se destrói pela subsunção de noções
politeístas por noções racionalistas e monoteístas. Qual então a relação disso tudo com a
afrociberdelia? Para respondê-la é preciso tomar o veio surrealista da estética afrociberdélica
como elemento de uma filosofia da história possível. Iniciemos pela citação de Durozoi e
Lecherbonnier.

O que, na mentalidade mágica, parece primordial aos surrealistas é que ela


precede à separação dos poderes do homem, esses poderes que o projeto
surrealista tem precisamente como fim reunificar: anteriormente à
instauração de uma distinção entre poesia, filosofia e ciência, é preciso
admitir que um denominador comum, que não pode deixar de ser a magia,
une o feiticeiro, o poeta e o louco... A arte primitiva, nas suas realizações
plásticas e literárias, prova que a magia permite ao homem manter-se em
estreito contato com a totalidade do universo. (DUROZOI &
LECHERBONNIER, 1972: 12)

As práticas africanas, longe de uma racionalização que asfixiasse a profundidade


anímica indivisa dos poderes de percepção do sagrado, faziam com que esses poderes unos e
indivisos viessem à consciência como modo de imagens ondulares do sagrado. Ao contrário,
no racionalismo teológico europeu (com suas consequências na formação da moralidade cristã
ocidental) forjou-se uma prática religiosa pautada pela sobriedade mental, que mais do que
sentir o sagrado, o define, e ao defini-lo, o destrói. O lugar do surrealismo na afrociberdelia
procura recuperar as imagens profusas e ondulares que são representadas esteticamente e
vinculadas ao pensamento mítico-religioso africano.
Aproximemo-nos das questões mais conceituais, aquelas que apareceram ao longo
do texto sem maiores explicações. Para isso, começo pela citação de Scheila Thomé acerca de
Husserl.

Pois se atentarmos agora ao conjunto da obra husserliana, tem-se que para


que a realização de uma filosofia fenomenológica seja possível, é necessário
ultrapassar o nível introdutório (necessário enquanto introdução) de uma
análise estática da consciência a uma fenomenologia genética, uma
fenomenologia que descreve a gênese de todos os atos, objetos e formas da
consciência; uma fenomenologia que investiga propriamente a gênese, ou

Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da 82


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seja, a estrutura mesma desde onde eclode todo e qualquer aparecer
(originário, grifo meu). Primeiramente, tem-se que tempo é originado por
um fluxo, e que este fluxo mesmo não é temporal, é constitutivo de tempo. O
fluxo constitutivo de tempo é subjetividade absoluta, o ‗absoluto último e
verdadeiro‘ é aí plenamente conquistado. A subjetividade absoluta
constituinte do tempo é origem absoluta, ela mesma só tem origem a partir
de si mesma, a partir de uma gênese espontânea ela se dá como perpétua
fluência. De modo que a subjetividade absoluta é sem tempo (zeitlose). No
entanto, tempo é o modo próprio de desdobramento da unidade absoluta da
subjetividade. A subjetividade que é absoluta fonte de emergência de vida só
pode ser nomeada e só aparecer a partir do que dela originariamente se
constitui: a temporalidade. (THOMÉ, 2008: 12-13)

As afirmações de Thomé são importantes neste ponto da análise porque, por um


lado, tocam nos elementos que serão o fundamento de toda discussão, a saber, como o tempo
gera a si mesmo originariamente, mas, por outro, expõem uma contradição fundamental no
pensamento de Husserl. Trata do que se expressa pelo termo alemão zeitlose. Contradição
essa não muito fácil de ser exposta, uma vez que o sem tempo ou intemporal (esta última a
expressão unzeitlichen Sachverhalt, que aparece no texto de Husserl Zur Phänomenologie des
Inneren Zeitbewusstesein) está fundado sob o conceito último da epoché fenomenológica, que
segundo o próprio Husserl ―funda a possibilidade de pôr o imanente, a apreensão com o seu
teor imanente, em relação com o transcendente. E deste pôr-em-relação resulta por seu lado
um ato, um ato de grau superior‖ (HUSSERL, 1905: 114). Embora não seja o caso de Husserl
estar discutindo verbalmente sobre a epoché neste trecho, no entanto, lida esta citação à luz de
todos os extratos das Lições11, bem como das Idéias I, torna possível afirmar que o intemporal
encontrado e conceituado a partir da subjetividade absoluta está na base da ideia
transcendental na qual o cogito faz confluir imanente e transcendente na formação da
temporalidade. A contradição reside justamente aqui, qual seja, mostrar como o cogito
inevitavelmente não pode confluir imanente e transcendente a partir de uma noção de não-
temporalidade transcendental, ainda que cogito não deva ser confundido com o sujeito, mas
sim, lido como categoria transcendental última 12. A confluência que ora se discute, é uma
base importante para se pensar a redução fenomenológica de Husserl, pois o cogito como
referência tanto transcendental quanto imanente13 (os conteúdos noéticos e noemáticos da

11
Tradução de Pedro M. S. Alves. Imprensa Nacional – Casa da Moeda [s/d].
12
É a partir do cogito que Husserl expõem a categoria de vivência, essa mais próxima da consciência imanente,
mas compreendida apenas quando reduzida fenomenologicamente. Para se fazer a redução é que o cogito assume
lugar fundamental dentro da fenomenologia transcendental.
13
Referência essa não à subjetividade do eu em si.

Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da 83


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consciência) trata das categorias e conceitos atinentes ao que a aqui se busca, a saber,
descrever o tempo à luz das categorias retenção e protensão e demais desdobramentos, como
recordação primária e recordação iterativa (secundária). De modo que uma temporalidade
gerada intemporalmente é realmente uma contradição em termos 14.
Será preciso mostrar que a origem do tempo (termo claramente metafórico) para
ser discutida, precisa necessariamente partir dos conteúdos concretos da existência. Isso não
significa dizer que tal procedimento valida-se apenas sobre as bases da consciência empírica,
mas sim que, o alcance a níveis mais abstratos de reflexão partem do afunilamento árduo do
concreto para generalizações legais, tais como as que fundam um conceito universal de
temporalidade. Entretanto, a reação ao risco dogmático das categorias transcendentais não
pode gerar outro dogmatismo da ordem das filosofias empiristas do XVIII.
Com isso quero dizer que o método fenomenológico de Husserl é de uma
profundidade e validade inequívoca, mas para que se reconheça isso é preciso também negá-
lo. Faço isso a partir de uma das críticas mais aguçadas ao dogmatismo transcendental das
críticas pós-kantianas e mesmo às filosofias idealistas românticas (Fichte e Schelling), a
saber, aquela que Theodor Adorno faz por ocasião da discussão e conceitualização de sua
dialética negativa. Assim, o cito com extensão.

Tacitamente, a ontologia é compreendida como disposição para sancionar


uma ordem heterônoma, dispensada de se justificar ante a consciência. O
fato de tais interpretações serem desmentidas em uma instância superior
como incompreensões, como queda no plano ôntico e falta de radicalismo da
questão, só acaba por fortalecer a dignidade do apelo: a ontologia parece
tanto mais fascinante, quanto menos ela precisa se atrelar a determinados
conteúdos que permitiriam a inserção do entendimento indiscreto.
Intangibilidade transforma-se em inatacabilidade... Em todas as suas
correntes que se combatem mutuamente e que se excluem reciprocamente
como falsas versões, a ontologia é apologética... Já a vontade husserliana de
estabelecer a intentio recta no lugar da intentio obliqua, de se voltar para as
coisas, possuía algo disso; aquilo que na crítica à razão tinha traçado os
limites da possibilidade do conhecimento não foi outra coisa senão a
reflexão retrospectiva sobre a própria faculdade de conhecimento, da qual o
programa fenomenológico gostaria inicialmente de se ver dispensado. No
‗projeto‘ da constituição ontológica das áreas e regiões objetivas, e, por fim,
do ‗mundo enquanto suma conceitual de todo existente‘, manifesta-se
claramente a vontade de apreender o todo sem os limites impostos pelo seu
conhecimento: as husserlianas que se tornaram existenciais junto ao

14
Não poderei aqui (embora seria muito importante) tratar das críticas de Heidegger, pois dentre as mais
importantes se referem à aparente distância entre eu puro transcendental e facticidade. Crítica essa muito clara
em Hermenêutica da Facticidade.

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Heidegger de Ser e Tempo deveriam antecipar de maneira abrangente o que
todas aquelas regiões, até a mais elevada, propriamente são. De maneira
implícita, achava-se por trás disso a afirmação de que os projetos da razão
poderiam impor sua estrutura à profusão do ente (grifo meu); e isso segundo
a retomada das antigas filosofias do absoluto, cuja primeira retomada foi o
idealismo pós-kantiano. Ao mesmo tempo, porém, a tendência crítica
continuou vigente, não tanto contra conceitos dogmáticos, mas antes como o
esforço por não estabelecer nem construir mais os absoluta, desprovidos
agora de sua unidade sistemática e separados uns dos outros, mas por acolhe-
los receptivamente, em uma postura formada a partir do ideal positivista de
ciência, e descrevê-los. (ADORNO, 2009: 59-60).

O trecho citado pode ser lido a partir de um eixo ao menos. A começar por uma
crítica ao ideal heterônomo das diversas ontologias e terminar pelo ideal positivista, a partir
de suas consequências descritivas. Adorno fundamenta a crítica maior que é a fundação do
conhecimento das regiões (termo fundamental na fenomenologia husserliana, uma vez que a
epoché trata de descrevê-las em maior grau possível) de uma forma unilateral. Esta
unilateralidade consiste em que todos os elementos legais que justificam qualquer abordagem
filosófica do mundo precisa necessariamente dispor das categorias vazias (leia-se eidéticas)
para todo e qualquer preenchimento e significação15. Não vejo como a crítica de Adorno
poderia estar negando a validade universal das categorias legais do conhecimento, no entanto,
Adorno se utiliza de um termo que une as camadas de sua crítica, a saber, sua referência a
uma profusão do ente16. Mas para que fique clara a importância disso, será preciso citá-lo
novamente naqueles argumentos que abrem caminho para seu conceito de dialética negativa.

Contra os dois (Husserl e Bérgson) seria preciso insistir no que eles buscam
em vão; a despeito de Wittgenstein, seria preciso dizer o que não pode ser
dito. A simples contradição dessa exigência é a contradição da própria
filosofia: essa contradição qualifica a filosofia como dialética, antes mesmo
de a filosofia se enredar em suas contradições particulares. O trabalho da
auto-reflexão filosófica consiste em destrinchar tal paradoxo. Todo o resto é
designação, pós-construção, hoje como nos tempos de Hegel algo pré-
filosófico. Uma confiança como sempre questionável no fato de que isso é
possível para a filosofia; no fato de que o conceito pode ultrapassar o
conceito, o estágio preparatório e o toque final, e, assim aproximar-se do
não-conceitual: essa confiança é imprescindível para a filosofia e, como isso,
parte da ingenuidade da qual ela padece. De outra forma, ela precisaria
capitular, e, com ela, todo o espírito. Não se poderia pensar a mais simples
operação, não haveria nenhuma verdade, e, em um sentido enfático, tudo

15
Isso ficará mais claro quando for discutido o conceito de intencionalidade em Husserl.
16
Infelizmente não disponho do texto alemão a partir do qual é feita a tradução para o termo profusão. Como
mais tarde deixarei claro, o termo português utilizado na tradução sempre me foi muito caro em minhas próprias
reflexões filosóficas no que concerne à fenomenologia e à ontologia.

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seria senão nada. Todavia, aquela parte da verdade que pode ser alcançada
por meio dos conceitos, apesar de sua abrangência abstrata, não pode ter
nenhum outro cenário senão aquilo que o conceito reprime, despreza e
rejeita. A utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual com
conceitos, sem equipará-lo a esses conceitos... A reflexão filosófica
assegura-se do não-conceitual no conceito. De outro modo, esse conceito
seria, segundo o dito kantiano, vazio; por fim, ele não seria mais
absolutamente o conceito de algo e, com isso, seria nulo... Que o conceito
seja conceito, mesmo quando trata do ente, não altera nada quanto ao fato de
estar por sua vez entrelaçado em um todo não-conceitual do qual só se isola
por meio de sua reificação, da reificação que certamente o institui enquanto
conceito. Na lógica dialética, o conceito é um momento como outro
qualquer. Nele, sua mediação pelo não-conceitual sobrevive graças ao seu
significado, que fundamenta, por seu lado, o seu ser-conceito. O conceito é
caracterizado por sua relação com o não conceitual – assim como,
finalmente, segundo a teoria do conhecimento tradicional, toda e qualquer
definição de conceitos carece de momentos não-conceituais, dêiticos – tanto
quanto, em contrapartida, por se distanciar do ôntico como unidade abstrata
dos onta compreendidos nele. Alterar essa direção da conceptualidade, voltá-
la para o não idêntico, é a charneira da dialética negativa.... O
desencantamento do conceito é o antídoto da filosofia. Ele impede o seu
supercrescimento: ele impede que ela se autoabsolutize. É preciso
refuncionalizar uma idéia que foi legada pelo idealismo e que foi corrompida
por ele mais do que qualquer outra: a idéia do infinito. (Idem)

Podemos discutir a crítica feita por Adorno, primeiro, reiterando o que foi dito
acima de que não se trata de negar a validade dos elementos legais do conhecimento do ser.
Isso é atestado pela afirmação de que o conceito é mediado pelo não-conceitual. Segundo,
demonstrando que essa mediação equilibra (segundo o próprio Adorno) a reflexão filosófica,
uma vez que a inefabilidade do ente não é questionada e nem se busca exauri-la pela
concatenação abstrata dos conceitos. O não-conceitual como um momento da reflexão de
alguma forma retro-alimenta a própria possibilidade de conceptualidade. Para se compreender
isso é preciso enfatizar a noção de profusão do ente. E para que se possa fazer sobressair a
ênfase prevista, será necessária uma digressão a Heidegger, a qual é justificada pela visão em
retrospectiva da própria fenomenologia, o que por ora não é possível de ser feito 17. Essa
digressão intenta mostrar como a crítica de Adorno faz sentido quando passamos a ler os
autores também negando-os, ou lê-los de forma que seu pensamento diga mais do que lhes era
consciente. Ao fazer isso a crítica de Adorno nos ajuda a seguir em frente, mas não sem os
autores, não sem tê-los como fundamento.

17
Ao reflexionar sobre a fenomenologia, ainda que isso ocorra partindo de autores específicos, é basicamente
impossível passar ao largo dos desdobramentos da mesma. Negar esse caráter retrospectivo de minha leitura
seria resignar-me a uma leitura descritiva. Entretanto, minha intenção é ao final poder discutir teoria da história,
e uma leitura meramente descritiva da fenomenologia nem de longe ajudaria em tal discussão.

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Com toda discussão realizada até aqui, obtivemos apenas uma prospecção sobre
essa rica temática ainda pouco explorada em seu potencial. Optou-se por apresentar os aportes
teóricos que poderão fundamentar o trabalho empírico pretendido. Espero em futuro próximo
poder oferecer maior detalhamento das noções de afrociberdelia e afro-futurismo na obra de
CSNZ, à luz dos conceitos discorridos.

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2007.
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(trad.). Imprensa Nacional- Casa da Moeda [s/d]
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VARGAS, Herom. Hibridismos Musicais de Chico Science e Nação Zumbi. São Paulo: Ateliê
Editorial. 2007.

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ECOS DA FOTO: ACERVOS FOTOGRÁFICOS E MEMÓRIAS DE PESSOAS IDOSAS

Tati Lourenço da Costa 1

Resumo: Este trabalho constrói-se na experiência de campo do projeto cultural Memórias da


Cidade-ecos, realizado durante o ano de 2007 (em Londrina-PR), sob minha coordenação e
sobre o qual desdobro minha pesquisa. Ecos se expressam em álbuns de memórias compostos
artesanalmente, agregando saberes em linguagens visuais e escritas, onde fotografias pessoais
e familiares de épocas diversas figuram narrativas e perenizam-se em vídeos. O debate
metodológico busca observar a composição de narrativas de memória em relação com a
utilização de fotografias durante entrevistas de história oral. Perspectivas do olhar, momentos
em que lembranças ganham espaço e significados no presente, encontram pertencimento na
memória coletiva, relacionam-se com a história, expressam-se nas imagens ou a partir delas.

Palavras-chave: Fotografia, memória, narrativas.

Abstract: This work‘s built inside a practical experience, the cultural project called City
Memories – echoes, which were developed during the year of 2007 (at Londrina, Paraná
State, Brazil). I‘ve coordinated this project and now I have a research on it. Echoes express
themselves inside memory albums, which were handicraft composed, collecting knowledge
expressed by visual and written languages. A place were personal and family photos, from
different times, make narratives and maintain themselves on videos. The discussion about the
method developed intend to observe the memory narrative discourses compositions in
relationship with uses of photographs in oral history interviews. Seeing perspectives,
moments when reminds find spaces and meanings at the present times, find belongings to the
collective memory, and also make relations with the history, expressed in images or starting
from its.

Keywords: Photography, memory, narratives.

1
Mestranda em História pela Universidade Estadual de Santa Catarina – UDESC. Contato com a autora:
tatilcosta@yahoo.com.br

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Imagem 1. Elza Sanna
Heffer. Acervo projeto
Memórias da Cidade –
ecos. Foto: Daniel
Choma, Londrina, 2007.

A observação das relações que se estabelecem entre pessoas idosas e suas


fotografias, sendo estas pessoas testemunhas do processo de transição das técnicas
fotográficas, da transição de significados e do espaço social da imagem fotográfica, abre
caminhos para discussões teórico-metodológicas sobre a fotografia como documento de
pesquisa histórica e o vídeo como ferramenta de produção e circulação de memórias.
Associado a isto, o estudo da estruturação dos discursos narrativos da memória permite
compreender relações subjetivas entre memória individual e memória coletiva. O processo de
identificação e construção de subjetividade presente nas narrativas da memória, confere
sentidos ao passado a partir do presente, ao mesmo tempo em que estrutura sentimentos de
pertencimento social e cultural. As linguagens diversas da fotografia, do vídeo e da oralidade,
a partir da memória, permitem esboçar identificações dos idosos com o processo histórico que
vivenciaram, em diálogo com o presente em que estão inseridos e com o espaço da
experiência e do envelhecimento no contemporâneo.
A integração das linguagens fotográfica e oral como expressões de experiências a
partir da memória se configura como algo pertinente à contemporaneidade tendo em vista a
massiva concentração de imagens, cujo papel social chega à própria mediação das relações

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entre indivíduos, onde imagens atuam como geradoras de necessidades de consumo, tanto
quanto definidoras de identidades ou motoras de identificações 2.
Observo a princípio, a questão nada objetiva das relações da história com o
passado. De Walter Benjamin: ―A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado
só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente no momento em que é
reconhecido‖ (Benjamin, 1987:224). Convergente à história do tempo presente, Benjamin
alerta o historiador para a percepção de que a atribuição de sentidos que a história confere ao
passado é algo feito à luz do presente. ―Articular historicamente o passado não significa
conhecê-lo ‗como ele de fato foi‘. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo‖ (Benjamin, 1987:224).
Trajetória arriscada proposta por Benjamin é a que seguiremos por aqui pois a
apropriação de um lampejo instantâneo é também o que fazemos ao olhar para uma fotografia.
Barthes: ―Ao olhar uma foto, incluo fatalmente em meu olhar o pensamento desse instante,
por mais breve que seja, no qual uma coisa real se encontrou imóvel diante do olho‖ (Barthes,
1984:117), momento em que apenas pela luz é feito o trabalho de perenizar e ligar, o que foi o
real fotografado à realidade do olhar que é agora.
Na perspectiva de uma pós-moderna história vista como ―histórias que narram o
passado‖, Keith Jenkins debate: ―que o mundo ou o passado sempre nos chegam como
narrativas e que não podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem ao mundo
ou ao passado reais, pois elas constituem a ‗realidade‘‖(Jenkins, 2001:28). Numa aproximação
entre as propostas de Benjamin e Jenkins, pode-se compreender que as reminiscências do
passado nos chegam através de discursos narrativos que relampejam nas fontes históricas
(aqui nos encontramos também com a fotografia vista por Barthes). Discursos fragmentários e
parciais dos quais somos observadores e aos quais atribuímos sentidos do ponto de vista do
presente, na ânsia de tentarmos conhecer o que seja sua verdade.

PRIMEIRO INSTANTÂNEO
MEMÓRIAS DA CIDADE - ECOS3, SOBRE UM CAMPO DE AÇÃO CULTURAL.

2
―A identidade torna-se uma ‗celebração móvel‘: formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam‖ (Hall, 2000:12-13).
3
As informações sobre o projeto que trago aqui integram também o livreto que acompanha o DVD: ―Da
fotografia e dos discursos amorosos que se constroem em torno dela, eis este pequeno álbum. Silencioso e
fragmentário, como lembranças.‖ Material redigido a quatro mãos, por mim e Daniel Choma, com quem

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A experiência deste projeto caracterizou-se por uma proposta de oficinas
integradas Fotografia e Memória, História e Palavra e Produção Radiofônica. Realizadas
com 30 participantes em dois lugares diferentes da cidade de Londrina: o grupo de integrantes
do Programa Universidade Aberta à Terceira Idade4 e os estudantes do Ensino de Jovens e
Adultos/Alfabetização da Escola Municipal Carlos Kraemmer. O trabalho partiu de
fotografias pessoais antigas e das narrativas a elas relacionadas para a composição artesanal
de ―Álbuns de memórias‖. O processo resultou também na edição de oito curtas radiofônicos,
oito documentários em vídeo digital e exposição fotográfica.
―Uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta
como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu‖ (Bosi, 2003:69).
Quando preparamos o projeto cultural para submissão ao edital municipal de
incentivo à cultura5 não tínhamos ainda entrado em contato com o texto de Ecléa Bosi
proximamente quase homônimo 6 (não fosse o plural das memórias a que nos propusemos)
mesmo já impregnados que estávamos então da leitura de Memória e Sociedade: lembranças
de velhos (Bosi, 1994).
Neste momento presente, em que empreendemos a leitura depois das atividades
culturais já concluídas e do andamento da pesquisa acadêmica, impressionam alguns pontos
de encontro aos quais converge minha narrativa sobre as ações realizadas: sobre ―a
importância da coletividade no suporte da memória‖ (Bosi, 2003:70): ―As lembranças se
apóiam nas pedras da cidade‖ (Bosi, 2003:71), podemos relacionar as atividades sobre as
oficinas de Fotografia e Memória e História e Palavra. Sobre a relevância de um ―mapa
sonoro‖ da cidade, converge a Produção Radiofônica . E sobre o papel da memória oral como
―intermediário cultural entre gerações‖ (Bosi, 2003:73), ponto de encontro com as Outras
imagens: apresentações a estudantes, documentários, exposição fotográfica.

compartilho a coordenação do projeto e todas as atividades a ele relacionadas, desde a idealização até a
finalização dos materiais resultantes. E ainda hoje esta parceria ecoa também na realização das entrevistas em
vídeo por ocasião do projeto de pesquisa acadêmica que desenvolvo no Mestrado-PPGH/UDESC.
4
UNATI. Departamento de Serviço Social. Universidade Estadual de Londrina (UEL).
5
A possibilidade viabilizada pela política cultural da cidade, com a abertura de edital público voltado à
diversificação de memórias e narrativas, apresenta-se como uma forma democrática para dar voz a múltiplas e
pequenas ações, relacionadas e comprometidas com o local, viabilizando condições materiais necessárias para
efetivação de registros, perenização, circulação de memórias.
6
Refiro-me ao capítulo Memória da Cidade: lembrança paulistana.

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Imagem 2. Marina
Feltrin Ricci. Acervo
projeto Memórias da
Cidade – ecos. Foto:
Daniel Choma.
Londrina, 2007.

O trabalho de rememoração e narrativa teve espaço em entrevistas individuais de


história de vida registradas em vídeo, uma ferramenta essencial para garantir o registro de
aspectos visuais, sonoros, gestuais e sensíveis da relação entre as pessoas e suas fotografias.
Desta forma experiências compartilhadas a partir de vivências individuais puderam se
desdobrar também em linguagem estética ancorada no contemporâneo.
A análise do processo de construção de narrativas da memória por pessoas idosas
em minha pesquisa busca discutir as relações entre os indivíduos e seus olhares sobre o
processo histórico em que estão inseridos considerando como elemento o interesse ideológico
que permeia a escrita da história (Jenkins, 2001). Algo também presente no caso da fonte oral,
pois é ideológica a construção da imagem que uma narradora faz de si mesma, sua narrativa
se faz de lembranças e esquecimentos que se acomodam às condições de sua construção (seja
um conselho ao neto, uma fala à câmera ou uma entrevista à pesquisadora). O que é lembrado
ou esquecido depende de quem quer e para quê quer lembrar.

HISTÓRIA E PALAVRA.

Nas oficinas de História e Palavra propunha-se um momento de introspecção onde


os participantes escreviam, individualmente, em casa, sobre suas relações com a fotografia, a
memória e o envelhecimento: Sobre cada uma das fotografias... O que sinto ao olhar as

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fotografias? Por que guardar fotos antigas? Lembrar com as fotografias e lembrar sem elas...
Que história ou histórias conto a partir das fotografias? ―A história que eu vou contar é sobre
recordações, lembranças e saudades‖. 7

Imagem 3. Zenaide
Maia. Acervo projeto
Memórias da Cidade –
ecos. Foto: Daniel
Choma. Londrina,
2007.

Nas escritas sobre lembrar com fotografias, é possível identificar considerações


relativas ao aspecto de prova, vestígio, registro que garante a perenização do passado ao longo
das gerações, imagem que gera compreensão histórica. Perspectivas que abarcam a concepção
proposta por Philipe Dubois (1994:72-80) da fotografia como ―traço de um real‖, em seus
princípios de ―singularidade, atestação e designação‖. Ou seja, ao mesmo tempo a foto é a
marca indiciária de um único, singular, específico que é o real fotografado, atesta, certifica
sua existência e designa este real como referência da imagem. Por estas especificidades, o
autor faz referencia a álbuns de família em suas motivações e usos ―que tendem todos a
atribuir à foto uma força particular, algo que faça dela um verdadeiro objeto de crença, além
de qualquer racionalidade, de qualquer princípio de realidade ou de qualquer estetismo‖
(Dubois, 1994:80).
As reflexões escritas dos participantes sobre o envelhecimento e a passagem do
tempo expressam visões retrospectivas de orgulho, envelhecer como conquista, juventude de
espírito, vitórias sobre as lutas e dificuldades que o cotidiano e a vivência estabelecem no
decorrer da trajetória humana. Fabiana Bruno discorre sobre a ―importância dos Baús
Fotográficos para a velhice‖ (Bruno, 2003:58) numa sensível abordagem acerca dos espaços

7
Escrita de Zenaide Maia em resposta à questão ―Que história ou histórias conto a partir das fotografias?‖
Proposta na oficina da palavra.

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da velhice e da narrativa em relação à imagem fotográfica, segundo a autora: ―Experiências,
até então cravadas no silêncio singular da fotografia vão se rompendo pelo desvendamento e
voz que emergem da memória da pessoa idosa, num momento de vida em que suas
lembranças se cruzam com o tempo do envelhecimento‖ (Bruno, 2003:58). É a memória que
se configura como uma ação, um trabalho sobre o tempo, como sugere Ecléa Bosi (2004:53).

OUTRAS IMAGENS.

Ecos se expressaram em Álbuns de memórias compostos artesanalmente,


agregando saberes em linguagens visuais e escritas, onde fotografias pessoais e familiares de
épocas diversas figuraram as narrativas. Também desdobraram convívios, perenizando-se e
multiplicando-se em vídeos, fotografias, curtas radiofônicos. São as ―outras imagens‖ que o
trabalho com as lembranças destas pessoas idosas desdobrou para além das oficinas e dos
trabalhos individuais. As atividades de difusão foram realizadas seguindo o intuito de
relacionar o projeto cultural ao espaço social que o circunda. Descrevo-as a seguir tomando
por base a experiência acumulada ao longo de sete anos atuando como coordenadora de
oficinas e projetos artístico-culturais com pessoas idosas e cujos resultados buscam sempre a
interação com o espaço social e cultural que os participantes estão envolvidos, a consolidação
de resultados materiais em fotografia, vídeo, entre outros meios de registro e a promoção
intergeracional.

PRODUÇÃO RADIOFÔNICA.

Pelo rádio se transmitiam notícias e se estruturava o imaginário das crianças de


antigamente, hoje avós e bisavós, para quem o rádio foi praticamente o único veículo de
comunicação imediata. Por esta experiência compartilhada, fragmentos histórias narradas
durante as entrevistas foram editados na forma de curtas radiofônicos, transformados em
brincadeiras na linguagem do rádio e foram utilizados nas escolas em atividades interativas
com os estudantes onde se buscou estimular a criatividade a partir da audição destes curtas e
da realização de desenhos sobre as histórias ouvidas no rádio que seriam adiante presenciadas

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ao vivo. Como uma integração de linguagens: rádio, fotografia, desenho, vídeo e narração de
histórias, as crianças num dia ouviam os curtas e recebiam pequenas reproduções das
fotografias antigas a que as histórias se referiam. No dia seguinte, estas fotografias eram
retomadas durante a apresentação, para que os alunos pudessem estabelecer relações entre as
imagens, histórias ouvidas em áudio e os personagens reais contando suas memórias ao vivo.

Imagem 4.
Marina em
apresentação a
estudantes. Acervo
Memórias da
Cidade – ecos.
Foto: Daniel
Choma. Londrina,
2007.

APRESENTAÇÕES A ESTUDANTES.

Com os álbuns em mãos os idosos contaram suas histórias a estudantes da rede


pública de ensino fundamental8. As relações de troca e respeito mútuo presenciadas nas
apresentações demonstram que o convívio intergeracional e comunitário pode caracterizar
como uma das possíveis soluções para o problema da desagregação no espaço escolar. Esta
afirmação se pauta pela experiência acumulada ao longo de sete anos de desenvolvimento de
trabalhos que integram iniciativas culturais e artísticas desenvolvidas com pessoas idosas e
ações de difusão com parcerias em escolas. Desde 2002, participo da coordenação de oficinas
de teatro, vídeo e fotografia junto a pessoas idosas. Ao longo deste período foram realizadas
oficinas em diversas cidades dos estados do Paraná e São Paulo, das 38 oficinas
desenvolvidas, 13 tiveram parcerias com escolas resultando em cerca de 30 apresentações a
estudantes. Diante dos depoimentos coletados ao longo do período nas apresentações e em
relatos posteriores de professoras, coordenadoras pedagógicas e dos próprios alunos,
consolidam-se resultados relevantes para pontuar tal afirmação.

8
Tais atividades foram realizadas na parceria com o Colégio de Aplicação da Universidade Estadual de
Londrina, com apresentações de primeira a quarta série do Ensino Fundamental.

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Histórias contadas a partir de fragmentos fotográficos - instantes irreversíveis
congelados no tempo e no espaço -, seguiam fios condutores das memórias latentes e se
encontraram com histórias compartilhadas na memória coletiva. O encontro de gerações
proporcionado nas apresentações a estudantes revelou o respeito e interesse que as crianças
podem ter pelos mais velhos quando estes se põem a narrar histórias através de imagens.

EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA.

Uma exposição fotográfica (contendo 24 imagens dos álbuns de memórias e


bastidores), com ambientação sonora dos curtas radiofônicos também circulou memórias por
trajetórias da cidade. Geravam assim, representações imagéticas pontuadas por inserções
sonoras. Suspensas e simultaneamente inseridas no tempo e no espaço. Diversificação de
públicos e visões no cotidiano da cidade de encontro com a sugestão de Ecléa Bosi: ―A
cidade, como a história de vida, é sempre a possibilidade desses trajetos que são nossos
percursos, destino, trajetória da alma.‖ (Bosi, 2004:75)

DOCUMENTÁRIOS EM VÍDEO.

A opção pelo vídeo como registro das entrevistas foi debatida por sua amplitude
diversificada de linguagem. A respeito da utilização do vídeo como fonte e ferramenta de
pesquisa cabe considerar aspectos subjetivos envolvidos no processo de realização de cada
entrevista. O momento da tomada do depoimento, a relação depoente-pesquisador bem como
a tecnologia empregada para o registro audiovisual, são alguns fatores que influenciam no
conteúdo do que será contado ou omitido, lembrado ou esquecido.
O audiovisual como expressão de diversidades é também uma ferramenta de
produção e circulação de memórias, com enfático papel no processo de reconhecimento e de
perenização de uma auto-imagem. A edição dos documentários, na fase final do projeto,
quando já todo o processo das oficinas havia se encerrado buscou uma construção
fragmentada em temáticas recorrentes, com uma atenção também à composição estética desta
linguagem como narrativa. Perspectivas de edição foram compostas com leituras, linguagens

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e abordagens diversas. Assim como a memória trabalha, relacionando o passado a partir do
presente, compondo uma trajetória que tem significados conforme se narra, conforme é
chamada a narrar. Os documentários representam algumas leituras possíveis, para o
movimento de fragmentos que se unem e se separam compondo a narrativa. Percurso que se
traça, em muito, na edição, o processo de construção audiovisual se traduz também como
construção de uma narrativa. A partir de uma única entrevista, de um indivíduo, surgiram
temáticas variadas que se relacionam com a história, com a memória coletiva. A partir do
cruzamento de movimentos narrativos dos diversos depoentes e de suas imagens, surgiram
oito documentários reunidos em DVD também contendo os curtas radiofônicos.

SEGUNDO INSTANTÂNEO
ECOS DE MEMÓRIAS, SOBRE UM FRAGMENTÁRIO PERCURSO DE PESQUISA.

Como vozes que ecoam para novas memórias, as histórias foram narradas à
comunidade, a crianças estudantes, aos familiares. Mais adiante, o Álbum mantém-se em
construção em seu próprio percurso onde ganha novas fotografias com revisões e ampliações
narrativas. O DVD que reúne curtas em áudio e vídeo e um livreto com imagens do tempo de
convívio serve à sociabilidade com os próximos. Como objetos biográficos9 ―pois envelhecem
com o possuidor e se incorporam à sua vida‖ (Bosi, 2003:26), ocuparão espaços visíveis da
casa, Marina os guarda na cristaleira!
No momento em que a pessoa toma contato com sua fotografia, retirada de um
álbum, de uma caixa ou gaveta, há muito não mexida, ou mesmo da parede onde pendem os
retratos, estas imagens – relicários pessoais –, desdobram-se em reconstruções históricas,
narrativas que revelam identificações. São momentos de composição narrativa, em que
lembranças ganham espaço e significados no presente, encontram pertencimento na memória
coletiva, relacionam-se com a história, expressam-se nas imagens ou a partir delas.
Relatado o processo em que se constituiu um extenso campo, minha pesquisa
sobre o campo teórico-metodológico da história do tempo presente se detém em um
fragmentário lampejo que ilumina, no grupo da Unati, quatro senhoras que colaboram como
fontes orais. Aí mergulho numa modalidade do olhar em profundidade (Samain, 1998) para

9
Conceito de Violette Morin discutido por Ecléa Bosi.

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investigar relações entre imagens fotográficas e narrativas da memória por pessoas idosas.
Realizei com cada uma delas, três entrevistas:
- Entrevistas de história de vida/temáticas. (Gravadas em áudio, 2007):
Contemplaram aspectos gerais da trajetória familiar e individual como base de comparação
entre os depoimentos para observar identificações expressas de acordo com gerações ou
etapas da vida de maior relevância para cada pessoa. Assim como investigaram também
aspectos da trajetória individual, por tema específico a cada entrevistada, a fim de buscar
características próprias de acordo com as fotografias já conhecidas e aprofundar as questões
que poderiam emanar das imagens que se encontravam ainda ausentes nestas entrevistas.
- Entrevistas sem a utilização de fotografias ou materiais de apoio, a respeito
da experiência de participação do projeto e construção do álbum de memórias.
(Gravadas em vídeo, 2008): A relação das pessoas, em certo tempo distanciado (cerca de um
ano) com as experiências vividas no processo da participação no projeto, construção dos
álbuns de memórias e sobre a atividade de se lembrar com as fotografias e lembrar sem elas...
- Entrevistas com a utilização dos álbuns de memórias e fotografias pessoais.
(Gravadas em vídeo, 2008): Buscaram observar a relação dos indivíduos com suas
fotografias guardadas ao longo dos tempos, histórias narradas a partir do álbum de memórias
e sentimentos dali despertados. Investigaram motivações para as escolhas das fotografias que
compõem o álbum, possíveis complementos, recortes ou esquecimentos. Contemplaram
também uma sistematização dos dados referentes a cada imagem presente no álbum.
Além destas entrevistas a pesquisa analisa como cruzamento de fontes os
materiais referentes ao desenvolvimento do projeto cultural citado, sempre em relação às
quatro colaboradoras. Trata-se de registros fotográficos dos álbuns de memórias; registros de
bastidores em fotografia e vídeo; escritas dos participantes nas oficinas da palavra; caderno de
campo redigido por mim durante o preparo, realização e fechamento do projeto; entrevistas
em vídeo registradas durante o projeto; vídeos editados como resultados materiais do projeto
e outros depoimentos escritos pelas participantes por ocasião das atividades do projeto.
A seleção das pessoas colaboradoras seguiu o critério das fotografias pessoais
apresentadas em paralelo com suas narrativas 10. A estruturação da oralidade, o aspecto

10
Fotos e depoimentos registrados durante o projeto cultural citado. Vale detalhar que para a realização das
entrevistas e divulgação de resultados deste projeto de pesquisa, todas as colaboradoras formalizaram
concordância com a utilização de seus nomes reais, visto que a profunda identificação dos álbuns de memórias
com suas possuidoras inviabilizaria a utilização de suas imagens caso fosse necessário utilizar pseudônimos para
ocultar as identidades.

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expressivo das imagens, a ligação afetiva das entrevistadas com suas fotografias foram os
pontos mais relevantes, procurando valorizar também a diversidade de narrativas que se
formaram a partir da relação das pessoas velhas com suas imagens, expressões de diversas
sensibilidades. Vamos a algumas de suas imagens:

Imagem 5. Álbum de
memórias de Elza Sanna
Heffer. Capa, onde se lê:
Recordações Elza Sanna
Heffer. Foto: Daniel
Choma. Londrina, 2007.

Elza Sanna Heffer. 68 anos. Artista plástica que já expressa esta escrita de si na capa
de seu álbum com uma pintura. Em relação à estética se observa também nas fotografias do
interior do álbum uma diferenciada expressividade de ângulos, recortes e poses. Em relação
ao período de sua produção estas imagens sugerem a presença de uma prática fotográfica no
circuito familiar, trazem-nos um outro olhar, que não a formalidade dos fotógrafos de então,
imagens diferentes das que comumente vemos em retratos da década de 1950. É o caso de
seu retrato fotografado por seu marido ao espelho na lua de mel, ou sentada na varanda
(grávida da primeira filha). E mesmo com as especificidades imagéticas, seu álbum traz uma
expressão de trajetória familiar 11 que se inicia no navio de imigrantes onde teriam vindo seus
avós e se encerra recomeço representado pela gravidez da primeira filha.

11
A considerar que se trata de narrativas femininas, cabe observar que esta temática é recorrente nos quatro
álbuns analisados.

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Imagem 6. Nona/última
página do álbum; onde se
lê: 1959. Grávida de
minha primeira filha, após
isso segui minha vida,
mais dois filhos, sete
netos, uma vida com fatos
e lembranças perfeitos.
Ass: Elza Heffer. Foto:
Daniel Choma. Londrina,
2007.

Imagem 7. Álbum de memórias de


Marina Feltrin Ricci, sétima
página; onde se lê: Eu segurando a
foto do casamento. 47 anos de
casamento logo chego Bolda de
Ouro. Foto: Daniel Choma.
Londrina, 2007.

Marina Feltrin Ricci. 65 anos. Os avós, imigrantes da Itália compraram terras no


Paraná e migraram para derrubar mata e trabalhar como agricultores, plantando café na
região. A família viveu reunida no sítio do avô até sua morte, coincidente com a decadência
do café. O sítio foi então dividido entre os filhos (no caso, pai de Marina). Dentre as
fotografias trazidas por ela, destaca-se o registro das bodas de ouro de seu avô, ocasião em
que ela tinha apenas 5 anos. Da festa que reuniu toda a família, ela se lembra dos homens
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cavando os buracos em que seriam acesas fogueiras para assar churrasco de três bois. Ela se
12
lembra de ficar com medo daqueles ―buracos enormes‖ . Na imagem, 3 homens na
formalidade bem característica dos
retratos antigos, segurando
enormes espetos de churrasco
assado. Marina diz ser a única
lembrança de seus 5 anos. A
questão provocadora: Marina se
lembraria da festa, de sua
impressão sobre os ―buracos
enormes‖ se não houvesse a
curiosa foto dos homens com os
Imagem 8. Terceira página do álbum; onde se lê: Boldas de Ouro
espetos de churrasco? dos meus avós e os genros e uma tia foram dois boi para a festa.
Foto: Daniel Choma. Londrina, 2007.

Imagem 9. Álbum de memórias de


Zenaide Maia, capa; onde se lê: Essa é a
casa – sede da Fazenda São José – Bom
Sucesso PR. Essa fazenda foi de meus
pais, por muitos anos eles aqui moravam
e meus filhos e eu vínhamos passar as
férias escolares. Nessa época Cris estava
com 7 ou 8 anos. Essas são Cris e
Zenaide, filha mãe. Foto: Tati Costa,
Londrina, 2008.

Zenaide Maia. 80 anos. A fotografia trazida por ela é o registro recente de uma
casa que há tempos só existia em sua memória tirada quando sua filha a levou para revisitar o
sítio que foi de seu pai de 1956 a 1969. Sua narrativa viaja no tempo ao mostrar-nos a casa
que ainda é a mesma, de madeira, com uma estradinha de terra que leva à antiga área de
plantio. A partir desta imagem única se desdobram inúmeras lembranças, ―ainda hoje, quando

12
Depoimento de Marina Feltrin Ricci sobre a fotografia citada, registrado por mim no caderno de campo do
projeto Memórias da Cidade – ecos, durante a construção dos álbuns de memórias (Londrina, maio-junho/2007).

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13
recordo, me vem o cheiro e o gosto daqueles pães que mamãe fazia no forno a lenha‖ .
Intriga-me a fotografia, registro presente de um passado distante, imagem que detona
memórias em vários sentidos, extrapolando o visual. O paladar, o cheiro, a luz da casa
ganham forma na fala de Zenaide sobre um período feliz de sua vida. Ela diz 14 que lembrar
com as fotos é melhor, reaviva a memória.

Imagem 10.
Quarta/última página
do álbum; onde se lê:
Esta foto está muito
linda, não? Eu
mostrando a foto
tirada na frente da
casa - sede da Fazenda
São José em Bom
Sucesso. Foto: Tati
Costa. Londrina, 2008.

Imagem 11. Elza Nabuko


Matsubara do Nascimento
com seu álbum de
memórias, na capa se lê:
Elza Matsubara e família.
Foto: Daniel Choma.
Londrina, 2007.

Elza Nabuko Matsubara do Nascimento. 60 anos. Elza nos trouxe os álbuns de


fotografias de seu pai, organizados e guardados por ele ao longo de anos. Ao estruturar seu

13
Depoimento de Zenaide Maia registrado por mim no caderno de campo do projeto Memórias da Cidade –
ecos, durante a construção dos álbuns de memórias (Londrina, maio-junho/2007).
14
Resposta escrita de Zenaide Maia à questão Lembrar com fotografias e lembrar sem elas... Proposta na oficina
da palavra, durante o projeto cultural Memórias da Cidade – ecos, Londrina, 2007.

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álbum de memórias, Elza reconhece seu pertencimento à família e o compõe como narrativa
de uma sansei, sempre em relação com a história dos seus pais. Sua narrativa recria, pela
interação do presente com a memória, representações de imaginários e memórias em torno da
experiência da migração japonesa. Elza faz do álbum uma oportunidade de revisitação e
reconhecimento desta trajetória. A narrativa inicia-se com a descrição sobre a vinda de seus
pais do Japão ao Brasil, tem seu fim no registro das ―Bodas de Diamante‖ deles, celebração
do vivido em 60 anos. E para além deste ´fim´ narrativo, seus pais ainda hoje vivem. Na
oficina da palavra, a pergunta: ―Que histórias conto a partir das fotografias?‖ Por escrito,
responde Elza: ―A longa viagem que meus pais fizeram para chegar ao Brasil. Até hoje os
japoneses falam da extensa terra do Brasil.‖ 15

Imagem 12. Álbum de Elza Matsubara,


primeira página; onde se lê: Meus pais
são naturais de Hokaido – Japão.
Passaram pelo Belém do Pará, em
Amazonas e depois fixaram-se em Assai -
Paraná. Cresceram na mesma colônia
trabalhando e se conheceram. Hoje, já
fizeram ―Bodas de Diamante‖. Muitas
felicidades aos meus pais. Foto: Daniel
Choma. Londrina, 2007.

―Mas só merece de nós um esforço aquilo que amamos‖ (Bosi, 1993:125). A


relação de amizade gerada pelo convívio e troca de experiências durante a realização do
projeto cultural representou o elo e a motivação prática para desenvolvimento desta pesquisa
cujos desdobramentos serão assunto para uma outra trajetória de minha escrita. Por ora cabe
aqui pontuar que descobertas e questionamentos surgiram da vivência cotidiana, em que
idosos e pesquisadora compartilharam histórias, reflexões, trilhas da memória abertas à
extensão da caminhada.
O desafio que suspende a presente narrativa nestes momentos finais pontua-se
pela tensão ―Entre a opinião e o estereótipo‖ discutida por Ecléa Bosi: ―Onde queríamos
estampar a fisionomia viva do narrador, imprimimos os traços secos da máscara. É o gesso do
estereótipo que perpetua lembranças enquanto as imobiliza e resume‖ (Bosi, 2003:113). Pelo
movimento da máscara, para que possamos estar atentos à maleabilidade do espaço de

15
Escrita de Elza registrada na oficina da palavra, durante o projeto Memórias da Cidade – ecos, Londrina, 2007.

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construção de si do narrador acredito valer a consideração do comprometimento em conjunto
com a simpatia e o envolvimento. Mais uma vez Ecléa Bosi ilumina a reflexão: ―Elas [as
pessoas colaboradoras] nos aparecem como que embaçadas pelo estereótipo, e é preciso
tempo e amizade para um trabalho paciente de limpeza e reconstituição da figura do amigo,
cujos contornos procuramos salvar cada dia do perigo de uma definição congeladora‖ (Bosi,
2003:117). A autora trabalha na noção da ―comunidade de destino‖, proposta de Jaques Loew,
que passa pelo comprometimento entre pesquisadores e seus colaboradores para que se possa
aproximar do que ela propõe como uma ―compreensão plena de uma dada condição humana‖
(Bosi, 1994: 38).
Nesta reflexão recorro também à própria natureza da imagem fotográfica como
uma narrativa imagética e fragmentária do momento vivido. Irreversível mas que sempre
retorna: ―pois, a cada olhar, nunca vemos somente o que será representado de uma vez para
sempre na superfície da imagem. Há sempre o presente da nossa percepção diante dela e ali
tudo é único e singular‖ (OMAR, [2000]:5). Assim é que ao fechar busco deixar também em
aberto para outras perspectivas de visão alguns de meus olhares sobre campos da pesquisa
histórica que considerem a interação com as práticas da ação cultural, do trabalho da memória
por pessoas idosas e da composição narrativa sobre fotografias. Como possibilidade de
diversos presentes da percepção onde podem operar em equilíbrio comprometimento,
envolvimento e distanciamento.

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Seção

Artigos Livres

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ANCHIETA, JOSÉ DO BRASIL:
CINEMA, REPRESENTAÇÃO E MEMÓRIA EM TEMPOS DE DITADURA
MILITAR 1

Eliane Cristina Deckmann Fleck 2

Fernanda Uarte de Matos 3

Resumo: O presente artigo analisa o filme Anchieta, José do Brasil, de 1977, vinculando-o
aos contextos de sua proposição, produção e exibição. Procura-se, sobretudo, desvendar as
representações e a memória que o filme veiculou sobre o missionário jesuíta José de Anchieta
– que teve um dia instituído em sua homenagem pelo presidente Humberto Castelo Branco,
em 1965 –, relacionando-as com o projeto de Estado e com a moral defendida pelo regime
militar.

Palavras-chave: Anchieta, Cinema Novo, Ditadura Militar.

Abstract: This article analyzes the film Anchieta, José do Brazil, 1977, linking it to the contexts of
its making, production and exhibition. The aim is, above all, reveal the representations and the
memory that the film aired on the Jesuit missionary José de Anchieta – which once had established in
his honor by President Humberto Castelo Branco, in 1965 – and relate them to the project of state and
with morals advocated by the military regime.

Key words: Anchieta, New Cinema, Military Dictatorship.

1
Este artigo resulta da pesquisa realizada para o subprojeto ―O Dia de Anchieta e sua repercussão nas atividades
culturais e educacionais nas décadas de 60 e 90 do século XX‖.
2
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e Professora do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – São
Leopoldo, RS – Brasil. Contato com a autora: efleck@unisinos.br
3
Graduanda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista de Iniciação Científica pela
UNISINOS – UNIBIC, vinculada ao projeto de pesquisa ―Dos fins da política e da religião: o pensamento
anchietano e sua apropriação pelo Regime Militar‖, que conta com o financiamento do CNPq, FAPERGS e
UNISINOS. Contato com a autora: feuartedematos@gmail.com

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Resta agora estudar o filme, associá-lo com o mundo que o
produz. Qual é a hipótese? Que o filme, imagem ou não da
realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura
invenção, é História. E qual o postulado? Que aquilo que
aconteceu (e por que não aquilo que não aconteceu?), as
crenças, as intenções, o imaginário do homem, são tão História
quanto a História.

(FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1992, p.86.)

1. ANCHIETA E A INSTITUIÇÃO DO DIA EM SUA HOMENAGEM.

O jesuíta José de Anchieta S.J4 ocupa lugar de incontestável importância histórica


e religiosa no imaginário nacional, sendo reconhecido como Apóstolo do Brasil, construtor da
nossa nacionalidade e defensor da unidade e da integridade da nação. Representações como
estas, foram resgatadas e apropriadas com vigor no período em que se deu a implantação da
ditadura militar no Brasil. Podendo-se constatar isso na instituição pelo então Presidente da
República, Marechal Castelo Branco, do ―Dia de Anchieta‖ em 1965, a ser comemorado com
excepcional relevo, oficialmente, em todo o país, 5 no dia 9 de junho.
Não havendo qualquer razão para, neste ano, homenagear Anchieta – como vinha
ocorrendo por ocasião dos centenários de sua morte – o jesuíta teve sua imagem e seu
pensamento apropriado pelos segmentos sociais e políticos identificados com o golpe de
1964. Acreditamos que uma das causas para tal resgate tenha sido a postura conservadora
governista que, orientada para o combate ao comunismo, identificou no jesuíta a defesa de
uma formação moral e religiosa do povo brasileiro e do território português diante das
ameaças estrangeiras.
Cabe lembrar que o pensamento anchietano, ao qual fazemos referência, traz
consigo características medievais, sendo fortemente marcado pela concepção da inexistência
de uma fronteira nítida entre os fins da política e os da religião e pela legitimidade do uso da
força contra os infiéis. Alvim e Costa explicam que ―Anchieta permanecia fiel ao espírito
medieval de unidade da fé e do reino. (...) Para Anchieta, a missão primeira do governador era

4
José de Anchieta nasceu no ano de 1534, em Tenerife, nas Ilhas Canárias. Em 1551 ingressou na Companhia
de Jesus e, aos dezenove anos, deixou Portugal, onde realizou seus estudos, numa expedição missionária ao
Brasil, em 1553. O padre, doente, esperava encontrar ares saudáveis para sua recuperação na América, onde
permaneceu por 44 anos, até falecer, em 1597, na cidade de Reritiba, Espírito Santo.
5
Decreto nº 55.588, de dezoito de janeiro de 1965.

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estar presente, através da força das armas, na missão de conversão das almas americanas‖
(ALVIM, COSTA, 2005:5).
À instituição do Dia de Anchieta, em 1965, sucederam-se várias iniciativas
culturais e cívico-educacionais 6 promovidas por uma Comissão Nacional7 – nomeada pelo
presidente Marechal Castelo Branco – e que tinham como objetivo a divulgação da vida e da
obra do missionário jesuíta. Além de ciclos de conferências, biografias foram publicadas e
reeditadas, monumentos foram erguidos e sessões cívicas8, nas escolas foram realizadas.
Também encenações teatrais e a produção de um filme estavam previstas, visando atender a
um público mais amplo. Dentre os documentários e filmes que enfocaram o missionário
jesuíta José de Anchieta, produzidos durante a vigência do regime militar, destacamos
Anchieta, José do Brasil, que foi, oficialmente, produzido em 1977, pela Embrafilme.
Este artigo se detém, portanto, na análise do conteúdo deste filme e em aspectos
de sua produção, procurando, assim, desvendar as representações que o filme veicula sobre
José de Anchieta, o missionário jesuíta que teve um dia instituído em sua homenagem pelo
primeiro presidente do regime instalado em 1964.

2. ANCHIETA, JOSÉ DO BRASIL: O DOCUMENTO FÍLMICO.

A sétima arte, o cinema, vem conquistando cada vez maior destaque como fonte
de pesquisa e documento histórico, permitindo o estudo e a compreensão dos
comportamentos, visões de mundo, ideologias, conceitos e valores de dada sociedade ou do
momento histórico em que o filme foi produzido e, para isso, é preciso associá-lo ao mundo
que o produziu.
Para Ferro, ―desde que o cinema se tornou uma arte, seus pioneiros passaram a

6
Dentre as tarefas da Comissão estavam as de convocar personalidades do mundo intelectual , no Brasil e na
Espanha, para um Ciclo de Palestras alusivo ao missionário jesuíta; pedir a presença de um representante do
Vaticano nas comemorações (o escolhido foi o jesuíta Paolo Molinari, encarregado pelo processo de beatificação
do padre Anchieta); organizar os eventos do ―Dia de Anchieta‖; firmar convênio com a UNB para realizar um
filme sobre Anchieta; firmar convênio com a Escola de Arte Dramática de São Paulo para encenações públicas
dos autos de Anchieta nas regiões pelas quais ele passou; fazer um concurso literário para obras biográficas
sobre Anchieta; distribuir placas comemorativas em prata e bronze aos participantes dos eventos; patrocinar o
translado de uma relíquia de Anchieta, vinda de Roma; e, ainda, de editar as obras completas de Anchieta.
7
Integravam a Comissão Nacional, além de Júlio de Mesquita Filho, como presidente, Aureliano Leite,
Eurípedes Simões de Paula, João Fernando de Almeida Prado, César Salgado, Mário Neme e Lúcia Falkenberg.
8
O Art. 2º da Lei nº 5.196, de 24 de dezembro de 1966, estabeleceu que o Dia de Anchieta fosse comemorado
nas escolas primárias e médias do país, para divulgação da vida e da obra do missionário jesuíta.

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intervir na história com filmes – documentários ou de ficção – que desde sua origem, sob a
aparência de representação, doutrinam e glorificam‖ (FERRO, 1992:13). Esta perspectiva nos
leva a pensar o filme como imparcial e construtor de uma memória, ou seja, não pode ser
analisado como espelho da realidade ou portador de uma verdade absoluta. Além disso, Ferro
defende a utilização do filme como documento histórico, afirmando que ―o historiador deve
ajudar a sociedade a tomar consciência dessa mistificação (de que governos, partidos
políticos, Igrejas ou sindicatos acreditam ser sua consciência)‖ e este tem a tarefa de
―confrontar diferentes discursos da História, a descobrir, graças a esse confronto, uma
realidade não visível‖ (Cf. FERRO, 1992:76).
O documento fílmico é, portanto, produto de uma sociedade e permeado por
interesses que determinam como deve ser visto o passado e projetado o futuro. Segundo
Pesavento, ―precisamos considerar o fato de que as representações são produzidas social e
historicamente, não sendo anacrônicas, deslocadas ou necessariamente falsas, pois traduzem
formas de sentir, pensar e ver a realidade‖ (PESAVENTO, 2002:162). O cinema, assim,
apresenta-se como representação do pensamento daquela sociedade que a produziu, muito
mais do que o passado que esta procura mostrar através do roteiro de um filme.
De acordo com Miriam Rossini, ―O cinema é uma forma de representação que
pode ser produzida de modo conservador ou contestador — portanto faz parte do campo das
lutas simbólicas‖ (ROSSINI, 1997) e, sendo o cinema um testemunho do seu presente,
representa uma fonte histórica valiosa para compreendermos estas lutas simbólicas e para
resgatarmos a memória difundida. Mônica Kornis, inclusive, toma de ―empréstimo‖ o
consagrado conceito de Pierre Nora (1993) – ―lugar de memória‖ – ao afirmar que o cinema
pode ser considerado um ―lugar especial de memória‖ por ―trazer movimento ao registro
analógico, adensando o parecer ser real‖ (KORNIS, 2008:14). Milton José de Almeida, por
sua vez, enfatiza que o cinema é fantástico, pois ―sem ser um programa de intencionalidade
objetiva, como, às vezes parece, ele vem produzindo, anônimo e silencioso, em arte e
simulação, as imagens da nossa memória e as formas da nossa imaginação do real‖
(ALMEIDA, 1999: Apresentação).
Tendo presente que é preciso estar atentos aos interesses dos grupos que forjam as
representações do mundo social e que estas se encontram nas matrizes dos discursos e nas
práticas sociais evidenciadas – inclusive, no cinema –, ao analisarmos o filme Anchieta, José
do Brasil, procuramos priorizar as relações que podem ser estabelecidas entre o pensamento e

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a atuação do personagem protagonista; as relações entre o projeto que o Estado tinha para o
filme, a sua produção por Paulo César Saraceni e as críticas que recebeu, observando,
sobretudo, o contexto político brasileiro na década de setenta no qual o longa-metragem foi
produzido e comercializado.
As representações consagradas sobre o missionário jesuíta ficam evidentes já na
capa do filme, na qual Anchieta é representado escrevendo – com uma vara, mas empunhada
como uma espada – o famoso ―Poema da Virgem‖ nas areias da praia de Iperoig, tendo ao
fundo uma ilustração de Hans Staden9 que representa a Guerra dos Tamoios. Apesar de a capa
nos sugerir um Anchieta estrategista militar, não deixa de dar destaque à cruz – representação
da fé cristã – que ele traz de forma bem evidente no seu hábito e no rosário que pende de sua
cintura. Já o ator encarregado de viver Anchieta, Ney Latorraca, confere ao personagem uma
expressão fragilizada, doente, mística, devota, paciente e, ao mesmo tempo, determinada,
progressista e decidida a superar quaisquer obstáculos.
Outras informações são encontradas a partir da capa do filme ou então, nos
créditos iniciais e finais da filmagem. Sendo assim, na identificação do filme Anchieta, José
do Brasil encontramos a informação de que foi produzido em 1977, pela Embrafilme 10,
juntamente com a Santana Filmes Brasileiros Ltda. - empresa chefiada por Sérgio Saraceni,
irmão do diretor do filme, e criada, especialmente, para produzi-lo. Paulo César Saraceni
aparece como diretor, produtor e roteirista, tendo o sobrinho Sérgio Guilherme Saraceni –
responsável pela música – e a sua sobrinha Denize Saraceni como colaboradores. O filme
contou com o patrocínio do MEC, do DAC11 e do Banco do Estado de SP S/A., evidenciando

9
Hans Staden veio ao Brasil em meados do século XVI. O alemão fora aprisionado em 1554 por índios
tupinambás, também conhecidos como tamoios, e através de seus escritos e desenhos em xilogravura, deixou
registradas suas impressões sobre o Brasil quinhentista. Sua obra ―Viagem ao Brasil‖, publicada pela primeira
vez em 1557 em Malburg, teve mais de cinquenta edições em diversas línguas.
10
A Embrafilme estava encarregada da distribuição e divulgação de filmes brasileiros no Brasil e no exterior, em
festivais e mostras, ―visando a difusão do filme brasileiro em seus aspectos culturais artísticos e científicos‖. A
Lei nº 6.281 de 9 de dezembro de 1975, assinada pelo presidente Ernesto Geisel, amplia as atribuições da
Embrafilme e toma outras providências, entre elas a de cobrar uma importância por produção cinematográfica,
levando em conta a bitola do filme, a forma de exibição e o período de validade do certificado de censura. Já os
cinemas passavam a ser obrigados a exibir filmes brasileiros de longa metragem e só poderiam funcionar se
tivessem sua programação aprovada pela Censura Federal. A Empresa Brasileira de Filmes S/A foi criada em
1969 e extinta em 1990, no governo Collor.
11
O DAC, Departamento de Assuntos Culturais, é um órgão a serviço do governo para tratar dos assuntos de
manifestações culturais e estabelecer diretrizes da ação oficial nas diversas áreas culturais, como música, teatro,
cinema, entre outras. ―Durante muito tempo a estrutura de Ministério [MEC] esteve toda voltada para a área de
educação, não possuindo sequer uma secretaria de cultura – o Departamento de Assuntos Culturais foi criado
pelo Decreto 66.967 em 27 de julho de 1970. Gradativamente o DAC foi assumindo suas funções de órgão
central de direção superior, como previa o decreto de reforma administrativa‖ (CALABRE, 2008).

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o apoio estatal para sua realização. Paulo César Saraceni dedicou o filme a sua mãe, Mariá, e
a Paulo Emílio de Sales Gomes, um marxista convicto e ícone do cinema brasileiro, falecido
no mesmo ano de produção do filme. Estas informações são importantes, na medida em que
nos ajudam a entender algumas opiniões emitidas sobre a realização de Anchieta, José do
Brasil, como por exemplo, a de João Carlos Rodrigues 12, que definiu o filme como
―malditíssimo‖, referindo-se às polêmicas e críticas que envolveram a produção
cinematográfica.

3. ANCHIETA, JOSÉ DO BRASIL: O FILME E O CINEMA NOVO.

Anchieta, José do Brasil foi dirigido por um dos cineastas do Cinema Novo, num
período em que este movimento artístico perdia força. Vários dos seus integrantes aderiram à
produção estatal de filmes com o financiamento da Embrafilme, empresa criada pelo governo
militar em 1969 para controlar a produção e distribuição dos filmes brasileiros.
O teórico, crítico de cinema e cineasta, Jean-Claude Bernardet, afirma que, durante a
década de setenta, o Estado procurou manipular as produções cinematográficas brasileiras
através da Embrafilme:

A simples exortação não basta. O governo entra na produção. Para os filmes


históricos, e somente para eles, cria-se uma verba especial; a Embrafilme,
que, pelos valores de 1975, participa de co-produção em até Cr$270.000,
pode investir até Cr$1.500.000 num filme histórico, sendo que a sua
participação será considerada como de apenas Cr$750.000, isto é, os outros
Cr$750.000 são subvenção. Instala-se uma comissão a nível ministerial, cuja
tarefa é receber e avaliar roteiros, e indicá-los ou não para produção; a
comissão atua em dois pontos: avaliar projetos de diretores estreantes e de
filmes históricos. A instituição da comissão e sua composição não deixam
dúvida de que é a burocracia cultural que seleciona e promove o que lhe
interessa, e rejeita o resto. A comissão reuniu-se sob a presidência de um
representante do Departamento de Assuntos Culturais (DAC) do MEC, com
representantes do Conselho Federal de Cultura, do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, da Embrafilme, do Sindicato Nacional da Indústria
Cinematográfica e outras. O filme histórico torna-se cada vez mais assunto
de Estado, mas mais uma vez, os resultados não foram brilhantes para a
burocracia e o tiro saiu pela culatra. Primeiro porque a comissão recebeu
apenas dois projetos (contra mais de vinte na categoria diretor estreante – há
quem pergunte: onde estão os novos diretores do cinema brasileiro?),
aprovou um: Anchieta, José do Brasil, de Paulo César Saraceni. Mas, após
12
João Carlos Rodrigues – jornalista, crítico de cinema, pesquisador, roteirista e diretor de vídeos – nasceu no
Rio de Janeiro em julho de 1949. Entre seus livros publicados destacam-se O negro brasileiro e o cinema; João
do Rio/Catálogo bibliográfico/1899-1921 e João do Rio: uma biografia.

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uma conturbada produção, o filme não agradou: nem sucesso de público,
nem de crítica, nem institucional, nem a história como se queria: a
burocracia não tem como manipular esse filme. (BERNARDET, 1979:327)13
[Grifo nosso]

Mais tarde, o governo teria investido, novamente, no patrocínio de filmes


históricos que servissem aos interesses nacionalistas e de legitimação do regime, aumentando
ainda mais o financiamento (Cr$300.000). A partir de 1975, ―A co-produção de filmes
históricos pela Embrafilme visa a incentivar a realização de películas que concorram para a
ampla divulgação dos temas de História do Brasil‖ (BERNARDET, 1979:328). Em face deste
estímulo, 74 argumentos foram levados para serem selecionados, mas em função de troca de
diretoria na empresa, da precária situação financeira e da possível mudança ideológica no
ministério, não houve sucesso. Apenas um filme, Independência ou morte, de ―indiscutível
repercussão cívica‖, foi lançado, enquanto que ―O filme em que o governo mais se empenhou,
Anchieta, José do Brasil, é inaproveitável por ele‖ (BERNARDET, 1979:327), isto porque
não há evidências de que tenha tido, realmente, repercussão em todo o território nacional, bem
como de esforços para que houvesse algum sucesso.
O longa-metragem sobre o jesuíta canarino foi o oitavo da carreira de Saraceni.
Este não tinha qualquer relação com o governo implantado em 1964, tendo produzido,
inclusive, um filme – O Desafio –, de clara contestação à ditadura em 1965, que foi censurado
e impedido de participar de festivais. Sobre esta produção, Saraceni revela:

O Desafio era um filme temerário. Eu tinha total consciência disso. Um


filme político, contra o regime, contra a ditadura. Um filme-guerrilha, que
dava ênfase à nossa angústia depois do golpe e previa os tempos que iríamos
viver sabia-se lá até quando. Mas eu queria que o filme passasse na Censura,
que chegasse ao público. (...) Era verdadeiramente um desafio. (SARACENI,
1993:187)

Levando-se em conta esta informação, cabe também ressaltar que Saraceni


produziu Anchieta, José do Brasil numa época em que o cinema tornava-se cada vez mais
comercial e dependente de financiamentos, como destaca Bernardet:

A maioria dos cineastas que mandaram projetos históricos não o fez

13
BERNARDET, JEAN-CLAUDE. Qual é a História? In: NOVAES, Adauto (org). Anos 70: ainda sob a
tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano e Senac/Rio, 1979. Organizado pelo escritor e jornalista Adauto Novaes,
Anos 70: ainda sob a tempestade, reúne artigos sobre cinema, literatura, música, teatro e televisão no Brasil no
período da censura e do governo militar, escritos, como dizem, ―no calor da hora‖, sob testemunhos de
intelectuais-personagens da época.

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necessariamente por simpatia pelo governo, nem por afinidades ideológicas,
nem por comungar com uma visão da história, embora o simples fato de
mandar projeto indique que não há incompatibilidade completa. É, para os
cineastas, uma possibilidade de produzirem filmes – históricos ou não -,
ainda mais podendo se beneficiar de subvenção, além de co-produção, e de
ter financiamento para o roteiro, o que é excepcional na história do cinema
brasileiro. Se o projeto lançado pelo governo fosse sobre zoologia ou
esportes, grande parte dos produtores atenderia igualmente à solicitação. E
nem o fato de lançar o projeto histórico, até mesmo com dois crivos, no
argumento e no roteiro, assegura que os filmes sairão conforme a expectativa
governamental. Anchieta que o diga! (BERNARDET, 1979:328) [Grifo
nosso].

Mas, afinal, o que o Estado esperava do filme Anchieta, José do Brasil? Segundo
Bernardet, o governo militar não chegou a interferir drasticamente nas produções de filmes
históricos – determinando o tema, estilo ou enfoque da história –, e nem mesmo exigiu que os
filmes seguissem uma perspectiva ideológica. Esta situação, no entanto, segundo ele, ―está de
fato grávida de subentendidos‖, uma vez que o governo ―sabia o que estava pedindo‖, e os
cineastas ―sabiam que não teriam qualquer projeto aceito, caso não acatassem o que havia
sido pedido‖ (Cf. BERNARDET, 1979:328):

[...] em matéria de filmes históricos, o governo não está pedindo nada


demais. [...] A concepção heróica e pomposa da história, os grandes vultos, a
história pacífica é o que se encontra na maior parte dos filmes históricos
brasileiros, independente de qualquer pressão governamental.
(BERNARDET, 1979:328)

Em relação às críticas que o filme Anchieta, José do Brasil recebeu, estas foram
bastante ambíguas, prevalecendo a sensação de ―defeito‖ no filme: ―o que perturba essa
relação – a história como se eu estivesse vendo – é o defeito‖ (BERNARDET, 1979:330),
que, segundo os críticos, não permitiu que as imagens fossem vistas como sendo a própria
história, mesmo porque

‘Falhas marcantes acontecem na dicção e no sotaque dos aventureiros


portugueses... começam a falar com sotaque luso, mas logo em seguida
descambam para o carioquês corrente‘ – ‗Figurantes que volta e meia
desviam o olhar para a câmera... Petroleiro no tempo de Anchieta?... Algo
que parece realmente ser um desses grandes barcos transportadores de
combustível‘ – ‗E os atores dentro (das roupas) têm sempre o ar de bonecos
de cera guardados num museu‘ [...] ‗Anchieta é apresentado muito mais
como um ingênuo missionário... do que como um verdadeiro apóstolo‘
(BERNARDET, 1979:330)

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De acordo com a análise feita por Bernardet, para uns ―um filme como Anchieta,
José do Brasil [havia] rompido com o naturalismo e qualquer tipo de intenção de
reconstituição‖, enquanto que para outros, era motivo de elogios. Em relação a comentários
desse tipo, o autor é enfático em afirmar que ―a vida indígena do filme nada tem a ver com
reconstituição, tendo Saraceni entregue papéis de índios a brancos e pretos‖ (BERNARDET,
1979:332), o que demonstra a intenção do diretor em mostrar algo além da história oficial,
fazendo o povo brasileiro, na sua miscigenação, se identificar com os índios. Bernardet ainda
reproduz a fala de outro crítico – também não identificado pelo autor, como todos os outros –
que ressalta o vultoso patrocínio recebido pelo filme e a sua produção desastrosa: ―Não se
admite numa obra que recebeu o carimbo da Embrafilme e, inclusive, um gordo
financiamento do Banco do Estado de São Paulo, um tamanho rolo de descuidos‖
(BERNARDET, 1979:332).
Constata-se, no entanto, que Anchieta, José do Brasil é um filme todo calcado na
estética do Cinema Novo, na qual havia a pretensão de que os filmes fossem transgressores,
não só em relação à produção cinematográfica brasileira das comédias populares da Atlântida
– as chanchadas -, mas também em relação à sociedade e política nacionais. Os cineastas do
Cinema Novo preferiam dar ênfase a temas polêmicos, como o subdesenvolvimento
econômico, por exemplo. Por tratarem a realidade de maneira crítica, buscavam subverter a
estética clássica do cinema, utilizando para isso encenações teatrais, roteiros repletos de
alegorias e subjetividade e inúmeras desconstruções narrativas, visuais e temáticas, através do
conceito cinematográfico conhecido como faux raccord14, ou ―falso-raccorde‖. O ―falso-
raccorde‖ são os erros propositais de montagem e encenação, que dificultam a compreensão
simples da obra, obrigando o espectador a pensar sobre o que está assistindo.
Em Anchieta, José do Brasil, o faux raccord é evidente em várias cenas, como na
chegada de Anchieta ao Brasil, na qual os figurantes olham insistentemente para a câmera,
criando uma sensação de irrealidade no espectador; logo em seguida, vemos uma cena de
batalha numa aldeia, onde os cortes da montagem não permitem que fique claro o desenrolar

14
Na linguagem dos técnicos, o falso raccord é uma articulação mal realizada ou mal concebida.Trata-se, do
ponto de vista estético, de uma mudança de plano que escapa à lógica da transparência que atua na articulação. O
falso raccord é, entretanto, um raccord, pelo fato de ele assegurar uma continuidade mínima da narrativa: ele
não impede a compreensão correta da história contada, e só é ―falso‖ na visão de uma ―veracidade‖ convencional
[...] o raccord se configura em um tipo de montagem na qual as mudanças de planos são, tanto quanto possível,
apagadas como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda a sua a atenção na continuidade da
narrativa visual, ou seja, um roteiro sem rupturas, preservando esta continuidade e incluindo o sujeito espectador
na narrativa fílmica. (Cf. AUMONT, MARIE, 2003:116-117; 251-252)

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dos fatos para quem assiste. Mais adiante, quando o jesuíta fica entre os índios, o não uso da
legenda durante os diálogos em tupi15 obriga o espectador a se ater à imagem para entender o
que está acontecendo.
Ainda sobre essa relação entre filme produzido e o efeito de se ver a história
acontecendo como realmente aconteceu – o naturalismo –, Bernardet afirma que ela não pode
ser gratuita, deve estar enraizada em algo sólido, sério, como a pesquisa científica, na qual
deve se apoiar o naturalismo pretendido, ou seja, que o público identifique a sua história, tal
qual aconteceu – natural – nas telas do cinema:

O naturalismo - no sentido em que estou usando a palavra – dá uma


impressão de veracidade, de autenticidade, e elimina, ou deve eliminar, as
marcas do trabalho, as marcas da fala. Não se deve perceber que alguém fez
o filme, que o filme é um trabalho sobre a história, que é uma interpretação,
que poderia haver outras. Se pode haver outras interpretações, a que está na
tela não é necessariamente a verdadeira, ou as outras podem ser igualmente
verdadeiras. É necessário eliminar essa dúvida para que não se questione a
verdade da tela. E essa verdade é indispensável à ideologia dominante, pois,
para dominar, ela não pode apresentar-se nem como ideologia, nem como
uma visão da história entre outras. (BERNARDET, 1979:332)

Dessa forma, consegue-se entender porque o faux raccord não foi bem-vindo na
produção de Saraceni, acarretando as críticas ferrenhas que recebeu. Jean-Claude Bernardet
nos chama a atenção para a existência de dois pontos de vista sobre o filme Anchieta, José do
Brasil, já que uns apontaram ―defeitos‖ e criticaram negativamente a reconstituição histórica e
o naturalismo não alcançados, e outros o elogiaram pela qualidade da reconstituição da
História e pela sua importância como legítimo espaço de uma memória do nosso país:

‗Um filme digno, muito bonito, além de informativo‘ – ‗Anchieta, José do


Brasil, tão importante ―como projeto‖ para a informação do público‘ (...) ‗vai
divulgar a nossa história‘ – ‗Filme bem cuidado e bem produzido, destinado
a penetrar em todas as camadas populares‘ – ‗Uma divertida e movimentada
aula de História do Brasil‘ – ‗É feito para a massa ignorante e está um filme
bonito.‘ (BERNARDET, 1979:332)

Há, portanto, duas visões diametralmente opostas: a primeira, que vê Anchieta,


José do Brasil como um filme fracassado, realizado para satisfazer os interesses estatais, sem
intenção de alcançar o sucesso, e pretensamente desviado dos propósitos da financiadora pelo
diretor; e a segunda que o percebe como ―espelho‖ da História do Brasil, detentor da memória

15
Os diálogos em tupi foram escritos por Humberto Mauro, que dirigiu o filme ―O Descobrimento do Brasil‖, de
1937, e foi o responsável pelas falas em tupi do filme ―Como era gostoso o meu francês‖, de 1971.

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brasileira, com a clara intenção de transformar Anchieta num verdadeiro herói brasileiro. Em
relação a esta última intenção e que, em nosso entendimento, perpassa todo o processo, é
importante lembrar que ―as batalhas simbólicas para a construção de heróis envolvem tanto a
memória histórica quanto o apelo a lendas e mitos. A memória lança mão de uma narrativa
tradicional sobre o passado, explica a origem, os feitos e as glórias dos heróis‖ (OLIVEIRA.
apud PESAVENTO, 2003:68)
O filme, que pretende exaltar Anchieta, apresenta nítido caráter didático,
caracterizando-se pela forma melancólica e dramática que assume, pelas cenas mudas e pela
trilha sonora instrumental que evocam o sofrimento, a fragilidade, a resignação e a doação do
missionário que visam sensibilizar o espectador. Além de obedecer a uma ordem
cronológica, pretende ser fiel à biografia de Anchieta, tendo contado com a colaboração do
Pe. Hélio Abranches Viotti S.J.16 e do Pe. Armando Cardoso S.J. Em relação ao apego à
cronologia em produções tidas como oficiais, Almeida nos lembra que:

Ela, a cronologia, é a dimensão temporal de mais fácil entendimento. A sua


hierarquia e sucessão inexoráveis são vistas como naturais e lógicas, e
legitimam, em ideologia temporal, o poder. Quase como se a cronologia
fosse a expressão objetiva do tempo político dominante. Não precisamos de
esforço para perceber que a história oficial é sempre cronológica e os grupos
que se estabelecem no poder procuram criar, ao mesmo tempo, uma
genealogia. (ALMEIDA, 1999:31)

Muito embora Anchieta, José do Brasil tenha falhado em termos de alcance junto
aos espectadores, o filme serviu, sim, aos interesses do regime militar, declarados nos
discursos proferidos quando da instituição do Dia de Anchieta, em 1965, ao reforçar as
representações de taumaturgo, místico, fundador da cidade de São Paulo, pai da nação
brasileira, defensor do território – no esforço de repelir ameaças estrangeiras – e protetor dos
nativos. Assim, o Anchieta representado por Ney Latorraca, salvo as peculiaridades do roteiro
fílmico, representava os valores que os militares pretendiam reafirmar: a importância da
família, da religião, da moral, da nacionalidade, da defesa da integridade do território contra
os estrangeiros, que, naquele contexto, eram os comunistas.
Considerando o pressuposto de Ferro (1992:14), de que as ações cinematográficas
de um cineasta podem, sem intenção, revelar zonas ideológicas e sociais das quais ele não tem

16
Cabe lembrar que o Pe. Hélio Abranches Viotti S.J venceu o Concurso Literário promovido, em 1965, pela
Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta, com a biografia ―Anchieta, o apóstolo do
Brasil‖ e, desde 1957, colabora no processo para beatificação do Padre José de Anchieta.

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necessariamente consciência, ou que ele acredita ter rejeitado, acreditamos ter sido este o caso
de Paulo César Saraceni ao produzir e dirigir este filme. Este, inclusive, expressa sua opinião
sobre a dependência do Estado, caracterizando a situação dos cineastas da época, destacando a
forte e desigual concorrência com os filmes internacionais: ―(...) Governo que, na minha
opinião, é o único possível de carregar uma bandeira de luta contra a espoliação dos
exibidores‖ (BERNARDET, 1979:35)17. Esta colocação nos ajuda a entender a relação entre
os cineastas e o Estado nesta época de intensa concorrência com os filmes estrangeiros,
especialmente, dos americanos.
Para analisar o filme de Saraceni, parece fundamental saber o que o diretor
vivenciou durante sua produção, como encarou a intervenção estatal, o que pensava e o que
pretendeu transmitir com a construção que fez de José de Anchieta. Afinal, qual memória este
cineasta pretendeu difundir do jesuíta que foi tomado como ―santo símbolo da nossa
nacionalidade‖18 pelo Regime Militar que tanto se empenhou em instituir um dia em sua
homenagem?
Procurando responder a esta questão, a obra ―Por dentro do cinema Novo: minha
viagem‖ de 1993 – obra editada dezesseis anos após o lançamento do filme Anchieta, José do
Brasil – apresenta o testemunho de Paulo César Saraceni, o próprio autor. Nela, de forma
coloquial e descontraída, fala de sua vida, sobre como chegou a tornar-se cineasta, sobre suas
produções, suas aventuras amorosas, participações políticas, relações com amigos e colegas
do Cinema Novo e, principalmente, sobre o projeto do filme Anchieta.
Na obra, Saraceni nos conta sobre uma carta que recebeu de Glauber Rocha e na
qual ele propunha: ―(...) estamos recriando nosso cinema e você precisa voltar [da Itália onde
estudava] para ser soldado nesta luta. (...) Precisamos fazer a nossa aqui [revolução, como em
Cuba] (...) Vamos agir em bloco, fazendo política.‖ E afirma: ―(...) Nossa geração tem
consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes antiindustriais (...)‖ (SARACENI,

17
Opinião retirada de um periódico - não citado pelo autor – como uma crítica feita por Saraceni, do dia 15 de
setembro de 1975. O autor não usa notas de pé de página, mas com um asterisco na entrevista, sinaliza, na
mesma página: ―Esta e todas as outras citações tiradas de artigos ou entrevistas de cineastas não tem tanto a
finalidade de marcar a posição de cineastas determinados, quanto de apontar linhas de pensamento. É bom não
esquecer que as entrevistas são freqüentemente circunstanciais e sujeitas às interpretações dos jornalistas.‖
Sendo assim, podemos perceber que Bernardet repete a informação de um jornalista, mas mostra-se ciente de
que a afirmação pode não expressar exatamente o que queria dizer Saraceni, ou pode não ter sido dita com essas
palavras.
18
Excerto da oração realizada pelo Cardeal Arcebispo de São Paulo, D. Agnello Rossi, em missa proferida no
Pátio do Colégio em 9 de junho de 1965, data da instituição do Dia de Anchieta, feita pelo Presidente Humberto
Castelo Branco. (AMARAL, Álvaro do. O Padre José de Anchieta e a Fundação de São Paulo. São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 1971, p.8)

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1993:94) E é, justamente, a sua identificação com a proposta do Cinema Novo que faz com
que ele confesse:

Evidentemente, Anchieta foi mal lançado. Tentei tudo para Roberto [Faria],
a turma do Gustavo e Marco Aurélio Marcondes, lançarem o filme nas
praças, como o circo ambulante que o ministro Simonsen queria. Não deu.
Jogaram-no no circuito comercial, (...) sem nenhuma mídia. Mesmo assim o
filme surpreendeu os sabidos e se saiu razoavelmente bem. Anchieta é um
filme para passar nos Cieps, nos Ciacs, nas tevês culturais e estatais do país.
Aí, ele poderia dar mais do que Donas Flores. Mas a burrice, da esquerda e
da direita, continuava firme. (SARACENI, 1993:315)

O cineasta revela que a origem da sua motivação para produzir um filme sobre
Anchieta, teve relação com as intermináveis conversas que manteve com Gláuber Rocha
sobre o Brasil. Surgiu assim, como ele próprio explica em seu livro,

(...)a idéia de fazer um filme sobre nossas origens. Comecei então a


pesquisar na embaixada brasileira em Roma e no Vaticano sobre José de
Anchieta. Aprendera no colégio que Anchieta era um chato, que catequizava
os índios. Só a direita e os conservadores queriam torná-lo santo, mas não
conseguiam. Resolvi saber porque o processo de Anchieta já tinha mais de
365 anos, sem que conseguissem beatificá-lo.(SARACENI, 1993: 283)

Foi assim que Anchieta tornou-se filme nas mãos de um diretor contestador, que
―não agüentava mais a censura e os militares‖ e que pretendia oferecer uma releitura do seu
trabalho como missionário, como fica evidente neste trecho:

Leio os livros que trouxe da Europa, começo a visualizar um Anchieta


catequizado pelos índios, em vez de catequizador, vivo, atento, (...) Penso no
que Silvano Agosti me disse em Roma ao ler o argumento de Anchieta:
cuidado para que o filme não seja instrumentalizado pelo sistema. Eu
cuidava disso.(SARACENI, 1993:289)

Em seu livro autobiográfico, Saraceni revela que havia, naquele momento, outro
roteiro – além de Anchieta, José do Brasil – esperando para ser filmado. Tratava-se d‘O
Viajante – baseado no romance homônimo e inacabado de Lúcio Cardoso e organizado por
Octávio de Faria – que veio a ser lançado somente em 1998. Este filme completaria a
―Trilogia da Paixão‖, composta ainda por Porto das Caixas, de 1962, e A Casa Assassinada,
de 1971. O diretor nos conta que estava indeciso sobre qual dos roteiros filmar, mas parece
que houve uma condição decisiva para a escolha de Anchieta, José do Brasil:

Na hora de apresentar o roteiro, em vez de Anchieta – que na sua versão

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genial, Marcos Konder Reis chamou de Anchieta, José do Brasil – entreguei
O viajante, inteiramente contrário à vida que eu mesmo estava levando.
Pensava em Agosti: ‗Cuidado, Anchieta pode ser um filme do Sistema‘. (...)
O ministro Reis Veloso queria filmes como Vidas Secas. Mas Ney Braga,
ministro da educação queria filmes históricos. Zelito Viana me pediu para
mudar o projeto, colocando Anchieta no lugar de O viajante. Na dúvida,
entreguei os dois, colocando um orçamento mínimo para O viajante e uma
barbaridade para Anchieta. (SARACENI, 1993:293)

Embora admita que apresentou Anchieta, José do Brasil em função da


possibilidade de contar com o apoio financeiro do Estado para gravá-lo, Saraceni comenta que
sentiu forte pressão da Embrafilme para que fizesse Anchieta, José do Brasil e que acreditava
existirem interesses obscuros por trás do incentivo ao seu roteiro. Durante as tratativas com o
governo, ele revela que chegou a ser preso, acusado de ser terrorista, de traficar drogas e
armas, de conspirar contra o governo e de ser comunista, e que seus carcereiros revelaram
saber de O Desafio, ‖um filme subversivo, feito para jogar os estudantes na guerrilha‖
(SARACENI, 1993:294).

Na verdade, essa insistência do ministro Ney Braga, do Roberto Faria e de


Zelito Viana para que eu filmasse Anchieta, em vez de O Viajante, tinha
alguma coisa por trás. E nisso eu não queria entrar, não queria brigar com
mais ninguém, nem com os militares. Queria o que Gláuber exigira, o fim da
tortura. Parecia já ter havido a anistia e a abertura política para a volta da
democracia, mas eu não sacrificava o meu cinema. (...) Otávio chegou a
dizer que tivéssemos cuidado com ele [Cacá Diegues – ligou-se com o
DAC]. ‗Deve haver uma manobra política aí que eu não estou gostando; se
eu fizer Anchieta, vou fazer o meu Anchieta, e não o do ministro ou de
qualquer um. (SARACENI, 1993:295)

Como se pode constatar na passagem acima, Paulo César Saraceni queria fazer o
seu Anchieta. Para isso, construiu uma imagem do jesuíta a partir da Teologia da Libertação –
e, especialmente, da noção de inculturação – mostrando toda a sua admiração pelo ―santo‖,
que – como chegou a afirmar – só poderia ter seu amor pelo Brasil comparado com o de Luís
Carlos Prestes, como vemos nos trechos a seguir:

Falei dos roteiros de O viajante e de Anchieta [com Paulo Emílio de Sales


Gomes]. Ele se interessou em saber como seria Anchieta. E por que
Anchieta? Falei da Teologia da Libertação. Ele gostou. (SARACENI,
1993:291)

Conversava muito com Vivi e Leila Borjalo [amigas de Saraceni] sobre


minha idéia de filmar Anchieta como um santo, ligado à Teologia da
Libertação de hoje e a outro jesuíta espanhol, dom Pedro Casaldáliga, que
defende os índios atuais como Anchieta devia defender os índios do seu

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tempo, na luta por um país cristão, seguindo a trilha dos índios. Ele era de
Tenerife, meio espanhol, pai conquistador e mãe índia. (...) A paixão de
Anchieta pelo Brasil, pela natureza (mãe, também), fez com que ele
aprendesse rapidamente a língua do povo índio, o tupi. Escrevendo em latim,
português, espanhol e tupi-guarani, criou a literatura brasileira. Inventou o
texto teatral e sua mise-en-scène, improvisando, base que deve ser seguida
para quem quer fazer arte no Brasil. Inventou com os índios a nossa
geografia, história, astronomia e medicina. Claro que tudo foi desvirtuado, a
direita e os conservadores se apoderaram dele. Por isso nas escolas só
aprendemos babaquices sobre ele, e sua defesa no Vaticano jamais
conseguirá fazê-lo santo. Os intelectuais de esquerda ignoram o santo,
dizendo apenas que ele passou doença, tuberculose óssea, para os índios.
Quero ver esses atletas de esquerda caminharem de São Vicente a São Paulo,
ida e volta. O santo só andava a pé. E morreu velhinho. O amor de Anchieta
pelos índios e pelo Brasil só se compara ao de Luís Carlos Prestes. Vivi ria,
achava que eu estava louco, mas dava força. (SARACENI, 1993:298)

Consciente das controvertidas imagens de Anchieta e de suas apropriações


ambíguas – ora santo, místico e compassivo, ora militar, integracionista e defensor das
fronteiras brasileiras – Saraceni construiu a sua versão de Anchieta, bem distante das
polêmicas como esta que refere:

Havia um escritor que defendia, no Vaticano, a causa de Anchieta. Fui


conversar com ele; era um fascista, detestava os índios e comparava
Anchieta a Franco, dedicando o seu livro ao ditador espanhol; assim não dá,
ria eu, feliz de filmar a bela Miranda [mãe de Anchieta] como beleza
indígena; havia lido isso num outro livro, muito melhor, sobre Anchieta.
(SARACENI,1993:303)

Dado o ―sinal verde‖ – pelos ministros Ney Braga, Mário Henrique Simonsen e
Reis Veloso – para a produção do filme, Saraceni aproveitou a oportunidade e procurou se
harmonizar com a Embrafilme: ―Pensavam [Embrafilme] em contratar quadros de
distribuidores que trabalhassem com as distribuidoras americanas. Fiquei abismado. Mas
como o dinheiro do Anchieta ia sair, fiquei na moita‖(SARACENI, 1993:301)
O diretor dedicou-se, a partir de então, a compor o elenco e a equipe, deixando
claro, desde o início, que ―Ninguém ganhava muito. Mas todos ganhavam. Todo mundo
queria fazer o filme com paixão, sem pensar em dinheiro. Sônia Braga pediu para fazer um
papel, mesmo pequeno e de graça, ou quase‖ (SARACENI, 1993:303). Estas e outras
afirmações nos levam a concluir que a verba disponível para a produção do longa-metragem
não fosse tão grande, descartando locações em lugares como Ilhas Canárias, Tenerife e
Coimbra. O próprio Saraceni refere, em seu livro, apenas as cidades brasileiras de Rio de

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Janeiro, Porto Seguro, Trancoso, Parati, Parati Mirim, Trindade e Laranjeiras, como locais
onde foram gravadas cenas do filme.
A escolha de Ney Latorraca para interpretar José de Anchieta teria se dado,
segundo Saraceni, após terem desistido de ter Roberto Carlos no papel: ―Melhor assim: ele
não agüentaria o filme que fizemos. Na aventura da filmagem de Anchieta, o buraco era mais
embaixo.‖ Para explicar as razões da escolha, o diretor afirmou: ―(...)fui procurar um
verdadeiro ator para fazer o papel de fundador da interpretação brasileira. Aquele que colocou
o povo e os índios para representar a si mesmos. Nei Latorraca foi o escolhido(...) É um
fanático. Anchieta também era‖ (SARACENI, 1993:300)
De acordo com Saraceni, a Embrafilme teria feito várias intervenções e algumas
exigências muito mal recebidas pela equipe, durante o processo de filmagem e edição do
filme: ―A Embrafilme foi completamente contra [a locação em Porto Seguro]. Mas bati o pé e
consegui. A Embra ficou de olho. Para mim, a distância dava mais independência e liberdade.
Não sei trabalhar sem liberdade‖ (SARACENI, 1993:302). E reclamava que o órgão estatal
queria interferir na imagem do ―seu Anchieta‖:

Mas a Embrafilme escrevia cartas indignadas. O meu Anchieta não era o


deles, nem o do ministro Nei Braga. Manfredo Colassanti me disse que eu
era um grande diretor, dos maiores que conheceu, mesmo na Itália. Mas eu
não sabia dizer não. Falei com ele sobre o ambiente do Brasil, no século
XVI, os índios barbarizados pelos sofrimentos causados pelos bandoleiros
portugueses mandados para cá. Devia ser assim mesmo: de um lado aquela
liberdade genial da natureza e a ausência de leis, do outro a repressão, igual
a que vivemos hoje com a ditadura dos milicos. Mas sempre querendo a
anistia e a volta da democracia, que só pode ser conseguida com amor, sem
violência, sem repressão, sem o ‗não‘. (SARACENI, 1993:305)

Até a última semana de filmagens, não tive nenhum problema que não
pudesse resolver. Mas fui obrigado a parar. Não dava pra continuar o filme
em Porto Seguro, a Embra atrasava o dinheiro de sacanagem. Ficou
insuportável. Tive que parar. Já tinha filmado 70%. (SARACENI, 1993:306)

Apesar da colaboração obtida junto à Prefeitura de Porto Seguro e ao governo do


estado da Bahia, a situação se manteve difícil, pois além de o dinheiro não ser repassado pela
Embrafilme, os atores, a equipe de filmagem e o diretor passaram a ser vigiados – e até
perseguidos –, como se pode constatar neste depoimento:

(...) e a Embra continuava me apertando para terminar o filme em Parati. (...)


Resolvemos voltar e ir fazer locação em Parati com Fredy e Sabona. (...)
Mas na volta, perto de Vitória, fomos invadidos por centenas de policiais. Só

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podia ter sido denúncia. Abriram todas as malas, revistaram tudo. Não
acharam nada, ou melhor, acharam um Mandrix [comprimido entorpecente]
e uma beata [cigarro pequeno de maconha]. Mesmo assim, fomos para a
delegacia. O ânimo do pessoal estava ótimo, levamos na gozação. Como o
delegado queria fichar todo mundo e não tinha fotógrafo na delegacia, pedi
ao Sabona para fazer as fotos. Ríamos muito. (...) ‗Tudo ok, o pessoal está
fazendo um filme sobre o santo Anchieta, pessoal distinto. Podem seguir
viagem.‘ (...) Mas o jornal O Dia deu em manchete: ―Fumacê na equipe que
filma Anchieta‖. Cacá [Diegues] dizia que eu estava querendo destruir o
projeto-político do cinema brasileiro. (SARACENI, 1993:307)

Realmente, ao apresentar uma versão de Anchieta mais ao gosto dos simpatizantes


da Teologia da Libertação, Saraceni estava, efetivamente, se distanciando do ―projeto-político
do cinema brasileiro‖ e dos objetivos traçados pela Comissão Nacional para as
Comemorações do Dia de Anchieta, razão pela qual a Embrafilme exigiu que o filme fosse
rapidamente concluído. As preocupações de Saraceni ficam evidentes nesta conversa que teve
com Cacá Diegues:

- A Embrafilme vai acabar o filme. Você não filmou o roteiro. Precisa filmar
ainda 50% do filme, com Carlos Alberto de Souza na produção.
- Mas isso é intervenção fascista. Em nome do cinema brasileiro. Que
projeto é esse que eu não conheço? Chica da Silva?
- Também. – disse Cacá
(...)
- Não mudo porra nenhuma. Se vocês querem guerra, terão.
Fiquei oito meses esperando a decisão da Embrafilme. Ou eu acabava o
filme ou me davam o copião para eu conseguir meios para acabar de fazê-lo.
(...) Nenhum dos amigos do cinema novo ficou do meu lado... (SARACENI,
1993:307)

Por decisão da Embrafilme, as filmagens foram suspensas e o filme passou a ser


alvo de avaliação por uma sucessão de comissões, até ser liberado novamente. Uma das
comissões – composta por Glauber Rocha, Cacá Diegues e representantes da Igreja, inclusive
da Teologia da Libertação – acabou aprovando o que já havia sido filmado, razão pela qual a
Embrafilme acabou tendo que solicitar a liberação do ator Ney Latorraca da Rede Globo para
a conclusão das filmagens. Para contornar a falta de recursos, Saraceni procurou a Prefeitura e
a Comissão de Cultura de São Paulo, das quais obteve apoio, após o parecer favorável de
Almeida Sales, presidente da Comissão. Em entrevista concedida, na época, ao ―Estadão‖,
Saraceni voltou a criticar a intervenção da Embrafilme e do ministro Nei Braga – que, mesmo
após o parecer favorável de várias comissões, inclusive da Igreja, não haviam liberado e
apoiado financeiramente a produção do filme –, e a ressaltar que ―Quinze dias depois,

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acabamos a filmagem num ato de pura fé e amor pelo cinema, o Brasil e a vida‖
(SARACENI, 1993:313).
A finalização das filmagens coincidiu com a notícia da morte de Paulo Emílio de
Sales Gomes, a quem o filme é dedicado: ―Terrível notícia: Paulo Emílio de Sales Gomes
morre, fulminado por um enfarte. Tragédia, um país com uma elite tão pouco inteligente
perde o grande mestre. Que horror‖ (SARACENI, 1993:313). Mas havia, ainda, um último
passo para ―exorcizar‖ a produção ―malditíssima‖ que chegava ao fim:

Tive que passar pelo último teste do Anchieta. Fui com Roberto Faria
mostrar Anchieta, José do Brasil para o ministro Nei Braga e o padre Hélio
Abranches Viotti, procurador da causa de beatificação de Anchieta. Dentro
do enorme cine Brasília, apenas o ministro, o padre e Roberto Faria
assistiam ao filme. Eu fiquei lá fora esperando. As duas horas e quarenta e
cinco pareciam vinte e tantas horas. Sofri. Rezei. (...) Depois das luzes
acesas, Roberto e padre Viotti ficaram conversando, o ministro saiu e seu
motorista abriu a porta do carro. Ele ficou me olhando um bom tempo, quis
dizer alguma coisa, mas não disse. Depois, Roberto me falou que ele achou
um absurdo aquele pau do cacique Tibiriçá. (...) Padre Viotti me entregou
um texto curto, escrito no próprio cinema: ‗A figura do Apóstolo do Brasil
foi tratada com simpatia constante, com dignidade e na intenção de
apresentá-lo como santo, a caminho dos altares.‘ (...) Comecei a chorar,
vendo o padre Viotti se afastar lentamente com Roberto. O padre ainda
elogiava muito o ator Nei Latorraca. (SARACENI, 1993:314)

Assim, Anchieta, José do Brasil, estava pronto para ser lançado. ―Mal lançado‖,
como admite Paulo César Saraceni, mas sua difícil missão estava cumprida.

4. UM FILME A SERVIÇO DO PROCESSO DE BEATIFICAÇÃO.

Tanto a instituição do Dia de Anchieta, em 1965, quanto as comemorações e


atividades cívico-educacionais que ocorreram nas décadas seguintes favoreceram a difusão de
uma imagem bastante idealizada do missionário, orientada, em grande medida, para os fins de
sua beatificação, que ocorrera somente em julho de 1980 19. Esta orientação também pode ser
constatada no filme Anchieta, José do Brasil, no qual:

(...) o religioso torna-se objeto da obra e seu autor, Paulo César Saraceni,
passa a defender abertamente a canonização do jesuíta. (...) O padre encarna

19
Sem provas ou milagres, a beatificação de Anchieta se deu pelo conjunto de suas obras, a despeito do ―milagre
das três almas salvas‖, visto que, em um único dia, ele teria convertido um índio à beira da morte, um velho e um
deficiente mental.

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o místico, o sobrenatural, e, assim, coloca-se acima das desigualdades e
desavenças existentes entre os indígenas e os colonos portugueses...
(MALAFAIA,1998)

Cabe lembrar o ano em que o filme foi produzido – 1977 – antecedeu em apenas 3
anos a beatificação do jesuíta, processo que se arrastou por mais de 300 anos, e que Anchieta,
José do Brasil pode ter contribuído efetivamente para a difusão da sua fama de místico e de
taumaturgo. Além disso, a produção cinematográfica contou com a colaboração – durante sua
realização – e com a aprovação do Pe. Hélio Abranches Viotti S.J, religioso bastante atuante
nas comemorações que seguiram à instituição do Dia de Anchieta e apoiador da Causa de
beatificação e Canonização de Anchieta. O empenho do Pe. Viotti pela beatificação de
Anchieta fica evidente, tanto na palestra ―Anchieta e as Primeiras Famílias de São Paulo‖
(ANCHIETANA, 1965:101-115), proferida durante o Ciclo de Conferências promovido pela
Comissão Nacional do Dia de Anchieta, quanto na biografia – premiada com o primeiro lugar
no Concurso Literário promovido pela Comissão Nacional das Comemorações do Dia de
Anchieta, em 1965 – que escreveu sobre o missionário jesuíta:

Queremos crer que, desta nossa tentativa, surja um Anchieta mais humano e
mais ligado historicamente aos empolgantes sucessos da formação cristã da
nacionalidade brasileira, justificando melhor, se possível, o título que para
ela escolhemos de Apóstolo do Brasil. (VIOTTI, 1980:07)

Este propósito implícito na produção do filme pode explicar a forma como


Anchieta é apresentado: como um predestinado – desde seu nascimento – à catequese dos
índios, à defesa dos escravos e à formação da nação brasileira. Um santo resignado e humilde,
como sugere este texto do missionário na abertura do filme: ―A inspiração do céu, eu muitas
vezes desejei penar e, cruelmente expirar, em duros ferros. Mas sofreram merecida repulsa
meus desejos. Só a heróis compete tanta glória.‖ 20
A última cena do filme é bastante ilustrativa da santidade atribuída a Anchieta,
pois em pleno cortejo fúnebre, ele levanta-se do caixão para, com um sorriso de satisfação e
ao som de um samba, dar início à festa entre brancos e índios:

Morto, Anchieta, seu corpo é carregado gravemente por companheiros seus. O


cortejo é acompanhado por uma música solene que, a partir de determinado
momento, lentamente, transforma-se em batucada, música característica do carnaval,

20
Trecho final do ―Poema da Virgem‖, com mais de 6.000 versos, que, segundo a lenda, teria sido escrito por
José de Anchieta, durante seu cativeiro entre os Tamoios, nas areias da praia de Iperoig e transcrito, de memória,
para o papel.

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e o cortejo começa a dançar. Esta seqüência final poderá ser interpretada
ironicamente pelos espectadores que não tiverem sido sensíveis ao profundo
misticismo que penetra o filme todo; na lógica do filme, ao contrário, a morte de
Anchieta torna-se uma festa, sua alma indo juntar-se a Deus, e sua energia religiosa
penetrando e estimulando o povo. (BERNARDET. apud SCHWARTZ,
SOSNOWSKI, 1994:104)

Sugerindo a sua santidade e o atributo de Taumaturgo da Nação, temos ainda


cenas em que Anchieta levita na frente dos Tamoios, em que traz à vida um índio à beira da
morte, através da conversão, e aquela em que salva um bebê tamoio de ser enterrado vivo.
Cena emblemática dessa missão atribuída ao jesuíta canarino de Apóstolo do
Brasil, é aquela em que ele, ao chegar no Brasil, se benze com a água do mar, ou como aquela
em que o jesuíta batiza uma criança indígena proferindo ―Eu batizo o Brasil‖, numa clara
alusão ao subtítulo dado ao filme Anchieta, José do Brasil: ―O amanhecer de uma nação‖.
Há, ainda, a cena em que Nóbrega diz a Anchieta: ―Viemos à conversão do Brasil, fazer um
país‖, seguida daquela em que caminhando na mata, Anchieta diz a Nóbrega que: ―Os filhos
dos portugueses se misturam com os pequenos curumins. Uma troca amorosa que, penso, e
sonho ser, o caminho para o Brasil‖.
Também a obediência é apresentada de forma recorrente durante o filme. Atitudes
de obediência a Deus e à Companhia, aos desígnios divinos e ao Papa são ressaltadas no
filme, enaltecendo a conduta religiosa de Anchieta e, ao mesmo tempo, da Igreja: ―Nós
queremos obedecer mais precisamente para compensar aqueles que nesses dias não querem
saber mais de obediência como se obedecer ao Papa fosse uma coisa vergonhosa, uma
inferioridade.‖21 O filme também exalta a Companhia de Jesus, apresentando-a como
defensora dos índios e do Brasil. Em uma das cenas, José de Anchieta fica frente a frente com
um índio, na praia. Nela, os dois se encaram, num reconhecimento mútuo transposto para uma
cena dramática. A sua fala – em que faz menção à força necessária para a domesticação do
indígena –, parece, no entanto, destoar da imagem amorosa de Anchieta, que o filme se
empenha em mostrar: ―Poderiam cristianizá-lo as energias da catequese, deixaria lugar o

21
Anchieta, José do Brasil (1977). Capítulo 12, 1h00m12s. O filme aborda o polêmico episódio da condenação
do francês, apresentando-o como aliado de Calvino e Lutero, herege e aliado dos tamoios, responsável pelas
mentiras e intrigas contra os jesuítas, mas sem apresentar Anchieta como seu algoz, pelo contrário. Numa das
cenas, enquanto o jesuíta mostra compaixão com o ―herege‖, Bolés zomba do Bispo e dele, chamando a Ordem
de ―belicosa companhia‖. O Bispo, por sua vez, afirma que ele deve ir embora de São Vicente e que será
denunciado às justiças eclesiásticas. Já Anchieta diz não permitir que ele desonre os jesuítas e fala da salvação
humana através da Virgem Maria. Na cena seguinte, Bolés aparece nos autos de confissão e, em seguida, se
autoflagelando.

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evangelho que tudo conspurca, canibal seria sempre canibal se a força não domesticasse pelo
temor e valeria a pena. Tudo vale a pena se a alma não é pequena‖22 [grifo nosso].
Em relação a esta fala do personagem Anchieta, nos chama a atenção a evocação
ao poeta Fernando Pessoa, e que nos leva a indagar: Saraceni teria se valido dela para melhor
expressar o pensamento do personagem? Ou devemos entender a passagem como um
desabafo do diretor do filme, diante de todas as adversidades que a produção precisou
contornar? Na seqüência, há outra fala em que o personagem que representa o Bispo – diante
da ameaça que representavam os protestantes – questiona Anchieta: ―E agora, José?‖. A
inevitável associação ao poema de Carlos Drummond de Andrade parece sugerir que os
próprios personagens se questionavam sobre o uso político que o regime militar fazia deles
ou, então, sobre o maniqueísmo implícito na disputa entre católicos e protestantes, entre
governo e comunistas, entre direita e esquerda. Mas, não seria, também, uma forma de o
diretor indagar-se sobre os rumos do cinema brasileiro diante da concorrência que vinha
sofrendo dos filmes estrangeiros ou dos efeitos da política adotada pela Embrafilme?
Aproveitando-se da visita do Papa João Paulo II ao Brasil, em 1980, a Embrafilme
tentou – sem sucesso – relançar o filme Anchieta, José do Brasil, como relatado por David
Neves, amigo de Saraceni:

Comoção de um lado e decepção de outro. Explico melhor: antes de viajar


para o Brasil, Sua Santidade beatificou o padre espanhol José de Anchieta,
fundador da cidade de São Paulo e personagem central do filme de Paulo
Cezar Saraceni, Anchieta, José do Brasil. Segundo o noticiário internacional,
centenas de peregrinos brasileiros foram à Roma para o ato solene, enquanto,
no Brasil, as agências de notícias e de publicidade anunciavam a disposição
da Embrafilme de relançar o filme em 17 cinemas do território nacional a
partir da segunda-feira, 30 de junho de [1980], data da chegada de João
Paulo II à Brasília. Uma ação impetrada pelos exibidores, entretanto,
frustrou a intenção. Não sou daqueles pessimistas que prevêem catástrofes
até em piqueniques, mas também tenho minhas desconfianças das ―boas
ações‖ da Embrafilme. A presença carismática do Papa entre nós serviu para
adiar, ainda mais, a solução de um problema do qual ele, sem ser a incógnita,
era elemento indispensável. Coisas do Brasil.(NEVES, 2004:311)

Para Neves, além da desvalorização do cinema brasileiro e do verdadeiro culto


aos filmes estrangeiros – sobretudo, os hollywoodianos –, havia, ainda, a má vontade dos
exibidores, aos quais responsabilizava pelo insucesso de muitas produções nacionais, dentre
elas, Anchieta, José do Brasil:

22
Anchieta, José do Brasil (1977). Capítulo 5, 25m40s.

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O final (polêmico no sentido jesuítico da expressão), longe de ser pagão,
retoma um ecumenismo cinematográfico que o realizador já havia proposto
em filmes. (...) A ação dos exibidores contra Anchieta, José do Brasil
mostrou que, no Brasil, o relacionamento Igreja-Estado é mais forte do que o
da Igreja com o cinema brasileiro e ainda mais João Paulo II foi infalível em
assuntos religiosos, beatificando o padre Anchieta, mas não a ponto de
comover os exibidores (em sua maioria de ―Piratininga‖), que vetaram sem
dó, piedade, fé ou caridade uma das mais raras e comoventes obras-primas
do nosso cinema, a troco de reles moeda, cujo valor e significado a História
(sagrada ou não) está farta de nos explicar.(NEVES,2004:312)

Este último depoimento, além de atestar a estreita relação existente entre Igreja e
Estado no período que analisamos, aponta para a polêmica que o filme provocou, desde o
início de suas filmagens, e que, parece ter, efetivamente, feito com que o filme deixasse de
colaborar para o andamento do processo da canonização do missionário jesuíta José de
Anchieta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Ao final deste artigo, em que apresentamos a análise do filme Anchieta, José do


Brasil, é impossível não deixar de relacionar nossas conclusões com a afirmação de Marc
Ferro, de que ―um filme, seja ele qual for, sempre vai além de seu conteúdo, e, da mesma
forma que escapa a seu censor, escapa também a quem faz a filmagem.‖ (FERRO, 1992:28)
De acordo com Milton José de Almeida, houve em Anchieta, José do Brasil, uma
―tensão histórica‖ (Cf. ALMEIDA, 1999:28), ou seja, o filme foi idealizado e encomendado
para retratar a história de uma época e, para tanto, dispunha da memória de um passado e,
também, de um presente estético e cultural, além de uma ideologia vigente que, através dos
responsáveis pela produção, deram a interpretação desejada ao filme. Segundo Almeida, as
imagens agentes morais têm este poder de construir o espectador e reforçar seu gosto, suas
atitudes, sua alma política (Cf. ALMEIDA, 1999:63), o que parece ter sido o objetivo do
governo militar ao financiar a produção. Assim, a versão produzida por Paulo César Saraceni,
nada mais é do que produto de sua memória dos fatos, desencadeados pela execução do filme.
Para escrevê-la, Saraceni precisou acionar um dispositivo de lembranças que pudessem ser

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narradas, a fim de contar a sua história, que deveria ser legitimada pelos personagens reais
que dela participaram como coadjuvantes.
Segundo o próprio Saraceni, o roteiro que produziu partiu da vontade de contar a
história das origens do Brasil. Mas, cabem as perguntas: O que o teria levado a escrever sobre
Anchieta? O que o teria levado a submeter o roteiro à Embrafilme? O que sabemos é que
dentre os autores que tratam do filme como verdadeira ―obra prima do cinema‖ estão o
próprio diretor e David Neves, amigo e incentivador do projeto, com quem chegou a
compartilhar a alegria pelo financiamento recebido da Embrafilme: ―Fomos festejar (...) a
saída do dinheiro [para começar o filme]. Eu e Davis Neves tomamos um porre com um
ótimo scoth‖(SARACENI,1993:301).
Como pudemos constatar, o filme, tem sido objeto, tanto de uma visão elogiosa,
quanto de uma visão negativa, desde a década de setenta do século XX. O mais significativo,
no entanto, parece ser o fato de que, apesar de ter sido idealizado para celebrar um
personagem e um determinado momento da história brasileira tanto pelo Estado, quanto pelo
diretor do filme e pela Igreja, nenhum deles colheu plenamente os frutos de seu empenho. A
produção fugiu do controle da Embrafilme, não fez o sucesso esperado por Saraceni, e,
tampouco, contribuiu positivamente para a campanha de beatificação e canonização de
Anchieta, justificando a denominação de filme ―malditíssimo‖ dada pelo crítico de cinema,
João Carlos Rodrigues.

FONTE.

ANCHIETA, JOSÉ DO BRASIL. Direção: Paulo César Saraceni. Produção: Santana Filmes e
Embrafilme. Roteiro: Paulo César Saraceni e Marcos Konder Reis. Intérpretes: Ney Latorraca, Luiz
Linhares, Maurício do Valle, Joel Barcelos, Hugo Carvana, Ana Maria Magalhães e outros. São Paulo:
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ALÉM DO MODERNISMO PAULISTA: A REVISTA FON-FON E OS DEBATES SOBRE A
1
MODERNIDADE NO RIO DE JANEIRO DA BELLE ÉPOQUE

Fabiana Francisca Macena 2

Resumo: Esta pesquisa tem como objeto de estudo a construção da modernidade e do


feminino na cidade do Rio de Janeiro no contexto da Belle Époque (1907-1914) nas páginas
da revista Fon-Fon, publicação do início do século XX, reconhecida como semanário
sintonizado com os novos tempos da modernidade carioca.

Palavras-chave: modernidade, Fon-Fon, comportamentos.

Abstract: This research aimed to analyze how the modernity was built in the context of Belle
Époque (1907-1914), in the city of Rio de Janeiro, according to Fon- Fon which was a weekly
magazine, published in the beginning of the 20th century and recognized as a way to be
updated on the Carioca's society.

Key-words: modernity, Fon-Fon, behaviors.

1
Este artigo apresenta algumas das reflexões apresentadas na dissertação de mestrado Madames, mademoiselles,
melindrosas: ―feminino‖ e modernidade na revista Fon-Fon (1907-1914), defendida em abril de 2010 no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB), desenvolvida com auxílio
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2
Mestre em História Social pela Universidade de Brasília (UnB) e professora do Instituto de Educação e Ensino
Superior de Samambaia (IESA). Contato com a autora: fabianamacena@yahoo.com.br

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A historiografia relativa ao período denominado como ―República Velha‖ (1889-
1930), conferiu à Semana de Arte Moderna de 1922, movimento visto como exclusivo de São
Paulo, uma posição central para o entendimento do modernismo brasileiro do período. O
modernismo paulista foi sacralizado pela historiografia, além de ser considerado como marco
do pensamento moderno brasileiro, sendo identificado como referência para o resto do país e
como fator de ruptura na história nacional. Esta afirmação se torna mais clara quando
observamos que outros períodos são identificados como ―pré‖ ou ―pós‖ este acontecimento, o
que evidencia a força da construção e significação desse movimento como marco, como fato
histórico. As demais possibilidades para se pensar a modernidade no país foram excluídas
e/ou escamoteadas nesse discurso homogeneizador, segundo o qual o modernismo paulista foi
elevado à posição de referente, de ―verdade histórica‖. Verdade, aqui entendida dentro de uma
perspectiva foucaultiana, como um saber que não está desvinculado do poder, considerando-
se que

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ―política geral de verdade‖:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros;
os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados
verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas
e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro. (FOUCAULT, 2007: 12)

Agindo como um censor, o ―regime de verdade‖ estabelece limites, delimita o


certo e o errado, o que está ou não na ordem do discurso, regula, enfim, o que pode ser dito e
o que deve ser afirmado como verdadeiro. Como ressalta Keith Jenkins, os argumentos de
Foucault são aplicáveis a qualquer discurso, inclusive o historiográfico, pois:

a ―verdade‖ e as expressões similares são expedientes para iniciar, regular e


findar interpretações. A verdade age como um censor: estabelecendo limites.
Sabemos que tais verdades não passam de ―ficções úteis‖ que estão no
discurso graças ao poder (alguém precisa pô-las e mantê-las ali) e que o
poder usa o termo ―verdade‖ para exercer controle; daí o regime da verdade.
A verdade evita a desordem, e é esse medo da desordem (dos desordeiros),
ou para nos expressarmos de maneira positiva, é esse medo da liberdade (o
medo de dar liberdade a quem não a tem), o que vincula funcionalmente a
verdade aos interesses materiais. (JENKINS, 2007: 59)

Nesse sentido, a versão historiográfica que se estabeleceu como ―verdade‖ foi a


produzida pelos ―vencedores‖: uma leitura construída pelos modernistas paulistas, ―que

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freqüentemente se apresentaram como arautos da modernidade brasileira‖ e que conferiu
centralidade ao movimento de 1922 (VELLOSO, 2003: 358).
Na produção historiográfica sobre a belle époque, identificamos autores que
analisam a produção intelectual dos literatos da capital federal como uma cópia ou reprodução
de padrões e modelos europeus (leia-se francês). Autores como Jeffrey Needell, por exemplo,
tratam a produção do período como apropriações da cultura européia pela elite carioca,
reduzida, portanto, a uma simples adaptação; ou seja, uma espécie de cópia ou idéias fora do
lugar, que foram consumidas sem o mínimo de crítica e de realismo, de ajuste às necessidades
do momento, dos indivíduos em questão e às especificidades da sociedade carioca. Tais
afirmações se tornam mais claras se observamos o que aquele autor diz a respeito da produção
literária da belle époque:

O período intermediário, contudo, mais relevante para esta discussão, tem


sido geralmente negligenciado. Herdeiros do modernismo, leitores e críticos
recentes normalmente aceitam a condenação modernista do fin-de-siècle
brasileiro como um período afetado e superficial, apesar de alguns
registrarem, ocasionalmente, sua importância antecipatória. O maior
estudioso de [sic] período, Brito Broca (1903-1961), observou uma
característica muito pertinente: o estilo da vida e da produção literária da
época era, com freqüência, mais importante do que a própria literatura. O
mundanismo, traduzido no modo de vida europeizado, na moda e enfatizado
nos textos, saturou o mundo literário e dominou a literatura. (NEEDELL,
1993: 215)

Apesar de considerar relevante a literatura produzida no período, Needell a


considera menor e mundana. Desta forma, ele compartilha da interpretação de que a produção
literária da belle époque seria uma literatura superficial, porque mundana. Compartilha
também a tese da hegemonia e importância do modernismo paulista consagrada pelo discurso
historiográfico tradicional.
Sob tal lógica, podemos afirmar, acompanhando as reflexões de Manoel Luiz
Salgado Guimarães, que o silêncio relativo a certos grupos e interpretações tem ―significados
políticos‖, pois delimita quais as memórias que podem e devem ser preservadas, além de
atribuir os possíveis usos e sentidos para a narrativa histórica. Assim, como o autor nos
adverte, nessa relação entre memória e história, ―é preciso que a própria escrita da história se
submeta ao rigor do exame crítico como forma de dessacralizarmos uma memória‖
(GUIMARÃES, 2000: 20).

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Esse exercício de dessacralização demanda atenção aos ―sinais de modernidade‖
que ocorriam não apenas em São Paulo, mas em várias regiões e cidades do Brasil desde o
início do século (VELLOSO, 2003: 353). Deve-se romper com a prática de se pensar o
modernismo e as reflexões sobre a modernidade como unicamente questões de estética, como
discutidas naquele cenário e momento, como nos ensina Mônica Velloso. Para essa autora,
deve-se pensar o modernismo a partir de outro prisma, ―como um processo e movimento
contínuo que vai desencadear vários outros movimentos no espaço e no tempo‖, ressaltando a
complexidade e a pluralidade de significações e sentidos conferidos à modernidade nas mais
diferentes regiões do país (idem, ibidem).
No esforço em rever esse tipo de discurso, de ―verdade histórica‖, alguns
trabalhos foram cruciais para dessacralizar a centralidade da Semana de Arte Moderna e seu
caráter de ruptura. A partir de diferentes perspectivas, os trabalhos de Flora Sussekind (1987),
Nicolau Sevcenko (1999) e Eduardo Jardim de Moraes (1978), para citar alguns autores,
contribuíram para desmistificar a pretensa originalidade do modernismo paulista e evidenciar
seu diálogo com outras tradições que remetem, muitas vezes, ao século XIX. Outros autores,
como Mônica Pimenta Velloso (2003), salientaram as especificidades de outros modos de
pensar o ―ser moderno‖, outras abordagens sobre a modernidade, entre elas, as das revistas
ilustradas.
Tais publicações nos possibilitam entender outros modos de significação da
modernidade que fogem ao modelo de São Paulo, entendendo, como sublinha Mônica
Pimenta Velloso, que é preciso ―relativizar a importância do modernismo paulista, atentando
para outras expressões do moderno presentes na dinâmica cultural brasileira‖ (ibidem: 358).
Ainda de acordo com aquela autora, essas revistas

mostram precisamente as ambigüidades que marcaram a instauração do


nosso moderno. Mas apresentam-se como instrumentos de modernidade ao
propiciar o acerto de contas com esse tumulto de sensações do dia-a-dia,
reforçando a atualização e a renovação da linguagem. (ibidem: 367)

Mônica Velloso ressalta que tais publicações produzem ―retratos do Brasil‖, ou


seja, ―inspirados diretamente no cotidiano e nas práticas urbanas, esses retratos mostram-se,
particularmente, capazes de expressar as ambigüidades da nacionalidade e do moderno‖
(ibidem: 369). Interessa-nos destacar, no presente artigo, que modernidade/civilidade
veiculam as revistas ilustradas como regime de verdade.

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Com tal propósito, priorizamos a análise da revista Fon-Fon, semanário que se
auto-intitulava alegre, político, crítico e esfusiante publicado no Rio de Janeiro a partir de
1907, por entendermos que ela nos possibilita perceber e apreender algumas práticas e
representações produtoras/reprodutoras da modernidade carioca daquele período. Interessa-
nos investigar quais imagens/valores e significações constitutivas de tais representações
sociais e do imaginário social que as preside. Imaginário social, concebido como esquema de
interpretação e significação, tal como definido por Baczko, como construção social por meio
do qual

uma colectividade designa a sua identidade; elabora uma certa representação


de si; estabelece a distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e
impõe crenças comuns, constrói uma espécie de código de ―bom
comportamento‖, designadamente através da instalação de modelos
formadores tais como o do ―chefe‖, o ―bom súdito‖, o ―guerreiro corajoso‖,
etc. Assim, é produzida, em especial, uma representação global e totalizante
da sociedade como uma ―ordem‖ em que cada elemento encontra o seu
lugar, a sua identidade e a sua razão de ser. (BACZKO, 1985: 309)

Como ressalta Baczcko, o imaginário social é eminentemente político, no sentido


de que ―é uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida colectiva e, em
especial, do exercício da autoridade e do poder ‖ (ibidem: 310). Não por acaso, é objeto e local
de disputas, tensões e conflitos entre os mais diferentes grupos sociais, em busca de
hegemonia na definição de seu regime de verdade. Entendemos que o material veiculado pela
revista Fon-Fon nos possibilita acessar as constantes disputas, as imagens e valores, as
reelaborações e ressignificações em torno da vida moderna, expressando os conflitos e
tensões em torno dessa definição.

FON-FON: UM PERIÓDICO “LEVE E ÁGIL”, COMO OS TEMPOS MODERNOS

Conforme Semiramis Nahes, os autores ―Mário Pederneiras, Gonzaga Duque e


Lima Campos fundaram a revista, cujo título proclama, como marca de progresso, um ruído
novo para a cidade, o das buzinas dos automóveis da capital que se industrializava
vertiginosamente‖ (NAHES, 2007: 100). Ao comentar o logotipo da revista, Giovanna
Ferreira Dealtry ressalta a ambigüidade que envolve a modernidade, a coexistência do novo e
do antigo, pois ―no banco da frente, um chauffeur pisa fundo e acelera o conversível, entrando

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no século XX a toda velocidade; no banco de trás, um senhor distinto tenta segurar a cartola,
símbolo da elegância do século XIX (...)‖ (DEALTRY, 2004: 82).

Figura 01. Logotipo da revista. Acervo da Biblioteca Nacional.

O logotipo da revista é, de fato, emblemático, pois faz referência a uma série de


idéias/imagens/significações que perpassam a publicação durante os anos aqui analisados. A
figura do carro e o nome do periódico ligado a sua onomatopéia veiculam e reafirmam os
sentidos da modernidade e masculinidade conferidos às imagens associadas ao novo tempo
que a revista anuncia rápida e ruidosamente. Objeto cuja posse estava nas mãos de uns poucos
―privilegiados‖, o automóvel indica o progresso, a eficiência, o ritmo acelerado, a
industrialização que chega ao país, tal como já chegara aos países ―adiantados‖. Um símbolo,
portanto, de status e poder. Além disso e por conta disso, por ser um produto importado pelos
―novos protagonistas sociais‖, o carro foi rapidamente identificado como ―o clímax da
modernidade‖ (SEVCENKO, 1998: 558). Meio de transporte que substituía o tilbury, o carro
estava afinado com as transformações da capital modernamente remodelada, ao percorrer,
sem obstáculos, as modernas e largas avenidas que foram construídas no lugar das ruas
estreitas de paralelepípedos, próprias das cidades arcaicas, provincianas, do passado, como a
revista costuma se referir.
Podemos interpretar, ainda na imagem do logotipo, as novas relações de trabalho,
próprias destes ―novos tempos‖: o trabalho livre, profissionalizado, do chauffer, em
contraposição ao trabalho escravo, característico da sociedade colonial e imperial. O
patrão/passageiro, que também pertence ao mundo do trabalho, urbano, dos negócios e não da
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área rural, significado como o local do atraso, da inércia e do conservadorismo, naqueles
momento e contexto. Aquele teima em segurar sua cartola, símbolo de elegância burguesa do
século XIX, atitude que nos remete para a importância, também, da tradição, haja vista sua
obstinação em não se desvincular totalmente de antigos hábitos e comportamentos ante a
mudança vertiginosa provocada pela modernidade, simbolizada na máquina, no automóvel.
Cientes do papel da imprensa na construção desse novo tempo, os autores da Fon-
Fon procuram destacar a revista enquanto um veículo ágil e moderno de comunicação, de
difusão de idéias, de construção de novas formas de agir e de pensar. Assim, tornava-se
indispensável ressaltar a Fon-Fon do conjunto de publicações anteriores, como destacado em
matéria de julho de 1912:

Naquelle tempo a imprensa não era como è hoje... Quem ainda não ouviu de
uma velha bocca tradicionalista esta saudosa phrase evocativa?
– Mas então como seria a imprensa naquelle tempo?
– O jornal era um doutrinador, o artigo de fundo uma fonte segura de
orientação publica.
Não era preciso pensar, não era preciso ter opinião. Dava-se o facto,
realizava-se o successo e o povo aguardava no dia seguinte, o jornal da sua
predilecção para saber como era que elle pensava. Acontecia pensar quasi
sempre como o leitor, e a opinião estava formada. (...)
Naquella época o leitor tinha tempo para se deixar ficar em casa,
commodamente, em trajos familiares, refestellado numa cadeira de balanço e
ler demoradamente as profundas considerações do artigo de fundo. Hoje o
leitor, entre dois goles de café ou uma viagem rapida de automovel, precisa
já estar sciente de todas as novidades e de todos os negócios do dia.
O artigo de fundo morreu... por falta de tempo para ser lido.
O automovel substituiu o bond e o carro, a eletricidade depoz o gaz e a vela,
o que se procura hoje é attingir a velocidade maxima para applicação do
maximo tempo. Se o jornal tivesse ficado no seu moroso e longo feitio
antigo, morria por falta de leitores e a imprensa entraria para o rol das cousas
inuteis.
Entretanto, hoje dá-se o contrario, todo o mundo quer ler, não ha quem possa
passar um dia sem comprar um jornal. Antigamente o jornal era uma especie
de privilegio das camadas superiores.
O tempo é outro e com a mudança do tempo, mudou a vida, mudaram os
habitos do homem.
E o jornal não póde deixar de ser o reflexo exacto da época em que vive.
(Fon-Fon. Anno VI, n.27, 06 de julho de 1912)

É visível o investimento feito na construção de um novo papel da imprensa como


―reflexo exacto da época em que vive‖, dos novos tempos, tempos modernos de rápidas
mudanças. À imprensa caberia responder às demandas por notícias de um modo cada vez
mais rápido, em um ambiente no qual a informação já não é mais privilégio de leitores da

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camada superior da sociedade. Fica também evidente nessa construção a percepção da
modernidade como tempo distinto, em que prevaleceriam as constantes mudanças e a rapidez
dessas: ―O tempo é outro e com a mudança do tempo, mudou a vida, mudaram os hábitos do
homem‖.
Propagadores desse novo tempo, os cronistas da Fon-Fon escrevem de modo a
informar e formar opinião pública. Como bem atenta Mônica Pimenta Velloso,

Chama atenção o alto potencial informativo das revistas de humor.


Verdadeiras formadoras da opinião pública, elas transmitem o seu recado de
forma ágil, leve e sintética. Dirigem-se aos leitores apressados e cada vez
mais carentes de informação. Trata-se de uma linguagem rápida, capaz de
mover-se de acordo com o ritmo dos acontecimentos que se sucedem de
forma cada vez mais rápida. (VELLOSO, 2003: 368)

Com base na fórmula ―ágil, leve e sintética‖, a revista ressalta o humor, a ironia, a
crítica, a ilustração. Como anunciado desde o primeiro número, tratava-se de um ―semanário
alegre, político, crítico e esfusiante‖ uma folha ―folgazã‖, que brinca com tudo aquilo que é
considerado sério. Como exposto pela revista:

Salve-se quem poder! Arreda! arreda!


Vim de automovel para chegar cedo!
E hei de tudo levar de queda em queda
Pois de tudo saber trago o segredo!

Ao espírito e á graça bato moeda


E levo a vida toda de brinquedo.
De tudo revelar ninguem me veda
E de tudo dizer não tenho medo!
(Fon-Fon. Anno I, n.01, 13 de abril de 1907)

O periódico avisa: ―salve-se quem puder!‖, pois, como o automóvel, vinha a toda
velocidade, e como este último, muitas vezes atropelava, não poupando nada nem ninguém.
Assim, com charges, ilustrações, piadas e outros elementos, ou seja, por meio da ironia, do
humor e da sátira, a publicação republicana procurava fazer rir e, ao mesmo tempo, também
fazia a crítica social, questionava e denunciava, atribuindo sentidos a tudo que se anunciava
como novo.
Segundo Elias T. Saliba, este momento do século XX, ―século da luz e da
velocidade, século da síntese e da rapidez‖, apresentava-se como conturbado, pleno de

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novidades e incertezas. Diante do sentimento de atração pela novidade e também do receio e
insegurança diante dela, o riso é visto como o melhor remédio, pois ―o humor brota
exatamente do contraste, da estranheza e da criação de novos significados‖ (SALIBA, 2002:
17). O humor, nessa publicação, pode ser pensado, portanto, como uma estratégia de criação
de novos significados para o momento vivido, de modo a promover a ruptura com o passado
imperial, pautado em sua desclassificação. Não por acaso, a construção discursiva da
modernidade da Belle Époque carioca ancora-se na oposição entre Império/República, baseia-
se no contraste e críticas com/ao regime político anterior. Como nos lembra aquele autor, ao
analisar texto do humorista Benjamim Costallat, o humor

constituiu uma forma de representação privilegiada da história das


sociedades, particularmente naquela época – de tantas novidades, de tantos
contrastes e tantos estranhamentos, ocorridos num ritmo, até então,
imprevisível. Época na qual este humorista tinha vivido a maior parte de sua
vida, e da qual ele assistia o inglório encerramento: a Belle Époque. (ibidem:
18)

Rachel Soihet, ao tratar da participação dos grupos populares no carnaval do Rio


de Janeiro da Belle Époque ao período Vargas, ressalta o caráter subversivo do riso, do
humor, enfim, ―o recurso ao riso como instrumento de crítica‖, como meio de resistência
(SOIHET, 1998: 12). A autora atenta para um aspecto do humor que Saliba define como
―dimensão social do riso‖, ou seja, espaço de transgressão, de questionamento, além da
―percepção e sentimento da ruptura‖ (SALIBA, 2002: 29). Afinal, são construtos histórico e
culturais instáveis e mutáveis, forjados ―nos fluxos e refluxos da vida, no tecido histórico e
social‖ (ibidem: 28).
É preciso destacar que estas transformações, esse novo tempo que a revista
anuncia como próprio da República, sem qualquer historicidade, é exagerado em suas
novidades. As mudanças materiais ocorridas durante a reforma urbana do Rio de Janeiro não
garantem, por si só, a modernidade da capital e muito menos são exclusivas desse período.
Transformações materiais também foram recorrentes durante o império, no qual ocorreu a
construção de redes de esgoto a partir de 1860, a instalação de iluminação a gás e a criação de
Petrópolis, cidade planejada e pensada como ―uma solução de sanitarismo urbanístico‖, para
citar algumas alterações (ALENCASTRO, 1997: 67). Luiz Felipe de Alencastro destaca que,
além dessas mudanças materiais, o período monárquico fora marcado, também, pelo discurso
de inserção do país na ordem dos países civilizados. O aumento da entrada de artigos

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importados no país, além dos bailes de salão à moda européia, com música tocada ao piano,
bem como a influência de teorias e idéias divulgadas pelos franceses (positivismo,
kardecismo, homeopatia, etc.) procuravam introduzir o país na ordem civilizada e moderna,
―no concerto das grandes nações contemporâneas‖ (ibidem: 44).
Deste modo, é preciso ressaltar que a entrada do país no século XX não traz, por
si só, a modernidade. Muito menos a mudança de regime político. Aquela vinha sendo
engendrada no interior do tecido social desde o século anterior. A grande novidade reside nas
inovações tecnológicas e materiais e também nos sentidos atribuídos ao novo momento. Desta
participaram a revista Fon-Fon, assim como outros veículos da imprensa e saberes que
investem discursivamente na produção de um novo tempo, um novo entendimento da
modernidade, principalmente a carioca, ao ressaltar e ampliar as distinções do momento
experimentado com o período imperial, significado como arcaico, antigo, retrogrado.

“O RIO CIVILISA-SE”...

No contexto dos ―tempos novos‖, os colaboradores da Fon-Fon procuraram, com


suas críticas e propostas de modernos comportamentos e papéis sociais, estabelecer as regras
e desenhos da nova configuração da cidade e de suas redes de sociabilidade. Uma nova ordem
e uma nova cidade, desvinculadas do peso do passado imperial, identificado com o atraso, a
inércia, o imobilismo. Ou seja, divulgavam a nova materialidade da capital remodelada,
significando-a como ―moderna‖ e civilizada, bem como os novos comportamentos e relações
sociais.
Tais distinções e significações ficam evidentes na apresentação do primeiro
número do periódico:

Freguezia:
poucas palavras apenas a guiza de apresentação. Uma pequena... ―corrida‖,
sem grandes dispendios de ―gazolina‖, nem excessos de velocidade. Para um
jornal agil e leve como o FON-FON!, não póde haver programma
determinado (deviamos dizer distancia marcada). Queremos fazer rir, alegrar
a tua boa alma carinhosa, amado povo brasileiro, com a pilheria fina e a
troça educada, com a gloza inoffensiva e a gaiata dos velhos habitos e dos
velhos costumes, com o commentario leve ás cousas de actualidade. (...) E
prompto. Não havera assumpto mais sobrecasaca preta, mais cartola, mais
Instituto Histórico, que ressista á ferina expressão desta ―sirene‖ bohemia.

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(...) Os ―chaufeurs‖ são os melhores que possuimos, experimentados e
queridos. Conhecem a ―machina‖ e as ―avenidas‖ que vão percorrer. Não
fazem ponto no Castellões; vão adiante... á Glória (...).
CHAUFFEUR
(Fon-Fon. Anno I, n.01, 13 de abril de 1907)

Como uma ―carta-programa‖, assinada por Chauffeur, um dos muitos


pseudônimos do periódico, os intelectuais ligados a tal projeto mostram ao público leitor o
que estes encontrariam nessa nova revista ilustrada, ―jornal ágil e leve‖, a que ele veio e o que
propunham deixar para trás.
É interessante notar que a revista, tanto no título quanto em várias passagens de
sua apresentação, faz uso da imagem da máquina, com um dos símbolos máximos da
modernidade: no caso, o automóvel. Constantemente são utilizadas imagens e idéias que
remetem ao veículo, tais como ―Uma pequena... ‗corrida‘, sem grandes dispendios de
‗gazolina‘, nem excessos de velocidade‖ ou até mesmo o nome do periódico, onomatopéia
que faz alusão ao barulho da buzina, bem como o próprio nome do autor do texto.
O automóvel representou, durante as primeiras décadas do século XX, a função de
imagem/símbolo da modernidade, tal como o piano no século XIX, que, de acordo com
muitos, proporcionaria a civilização e ocidentalização do país independente. Como afirma
Luís Felipe de Alencastro, durante o Império o piano era ―mercadoria-fetiche‖ de uma nova
fase econômica, política e cultural. Tal instrumento representava o novo e

dava status, porque era moda, a moda, anunciando os 25 anos, a maioridade


efetiva de D.Pedro II, o fim da africanização do país e da vexaminosa
pirataria brasileira, o prenúncio de outros tempos e dos novos europeus que
iriam imigrar para ocidentalizar de vez o país. Porque o Império iria dançar
ao som de outras músicas. (ALENCASTRO, 1997: 47)

No caso do automóvel, também ―mercadoria-fetiche‖, indicava o advento de um


novo tempo – o da modernização e de um novo regime político – a República. A
transformação urbanística do Rio de Janeiro, capital que se pretendia civilizada, com suas ruas
e avenidas largas e arborizadas é a imagem mais forte das mudanças desse novo tempo. ―O
Rio civilisa-se‖, é o que repetem os cronistas a todo instante, fazendo tabula rasa da
experiência monárquica, não obstante esta também ter sido embalada pelas idéias de
progresso e civilização. A representação de modernidade, a imagem/símbolo do automóvel

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serve, entre outras coisas, para identificar a publicação com estes ―novos tempos‖, modernos,
vertiginosos.
Contrapor-se ao antigo, aos costumes e modos de ser da experiência monárquica é
um dos traços com os quais a revista quer ser reconhecida. Daí, temas ―mais sobrecasaca
preta, mais cartola, mais Instituto Histórico‖ constituírem em um dos alvos das críticas e
pilhéria dos colaboradores. Afinal de contas, a cartola e a sobrecasaca preta são peças do
vestuário identificadas com os costumes da sociedade monárquica que a ordem republicana
queria desclassificar, deixar para trás, num passado significado como ―atrasado‖. Na ordem
republicana recém-instalada,

verifica-se a passagem da tradicional sobrecasaca e cartola, ambos pretos,


símbolos da austeridade da sociedade patriarcal e aristocrática do Império,
para a moda mais leve e democrática do paletó de casemira clara e chapéu de
palha. O importante é ser chic ou smart conforme a procedência do tecido ou
modelo. (SEVCENKO, 1999: 31)

Um dos símbolos do Segundo Reinado e, principalmente, da atuação do


Imperador D. Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, é objeto da crítica da
Fon-Fon, ao ser significado como espaço de produção de uma história identificada com o
passado, com a continuidade da tradição lusa, com aquilo que precisava ser superado porque
ultrapassado. Experiências e protagonistas de um momento da história do país que ficou para
trás foram significados negativamente de modo a valorizar os ―novos tempos‖ do regime
republicano, a nova ―origem‖ da história do país. 3
A grande oposição e crítica da revista republicana Fon-Fon ao Instituto está
centrada menos no ―fazer historiográfico‖ e mais a memória que associa a instituição à
imagem de D. Pedro II e ao regime monárquico. Memória que se pretendia silenciar e
substituir pela republicana. Com efeito, como destaca Manoel L. S. Guimarães (1988), o
IHGB permaneceu por muito tempo sob a tutela do Imperador D. Pedro II e os critérios de
ingresso eram os de uma sociedade de corte.4

3
Criado em 1838, o IHGB foi o grande responsável, no século XIX, por uma produção historiográfica que
procurou definir os contornos da nação brasileira. Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, ―A leitura de
história empreendida pelo IHGB está, assim, marcada por um duplo projeto: dar conta de uma gênese da Nação
brasileira, inserindo-a, contudo, numa tradição de civilização e progresso (...).‖ (GUIMARÃES, 1988: 08)
4
Como destaca Guimarães, o IHGB, espaço por excelência da produção historiográfica no Brasil fora
organizado tal como uma ―academia de escolhidos e eleitos a partir de relações sociais, nos moldes das
academias ilustradas que conheceram seu auge na Europa nos fins do século XVII e no século XVIII. O lugar

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Nesse sentido, o IHGB era visto como instituição elitista, ―um espaço da
academia de escolhidos e eleitos a partir de relações sociais‖ (idem: 05). Além do que, o
grupo de autores simbolistas cariocas, fundador da revista Fon-Fon, era antiacadêmico,
combatia os rigores e cientificismos presentes na literatura e, porque não, na imprensa. Como
argumenta Ângela de Castro Gomes, o simbolismo

foi boêmio, espiritualista, satírico e antiacadêmico, atraindo alguns grandes


nomes da intelectualidade carioca de então. Foi praticado dentro de um
circuito ―sério,‖ com Afrânio Peixoto (Rosa mística), Coelho Neto (Esfinge)
e Graça Aranha (Canaã). Mas também foi praticado dentro de um circuito de
humor, como estratégia crítica à literatura e aos literatos, explicitando as
múltiplas e inusitadas possibilidades de circulação e de usos das formas
estéticas. (GOMES, 2004: 87)

Alvo de críticas, pilhéria e desclassificação pelos articulistas da Fon-Fon, o IHGB


é visto como símbolo de um passado que se queria encerrado. À ele contrapõe-se a Academia
Brasileira de Letras. Esta seria a instituição identificada por parte da intelectualidade
brasileira e de articulistas da Fon-Fon como um novo local de sociabilidade e autoridade
intelectual. Será esse espaço de escolhidos pelo mérito, por suas virtudes literárias e
contribuição às letras nacionais que terá legitimidade durante esses primeiros anos do regime
republicano.5
O perfil da revista e de seus leitores encontra-se anunciado no texto assinado pelo
autor, cujo pseudônimo é Chauffeur. Este afirma que o periódico não faz ―ponto no
Castellões; vão adiante... á Glória‖. Tal roteiro define o público a que a revista se destinava:
o público republicano, progressista, adepto do novo. Não por acaso, são utilizadas duas
regiões distintas do Rio de Janeiro: a do Castelo e a da Glória. A primeira, no início do século
XX era considerada uma região já ultrapassada, fora de moda, com seus casarões antigos e
cortiços, próprios do passado colonial e imperial. A segunda, por sua vez, era um dos bairros
mais elegantes e valorizados do Rio de Janeiro remodelado, com suas praças e casas
inspiradas nos modelos arquitetônicos franceses. Assim, a revista se dirige ao presente e não

privilegiado da produção historiográfica no Brasil permanecerá até um período bastante avançado do século XIX
vincado por uma profunda marca elitista, herdeira muito próxima de uma tradição iluminista‖. (ibidem: 05)
5
Sobre a criação da Academia Brasileira de Letras como novo espaço de sociabilidade e as tensões decorrentes
de seu estabelecimento ver: BROCA (2004). Elias Thomé Saliba ressalta a ambigüidade do relacionamento
desses ―intelectuais boêmios‖ com a Academia Brasileira de Letras. Considerado espaço de legitimidade pública
para a intelectualidade brasileira, esses humoristas, muitas vezes rejeitados, ―punham-se a ironizar com as armas
que a vocação lhes dera as instituições que os rejeitavam, mas que, de alguma forma, como intelectuais, eles
também secretamente ambicionavam‖. (SALIBA, 2002: 144)

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ao passado, ou seja, a um grupo seleto, moderno, rico e refinado, disposto a ficar em dia com
a última moda européia.
Recorre-se, mais uma vez, à oposição pra construir o novo, no caso a oposição a
um passado ainda recente que deveria ser menosprezado e apagado. De acordo com Jeffrey
Needell, ―a cidade, fundada em um morro (o do Castelo), cresceu ao redor do cais, que se
estendia ao longo da costa leste, ao pé do morro‖ (NEEDELL, 1993: 43). Entretanto, já no
final do século XIX, ocorrera um deslocamento dos moradores mais abastados para outras
regiões pela razão de

serem mais frescos nos verão e menos atingidos pelas febres, os ricos cada
vez mais optavam por se mudar para locais antes usados apenas para
descansos semanais esporádicos ou para uma semi-aposentadoria refinada, e
esses bairros se tornaram práticos para as idas diárias para a Cidade Velha.
(ibidem: 48)

Um destes novos locais refinados, localizado em região recentemente valorizada e


alvo destes deslocamentos foi o bairro da Glória. Tal contraposição entre estas regiões – a
cidade Velha e a Nova com novos bairros – tornou-se ainda mais evidente com as reformas
urbanas do Rio de Janeiro no início do século XX.

A MODERNIDADE DA FON-FON

Esta tentativa de ajuste de contas com o passado, de dar inteligibilidade a uma


série de sensações e impasses é característico de um fenômeno que vários autores denominam
como modernidade. Como identifica Marshall Berman, a modernidade é um conjunto de
novas sensações e experiências em relação ao tempo, ao espaço ou a si próprio, partilhados
por homens e mulheres em ―todo o mundo‖ (BERMAN, 1986: 15). Um movimento que tem
sido alimentado há décadas por eventos como descobertas científicas e industrialização da
produção, ―que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes
humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo da vida‖ (ibidem: 16). Também são

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destacados a explosão demográfica, 6 os sistemas de comunicação de massa e movimentos
artísticos como o Futurismo.7 De acordo com aquele autor, ser moderno é

encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,


crescimento, autofransformação e transformação das coisas ao redor – mas
ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos,
tudo o que somos‖. (ibidem: 15)

Nesse sentido, a analogia que Berman faz entre a modernidade e um turbilhão é


significativa: trata-se de um conjunto de experiências paradoxais, um misto de lutas, dilemas,
contradições, ambigüidades e angústias ante as certezas do mundo antigo e as incertezas do
novo, nesse movimento de ruptura com o passado e de aposta no futuro.
Para Nicolau Sevcenko (1992), o fenômeno da modernidade foi amplo. No Brasil,
o mesmo teve início no final do século XIX, quando o futuro passou a ser visto como um
campo de inúmeras possibilidades. Como destaca Jacques Le Goff, a modernidade nasce no
sentimento de ruptura com o passado e indica novos costumes, comportamentos e
mentalidades (LE GOFF, 2003: 175). O autor chama, porém, a atenção para o fato de que,
apesar da consciência de modernidade ser proveniente de um sentimento de ruptura com o
passado, o historiador não deve reconhecer como moderno aquilo que as pessoas, no passado,
não vivenciaram ou sentiram desta maneira (ibidem: 173). Por isso, ao reconhecermos o
investimento discursivo da Fon-Fon no moderno e na modernidade, o fazemos a partir dos
discursos, imagens veiculados pela mesma. Nela, os colaboradores têm um sentimento de
ruptura com o passado, pois se identificam como modernos e caracterizam o momento vivido
como tal, apostando na possibilidade das mudanças, significando positivamente tal
experiência.
Naquele contexto de mudanças, os colaboradores da Fon-Fon procuraram, através
da crítica e da proposta de novos comportamentos e papéis sociais, desenhar uma moderna

6
No caso do Rio de Janeiro, José Murilo de Carvalho afirma que a população da cidade alterou-se
significativamente em ―número de habitantes, de composição étnica, de estrutura ocupacional‖. Segundo o
autor, a população quase dobrou entre 1872 e 1890, ―passando de 266 mil a 522 mil‖. Este aumento seria
resultado, principalmente, do êxodo de libertos provenientes da região cafeeira do estado e do afluxo de
imigrantes estrangeiros, principalmente portugueses. (CARVALHO, 1987:16). Susan Besse também destaca
que, com a reforma urbana do Rio de Janeiro, ―as oportunidades comerciais e de emprego em expansão atraíam
estrangeiros e migrantes rurais‖, promovendo o aumento continuo da população, que de 1890 a 1920 mais que
duplicou, atigindo a cifra de 1.157.873 habitantes. (BESSE, 1999: 17).
7
Berman afirma que o Futurismo foi um movimento de defensores apaixonados da modernidade, com um desejo
de ―fundir suas energias com a tecnologia moderna e criar um mundo novo.‖ Entretanto, para o autor os
futuristas levaram a celebração da tecnologia ao extremo, distanciando-se do povo. (BERMAN, 1986: 24-25).

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configuração da cidade e de suas redes de sociabilidade, rompendo com o passado, ou com o
que segundo eles era necessário romper. É nesse sentido que aqui nos utilizamos do conceito.
Pensá-lo enquanto um modo de dar inteligibilidade a uma série de sensações e impasses, de
experiências históricas.
Uma primeira forma de se pensar a modernidade, tal como elaborada pela revista,
foi a que identificou o moderno com os progressos materiais da cidade do Rio de Janeiro. Ou
seja, com as melhorias urbanas, com configuração material da capital federal.
Significativamente, tal movimento modernizador da cidade é identificado também como
civilização. Como destacado por André Azevedo (2003), o conceito sofreu uma mudança
significativa nos sentidos apresentados nos lexicógrafos dos séculos XIX e XX. O autor
evidencia que, se durante o século XIX, civilização significava polidez, respeito e obediência
às leis, já nos primeiros anos do século XX o mesmo termo é, porém, re-significado:

Este vocábulo passaria então a conotar um estado, estágio, uma situação


onde se teria chegado, reveladora de um avanço em diversos campos da vida
social. O termo aparece ainda com o significado de ação de civilizar, ou seja,
segundo a semântica que Figueiredo atribui à palavra, ação que envida
esforços no sentido de conduzir alguém ou alguma sociedade ao que o autor
designaria como "estado de adiantamento e cultura social‖. (idem: 236)

Deste modo, como bem observa André Azevedo, a idéia de civilização está
intimamente interligada com outros termos: progresso material e social, ao ―avanço em
diversos campos da vida social‖. Nesse sentido, progresso era significado como ―dimensão de
desenvolvimento material‖, imprescindível à civilização, ao adiantamento de uma
determinada sociedade, ao ―estado de adiantamento e cultura social‖ (ibidem: 237).
É recorrente na revista Fon-Fon o investimento na idéia de que o Rio de Janeiro
―civilisa-se‖, naquele segundo sentido – o do século XX. E um dos condutores do progresso
material e social, segundo esses colaboradores, é o ex-prefeito Pereira Passos. Seu nome
torna-se sinônimo de mudanças, de melhoramentos, de progresso, de avanço material e social,
mesmo anos após sua gestão como prefeito do Rio de Janeiro, como se pode observar em uma
das crônicas da revista:

Novo Prefeito, programmas novos, planos de melhoramentos. Ainda bem; mas já


estavamos com saudades do fervet opus do tempo do Passos.

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Passos foi um terremoto; terremoto bemfazejo que encheu a cidade de ruínas, para
depois fazer dellas surgir as avenidas largas, os edificios de architectura moderna,
os monumentos com que sonháramos em decênios de vida aphatica. (...).
Vem agora o Seredello que é homem como trinta, de uma actividade que já se
tornou clássica e que vae continuar as obras, sanear Matto Grosso, abrir avenidas,
iniciar a segunda época da transformação do Rio; (...). O resultado final será termos
em breve uma grande cidade, limpa, bem iluminada, bem calçada que nos honrará
perante os europeus e moerá de inveja os nossos amigos do Prata. (Fon-Fon.
Anno III, n.30, 24 de julho de 1909)

Para tristeza dos ―amigos do Prata‖, Passos remodelou a capital, inserindo-a na


ordem das nações ―avançadas‖, ―civilizadas‖, e seus sucessores deveriam dar prosseguimento
às suas ações, mesmo que a custa de endividamentos, de altas despesas. Como afirma este
mesmo colaborador, ―faça despesas, comtanto que vejamos que ellas foram bem feitas‖. O
importante era inserir o país nos quadros da civilização e da modernidade capitalista,
promover sua arrancada em direção ao progresso material e social.
Segundo a revista, inserir o país na ordem dos países ditos modernos e civilizados
era objetivo da reforma urbanística empreendida por Pereira Passos, que se mostrava
necessária, porém não suficiente. Era necessário, ainda, manter esse impulso melhorador e
transformador do Rio de Janeiro, tornando a cidade, de fato, uma capital civilizada e que
caminhava rumo ao progresso. Entretanto, tais reformas não deveriam ficar a cargo de
qualquer um. Era necessário que pessoas preparadas, de reconhecido saber se incumbissem
das melhorias tanto das ruas e avenidas quanto das casas da capital. Assim, a revista defende
que:

A nossa percepção eshetica ainda está nos seus primeiros passos; ensaia
ainda a sua firmeza e o seu desenvolvimento. Quando nos mettemos nesses
assados de exhibir bom gosto, vem-nos logo depois o desejo intenso de
apresentarmos justamente varios attestados do nosso... máo gosto. E é assim
officialmente e é assim particularmente.
Quando nos sobra o dinheiro, o nosso primeiro cuidado é mandar construir
uma casa. Arranjamos architectos de nome, conhecedores da materia,
encommendamos-lhes os planos, encarregamol-o da construcção. (...)
Vão passando os tempos; as necessidades da familia começam a augmentar.
Começamos então a notar defeitos e insufficiencias na casa que nos parecia
uma obra prima. (...)
Chamamos então o mestre de obras, elle faz o orçamento e ao attentado é
comettido. Agora, sim, de accordo com o peso da nossa comprehensão a
casa... lucrou extraordinariamente.
Em pouco tempo a linda casa architectada pelo cerebro competente do
constructor, não é mais um amontôo de remendos. É quando então ella
começa a nos agradar. (Fon-Fon. Anno VI, n.20, 18 de maio de 1912)

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Segundo a revista, ser moderno e, consequentemente, civilizado, significava ter
bom gosto, isso é, gosto urbano e carioca. Assim, tal elegância deveria ser desenvolvida
dentro de certos códigos referenciadores. No caso de construções, ter bom gosto é, antes de
tudo, seguir à risca as orientações de um especialista – o arquiteto. Alguém que detenha o
conhecimento técnico, a racionalidade científica de um saber adquirido com anos de estudos.
Assim, inserir o Rio de Janeiro nos quadros das nações ―civilizadas‖ exigia mais
do que reformas urbanas. Era necessário, segundo os cronistas da revista Fon-Fon, modificar
costumes, substituir velhos hábitos, reformular comportamentos. No caso das construções,
significava não recorrer às reformas e aos remendos feitos pelos mestres de obras. Um hábito
antigo que tinha como conseqüência, segundo o cronista, o extremo mau gosto das
construções remendadas e reformuladas. Tal idéia de mudança de hábitos e comportamentos
fica evidente se observamos a definição que um dos cronistas elabora para o termo
―civilisação‖. Para ele, trata-se de

um conjuncto de medidas de urgencia que concorrem suavemente para a


commodidade e o bem estar de um povo. Um povo sem commodidades,
nunca póde ser um povo civilisado. (...)
Ora, nós andamos a encher a bocca de umas terriveis exclamações de
civilisação. Julgamo-nos bobamente um povo que dispõe de todos os
perfeitos apparelhos do Progresso.
Entretanto, em paiz nenhum se nota maior desorganisação nos serviços,
menos desprezo pelo interesse publico do que aqui. (...).
Pois um paiz assim, de tão notoria desorganisação nesses pequenos serviços
úteis e facceis, um paiz com tão graves defeitos constitucionaes, póde lá ser
adiantado, civilisado, progresista.
Ora, vão se catar. (Fon-Fon. Anno VI, n.04, 27 de janeiro de 1912)

Note-se que as mudanças do espaço físico são fundamentais para que, também os
indivíduos, se tornem civilizados. Por isso, as melhorias promovidas no espaço urbano são de
suma importância, pois sem elas, o Rio de Janeiro e o país não seriam de maneira alguma
―adiantado, civilisado, progressista‖. Entretanto, os colaboradores ensinam que somente os
melhoramentos não garantiriam a civilização de um povo. Pois a organização racional,
imprescindível para o progresso, não depende apenas da reconfiguração urbana, mas,
sobremaneira, da organização dos serviços e pelo apreço pela coisa pública. Logo, depende da
sociedade como um todo. Desta forma, não se trata apenas de demolir antigos casarões, varrer

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antigas ruelas e erigir o novo. Também é necessário convencer as pessoas a se desvencilharem
de tradições, valores e condutas vistas como arcaicas, desorganizadas, ineficientes.
Assim, modernizar não se restringia a modificar o espaço urbano. Também era
preciso remodelar os comportamentos. Esta seria a segunda noção para modernidade que
identificamos na Fon-Fon. Renegar e substituí-los por novos, isto é, urbanos, requintados,
polidos, modernos. Romper com antigos hábitos e costumes significados como arcaicos,
provincianos, atrasados. É isto que defende um dos cronistas ao afirmar que:

Não nos valeu, neste pequeno ponto defeituoso o ar civilisado que, ha quatro
annos, anda a soprar sobre os destinos da nossa pacata vida carioca.
Ficaram-nos, como tradicção, estes restos de atrazo, estas pequena nugas de
velharias, que andam a entortar a nossa fama de supercivilisados.
De nada nos serviu a abertura de Avenidas largas e confortaveis; de nada nos
serviu a corrente emigratoria de palavras estrangeiras para uso e rotulo da
nossa vida mundana, introduzidas no desengonço selvagem da nosa língua
pelo up-to-datismo do Capitão Luiz Edmundo, poeta e mundano, pelo
smartismo do Figueiredo Pimentel e de todos esses esforçados
propagandistas da alta vida de requintes de luxo.
Atrellados á vida nova, como agarrado á antiga vida, os nossos máos habitos
resistem á acção benefica do Tempo e da Civilisação. (Fon-Fon. Anno VI,
n.04, 27 de janeiro de 1912)

Outro modo de se pensar a modernidade, segundo a publicação, diz respeito aos


comportamentos, ao progresso social, ao avanço nos diversos campos da vida social.
Progresso material e social não estavam desarticulados na concepção de modernidade da Fon-
Fon. Tal como ressaltado por André Azevedo (2003), progresso material e ―civilização‖,
pensados enquanto avanço de uma sociedade quanto aos seus modos, comportamentos, são
duas faces de uma mesma moeda e estão presentes nas concepções de civilização do século
XX. Naquele momento de grandes mudanças, os colaboradores da Fon-Fon, em sua crítica
aos comportamentos e à configuração da cidade e às tradições, em seu ajuste de contas com o
passado revelam-se modernos.
Como modernos que são, reforçam a crítica ao apego ao passado, investindo na
possibilidade de romper com ele, pois ―somos um povo que póde, com facilidade, assimilar
civilisados habitos modernos, mas que, difficilmente, abandona máos habitos antigos‖ (Fon-
Fon. Anno II, n. 08, 30 de maio de 1908). Nesse investimento, ressalta-se, a todo instante, o
quanto falta para que a população do Rio de Janeiro fosse, de fato, civilizada. As críticas se

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dirigem a todos: aos vendedores de balas das ruas da cidade, que trabalham descalços e sujos
(
Fon-Fon. Anno IV, n.03, 15 de janeiro de 1910) até os ―retardatários‖ que, segundo a revista,

ainda existem entre nós. Nem o cinema, o automovel, o frisson devorador de


agóra conseguiram, por emquanto, cancellar o nosso antigo habito simplorio
(...) de ligarmos a affabilidade cerimoniosa das relações mundanas a quanta
agitação febril e agoniadoramente apressada a que estamos sujeitos na vida
pratica, ao esforço quotidiano que fazemos para não nos deixarmos esmagar
na lucta. (Fon-Fon. Anno VI, n. 20, 18 de maio de 1912)

No esforço em modernizar hábitos e costumes, o cronista critica o hábito de fazer


visitas aos colegas em seu ambiente de trabalho, com conversas sem utilidade e que, segundo
o colaborador, eram práticas ―de 1900 para tràs‖. Esta ―psychologia um tanto primitiva‖, de
acordo com o cronista, reforça a desorganização e a ineficiência e impede o progresso social.
Combater essa cultura ―atrasada‖ é o propósito do autor, ao defender que:

Ás vezes até e na maioria dos casos são sujeitos aproveitaveis, que, se


quizessem ou pudessem adaptar-se ás condições da vida de hoje, poderiam
ganhar destaque e até esmagar muita gente da primeira linha, mas que se
encastellam na sua psychologia um tanto primitiva e fenecem, como um
fruto mirrado, n‘uma passividade quasi mórbida.
E ha-os mesmo que querem obrigar os outros a retrogradar, fugindo ao
emocionante enthusiasmo da lucta, que é a grande, a gloriosa caracteristica
deste seculo de dreadnoughts e aeroplanos.
Eu, por mim, tenho certo receio de dizer isto abertamente, mas com
franqueza, porque todos nós não havemos de viver dentro da nossa epocha?
(idem)

O que podemos observar é que, além de anunciar um novo tempo, no qual impera
a rapidez e a agilidade, o cronista também proclama, nessa defesa pelo progresso social, um
novo sentido para o trabalho, sob a lógica do capitalismo moderno. Este é para àqueles que,
assim como o novo momento, são modernos, dinâmicos, homens de sua época. E vale dizer
que é aberto a todos, desde que resolvam ―viver dentro de nossa épocha‖. Este apelo estaria
em consonância com um novo momento.
Contudo, não somente críticas aos hábitos ditos antigos são feitas nas páginas da
Fon-Fon. A mesma também repreende, sempre de modo bem-humorado, os ―excessos de
civilização‖ empreendidos pela sociedade carioca. Um exemplo disso é o que a revista
identificou como ―up-to-datismo‖ dos padres que, no afã de serem modernos, suprimiam

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tradições centrais da religião católica, como comemorações como a do Natal. Nas palavras do
cronista:

O ultimo Natal veio evidenciar a tendencia reformadora de velhos moldes e


velhas usanças dos vigarios e outros seculares de alguns dos nossos
templos.(...).
Em matrizes chefiadas agora por novos vigarios de novas doutrinas, vigarios
civilisados, progressistas, decentes, de novas formulas mais consentaneas
com os avanços dos ideais modernos e o espirito reformista da archi-
cardinalicia-mitra, a suave poesia do Natal, caracterisada pelo casto e
risonho encanto do Menino-Jesus, foi este anno estrangulada pela garra
poderosa fashionablemente enluvada do progresso e do smartismo clerical.
Que Menino-Jesus!... (...)
As idéas hoje são outras.
É preciso que vocês saibam que os vigarios modernos, além da corôa no
couro cabelludo, já abriram, tambem, no espirito, uma Avenida Central com
paus-Brasil e illuminada a luz electrica de cabo a rabo. (Fon-Fon. Anno
IV, n. 03, 15 de janeiro de 1910)

Tal afã modernizador tinha, de acordo com os colaboradores, limites. Nem todas
as tradições deveriam ser abolidas. Era necessário, em casos como o da religião, manter as
tradições. O cronista defende a coexistência entre o antigo e novo, movimento e ambigüidade
próprios da modernidade.
Modernizar não significava apenas demolir antigos casarões, varrer antigas ruelas
e erigir o novo. Também era necessário ordenar a sociedade segundo a lógica moderna, isto é,
produzir, ―corpos dóceis‖ (FOUCAULT, 2009), corpos assujeitados à lógica da
docilidade/utilidade do projeto modernizador e civilizador. Progresso material e social, ou
seja, mudar a face material da cidade e também a humana, introduzindo mudanças e
assegurando, ao mesmo tempo, a manutenção da ordem patriarcal, capitalista e católica.
Mudar algumas coisas e manter outras nessa lógica da relação docilidade/utilidade.

FONTE.

Revista Fon-Fon. Rio de Janeiro (edições de 1907-1914). Acervo da Biblioteca Nacional.


Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_anos.htm>

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THE DOORS, JOY DIVISION E NIRVANA NAS RECUSAS DO FIM DO TEMPO
JUVENIL

Emília Saraiva Nery 1

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo estudar a ansiedade da juventude contemporânea
da segunda metade do século XX a partir de letras de músicas dos grupos The Doors (1967-
1971), Joy Division (1977-1980) e Nirvana (1989-1994). O trabalho procura mostrar, a partir
da reflexão teórica de autores que tratam da ansiedade do homem contemporâneo em relação
ao tempo e à história, que a ansiedade desses jovens pode ser vista como um rito de passagem
específico de nossa cultura e revela, numa perspectiva mais ampla, uma tensão do homem
contemporâneo entre a consciência do enraizamento na história e o desejo de ultrapassar essa
condição histórica.

Palavras-chave: Juventude; tempo histórico; Rock in Roll.

ABSTRACT: This work has as objective studies the contemporary youth‘s of the second half
of the century anxiety XX starting from letters of music of the rock groups The Doors (1967-
1971), Joy Division (1977-1980) and Nirvana (1989-1994). The work search to show, starting
from the authors‘ theoretical reflection that they treat of the contemporary man‘s anxiety in
relation to the time and to the history, that the anxiety of those young ones can be seen as a
especific rite of passage of our culture and he reveals, in a wider perspective, a tension of the
contemporary man among the conscience of the rooting in the history and the desire of
crossing that historical condition.

Key-words: Youth; historical time; Rock in Roll.

1
Graduada em História pela UFPI, bacharel em direito pela UESPI e mestre em História do Brasil pela UFPI.
Atualmente, a autora é professora da Secretaria de Educação do Estado do Piauí e membro do grupo de
pesquisas ―História, Cultura e Subjetividade‖, filiado ao CNPq. Contato com a autora: emilia.nery@gmail.com

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A reação do homem diante do tempo é comum a todas as épocas e constitui
mesmo um aspecto fundamental da existência humana (LE GOFF, 1990: 283). No entanto, a
ansiedade2 da juventude contemporânea – vista aqui através do rock – toma a forma de um
rito de passagem dramático de perda dos referenciais juvenis que pode conduzir aos extremos
do desespero, da angústia, do niilismo e do suicídio.3
A maioria dos estudos sobre juventude e rock são estudos sociológicos, que
abordam temas como rebeldia juvenil, sucessões de gerações, entre outros (CARDOSO &
SAMPAIO, 1995). Uma abordagem histórica é a de Helena Abramo (1994). Em seu estudo,
destaca-se a análise sobre a condição histórica do movimento juvenil, e, em especial, a
sucessão das gerações dos anos 1950 a 1980. A juventude da qual se trata aqui é a que se
agrega em torno da música rock (FRIEDLANDER, 2003). Na história do rock, costuma-se
caracterizá-la, de uma maneira geral, a partir dos anos 1960 com a contracultura 4, donde o
movimento hippie é uma face importante, em seguida nos anos 1970 com o movimento punk,
nos anos 1980, com uma diversidade de tendências e nos anos 1990 com a fragmentação
ainda maior dos estilos musicais, donde o movimento grounge é um símbolo emblemático.
É nesse contexto geral da história do rock que se situa os grupos de rock The
Doors , (1967-1971), Joy Division6 (1977-1980) e Nirvana7 (1989-1994). Esses grupos de
5

rock, suas letras, melodias e atitudes os singularizaram em suas gerações, ainda mais pelo fato
de que os seus líderes e letristas tiveram mortes trágicas que marcaram a história do rock8.

2
Apesar do conceito de ansiedade ter sido apropriado pela psicanálise, nada impede de abordá-lo numa
perspectiva histórica como uma ansiedade coletiva e da juventude. Adota-se o conceito clássico de ansiedade
como ―[...] o medo de uma perda‖. (FREUD, 1976: 460).
3
ELIADE, Mircea. Simbolismo religioso e valorização da angústia. In: Mitos, sonho se mistérios. Lisboa,
Portugal: Edições 70, 1989, pp. 43-54; Idem. O terror da história. In: O mito do eterno retorno. São Paulo:
Mercuryo, 1992, pp.123-137.
4
―[...] movimentos jovens que [...] ganhariam forma nos anos 1960 através das propostas de cunho libertário,
impulsionando lutas como a do Feminismo, contra o Racismo, pelos direitos civis, contra a Guerra do Vietnã e
contra o autoritarismo [...] assim como reivindicariam o direito à diferença comportamental em relação à cultura
oficial do sistema capitalista.‖ (BOSCATO, 2006: 21.).
5
Banda de rock, que surgiu em 1967 na cidade norte-americana de São Francisco. O grupo era composto por Jim
Morrison (vocal), Ray Manzarek (teclas), Robby Krieger (guitarra) e Jonh Desmore (bateria).
6
Banda pós-punk, que por volta de 1976 surgiu na cidade inglesa de Manchester. O grupo era formado por Ian
Curtis (vocal), Bernard Sumner (guitarra), Peter Hook (baixo) e Stephen Morris (bateria).
7
Banda ―grunge‖ que surgiu em 1986 na cidade norte-americana de Seattle. Sua formação principal era: Kurt
Cobain (vocal e guitarra), Krist Novoselic (baixo) e Dave Grohl (bateria).
8
Com exceção de Jim Morrison, os demais líderes e compositores dos referidos grupos de rock se suicidaram.

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Desse universo musical, The Doors, liderada por Jim Morrisson, se destacava
devido à sua obra - que falava de sonhos, de mudanças das normas universais e das modas
mais evidentes, de viagens e delírios. Joy Division, igualmente, se mostrava com marcas de
inquietude, explicitadas em suas obras, criadas por Ian Curtis, articuladas ao desespero e à
desilusão que tratavam do efeito corrosivo sobre o indivíduo, de uma era apertada entre o
colapso do humanismo trabalhista e a eminente vitória cínica do conservadorismo inglês. E
Nirvana, por sua vez, embora transmitisse desilusão, também apontava, sobretudo, para um
espírito de diversão muitas vezes adolescente, através da arte inquieta de Kurt Cobain (Cf.
NERY, 2008:14.).
Embora tenha sido escolhido apenas um grupo de rock representativo,
sucessivamente, das décadas de 1960, 1980 e 1990, percebe-se nas letras de músicas dos
compositores, mesmo em épocas diferentes, o problema da temporalidade colocado enquanto
um drama manifesto para um determinado grupo e época da vida, ou seja, os jovens e a fase
juvenil.
Na análise do conjunto das letras de música dos grupos de rock estudados,
percebe-se um processo de perda dos significados atribuídos à noção de se pertencer a um
grupo, ou seja, à juventude, e a própria noção de ―eu‖, de indivíduo, o que se chama de perda
do referencial da identidade grupal e individual. Embora o conceito de identidade seja um
conceito amplo e polêmico nas Ciências Humanas, de uma maneira geral, entende-se a
identidade humana como um processo cultural, simbólico. Nesse sentido, é possível distinguir
dois níveis de identidade. O primeiro nível perceptível é a identidade individual que é o
processo de constituição do ―eu‖ num contexto cultural determinado. Já o segundo, é a
identidade coletiva que envolve um conjunto de indivíduos cuja identidade se estabelece num
nível mais geral (Cf. WASSERMAN, 2001: 8).
Essa transformação da identidade de grupo juvenil pode ser observada nas letras
de música rock através da problematização do discurso na primeira pessoa do plural, o ―nós‖:
―Quando o verão findar, onde iremos nós?‖ (MORRISON, 1969)
Dessa maneira, é possível considerar que os compositores estudados são bem mais
propícios a revelar esse drama da passagem. Eles começariam quase no fim do tempo da
juventude, prenunciando já uma mudança iminente, o que torna ainda mais dramática a
ansiedade.

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O drama da passagem, por ser reconhecido e assumido previamente transforma os
referidos compositores em uma espécie de mártires, de ―heróis‖ pioneiros de seu tempo. Tom
profético esse que é bem mais presente nas letras de música de Ian Curtis: ―Ele vê uma visão
no céu, / Olhando para ele/ Chamando-o pelo nome. / Sim ele vê faces de ontem/ Ele verá
sempre o mesmo/ Ver-te-ei em baixo certamente‖ (CURTIS, 1978). Nesse sentido, trata-se do
poder canalizador da ansiedade de uma geração que esses grupos de rock, cada um em sua
época, conseguiram congregar e transmitir.
Sobre a relação do grupo The Doors com os valores e ansiedades dos jovens dos
anos 1960, destaca-se o seguinte depoimento sobre o diferencial de Morrison dentre os jovens
de sua geração:

Foi em 1967, quando boa parte dos movimentos juvenis viviam empenhados
no culto da paz e do amor, quando São Francisco abrigava a grande fuga
hippy, quando os Beatles aderiram ao orientalismo e o status que recuperava
comercial e culturalmente a paz, o amor e a flor. Jim Morrison descendente
dum marujo que não suportava terra firme, insistiu com os Doors, em apelar
para a violência e para o caos [...] em demandar praias distantes e portos por
achar. (GOMES, 1992: 11).

Enquanto que sobre a vinculação do grupo Joy Division com os valores e


ansiedades dos jovens da geração dos anos 1980, pode-se citar que:

Ian Curtis foi um cantor e autor de letras para canções com raro poder
visionário [...] Eu vivia Manchester nessa altura, um londrino transplantado
para o noroeste. A Joy Division ajudou a orientar-me na cidade. Via este
novo ambiente através dos olhos deles – [‗ao longo da rua escura, as casas
parecem iguais‘] – e senti-o através da atmosfera poderosa gerada pelos seus
discos e pelos concertos. [...] Quando se é novo, a morte raramente faz parte
do nosso mundo. Quando Ian Curtis se suicidou em maio de 1980, foi a
primeira vez que muitos de nós se encontrou perante a morte: o resultado foi
um choque tão profundo que se transformou num trauma sem solução, uma
ruptura na história social de Manchester (Chester louca) [...] (SAVAGE.
Apud CURTIS, 1996: 11-12)

Por fim, sobre a relação do grupo Nirvana com os valores e ansiedades dos jovens
da geração dos anos 1990, mostra-se que:

De tempo em tempo há um artista, seja de que área cultural ou estética que


consegue abrir as cerradas fileiras dos uniformizados do rock com rajadas de
melodia e loucura, de paz e conflito, de encanto e desencanto, silêncio e
ruído. Um abrir de alas na turba silenciosa. Nirvana era um abanar de
estruturas, primeiro com certa timidez e muito do seio do metal, depois

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descaradamente nos territórios comercialões do rock e por que não do pop?!
[...] o que era preciso marcar uma década como simples músico? Claro que
muita coisa! Capacidade de inovação, força para ser influência, imaginação,
integridade. Especialmente ter algo a dizer ou então gritar às pessoas [...] Os
Nirvanas conseguiram, como por magia, traduzir afinidades marginais em
música, em mensagens massivas. Para Kurt tudo era pop, mesmo que
alguém o chamasse de indie punk ou retro classic rock; para ele as canções
que compunha eram um bálsamo pop, um prazer privado num encontro com
uma linguagem nova, uma libertação via arte, de alguns fantasmas que o
perseguiam (SÉRGIO. Apud FERRÃO, 1995: 9-12).

Porém, a perda da noção de grupo representa para esses jovens uma modificação
na escala de valorização dessa identidade grupal que, ao não mais servir de base ou
referencial para esses jovens, passa por um processo de fragmentação até ser abandonada em
nome de uma identidade menos abrangente e até mesmo individual. Processo esse que se dá,
nas letras de música, através da substituição do discurso na primeira pessoal do plural, o
―nós‖, pelo discurso na primeira pessoa do singular, o ―eu‖.
A identidade individual, o ―eu‖, embora seja um refúgio diante da ameaça de
perda de referenciais que caracteriza um rito de passagem, também vai ser questionada e
passará por um processo de perda e transformação. Os sinais da desestruturação do ―eu‖, da
identidade individual, são: os sentimentos de estranheza para o mundo e consigo mesmo e a
despersonalização, que se encontram nos seguintes trechos musicais:

As pessoas são estranhas quando nós o somos/ Feias são as caras quando nos
vemos sós/ Toda mulher que nos rejeita nos parece perversa/ As ruas são
tortuosas quando estamos em baixo/ Quando nos sentimos estranhos,
surgem-nos caras através da chuva/ Quando nos sentimos estranhos,
ninguém se lembra do nosso nome. (MORRISON, 1968)
Nós fomos estranhos e distantes, distantes, distantes/.../ Cada vez mais
tênues, pode ser que o tempo passe/.../ Eu no meu próprio mundo, aquele
que tu conhecias. (CURTIS, 1979)
O que há de errado comigo?/ Do que é que eu preciso?/ O que penso que
penso? (COBAIN, 1993)

Outro sinal da desestruturação da identidade individual são os sentimentos de


culpa e desprezo a si mesmo, como o ódio, que são os substitutos da autovalorização. Nesse
sentido, Freud destaca que o estágio de culpa se manifesta ―sob forma de auto-recriminação,
no sentido de que a própria pessoa [...] é culpada pela perda do objeto amado, isto é, que ela
desejou‖ (FREUD, 1974: 283). Esse estágio de desestruturação do ―eu‖ é visto ainda ―como
uma ferida aberta atraindo as energias catexiais [...] provenientes de todas as direções, e
esvaziando o ego até ficar totalmente empobrecido‖ (FREUD, 1974: 286).

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Os temas da culpa e do ódio estão presentes nas letras de músicas dos
compositores estudados.

Enclausurada, feita carcereira da tua própria alma /.../ condenaste a uma


prisão que tu própria ergueste. (MORRISON, 1968)
A minha ilusão/ Usada como máscara de ódio-próprio. (CURTIS, 1979)
Estupre-me meu amigo/.../ Não sou a única/ Odei-me/... Acabe comigo/
Minha fonte interna favorita/ Vou beijar nas feridas abertas. (COBAIN,
1993)

O sentimento de uma perda do referencial da identidade individual, o ―eu‖, que


sob a ação de uma temporalidade irreversível culminaria numa morte ou fim irremediável
ocasiona também o sentimento de melancolia. Dessa maneira, a melancolia se manifesta
através de

um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo


mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e
qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima
a ponto de encontrar expressão em autorecriminação e
autoenvelhecimento, culminando numa perspectiva delirante de
punição. (FREUD, 1974:276).

Por outro lado, é possível observar o estado melancólico como a representação de


uma postura passiva diante de uma experiência de crise e ruptura que se caracteriza pela
lamentação e saudade dominada pela nostalgia das coisas perdidas.
Nesse sentido, é possível afirmar que o tom melancólico é a expressão e o sinal da
fragilidade do eu dos referidos compositores.

Moça, pobre moça, abandonada e só/.../ e mal podes crer na impressão que
me faz ver-te chorar/... rebenta com essas grades, dissolve-te hoje mesmo.
(MORRISON, 1968).
O destino desenrolou-se, eu vi-o escapar-se/.../ Orações solitárias por tudo
que eu gostaria de guardar. (CURTIS, 1980).

As transformações pelas quais passam a noção de identidade individual deveriam


ser valorizadas de forma positiva como um processo de autêntica mudança e constituição de
um novo ser e não, encaradas pela perspectiva do medo e do fim. Essa desestruturação do
―eu‖ parece ser vista não numa perspectiva regeneradora, mas como uma morte definitiva que
se direciona para o niilismo e o suicídio, como é possível observar na letra de música Digital.
O trecho da referida música ―Parei à porta sozinho‖ indica o momento de passagem para uma

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nova vida, de uma mudança. Assim sendo, o que está depois da porta pode significar o medo
da morte do ―eu‖ ou de si mesmo e, não uma renovação total.

Sinto-o que se acerca/ Sinto-o que se acerca/ O medo que eu conjuro/ De


cada vez que eu chamo/ Eu sinto-o que se acerca/ Eu sinto-o que se acerca/
Dia sim, dia não (5x) / Eu sinto-o que se acerca/ Eu sinto-o frio e quente/ As
sombras começam a cair/ Eu sinto-o que se acerca/ Dia sim, dia não (4x) /.../
Teria o mundo à volta/ Para ver o que pode acontecer/ Parei à porta sozinho/
E depois foi desaparecendo/ Eu vejo-te desaparecer/ Não nunca desapareças/
Eu preciso de ti aqui hoje/ Não nunca desapareças (3x) / Desaparecer (6x).
(CURTIS, 1978).

Nesse processo de perda de referenciais, a música é o outro grande referencial,


presente nessas letras de música rock que passa por transformações e perda de significado
para esses jovens.
A música é um sustentáculo importante para esses jovens enfrentarem o efeito
destruidor de uma temporalidade linear e irreversível. Ela é, em determinados momentos, uma
tábua de salvação para esses músicos, é por isso que a perda desse referencial para a
juventude é vista de forma dramática, como um sinal de morte.
Na análise da relação entre o poder da arte e da música e a finitude do tempo,
considera-se ainda o papel do artista e do músico enquanto intermediário entre dois mundos,
duas temporalidades: a do cotidiano, no qual se sofre de empobrecimento de vida, e a do
prazer, no qual se sofre de superabundância de vida. O músico, portanto, é um ser único que
vive experiências de temporalidades distintas (BRUM, 1998: 107-112).
Essa relação dramática dos jovens com a perda dos valores da música é colocada
de forma exemplar na letra de música ―Quando a música parar‖.

Quando a música parar, quando a música parar/ Quando a música parar,


apaga as luzes/ Apaga as luzes, apaga as luzes/ Quando a música parar,
quando a música parar/ Quando a música parar, apaga as luzes/ Apaga as
luzes, apaga as luzes/ Apaga as luzes, porque a música é a tua amiga íntima/
Dança em cima do fogo, se ela te convidar/ A música será tua única amiga
até o fim/ Até o fim, até o fim/ Risca a minha assinatura para a ressurreição/
As credenciais, envia-as para as casas de detenção/ tenho lá alguns amigos/
O rosto no espelho não se há de sumir/ A moça na janela não vai sucumbir/
Há uma festa de amigos - gritou ela. / Viva, à minha espera/ Antes de
mergulhar no grande sonho/ Quero escutar, quero escutar/ O grito da
borboleta. Vem, amor, volta, aos meus braços, volta. / estamos cansados de
tantos rodeios, / fartos de esperar, de ouvido no chão/ Estou a ouvir um
rumor suavíssimo/ Próximo, mas remoto, brando, muito nítido, / Vem hoje
mesmo, vem. / Que têm eles feito da terra?/ Que fizeram eles da nossa irmã
Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da 160
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gentil?/ Têm-na devastado, saqueado, desventrado/ Despedaçado,
apunhalaram-na nos flancos da aurora/ Cercaram-na e levaram-na de rastos. /
Estou a ouvir um rumor suavíssimo/ Com o teu ouvido colado ao chão... /
Queremos o mundo e exigimo-lo... Já!/ Noite persa! Olha a luz!/ Salva-nos,
salva-nos ó bom Jesus!/ Quando a música parar, quando a música parar/
Quando a música parar, apaga as luzes/ Apaga as luzes, apaga as luzes/
Quando a música parar, quando a música parar/ Quando a música parar,
apaga as luzes/ Apaga as luzes, apaga as luzes/ Apaga as luzes, porque a
música é a tua amiga íntima/ Dança em cima do fogo, se ela te convidar/ A
música será tua única amiga até o fim/ Até o fim, até o fim. (MORRISON,
1968)

―Quando a música acaba‖, esses jovens, sem o recurso da transcendência do


tempo, seriam lançados na experiência do terror do tempo e da história.

Vejam o meu verdadeiro reflexo/ Cortei as minhas conexões/.../ Tudo o que


preciso para escapar. (CURTIS, 1979)
Arme-se/ Traga seus amigos/ É divertido perder/ E fingir/ .../ Quando as
luzes estão apagadas é menos perigoso/ Aqui estamos entretenha-nos/ Sinto-
me estúpido/ E contagioso/ ... / Sou pior no que/ faço melhor/ E por este
presente/ Eu me sinto abençoado/.../ Achei duro/ é duro de achar/ Bem, que
seja, não se preocupe/ Olá, olá, olá, que baixaria (4x) /.../ Uma recusa, uma
recusa (4x). (COBAIN, 1993)

O tema do amor é talvez o mais presente nessas letras de música rock estudadas.
Ele é um dos grandes recursos utilizados por esses jovens para aplacar a ansiedade diante do
tempo e escapar do isolamento cada vez mais próximo.
Existem, em geral, dois conceitos de amor: o amor a si, o que corresponde a um
instinto de preservação, e o amor ao outro. Nas referidas letras de músicas, o amor é
concebido como uma necessidade biológica, associado ao prazer sexual e a uma necessidade
existencial, vinculado à fuga ou combate da solidão e do tédio. Nesses dois casos, essa
necessidade é sentida, proclamada e desejada diante de um tempo que se esvai e do qual é
necessário viver de forma intensa e urgente.

Eu quero-te, quero-te mesmo. / Preciso tanto de ti que só Deus sabe [...] só tu


possuis esse condão/ Deixa que eu mergulhe na profundeza do teu doce mar.
(MORRISON, 1970)
Preciso de uma amiga fácil, preciso/ Para me ajudar, preciso/ Acho que tu és
ideal, preciso/.../ Estou na tua fila, preciso/ Espero que tenhas tempo,
preciso/ Até marquei lugar, preciso/ Para estar contigo. (COBAIN, 1989)
Ele deseja amor/ Não algum engate perfeito. / Em hotéis de aço e vidro. /
Com quem se cruze nas escadas. (CURTIS, 1980)

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O amor é também mais um outro referencial que passa por um processo de perda
de valor e significado, o que acarreta a esses jovens a experiência do abandono e da solidão e
a proximidade do tempo do fim.

Não te precipites se queres que o amor dure [...] Vai devagar, verás que tu
sabes cada vez melhor. (MORRISON, 1967)
Não te vás embora, em silêncio. (CURTIS, 1979)
Mas tu já suspeitas/ Vou aproveitar enquanto/ tu me suportares/ Mas não
poderia te ver todas as noites/ De graça [...] Espero que tenhas tempo.
(COBAIN, 1993)

Considerando a hipótese de que as letras de músicas dos grupos de rock


selecionados podem ser melhor compreendidas a partir da noção de rito de passagem, como
se esboçaria nessas letras de músicas o momento final do rito de passagem?
Embora não se possa referir – na análise das referidas letras de rock – a um
processo contínuo e linear que, através de uma progressiva e uniforme perda de referenciais,
desembocaria num momento final de solidão e morte, percebe-se que esse tempo do fim é
anunciado pelos compositores em vários momentos das suas produções musicais.
Talvez um antropólogo das sociedades indígenas ou um historiador das religiões
visse nas manifestações de crise existencial dos jovens ligados ao rock na sociedade
contemporânea, uma espécie de ―rito de passagem‖ próprio à nossa sociedade, mas, de uma
maneira geral, semelhante aos ritos de passagem ou iniciações pelos quais se efetivam a
transição do adolescente para a idade adulta numa sociedade tribal que a literatura chama de
―ritos de puberdade‖ ou ―iniciação tribal‖. Ao considerar o problema como sendo de uma
sociedade primitiva, é possível notar que o momento final dos ritos de iniciação, a morte,
nunca é visto inicialmente enquanto finalidade, mas como condição ―sine qua non‖ de uma
passagem para outro modo de ser, prova indispensável para começar uma vida nova.
(ELIADE, 1989: 48)
A morte iniciatória representaria, assim, uma experiência terrível, mas necessária,
de regressão ao caos que implica a dissolução da velha personalidade e o surgimento de sua
nova condição humana.
Essa angústia do homem contemporâneo diante da morte é um sinal de seu apego
obsessivo ao tempo e à história. A exaltação e paixão do homem pela história e pela
consciência histórica mostram, por outro lado, que ele não consegue controlar a História, pois
não tem a capacidade de se libertar de uma estrutura linear que caminha para o fim.

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Na análise das letras de músicas escolhidas, percebe-se que esse tempo do fim,
esse momento culminante do rito de passagem é visto tanto numa perspectiva coletiva, ou
seja, de um tempo final para as gerações e a história, como numa perspectiva individual, de
uma morte do indivíduo.
A letra de música Êxodo expressa de forma emblemática a chegada desse
movimento decisivo do fim, de uma crise final, que, apesar de adiado, era inevitável:

Esta é a crise que eu sabia que ia chegar, / Destruindo o equilíbrio que eu


mantinha/ Duvidando, agitado e inquieto/ Interrogando-me sobre o que virá
a seguir/ É este o papel que tu querias viver?/ Eu fui louco em pedir tanto/
Sem a proteção ou guarda da infância/ Tudo se desmorona ao primeiro
toque/ Vigiando a bobina que se acerca do fim/ Com a brutalidade do seu
vagar/ Pessoas que mudam sem motivo aparente/ Está a acontecer
constantemente. / Posso prosseguir com este fio de acontecimentos?/
Inquietando e purificando o meu espírito/ Faltando aos meus deveres,
quando tudo está dito e feito,/ Eu sei que perderei constantemente/ Indo
pelos caminhos dados por Deus, / Segurança alcançada no fogo, / Refugiado
destes sorrisos febris, / Abandonado com uma marca na porta/ É esta a
oferenda que eu queria fazer?/ Perdoar e esquecer o que eles ensinam, / Ou
passar através dos desertos e selvas outra vez, / E vê-los quando eles caem
na praia. / Esta é a crise que eu sabia que tinha de chegar, / Destruindo o
equilíbrio que eu mantinha/ Voltando-me para o próximo conjunto de vidas,
/ Pensando no que virá a seguir. (CURTIS, 1980)

Nota-se nessa letra de música que esse momento final era vivido com expectativa,
uma espera ansiosa de algo ruim e temeroso, mas que era inevitável acontecer. Esse momento
final da morte é visto como uma travessia difícil e seguido de interrogações e visões
pessimistas sobre o futuro.
A morte simboliza em determinadas letras de rock o fim do tempo da juventude;
denunciando a impossibilidade de se escapar da finitude do tempo.

É o fim, amigo querido/ é o fim, amigo único, o fim/ dos planos que
forjamos, o fim/ de tudo o que era firme, o fim/sem apelo ou surpresa, o fim/
Nunca mais te olharei nos olhos. / Vê se imagina o que vai ser de nós, /
iluminados e libertos, desesperadamente necessitados da mão dum estranho/
num mundo desesperado?/ Perdidos num romano deserto de mágoas, / com
todas as crianças atacadas pela loucura, à espera da chuva de Verão/.../ O
autocarroazul chama por nós. / Aonde nos leva, senhor condutor?
(MORRISON, 1968)
Levado pela força, / marcado o território, / o prazer abandonado, / oh, já
perdi o coração/ corrompido pela memória, / o poder destruído, / está a
crescer lentamente, / essa hora derradeira /.../ mantenham a distância, por
favor, / a trilha conduz aqui, / há sangue nas tuas mãos, / brotando do medo.
/ bati-me para nada/ esforcei-me duramente/ tentei alcançar-te/ e tratas-me

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assim. /é como uma segunda natureza/ .../ vivemos pelas tuas regras.
(CURTIS, 1979)
Pra onde vão os maus quando morrerem?/ eles não vão para o céu, onde os
anjos voam, / eles descem para o lago do fogo e fritam /.../ agora as pessoas
choram e se lamentam/ e procuram um lugar seco que possam chamar de
seu/ e tentam achar um lugar para descansar seus ossos/ enquanto anjos e
demônios lutam para levá-los com eles. (COBAIN, 1994).

A morte é vista de forma desesperada por esses compositores como um filme, no


qual eles assistem à sua própria queda, ao seu próprio fim.
Nas considerações finais destas reflexões, é possível destacar, do ponto de vista
teórico e metodológico, a importância da utilização dos conceitos de ansiedade, rito de
passagem e tempo histórico, numa perspectiva interdisciplinar situada dentro do campo da
historiografia da história do imaginário (Cf. PATLAGEN. Apud LE GOFF, 1990: 291-312)
para a compreensão dessas manifestações da juventude contemporânea ligada à música rock.
Sobre a utilização das fontes de pesquisa, foi realizado um acompanhamento das
traduções presentes em songbooks9 alterando alguns pontos, quando discordados da
interpretação do tradutor. Dessa maneira, não foi objetivo desse estudo propor uma tradução
própria e integral para essas fontes.
Nesse sentido, o aspecto principal que procuramos ressaltar neste artigo foi a
relação entre as transformações ocorridas na juventude com a noção de uma temporalidade
linear e irreversível, noção essa muitas vezes compreendida como própria à do tempo
histórico.
Por essa perspectiva, conclui-se que a ansiedade da juventude contemporânea
diante do tempo e da história é, de uma maneira geral, a expressão da relação conflituosa do
homem contemporâneo com o tempo histórico.

DISCOGRAFIA CONSULTADA (LP’S).

JOY DIVISION.
An Ideal for Living. Oldham: Pennine Sound Studios, 1978 (12 min).
Unknown Pleasures. Stockport: Strawberry Studios, 1979 (39 min).
Sordide Sentimental. Rochdale: Cargo Studios, 1980.
Love Will Tear Us Apart. Stockport: Factory Records, 1980 (6 min).
9
Dentre esses, destacam-se: FERRÃO, Ana Cristina. Kurt Cobain. Nirvana. Lisboa: Assírio & Alvin, 1995;
GOMES, João Manuel. Jim Morrison. Uma oração americana e outros escritos. Lisboa: Assírio & Alvin, 1992 e
OLIVEIRA, José Alberto. Ian Curtis / Joy Division. Antologia poética. Lisboa: Assírio & Alvin, 1995.

Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da 164


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Closer. Londres: Britannia Row Studios, 1980 (44 min).
Komakino/ Incabation. Stockport: Factory Records, 1980 (6 min).
Atmosphere/ She‘s lost control. Stockport: Factory Records, 1980 (8 min).
Transmission/ Novelty. Stockport: Factory Records, 1980 (7 min).

NIRVANA.
Bleach. Seattle: Reciprocal Recordings, 1989 (42 min).
Nevermind. Los Angeles: Sound City Studios, 1991 (42 min).
Incesticide. [s/l]: [s/n], 1992 (44 min).
In Utero. Minnesota: Pachyderm Studios, 1993 (41 min).
Unplugged in New York. Nova Iorque: Sony Studios, 1994 (53 min).

THE DOORS.
The Doors. [s/l]: Elektra Records, 1967 (44 min).
Strange Days. [s/l]: Elektra Records, 1968 (34 min).
Waiting for the sun [s/l]: Elektra Records, 1969 (32 min).
Morrison Hotel. [s/l]: Elektra Records, 1970 (37 min).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

ABRAMO, Helena Wendel. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo:
Editora Aberta, 1994.
BOSCATO, Luiz. Vivendo a sociedade alternativa: Raul seixas no panorama da contracultura
jovem. 2006. Tese. (Doutorado em História) – USP, São Paulo, 2006.
BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 37-39.
CARDOSO, Ruth & SAMPAIO, Helena. Bibliografia sobre a juventude. São Paulo: Edusp,
1995.
CURTIS, Deborah. Carícias distantes. Biografia de Ian Curtis. Lisboa: Assírio & Alvin, 1996.
ELIADE, Mircea. Simbolismo religioso e valorização da angústia. In: Mitos, sonho se mistérios.
Lisboa, Portugal: Edições 70, 1989, p. 43-54.
______. O terror da história. In: O mito do eterno retorno. São Paulo: Mercuryo, 1992.
FERRÃO, Ana Cristina. Kurt Cobain. Nirvana. Lisboa: Assírio & Alvin, 1995.
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: Edições Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XIV, 1974, p. 275-291.
______. Ansiedade. In: Edições Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XVI, 1976, p. 457-481.
______. Dor. In: Edições Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. I, 1977, p. 408-409.

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Universidade de Brasília - PPG-HIS, n. 16, Brasília, jan./jul. 2010. ISSN 1517-1108
FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: uma história social. Rio de Janeiro: Record, 2003.
GOMES, João Manuel. Jim Morrison: Uma oração americana e outros escritos. Lisboa: Assírio
& Alvin, 1992.

LE GOFF, Jacques. Idades míticas. In: História e Memória. São Paulo: Unicamp, 1990.

NERY, Emília Saraiva. Devires na Música Popular Brasileira: As aventuras de Raul Seixas e as
Tensões Culturais no Brasil dos anos 1970. Dissertação. (Mestrado em História do Brasil) – UFPI,
Teresina, 2008.
OLIVEIRA, José Alberto. Ian Curtis / Joy Division: Antologia poética. Lisboa: Assírio &
Alvin, 1995.
WASSERMAN, Cláudia. Identidade; conceito, teoria e História. In: Agora, Santa Cruz do Sul,
v.7, n.2, jul/dez, 2001.

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ESCRAVIDÃO, MISTURA RACIAL E ÉTNICA E HIERARQUIAS NO BRASIL

Marinelma Costa Meireles 1

Resumo: Este artigo objetiva discutir como as identidades de escravos e de seus descendentes
foram construídas nos meandros do tráfico negreiro e para além dele. Assim, discute como
aspectos relacionados à raça, à etnia, à origem, à ocupação e à condição jurídica
estabeleceram hierarquias e determinaram espaços na sociedade escravista a partir dos
discursos das elites letradas.

Palavras-chave: Escravo; Hierarquias; Brasil

Résumé: Cet article vise à examiner comment l'identité des esclaves et leurs descendants ont
été construits dans les complexités de la traite négrière et au-delà. Ainsi, explique comment
les aspects de la race, l'ethnie, l'origine, le metier et le statut juridique mis en place des
hiérarchies et déterminés des espaces dans la société eclavagiste à travers le discours des
élites instruites.

Mots-clé: Esclave; Hierarchies; Brésil.

1
Mestre em História Social pela Universidade de Brasília – UnB; Professora de História da rede pública de
ensino do Maranhão. Contato com a autora: marinelmameireles@hotmail.com

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Nos estudos sobre a formação do Brasil a escravidão tem sido abordada sob
perspectivas diferenciadas, resultando em importantíssimos trabalhos que evidenciam que as
problematizações acerca desse tema não estão exauridas. Encontra-se, assim, uma ampla
produção bibliográfica que pode ser justificada, de certo modo, pelo fato de a escravidão ter
sido o pilar de sustentação do Brasil Colonial e Imperial. 2
Isso remete ao fluxo intenso do comércio escravo que abasteceu os portos
brasileiros por alguns séculos. Portanto, a presença de africanos e de seus descendentes,
envolvidos nas mais variadas atividades, foi comum nos diversos cenários da escravidão no
Brasil. Tal presença, todavia, salienta questões complexas que enredaram os discursos das
elites letradas, cujas preocupações com os ―rumos da nação‖ balizaram contendas sobre a
própria escravidão, a origem dos escravos, raça, etnias e as hierarquias criadas, fatores
determinantes para o estabelecimento de graus de diferenciação e de ocupação de espaços na
sociedade brasileira.
Este texto objetiva discutir como as identidades de escravos africanos e de seus
descendentes foram gestadas nas teias do comércio escravo e no cotidiano da sociedade
brasileira. Partindo da discussão acerca do redimensionamento dos estudos sobre a escravidão,
onde são consideradas as vivências escravas para adentrar espaços de ação do cativo como
sujeito histórico; na tentativa de identificar tais atores, chega-se ao problema das denominações
imprecisas, com ênfase no dualismo ― bantos e sudaneses‖ que permeou muitos estudos sobre a
formação étnica do Brasil, e a esses povos foi associada a origem dos escravos trazidos para
esta margem do Atlântico.
É inegável que o Brasil recebeu um grande contingente de africanos durante o
período de vigência do tráfico de escravos, entre os séculos de XVI e XIX, como já foi dito.
Todavia, os números desse comércio são difíceis de calcular, porém as estimativas variam
entre três e seis milhões de cativos. A demanda por esse tipo de mão-de-obra veio
inicialmente atender às lavouras de cana-de-açúcar das regiões de Pernambuco, da Bahia e do

2
É importante destacar aqui algumas obras que embasam essa assertiva, evidentemente existem outros autores,
cujos trabalhos enriquecem o tema, contudo, para este texto as referências que seguem contemplam a discussão:
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 34ª Edição. Editora Record: Rio de Janeiro - São Paulo,
1998.‘Essa clássica obra de Gilberto Freyre teve sua primeira edição publicada em 1933 e a mais recente, 50ª
edição, em 2005. Casa Grande & Senzala é considerada um marco dos estudos sobre a formação do Brasil.
TANNENBAUM, Frank. Slave and citizen: The Negro in the Americas. New York: A A Knopf, 1947;
CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O negro na sociedade escravocrata do
Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1962; IANNI, Octávio. As metamorfoses do escravo. São Paulo:
Difel, 1962; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Ensaios de Interpretação
Sociológica. Vol. 1. FFCL/USP. São Paulo, 1964.

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Rio de Janeiro, entre os séculos XVI e XVII; no século seguinte o ouro, em Minas Gerais
principalmente, gerou um aumento da demanda. Essas são questões pontuais em diversos
estudos sobre a escravidão no país. 3
Nas duas últimas décadas os temas ligados à escravidão, em especial àqueles
relacionados às agências e identidades dos sujeitos escravizados, vêm sendo tratado à luz das
especificidades de cada região, a fim de localizar e identificar, em distintos espaços da
América portuguesa, experiências decorrentes de (re)invenções e de (re)interpretações
culturais africanas no Brasil.
Esse redimensionamento nas abordagens historiográficas da escravidão ampliou o
campo de análise do historiador, pois possibilitou o diálogo com outras fontes e métodos,
mostrando o escravo além da concepção de anomia social, da situação que o contrapunha ao
senhor - das discussões acerca da idéia de acomodação e resistência – para desvelá-lo como
sujeito histórico, atribuindo-lhe identidade e agência, em meio às complexas redes do tráfico e
da escravidão, conforme pode ser observado nos estudos de João José Reis & Eduardo Silva
(1989), Sidney Chalhoub (1989), Maria Inês Côrtes de Oliveira (1992), Silvia Hunold Lara
(1995), Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997), Robert Slenes (1999), Mariza de
Carvalho Soares (2000), para citar alguns.

Sob tal perspectiva, Gomes (2003:17) salienta:

Procurou-se, enfim, resgatar as vivências escravas e, portanto, os cativos


como agentes transformadores das sociedades escravistas, recuperando, nos
seus comportamentos históricos, ações e agenciamentos em busca de
espaços de autonomia e a gestação de uma comunidade escrava autônoma,
com cultura e sentido político próprio. (...) o que esses estudos mais recentes
apontaram, em termos gerais, foi que os cativos recriaram estratégias
originais de sobrevivência, agenciamentos e enfrentamentos às políticas de

3
Para conhecer mais sobre o tema conferir: CALMON, Pedro. História do Brasil. São Paulo, 1939;
CALÓGERAS, João Pandiá. Formação Histórica do Brasil. 2. ed. São Paulo: Cia Ed Nacional, 1935; RAMOS,
Artur. As Culturas Negras do Novo Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937; SIMONSEN, Roberto
Cochrane. História Econômica do Brasil, 1500/1820. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1937; TAUNAY, Afonso
d‘Escragnolle. Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil. São Paulo, 1941; CURTIN, Philip D.
Atlantic Slave Trade: A Census (the). Madison: Univ. Wisconsin Press, 1969; GOULART, Maurício. A
Escravidão Africana no Brasil – Das Origens à Extinção do Tráfico. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1975;
PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. [1a ed. 1942] São Paulo: Brasiliense, 1977;
MATTOSO, Kátia de Q. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982; CONRAD, Robert Edgar.
Tumbeiros. O Tráfico de Escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos
Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; FLORENTINO,
Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e
XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1997; SCHWARTZ, Stuart. LOCKHART, James. A América Latina na época
colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

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dominação senhoriais, forjando uma comunidade escrava que possuía suas
próprias lógicas.

Os critérios utilizados para identificar e denominar esses sujeitos variaram


bastante ao longo dos anos e as identidades escravas foram comumente alinhadas em torno de
designações imprecisas, ligadas a nomes de regiões, de portos, da junção de grupos étnicos e
etc. Desse modo, às denominações dos escravos africanos, como produtos do tráfico,
associam-se várias determinantes, entre as quais, a própria geografia desse comércio. É assim,
por exemplo, que a Guiné, que vai se estendendo ao longo da costa africana, conforme o
fluxo da expansão marítima, aparece na literatura do tráfico como referência para designar o
africano como ‗escravo da guiné‘ e, igualmente, ‗gentio da guiné‘.
Cumpre esclarecer que o termo Guiné está relacionado a um quadro mais amplo
que envolve o tráfico de escravos, o de mercadorias e a própria colonização, além de
descortinar um universo cultural moderno, ligado à conquista da África e do Novo Mundo, e à
integração da Guiné ao universo cognoscitivo europeu. ‗Mas que qualquer outra parte do
mundo a Guiné é o lugar dos tempos modernos. É na exploração de suas terras e de seus
mares que os portugueses constroem a modernidade ibérica‘. (SOARES, 2000:72).
Há que se ressaltar ainda que o significado de expressões como ‗escravo da
guiné‘ ou ‗gentio da guiné‘ não está associado somente à origem dos indivíduos, conferia-lhes
também o peso da condição de escravo:

Mais do que registro de procedência, estas expressões queriam significar a


condição mesma de escravo na linguagem corrente da época, visto que o uso
dessas expressões já havia sido generalizado em Portugal desde o final do
século anterior, quando o tráfico de escravos começou a se transformar na
mais potente empresa comercial daquele país (OLIVEIRA, 1997:37).

Observando-se o sistema de classificação e organização dos escravos africanos


no Brasil sob o critério da procedência, vê-se que as denominações foram conferidas por
meio de palavras específicas como ―gentio‖ e ―nação‖. Pelo que se observa o uso do termo
‗gentio‘ coexistiu com o do termo ‗nação‘, mas com sentidos distintos. Enquanto o primeiro
foi utilizado igualmente para identificar o indígena e tanto para este quanto para o africano
relacionava-se ao indivíduo pagão (Cf: AURÉLIO, 1999). O termo nação foi associado a
qualquer conjunto de povos, infiéis ou cristãos, com o qual os portugueses mantiveram
relações no processo de expansão colonial (SOARES, 2000:79).
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Vários estudiosos chamam a atenção para o problema das designações imprecisas,
utilizadas de forma genérica como identificadoras de escravos. Essas designações se
apresentam como uma mistura de referências relacionadas a portos ou termos específicos,
vinculadas às áreas de origem (...), que provavelmente juntavam dois ou mais grupos étnicos
em um mesmo nome genérico. As ‗nações‘ podiam resultar, dessa maneira, do nome de uma
entidade política (um reino), de uma língua comum a vários grupos étnicos ou simplesmente
de um porto de embarque no litoral africano (KARASCH, 2000:130; RUSSELL-WOOD,
2001:12; ASSUNÇÃO, 2000).
No Brasil tem sido bastante problemático buscar as origens africanas dos escravos
e de seus descendentes, visto que os termos/designações utilizados para identificá-los são, às
vezes, generalizantes e equivocadamente aplicados, ou específicos de determinados espaços e
temporalidades. O termo que identifica um grupo ‗mina‘ no Rio de Janeiro, por exemplo, não
é necessariamente idêntico ao designado ‗mina‘ na Bahia, em Pernambuco ou no Maranhão
Um grupo denominado Mina no Rio de Janeiro do século XVIII pode ser diferente de outro
grupo Mina encontrado na mesma região no século XIX, afirma Mariza Soares (2000:116).
Essa autora adota o conceito de grupo de procedência para identificar africanos da
nação mina no Rio de Janeiro. Assim, parte do pressuposto de que a cultura está sujeita a
constantes processos de apropriações, e focaliza para as formas de organização desses
indivíduos em novos grupos nos locais onde eles se estabeleceram, ou seja, na relação do
escravo com a sociedade na qual ele está inserido (SOARES, 2000:116).
Outro ponto a ser salientado em relação à origem dos africanos trazidos para o
Brasil diz respeito aos critérios pejorativos postulados sob a égide de uma suposta
inferioridade dos povos da África Central. Nessa situação, as diferenças entre
grupos/etnias/nações adquirem outro significado, passando a ser tratadas em termos da
‗heterogeneidade‘ dos cativos, e também das identidades escravas, como construções do
tráfico e como apropriações dos próprios africanos escravizados.
Assim, os primeiros estudos sobre a formação étnica do Brasil tenderam a
considerar a influência de dois grupos específicos de origem africana na composição étnica do
Brasil, ter-se-iam, grosso modo, sudaneses para a Bahia, indicando a influência da África
Ocidental e para as demais áreas do país, os bantos, influência da África Central.

Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da 171


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Essa divisão, aparentemente simplista, entre bantos e sudaneses, porém, bastante
divulgada e ainda encontrada em estudos recentes, 4 está, de certo modo, relacionada a um
universo mais amplo, fortemente influenciado pelo pensamento predominante no meio
científico da época, cujas teorias propagadas sustentaram uma hierarquização entre os povos.

No Brasil, assim como em outras colônias americanas, a presença dos africanos


foi abordada primeiramente em termos das diferenças intrínsecas, no que concerne aos
costumes dos diferentes povos que migraram compulsoriamente para o Novo Mundo
(CAPONE, 2000:55-56). Sob tutela das leis evolucionistas, essas diferenças, foram tratadas a
partir de supostos graus de desenvolvimento de cada povo, estabelecendo hierarquias entre
eles, de acordo com suas características físicas, para em seguida analisar suas qualidades
morais (CAPONE, 2000:56).
Antes de entrarmos na discussão sobre como as diferenças entre os africanos
(escravos/libertos) foi abordada no Brasil, faz-se necessário tecer breves comentários a
respeito dos conceitos de raça e etnia. O entendimento sobre a definição de raça que permeou
os estudos sobre a formação brasileira recebeu influência das teorias raciais da Europa do
século XIX. Assim, atribuiu-se um sentido morfo-biológico para o conceito de raça
considerando a existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos
(MUNANGA, 2004: 12; SCHWARCZ, 1993: 47). Já o conceito de etnia foi balizado em
termos das dimensões socioculturais e históricas envolvendo determinados grupos em torno
de uma referência comum, que pode ser a ancestralidade, a língua, a religião ou a uma região
(MUNANGA, 2004:12).
Para este artigo as referências à raça serão feitas quando tratarmos
especificamente da influência do pensamento científico europeu nos estudos brasileiros, e à
etnia quando falarmos das designações/procedências de escravos no tráfico e para além dele,
ou seja, nos grupos organizados nas redes da escravidão.
As pesquisas brasileiras do século XIX tiveram forte influência do pensamento de
M. d‘Avezac, cuja obra denominada Esquisse Générale de l'Afrique et l'Afrique Ancienne

4
Sobre essa questão ver os seguintes trabalhos: SOARES, Mariza de Carvalho. ‗Mina, Angola e Guiné: Nomes
d‘África no Rio de Janeiro Setecentista. Tempo. Vol. 3 – nº 6. Dezembro de 1998, onde a autora considera que
ao retomarem a questão das procedências africanas, historiadores contemporâneos ainda tendem a se alinhar as
duas correntes de pensamento abertas por Nina Rodrigues e Sílvio Romero; REGINALDO, Lucilene. Os
Rosários dos Angolas: Irmandades Negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia setecentista.
Campinas, São Paulo, 2005, que alerta sobre referências recentes e essa divisão ‗como se os africanos
estivessem colocados em dois compartimentos estanques e limítrofes para os pesquisadores – os povos do oeste
africano (iorubas) na Bahia e os bantos no resto do Brasil‘.

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apresentou uma subdivisão tríplice para cada uma das três raças humanas (brancos, negros e
amarelos) (M. D‘AVEZAC apud CAPONE, 2000:56).5 Baseado nessa divisão e nos escritos
bíblicos, M. D‘Avezac sugeriu para os negros uma hierarquização que, no sentido
descendente, parte do negro africano do norte das bordas do Mediterrâneo – o tipo mais
elevado – aos papuas da Oceania – o subtipo; e o grupo inferior ou aberrante representado
pelos hotentotes e cafres (apud REGINALDO, 2005:168). Nesse contexto hierárquico, os
bantos e os grupos a eles assemelhados, como os hotentotes, ocupariam o último degrau da
escala evolutiva.
Nos relatos de vários viajantes que estiveram em terras brasileiras há fortes
implicações dessas teorias raciais. Aplicadas ao contexto local, tais teorias davam conta da
inviabilidade de uma nação composta por raças mistas (SCHWARCZ, 1993:36); foi assim,
por exemplo, que Louis Agassiz ao se deparar com a ―mistura‖ tão forte em nossa sociedade
esboçou a sua preocupação:

Que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por
mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam
venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama
das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai
apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do
índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e
mental (apud SCHWARCZ, 1993: 13).

A conjuntura interna do Brasil favoreceu a acolhida das teorias raciais propagadas


na Europa. Vivia-se um cenário de significativas mudanças entre os anos de 1870 e 1930, a
escravidão dava seus últimos suspiros, havia a influência do ideário positivo-evolucionista, o
novo projeto político para o país, o fortalecimento de centros de ensino como museus
etnográficos, faculdades (direito e medicina), enfim, tinha-se um ambiente favorável e tais
teorias apareciam como modelo teórico viável para o novo cenário que se estruturava (Cf:
SCHWARCZ, 1993).
Modelo de sucesso na Europa de meados dos oitocentos, as teorias raciais
chegam tardiamente ao Brasil, recebendo, no entanto, uma entusiasta

5
O trabalho de M. d‘Avezac - então Vice-Presidente da Sociedade Etnológica de Paris e membro das Sociedades
Geográficas de Paris, Londres e Frankfurt - está inscrito no debate fundamental do século XIX sobre a
multiplicidade das raças humanas. Esse autor, face aos defensores da unidade da raça humana, argumenta que na
Bíblia há referência a três grandes ramos da raça branca. Para defender suas idéias M. d‘Avezac se apóia nos
estudos do zoologista inglês Swain sobre a subdivisão das três raças humanas em subgrupos. Esses subgrupos
seriam divididos internamente de forma tríplice também, como na divisão principal apresentando um tipo, um
subtipo e um grupo aberrante ou menos desenvolvido (Cf: CAPONE, 2000).

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acolhida, em especial dos diversos estabelecimentos científicos de ensino e
pesquisa, que na época se constituíam enquanto centros de congregação da
reduzida elite pensante nacional. (SCHWARCZ, 1993:14).

Nesse cenário contagiado por tais teorias a questão relativa à mistura das raças
imperou. Discutiu-se largamente o quão comprometido estaria a nação em decorrência desse
cruzamento, embora, é certo, não se pudesse negar a mestiçagem. Diante disso, os
‗intelectuais‘ buscaram saídas criativas para um país de negros e mestiços, cujo futuro,
prenunciado por pensadores da época, seria catastrófico (Cf: SCHWARCZ, 1993).
Em virtude de tal prognóstico, procurou-se ressaltar que do contingente de
escravos africanos trazidos para cá, vieram os povos considerados mais evoluídos, superiores
aos demais, ou seja, a mistura era inegável, contudo, a África contribuiu com o que tinha de
melhor.6
Tentou-se assegurar também na mistura a solução para elevar ‗raças inferiores‘,
visto que a ‗educação não poderia corrigir a suposta incapacidade das raças não brancas à
civilização‘. Propagava-se que o Brasil mestiço de hoje teria no branqueamento, em um
século, sua perspectiva, saída e solução. (LACERDA, 1911 apud SCHWARCZ, 1993:11). O
outro viés desse pensamento, todavia, estava na preocupação de que tal mistura étnica
pudesse ser danosa às supostas ‗raças superiores‘.
Em meios a calorosos debates, a mestiçagem tornou-se assunto determinante para
se pensar o futuro do país, como esclarece Schwarcz (1993: 13-14):

Observado com cuidado pelos viajantes estrangeiros, analisado com


ceticismo por cientistas americanos e europeus interessados na questão
racial, temido por boa parte das elites locais, o cruzamento de raças era
entendido, com efeito, como uma questão central para a compreensão dos
destinos desta nação.

Nesse panorama, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado na


primeira metade do século XIX por D. Pedro, com propósitos de repensar a história brasileira

6
Sobre essa questão é oportuno mencionar que os primeiros estudos sobre a origem dos escravos africanos
introduzidos no Brasil consideraram a predominância Banto. Dentre esses estudos, podem ser destacados os
seguintes: MENDONCA, Renato Firmino Maia de. A Influência Africana no Português do Brasil. Rio de
Janeiro: Sauer, 1933. SOARES, José Carlos de M. Estudos Lexicográficos do Dialeto Brasileiro. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1943. RIBEIRO, João. O Elemento Negro: Historia, Folklore, Lingüística. Rio de Janeiro:
Record, 1939. ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1953.
Posteriormente as pesquisas de Nina Rodrigues trouxeram novos elementos para os estudos sobre os africanos
no Brasil, apontando uma superioridade numérica e intelectual dos sudaneses na população escrava da Bahia,
conforme será destacado adiante.

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e consolidar o estado nacional, merece ser mencionado. No concurso promovido por esse
Instituto, a questão da mistura das raças foi evidenciada pelo projeto vencedor de Karl Von
Martius (Cf.: VAINFAS, 1999), cuja idéia era correlacionar o desenvolvimento do país com o
aperfeiçoamento específico das três raças que o compunham. A cada uma caberia um papel
específico: ao branco o papel de elemento civilizador; ao índio deveria ser restituída sua
dignidade original, para ajudá-lo a galgar os degraus da civilização; ao negro o espaço da
detração, pois era visto como fator de impedimento do progresso da nação (SCHWARCZ,
1993:113).
Foi no contexto desses debates que as pesquisas de Nina Rodrigues (1896/1897;
1933) emergiram com a preocupação latente de ressaltar o predomínio de povos ‗mais
propensos‘ à ‗civilização‘ no contingente de africanos trazidos para o Brasil. 7 Disso, então,
provém seu esforço para demonstrar a aristocracia ioruba presente no conjunto dos povos
africanos introduzidos em terras brasileiras, ressaltando a elevação cultural desses povos em
detrimentos de outros.
Essa tendência de hierarquizar as diferenças pode também ser observada na obra
do pernambucano Gilberto Freyre. Trinta anos depois, Freyre, em Casa Grande & Senzala,
deu razão às idéias defendidas por Nina Rodrigues. Entretanto, sua análise fez comparação
entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos, apontando que para cá teriam vindo
africanos superiores aos levados àquele país.
Gilberto Freyre argumenta que a posição dos ‗historiadores do século XIX que
limitaram a procedência dos escravos importados para o Brasil ao estoque banto‘ deve ser
retificada, pois para cá vieram escravos de ‗outras áreas de cultura africana em grosso
número. Muitos de áreas superiores a banto‘. A formação brasileira, diz esse autor, foi
beneficiada pelo melhor da cultura negra da África. A verdade é, afirma Freyre, que ‗vieram
para o Brasil, da área mais penetrada pelo Islamismo, negros maometanos de cultura superior
não só à dos indígenas como à da grande maioria dos colonos brancos‘. (FREYRE, 1998:
299).
Ainda sobre Freyre deve-se destacar o caráter de fusão estabelecido entre mistura
étnica e cultural evidenciado em sua obra, pois esse autor ‗ultrapassou o conceito de ―raça‖

7
Sobre os trabalhos de Nina Rodrigues conferir: O Animismo Fetichista dos Negros Baianos publicado em
artigos da Revista Brasileira, entre 1896/1897 (tomos VI, VII e IX); e Os Africanos no Brasil. Essa obra de Nina
Rodrigues data de 1906, mas seu falecimento precoce adia em quase 30 anos a divulgação desse importante
trabalho. Somente em 1933 a obra foi publicada por Homero Pires.

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até então em voga, ainda que não o tenha negado de todo, e adotou o de cultura‘ (VAINFAS,
1999:6).
Nesse ambiente de hierarquização, duas situações são bastante evidentes:
Primeiro, a sociedade homogeneíza os indivíduos na categoria ‗escravo‘, depois, estabelece
critérios para distinguir os cativos de acordo com as funções desempenhadas por eles e, ainda,
conforme a região de origem.
Essa perspectiva de observar os mancípios a partir de suas origens e das
atividades exercidas por eles há muito está arraigada na sociedade brasileira. Antonil, 8 por
exemplo, mesmo reconhecendo ‗os escravos como as mãos e os pés do senhor de engenho‘,
alertava para a necessidade de ser criterioso na escolha, uma vez que se precisava deles, bons
ou maus para o serviço, por isso, o cuidado de comparar as ‗peças‘ porque...

(...) comumente são de nações diversas, e uns mais boçais que os outros e de
forças muito diferentes, se há de fazer a repartição com reparo e não às
cegas. Os que vêm para o Brasil são ardas, minas, congos, de São Tomé, de
Angola, de Cabo Verde e de alguns de Moçambique (...). Os ardas e os
minas são robustos. Os de Cabo Verde e de São Tomé são mais fracos. Os de
Angola, criados em Luanda, são mais capazes de aprender ofícios mecânicos
que os das outras partes já nomeadas. Entre os congos, há também alguns
bastantemente industriosos e bons não somente para o serviço da cana, mas
para as oficinas e para o meneio da casa (ANTONIL, 1997:89).

Entretanto, é importante repensar a dimensão desse critério de escolha, pois os


plantéis não se reproduziam no mesmo ritmo das exigências do mercado que cada vez mais
demandava por mão-de-obra para atender ao fluxo da produção, e as engrenagens do tráfico
indicam que havia pouco ou nenhum espaço para a interferência dos senhores nas regiões
fornecedoras de mão-de-obra servil para o Brasil, o que fragiliza bastante qualquer explicação
sobre preferências por determinada ‗etnia‘ ou ‗nação‘ africana, propensa a esta ou àquela
atividade. Dessa maneira, a construção de determinados quadros de valores referentes aos
grupos africanos esteve submetida a conjunturas específicas do tráfico e, portanto, aos
interesses do comércio escravista deste ou daquele setor (REGINALDO, 2005:149-150).

8
André João Antonil chegou ao Brasil no ano de 1681 na condição de visitador da Ordem da Companhia de
Jesus. Aqui escreveu Cultura e Opulência do Brasil no início do século XVIII. Essa obra destaca seu espírito
observador no detalhamento sobre as riquezas destas terras, um verdadeiro retrato da vida econômica do Brasil.
(Nota da Autora) .

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Dessa forma, é mais provável que a predileção por esta ou aquela ‗etnia ou nação‘
estivesse diretamente atrelada à oferta do mercado, ou seja, ao que estava disponível em
determinados momentos, como pondera SCHWARTZ (1995:283):

Os senhores de engenho tinham suas preferências e preconceitos com


relação a vários povos africanos, sentimentos esses que variaram ao longo do
tempo e refletiram a moda e a disponibilidade. (...) Mas quando a
necessidade aparentemente premia, compravam o que havia no mercado.
Idade, saúde e sexo eram certamente determinantes mais importantes do
preço de compra e da demanda por um cativo do que sua origem étnica.

Entrementes, ‗torna-se manifesto que a população escrava não era uma massa
indistinta de trabalhadores, visto que uma série de hierarquias estruturava essa população‘
Esses critérios demarcavam, de certo modo, os espaços ocupados pelos grupos, pois havia
aqueles nascidos no âmbito da sociedade brasileira, os crioulos; africanos recém-chegados à
colônia, conhecidos como boçais; e africanos mais ‗familiarizados‘ com a terra, porque que
estavam há mais tempo no Brasil, já falavam português, os chamados ladinos. ‗Essa
hierarquia baseada na cor e no local de nascimento acompanhava àquela outra, baseada na
ocupação, e com ela se cruzava‘ (SCHWARTZ & LOCKHART, 2002:58).
De uma forma ou de outra, o africano era associado a escravo mesmo quando com
essa denominação/condição coexistiam outras, pois aspectos relativos à origem, à cor, à
ocupação e à condição jurídica muitas vezes estruturaram a sociedade brasileira e estiveram
entranhados na mentalidade coletiva, tanto o é que a terminologia usada para descrever os
indivíduos de ascendência africana é bastante ilustrativa da hostilidade em relação a negros e
mulatos. O negro nunca deixava de ser ―pretinho‖ ou ―preto bruto‖. O mulato despertava
aversão devido à sua aparente arrogância e supostas pretensões, exemplifica Russell-Wood
(2005:122).
Quando alguém mencionava, no Brasil dos séculos XVIII e XIX, um
africano, o mais provável é que estivesse a falar de um escravo, pois nessa
condição amargava a maioria dos homens e mulheres, que vindos da África,
aqui viviam. Mas podia também referir-se a um liberto, ou seja, a um ex-
escravo. Ou a um emancipado, isto é negro retirado de um navio
surpreendido no tráfico clandestino. Ou, o que era mais raro, a um homem
livre que jamais sofrera o cativeiro (SILVA, 2003:157).

Diante do exposto, cumpre enfatizar que a sociedade escravista brasileira foi


estruturada a partir de múltiplas hierarquias, de várias categorias de mão-de-obra, de
complexas divisões de cor e de diversas formas de mobilidade e mudanças (SCHWARTZ,
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1995:209).. E que o critério da diferenciação não somente definiu espaços entre pessoas
juridicamente diferentes como escravo e senhor, mas também entre os próprios africanos e
seus descendentes. Ao longo dos séculos de escravidão, algumas imagens foram se
cristalizando, alguns estereótipos a respeito de determinados grupos tornaram-se tão
marcantes que sobreviveram ao seu próprio tempo, e persistem ainda nos dias atuais
(REGINALDO, 2005:150).
Sendo assim, adentrar nos cenários da escravidão do Brasil suscita, entre outras
coisas, interessantes aspectos do cotidiano dos indivíduos, e de forma mais específica de
escravos ou libertos, nos meandros dessa sociedade, em diferentes espaços e temporalidades.
Significa observar que os critérios de origem, de raça, de etnia, de cor, de ocupação e de bens
permearam as experiências desses sujeitos, além de evidenciar a desqualificação em torno
daqueles que traziam as marcas de uma escravidão atual ou pretérita. Em última instância,
significa ainda que tais marcas fundamentaram a hierarquização em torno das identidades
escravas/africanas e também em torno das diferenças sociais consolidadas na sociedade
brasileira.

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Seção

Entrevista

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TEORIA E HISTORIOGRAFIA:
UMA CONVERSA COM JOSÉ CARLOS REIS

por Eric de Sales 1

A Revista Em Tempos de História esteve com o professor


José Carlos Reis em uma descontraída conversa sobre seus atuais
estudos, a recente historiografia e a história em sua dimensão teórica.
Autor de obras de amplo reconhecimento e difusão, como As
Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC, Reis é leitura frequente
História do país.
nos cursos de His
José Carlos Reis é
professor na Universi-
dade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Com
Revista Em Tempo de História (R.E.T.H.). Gostaria de iniciar reconhecidos estudos na
área de Teoria da
nossa entrevista pedindo que o senhor conte um pouco da sua História, destacam-se
dentre suas obras:
trajetória profissional-acadêmica. Quais os momentos mais o Historia & Teoria:
Historicismo, moderni-
marcaram nesse contexto? E aproveito para perguntar por quais dade, Temporalidade e
Verdade. 2ª. ed. Rio de
campos tem enveredado seus estudos atuais? Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2005.
246 p.; A História Entre
a Filosofia e a Ciência.
José Carlos Reis (J.C.R.). Eu vim do interior de Minas (Resende 1. ed. São Paulo: Ática,
1999. v. 1. 96 p.; e As
Costa, uma pequena Cidade perto de São João Del Rei, Tiradentes, Identidades do Brasil: de
Varnhagen a FHC. 2. ed.
Prados), para Belo Horizonte, em 1976, para estudar não sabia o quê. Rio de Janeiro: FGV,
1999. v. 1. 280 p.
Eu tinha 18 anos, estava dividido entre História, Filosofia, Direito e
Comunicação Social. Comecei a fazer Direito na PUC-Minas, mas
decidi fazer o vestibular para História na UFMG e comecei o curso em
1978. Ao longo do curso, fui me interessando mais pelas disciplinas
do ―setor de teoria e metodologia da história‖, aluno de professores importantes como Caio
Boschi e Eliana Dutra. Concluído o curso, em 1981, decidi me especializar nesta área, que era
muito pouco valorizada pelos historiadores. Eu sempre achei a bibliografia dos historiadores
sobre teoria ―fraca‖, sem densidade, insatisfatória, e, por isso, me dirigi ao curso de Filosofia.
Eu não mudei de área, fiz uma ―especialização‖, uma ―residência‖, em teoria e metodologia

1
Mestre em História Social pela Universidade de Brasília – UnB. Contato com o autor: malkerik@yahoo.com.br

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da história. No mestrado em filosofia, na UFMG, orientado pelo professor Ivan Domingues,
discuti o problema da história em Marx; no doutorado, na Université Catholique de Louvain,
orientado pelo professor Andre Berten, abordei a temporalidade histórica nos Annales. A pós-
graduação era formalmente em filosofia, mas o tema era a história, que é um tema
permanente, precioso, da história da filosofia.
Os momentos mais marcantes foram cinco: 4 muito favoráveis, muito narcísicos e
1 muito marcante, mas triste, lamentável. Vamos começar com a boa lembrança: 1º) a defesa
da minha dissertação ―Marx e a História‖ foi um sucesso! Gosto muito daquele texto e com o
apoio do professor Ivan Domingues, aprendi a fazer tecnicamente o trabalho acadêmico; 2º) a
defesa da minha tese em Louvain, após 4 anos longe do Brasil. Lá também foi um relativo
sucesso, obtive a menção ―avec La plus grande distinction‖ (LPGD), que para um estudante
belga é o máximo; 3º) a publicação da minha tese em 4 livros: ―Nouvelle Histoire e Tempo
Histórico‖ (Ática, 1994), ―Escola dos Annales, a Inovação em História‖ (Paz e Terra, 2000),
―A História, entre a Filosofia e a Ciência‖ (Ática, 2006) e ―Tempo, História e Evasão‖
(Papirus, 1994); 4º) a publicação do livro ―As Identidades do Brasil, de Varnhagen a FHC‖
(FGV, 1999) , teve um surpreendente impacto, que me deixou muito feliz. Quanto ao
momento triste, lamentável: o meu concurso na UFOP foi superquestionado, a minha
aprovação foi considerada uma fraude. Eu tinha 26 anos, apenas, e duvidava, eu mesmo, da
minha capacidade e fiquei marcado, excluído, e soçobrei na insegurança, enfim... Vocês
querem saber da minha carreira? Começou mal, muito mal! Desejo que as de vocês comecem
de forma muito mais alegre, confiante.
Quanto aos meus estudos atuais, estou dividido: por um lado, estou refletindo
sobre o tema da escrita da história nas obras de Paul Ricoeur (―Tempo e Narrativa‖,
‖Memória, História e Esquecimento‖, ―Si-Mesmo como um Outro‖, ―Percurso do
Reconhecimento‖, ―O Conflito das Intepretações‖, ―Do Texto à ação‖) e esta discussão leva
a outros autores, como Foucault e Derrida, em cujas obras gostaria de mergulhar; por outro
lado, sinto muita falta do meu lado ―historiografia brasileira‖ e gostaria também de mergulhar
no pensamento histórico brasileiro. Não sei qual caminho seguirei... a história dirá!

R.E.D.H. O senhor poderia falar um pouco mais sobre essa relação entre Ricoeur, Foucault,
Derrida e a escrita da história?

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J.C.R. Esta seria a pesquisa a ser feita! Não sei o quê se poderia extrair, de forma clara e
densa, desse diálogo, que pressinto que é essencial para a historiografia. Estou trabalhando
com as obras de Ricoeur, que são monumentais. Contudo, há algo de teológico demais, de
excessivamente cristão, que os outros dois autores relativizariam. Eles são contemporâneos,
se conheceram e se enfrentaram. O poliedro resultante das posições dos três poderia oferecer
uma visão mais global sobre o pensamento histórico ocidental dos últimos 50 anos. A questão
central dos três é a do ―sentido e a linguagem‖: a historiografia pode ser capaz de expressar o
sentido da experiência humana? Há um sentido para as experiências humanas? Qual seria o
objetivo das pesquisas dos historiadores?

R.E.D.H. Atualmente, a teoria da história vem ganhando um espaço crescente nas


publicações em história, todavia não parecem raras as confusões entre teoria e filosofia da
história. O senhor concorda que, entre historiadores, as definições nesse campo ainda se
prolongam?

J.C.R. Você saberia distinguir com clareza uma da outra? Elas se aproximam muito! O
sentido da distinção é que os historiadores não querem, não podem e não devem se deixar
tutelar por outra comunidade intelectual. Um historiador não pode fazer ―filosofia da
história‖, porque precisa diferenciar e demarcar a sua identidade e o seu território de
historiador. Então, ele diz que faz ―teoria da história‖. Pelo mesmo motivo, os sociólogos
fazem ―teoria sociológica‖, os antropólogos fazem ―teoria antropológica‖. Mas, os três
dependem fortemente dos filósofos. Quando o assunto é ―pensamento‖, não há como evitar os
clássicos da filosofia e o diálogo das ―teorias‖ das ciências humanas com a filosofia é intenso.
Nós acabamos de mencionar Ricoeur, Foucault e Derrida, sem os quais a ―teoria da história‖
contemporânea não seria possível. É imensa a influência das filosofias da história kantiana,
hegeliana, nietzschiana, marxiana, benjaminiana, sobre as ―teorias da história‖ dos últimos
três séculos. E esta influência se estendeu sobre as teorias sociológica e antropológica: Weber,
Durkheim, Elias, Bourdieu, Lévi-Strauss são, de certa forma, ―filósofos sociais‖. E nem os
economistas escapam da influência da filosofia. Você diria que Freud é um filósofo?
Portanto, a distinção entre as duas formas de tratar o pensamento histórico é
necessária, para que fique bem demarcada a diferença dos sujeitos da reflexão: o filósofo e o
historiador. O historiador se ―apropria‖, transformando e adaptando aos seus objetos, das

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idéias filosóficas. A teoria da história não pode ser reduzida a uma metodologia e nem a uma
mera epistemologia. A reflexão sobre a história envolve questões ontológicas, éticas,
políticas, estéticas, teológicas e não se pode evitar o diálogo com os filósofos. Por isso, elevar
um muro entre uma e outra, afirmar que uma não precisa da outra ou, pior, que ―uma é
melhor do que a outra‖ é, no mínimo, uma ingratidão, ou melhor, um ―equívoco teórico‖.

R.E.T.H. Alguns historiadores diriam que a escrita da história contemporânea está cada vez
mais dependente de injunções do tempo presente. Como o senhor analisa esta relação?

J.C.R. Por um lado, acho que uma historiografia ―dependente das injunções do presente‖ é
muito melhor, porque está a serviço da Vida. Esta presença do presente veio se radicalizando
a partir do século XIX, a partir das provocações de filósofos como Marx e Nietzsche, que
insistiram sobre a necessidade do conhecimento histórico servir à práxis e à Vida. A história
não podia continuar a ser um conhecimento do passado pelo passado, um congelamento do
presente. Com os Annales, esta ―perspectiva presentista‖ se radicalizou na história-problema e
no método regressivo/retrospectivo. Para Bloch, a ―história é a ciência dos homens no tempo‖
e não do passado pelo passado, é um diálogo dos homens do presente com os homens do
passado com os quais tem afinidade. O historiador precisa olhar em torno de si e perceber as
necessidades não formuladas do presente e formulá-las, transformá-las em uma investigação
histórica, que traga informações aos homens do presente. É o homem vivo que se interessa
pela história, é a ele que o historiador se dirige e deve tratar de temas do seu interesse. Na
verdade, a historiografia sempre foi do presente, mesmo aquelas que excluíram o presente do
seu ponto de vista.
Por um lado, isto é ótimo. Mas, por outro, há riscos que devem ser controlados: o
anacronismo, o relativismo, o modismo, a trivialidade temática, um certo empobrecimento,
uma certa perda de densidade da historiografia, que tratará somente do que pode ver e tocar,
incapaz de alçar vôos mais altos de abstração histórica.

R.E.T.H. Ainda nesta linha, gostaria de questioná-lo sobre os estudos no campo da história
cultural. O volumoso número de estudos em torno de objetos até pouco tempo marginais
trouxe fortes críticas a esse campo da historiografia, sendo mesmo acusada de ser uma
história carente de maior significação, ou um "artigo de perfumaria". O leque de

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possibilidades que se abriram com novas fontes e os diálogos conceituais com diferentes
áreas disciplinares fizeram o historiador perder uma visão macro da história?

J.C.R. A dita ―história cultural‖ é a historiografia do mundo pós-89, do mundo da


―sociedade-mercado livre‖, do mundo da ―vitória do fetichismo da mercadoria‖, do mundo da
hegemonia do valor de troca. A historiografia decaiu em mercadoria, em produto para ser
oferecido no supermercado, ao lado de chicletes e jujubas. O que, por um lado, é excelente!
Se o presente é este, a historiografia, que é um saber do tempo, poderia ser diferente? Os
historiadores culturais estão apenas ―acusando‖ a mudança e assumindo, como camaleões, as
cores do novo tempo. A sensibilidade historiadora é camaleônica: sente a mudança e torna-a
visível.
Por outro lado, há efeitos colaterais, que são aqueles riscos mencionados acima:
relativismo, anacronismo, modismo, perda de densidade crítica. Contudo, é possível ao
mesmo tempo sentir o presente e manter com ele uma relação crítica. O livro de K. Jenkins
―A História Repensada‖ (Rethinking the History) é muito útil para a avaliação deste momento.

R.E.T.H. O momento atual demonstra uma relação mais estreita entre produção
historiográfica e mercado cultural até então inédita. Gostaria de fazer uma pequena
referência ao texto "O historiador sem tempo", de Antonio Celso Ferreira, que afirma que
"diante da ruidosa indústria do mundo hoje, que nos transforma em fluxos culturais cada vez
mais rápidos, obrigando-nos a anunciar produtos e nos anunciar como produtos, talvez valha
a pena recordar o que disse Nietzsche: 'Alguém deve falar apenas quando não deve ficar em
silêncio'". Como o senhor entende essa aproximação entre história e mercado cultural?

J.C.R. O mundo pós-89 é o mundo da vitória do mercado, a Bolsa de Valores se impôs em


Moscou e em todas as capitais do Leste. A relação de compra e venda tornou-se universal
mesmo para as atividades sem nenhuma relação com o mercado, como a saúde e a educação.
Agora, não há valores superiores, acima dessa relação comercial. Nem a historiografia! É
preciso vender livros, teses, dissertações, cursos, diplomas, fontes históricas, entradas a
museus, para que o ―negócio da historiografia‖ se autosustente. A historiografia como
business! Eis o nosso desafio neste momento histórico e a ―história cultural‖ tem sido de uma
importância crucial, eu ia dizer ―capital‖. Ela representa a sobrevivência do nosso ofício na

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―era do Capital‖. Apesar do seu abandono da crítica, não se pode menosprezá-la, mas
―compreendê-la‖ em sua historicidade.

R.E.T.H. O senhor afirmou que "a dita 'história cultural' é a historiografia do mundo pós-
89". Como o senhor percebe a produção historiográfica no pós-89, especialmente a
brasileira?

J.C.R. Se concordamos que a historiografia sempre foi do presente, inclusive aquelas que
recusaram a sua relação com o presente, a ―história cultural‖ pertence a este mundo pós-
Guerra Fria, pós-Queda do Muro de Berlim. A historiografia marxista, antes, tematizava no
passado o que interessava à sua práxis revolucionária no presente: revoluções, greves, lutas
sindicais, congressos de classe, biografia das lideranças partidárias, escravos rebeldes, ataques
de escravos contra senhores, quilombos. O presente pós-89 não tem nada a ver com esta
abordagem da ―luta de classes‖ e a história cultural trata no passado de escravos que
conseguiram ascender, obter alforria, acumular patrimônio, dentro de um sistema escravista
incontestável e até consensual. Ela descreve as estratégias, as negociações feitas por
indivíduos e grupos de escravos para sobreviverem naquela ordem adversa ―sugerindo‖ que
os ―escravos do presente‖ façam o mesmo.
Por um lado, isto é excelente: a historiografia não poderia continuar a mesma pré-
1989, como se o projeto do Leste ainda estivesse em vigor. Ela tinha de mudar, para
acompanhar o processo histórico. A ―história cultural‖ pode ser vista de duas formas:
positiva, porque não estimula a autovitimização dos oprimidos, valoriza a ―resistência‖
daqueles que dizem sim à vida procurando integrar-se à ordem estabelecida; negativa, porque
abandonou a força própria da historiografia que é de ser crítica do sistema, do poder, da
dominação e opressão e pode-se questionar o seu compromisso com a ética.
Eu destacaria duas obras importantes sobre este ―regime de historicidade
presentista‖ (Hartog): Campos da Violência, de Silvia Lara, e Chica da Silva, de Júnia
Furtado. Elas falam de uma ―escravidão consensual‖, das estratégias de acomodação e
adaptação à ordem escravista dos escravos, que é uma projeção no passado da práxis possível
no mundo pós-89.

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R.E.T.H. É sabido o quanto a historiografia brasileira é tributária das matrizes francesa e
inglesa. Contudo, as últimas décadas demonstram um interesse cada vez maior, da academia
e das editoras, por outras escolas, como a alemã e a italiana. A que o senhor atribuiria essa
"descoberta"?

J.C.R. Vivemos um novo tempo após a Queda do Muro de Berlim. O paradigma dos Annales
– o evento estruturado – era adequado àquela época de combate à instabilidade revolucionária
e não se impôs somente à historiografia brasileira, mas à historiografia ocidental. A ―longa
duração‖ era contra toda iniciativa de mudança radical e esvaziou a experiência histórica da
subjetividade. O interesse por estas outras escolas talvez possa ser explicado dessa forma: ―o
retorno da subjetividade‖ à historiografia, uma subjetividade excêntrica, que resiste à norma,
sem poder para mudá-la inteiramente, embora seja capaz de transformá-la. Foram sobretudo
os italianos que insistiram no indivíduo/grupo ―diferente‖, ―anormal‖, ―excêntrico‖, que não
se submete a séries quantitativas probabilísticas, que fazem um ―uso inventivo da norma‖. É
um mundo que exige um olhar múltiplo tanto dos que o estão vivendo quanto dos que o
analisam, os historiadores e cientistas sociais. A historiografia mais adequada a este momento
é a da ―variação das escalas‖, em que a subjetividade é estruturante e estruturada e sua análise
exige um ―jogo de escalas‖.

R.E.T.H. Diante de mudanças cada vez mais velozes, também a narrativa historiográfica é
alvo de debates quanto à necessidade de um exame crítico de sua produção. Quais seriam os
pontos e aspectos que o senhor salientaria para que esse não se torne um mero inventário?

J.C.R. Um texto que interpela fortemente o ―regime de historicidade presentista‖ (Hartog) é o


de Walter Benjamin ―Teses sobre o Conceito de História‖, escrito em uma situação
extremamente adversa, que o levou ao suicídio. Ali, ele formulou algumas inquietações com a
época perigosa em que viveu que, talvez, possam ser ainda atuais. Benjamin chama a atenção
para a força redentora do passado: ―o passado foi um ar respirado que sopra o ar que
respiramos no presente... A rememoração do passado deve alimentar o combate no presente:
nem os mortos estarão em paz se o inimigo vencer, o perigo é entregar-se às classes
dominantes como seu instrumento‖. Benjamim teme o fim da capacidade de narrar, que o
trabalho do historiador desapareça, que a humanidade não seja mais capaz de compartilhar e

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trocar experiências. A reflexão de Benjamin sobre a época histórica adversa em que viveu,
sugere que, hoje, o perigo maior para o historiador é a ―empatia com o vencedor‖, mesmo
sutil e modificada. A sua ―pesquisa histórica‖, se desprezar o passado ou reinterpretá-lo de
forma muito complacente com o presente, pode se tornar um instrumento do Ocidente
vitorioso e ser utilizada com a mesma função da luz do flash do filme norte-americano ―Os
Homens de Preto‖: deletar a memória, produzir esquecimento, organizar a amnésia, que
permite e garante a continuidade do processo civilizador, a Ocidentalização do planeta.
Talvez, a sociedade nunca tenha tido uma necessidade tão urgente de uma
historiografia profundamente crítica. Para Ricoeur, a historiografia tem mesmo necessidade
de recorrer à narrativa ficcional para reabrir o horizonte-de-expectativa e imaginar um
―mundo habitável‖ (vivre ensemble). A imaginação poética cria a inovação semântica que
responde ao desejo de uma ordem social diferente, a imaginação utópica é o verdadeiro
instrumento de crítica da realidade ao criar sentidos novos, que abrem o horizonte para
mundos possíveis. Ou será que a fisionomia do ―anjo da história‖ (quadro de Klee) diante do
mundo pós-89, diante do ―fim da história‖, estaria mais serena?

R.E.T.H. Professor José Carlos Reis, nós agradecemos a honra que o senhor nos dá em
entrevistá-lo.
J.C.R. Caro Eric, obrigado pela boa conversa. Espero ter atendido à expectativa dos alunos da
pós-graduação da UnB.

Fevereiro de 2010.

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Seção

Resenha

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BECK, Ulrich; GRANDE, Edgar. La Europa Cosmopolita: sociedad y política en la segunda
modernidad. Barcelona, Buenos Aires, Mexico: Paidós, 2006, 392p.

HUMANISMO COSMOPOLITA
ESBOÇO DE UMA IDEIA DE HUMANIDADE COMO PRINCÍPIO REGULADOR DO
COSMOPOLITISMO EUROPEU

Johnny Roberto Rosa 1

A obra La Europa Cosmopolita, publicada em 2006 pela editora Paidós em países


de língua espanhola, é a última parte da série de estudos dividida em três volumes e escrita
por Ulrich Beck sobre o cosmopolitismo, tendo como co-autor Edgar Grande2. Originalmente,
o estudo foi apresentado ao público em 2004, ainda em alemão, sob o título Das
kosmopolitische Europa: Gesellschaft und Politik in der Zweiten Moderne.
Contando com uma elaborada reflexão, os autores abordam na obra a sociedade de
risco global, a possibilidade de uma modernização reflexiva e de realismo cosmopolita;
fundamentos estes sobre os quais Beck e Grande discorrem suas análises sobre a ideia de
Europa. Desse modo, a relação de temas colocada logo nas primeiras páginas do livro fornece
ao leitor uma aparente sensação de afinidade com questões tradicionalmente cultivadas pela
teoria crítica da Escola de Frankfurt. Preferivelmente a analisar a Europa como um
mecanismo de mercado, os autores a vêem como um projeto dinâmico de política aberta,
recorrendo a autores como Benedic Anderson para sugerir que a Europa precisa ser

1
Mestrando em História Cultural pela Universidade de Brasília – UnB. Bolsista Capes. Contato com o autor:
johnnyrobertorosa@hotmail.com
2
Ulrich Beck é sociólogo, professor da universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e da Escola Londrina de
Economia e Ciências Políticas. Desde 1992, tem sido professor de Sociologia e diretor do Instituto de Sociologia
da Universidade de Munique. De 1995 a 1997 foi membro da Comissão para Questões Futuras do Estado da
Bavária e Saxônia. É editor, desde 1980, do jornal de Sociologia Soziale Welt, e autor e editor de vários artigos e
livros, além de ser um dos principais tradutores de idéias sociológicas contemporâneas do alemão para o inglês.
Sua importância no campo da Sociologia, e das ciências sociais em geral, é incontestável, julgando sua extensa e
ininterrupta evidência de publicações em alemão e inglês desde a publicação de seu determinante Risk Society,
em meados de 1980.
Edgar Grande é cientista político e ex-professor da Universidade de Konstanz . Desde de 2004 é professor de
política comparada no Instituto de Ciências Políticas Geschwister-Scholl, da Universidade Ludiwig-
Maximilians, de Munique.

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―inventada‖, o que leva à discussão dos autores sobre o fato de que, ao invés de Europa, o que
realmente existe é um processo de europeização.
Ulrich Beck e Edgard Grande discutem neste livro a possibilidade da principal
dificuldade da europeização poder estar radicada no fato de que o projeto político que os
europeus têm em mente não corresponde ao esquema que determina sua realidade. Sendo
assim, necessita-se, segundo os autores, de um relato de europeização que torne
compreensível a vinculação de fracassos e iniciativas (pp.15-21). Nesta circunstância, seria
relevante que se repensasse a Europa, que se reconhecesse e entendesse as contradições da
europeização, fundamentando seus momentos comuns em um novo conceito político de
integração e em uma nova visão política; possibilidade de coexistência esta conceitualizada
pelos autores como Europa cosmopolita.
A importância cultural da europeização radicada em um cosmopolitismo é
caracterizada pelos autores através da fertilização cruzada de identidades e discursos com a
qual se poderia relacionar um novo modelo cultural sócio-cognitivo, em que a ideia de Europa
se tornaria realidade. Para Beck e Grande, a Europa não existe, o que existe é uma
europeização entendida como um processo institucionalizado em transformação, obedecendo
à lógica das consequências indiretas. A Europa é, deste modo, um projeto politicamente
alternante e em permanente processo de transformação, ilustrando um estado de coisas que, na
teoria de conjuntos imprecisos, é conhecido como a ―lei de incompatibilidade‖, ou seja, caso
cresça a complexidade de um sistema, os problemas enunciados com sentido perdem sua
determinação; e os enunciados determinados, seu sentido (pp.21-31). Entretanto, tal definição
não significa a impossibilidade de se formular enunciados com sentido, e o conceito de
cosmopolitismo, discutido por Grande e Beck, procura oferecer a chave para esta questão.
Os autores empregam o cosmopolitismo como um conceito caracterizado pela
superação de dualismos, principalmente em sua dimensão global/local, nacional/internacional.
A compreensão da europeização de forma cosmopolita apresentada caracteriza a preocupação
com a transformação da subjetividade cultural e política, procurando determinar o conceito de
sociedade européia como um caso regional, especial e histórico de interdependência global e
de relação reflexiva. Contrário a um sistema de subordinação verticalizada, o cosmopolitismo
seria o princípio da superação das diferenças, sendo sua condição de possibilidade, alegam os
autores, o reconhecimento e o desenvolvimento das normas universais que permitem
institucionalizar e fundamentar a igualdade do modo com que se trata o diferente. O sentido

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atribuído ao cosmopolitismo converte, por conseguinte, o reconhecimento da diferença em
pensamento, convivência e ação, que exige um conceito de integração e identidade o qual
permita a convivência sem que isto implique sacrificar a particularidade e a diferença em
benefício de uma suposta igualdade. Vista desta forma, uma Europa cosmopolita seria uma
Europa da diferença, reconhecida, aceitada e significada por limitações e regulações desta
diferença – diferença e integração, lugar de diversidade como fonte da auto-consciência
cosmopolita (pp.31-34).
O cosmopolitismo requer a existência de normas universais que permitam regular
a relação com o diferente, e equilibrar a luta por reconhecimento de uma forma socialmente
aceitável. Se o cosmopolitismo quiser garantir identidades e direitos coletivos, ele necessitará
de um mecanismo político que permita produzir e estabilizar institucionalmente a diferença
coletiva. Sem estes estabilizadores de diferença, o cosmopolitismo corre o risco de converter-
se em universalismo substancial (pp.35-36). Esta racionalidade – que trouxe uma forma
específica e complexa de etnocentrismo: uma globalização do jeito racional dominante
ocidental de viver, que tem se tornado uma ameaça à vida das pessoas na maioria dos países
não ocidentais; uma ameaça à peculiaridade de suas culturas e de suas próprias
tradicionalidades identitárias – é muitas vezes vista como uma globalização das formas
ocidentais de vida que não permitem lugar para as culturas diferentes. Nesse sentido, a
modernização é uma ameaça à diferença e à variedade, guiada pelo princípio do
etnocentrismo. Deste modo, nos encontramos diante do problema de uma intransponível
lacuna entre diferença cultural e discurso universalista.
Assim entendido, o conceito de universalidade exclui e suprime a alteridade. Para
lidar com esta generalização, e equilibrar a luta por reconhecimento, pode-se pensar a
proposta de Jörn Rüsen, que sugere que se critique perspectivas diferentes pela projeção entre
elas, e isso colocaria em movimento ambas as perspectivas, enriquecendo umas as outras 3.
Deste modo, a crítica poderia levar à integração. Este enriquecimento mútuo seria possível
sobre uma certa condição expressa pela categoria universalística de igualdade argumentativa
para a plausibilidade narrativa. Entretanto, uma tal tipologia das diferenças culturais precisa

3
Ver: RÜSEN, Jörn. Towards a new idea of humankind – unity and difference of cultures in the crossroads of
our time. Working Papers n.2. Kulturwissenschaftliches Institut, Essen; University of Witten/Herdecke;
University of Duisburg-Essen. Essen, 2006. _____ Comparing cultures in intercultural communication. In.
FUCHS, Eckhardt; STUCHTEY, Benedikt. Across cultural borders: historiography in global perspective. p.335-
348. Rowman&Littlefield, 2002.; _____. How to overcome ethnocentrism: approaches to a culture of
recognition by history in the twenty-first century. In. History and Theory. Theme Issue 43. p.118-129. Wesleyan
University, 2004.

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evitar o engano de um conceito de cultura como unidade previamente dada. Nesta direção, o
cosmopolitismo europeu discutido por Beck e Grande propõe um método de conceitualização
que procura evitar etnocentrismos bem como qualquer pressuposição de comparação que
excluiria as culturas uma das outras, apresentando a alteridade de diferentes culturas como um
espelho que habilita uma melhor compreensão de si mesmo, constituindo a peculiaridade de
nossas próprias características culturais, e ocasionando uma inter-relação de culturas que
permite às pessoas usarem o poder cultural de reconhecimento.
Para Beck e Grande, na Europa, a cosmopolitização do Estado tem dado origem a
uma estrutura política que se baseia em pressupostos compartilhados de qualidade normativa,
o que configuraria a possibilidade de respeito e reconhecimento baseado no consenso.
Entretanto, os autores advertem que esta cosmopolitização do Estado também deveria se
fundamentar na delimitação nacional, na livre vontade, nas interdependências transnacionais e
no valor político, organizado e posto em prática pela tolerância constitucional; pela
diversidade e incrementalismo transnacional; pelo pluralismo ordenado; pelo decisionismo
reflexivo; e pelas afiliações múltiplas. (p. 133-139) Nesta interdependência global, a realidade
se torna cosmopolita – sem obedecer a uma intenção, sem publicidade, sem obedecer a uma
determinação, a um programa político, de forma completamente deformada, afirmam os
autores. O surgimento deste cosmopolitismo estaria centrado em um projeto político que
aponta à transformação das lealdades e das identidades em um mundo de múltiplas
modernidades. Sendo assim, a europeização é entendida como um caso especial, como uma
forma regional e histórica da gestão de fronteiras de interdependência global (pp. 171-174).
Outra questão importante para que a dimensão social possa ser generalizada,
pressupondo que todos compartilham características básicas e que se reconheçam
reciprocamente, é referida como a transnacionalização dos direitos humanos contra a
soberania jurídica dos Estados nacionais, determinante para a criação de uma sociedade civil
européia. Deste modo, a europeização da sociedade civil poderia criar as condições adequadas
para realizar o experimento de vincular entre si direitos humanos e direitos civis, estatuto
jurídico e identidade, formas de vida transnacional e participação política. Trata-se de
europeizar as sociedades nacionais, de abri-las, de fazê-las permeáveis e receptivas umas às
outras sem eliminar suas peculiaridades, incluindo seus provincianismos e suas limitações.
Esta europeização horizontal dos Estados nacionais necessita, segundo Beck e Grande, de um
humanismo cosmopolita; de uma dimensão social identitária, que compartilhe características

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básicas de humanidade (pp. 181-180). Sendo assim, compartilha-se da mesma qualidade
normativa de ser um ser humano que configuraria uma possibilidade de respeito e
reconhecimento.
Outro fator relevante para que se compartilhem características básicas de
humanidade diz respeito ao fato de que a transformação interna das sociedades nacionais não
poderia renunciar à experiência das guerras e das ditaduras e de sua assimilação política.
Deste modo, criaram-se conceitos jurídicos e um tribunal situados além da soberania dos
Estados nacionais, onde se idealizou uma prática político-jurídica que articula em forma de
conceitos e de procedimentos jurídicos a ruptura da civilização representada pelo extermínio
dos judeus organizado pelo Estado alemão 4 (p.190). Esta categoria de ―crimes contra a
humanidade‖ introduz uma nova lógica jurídica que rompe com a lógica baseada no conceito
de nação, substituindo-o pelo princípio jurídico da responsabilidade cosmopolita. Se as
tradições que deram lugar ao horror do holocausto eram européias, também eram os valores e
os conceitos jurídicos com os que estes fazeres se julgaram ante o mundo como crimes contra
a humanidade (pp. 191-192).
A discussão destes conceitos pode ser compreendida como resultado de desilusões
políticas, ou como conseqüência de um aumento da sensibilidade moral, que diz respeito ao
fato de termos nos tornado consciente do fato de que o reconhecimento da dignidade humana
condensa um princípio central de justiça social. Deste modo, todo sujeito seria dependente de
um contexto de formas sociais de interação regulada por princípios normativos de
reconhecimento mútuo. Sendo assim, a integração normativa das sociedades seria substituída
por princípios de institucionalização de reconhecimento que regulam compreensivelmente as
formas de reconhecimento mútuo através do qual seus membros possam se relacionar no
contexto social da vida. Se corroborarmos estas premissas, a consequência é que uma política
ética, ou uma moralidade social, deveria ser fundamentada para a qualidade de garantias
sociais de relações de reconhecimento.
Contudo, o tipo de cosmopolitismo apresentado por Beck e Grande parece sugerir
algo mais do que a coexistência da diferença. Por essa razão, a perspectiva abordada pelos
autores implica ainda o reconhecimento da dimensão transformativa dos encontros sociais. A

4
Em toda a Europa existe uma disputa cada vez maior sobre a subjetividade política de novas formas de
comemorações pós-nacional baseadas no perdão e no reconhecimento das vítimas. A recordação do Holocausto é
paradigmática destas formas de comemorações. Deste modo, é característico que uma ética da memória se
converta em um cenário para o discurso público sobre a natureza da identidade histórica.

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fertilização cruzada que se dá quando as sociedades entram em contato conduz a formas
sociais mais fixas e a uma certa lógica de convergência, que transcende a superficialidade da
―unidade na diversidade‖. Trata-se, deste modo, do fato da integração das sociedades envolver
diferenciação e integração reflexiva. A europeização é compreendida pelos autores mais em
termos de autotransformação reflexiva do que de princípios normativos. Sendo assim, a ideia
de uma Europa Cosmopolita se baseia no princípio de unidade e diversidade, indo mais além
no problematizar reflexivamente a subjetividade política da Europa.
A tarefa proposta por Ulrich Beck e Edgar Grande de se compreender a
europeização de forma cosmopolita exige um conceito de integração e identidade que permita
uma convivência, sem que isto implique sacrificar a particularidade e a diferença em
benefício de uma hipotética igualdade. Entretanto, este cosmopolitismo requer a existência de
princípios que permitam regular a relação com o diferente, e equilibrar a luta por
reconhecimento. Este tipo de pensamento transcenderia os limites do etnocentrismo, sendo
um compromisso para refletir, historicisar e universalizar os princípios básicos e
determinantes do pensamento histórico, além de poder servir de escopo para se pensar a
existência de princípios universais, bem como para que possa haver a regulação da relação
com o diferente. Aqui se configura uma possibilidade de respeito e reconhecimento que
estabilizaria a diferença, não havendo o risco do cosmopolitismo proposto por Beck e Grande,
converter-se em universalismo substancial.

Em Tempo de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da 196


Universidade de Brasília - PPG-HIS, n. 16, Brasília, jan./jul. 2010. ISSN 1517-1108

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