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Virada icônica: um apelo para três voltas do parafuso (ref.

a William James, Turn of the


screw)

Emmanuel Alloa

Resumo: No começo dos anos 90, W. J. T. Mitchell e Gottfried Boehm independentemente


proclamaram que as humanidades estavam testemunhando uma “virada pictórica” ou
“icônica”. Vinte anos depois, podemos imaginar se esse anúncio estava descrevendo um
evento já em curso ou se estava preferencialmente invocando-o a acontecer. O mundo
contemporâneo é, mais que nunca, determinado por artefatos visuais. Ainda, nosso arsenal
conceitual, forjado durante séculos de logocentrismo, continua derrocando (falls behind)
frente a complexidade dos sentidos pictóricos. O ensaio tem duas partes. Na primeira, ele
tenta acessar o significado exato da “virada pictórica”/“icônica”, e (re)coloca-a dentro do
contexto dos estudos visuais anglo-americanos e da Bildwissenschaften alemã. Na segunda
parte, ele se endereça a famosa reivindicação do filologista Ernest Robert Curtius de que
“ciências da imagem são fáceis” (“image sciences are easy”), advocando por três “voltas do
parafuso” para fazer os estudos visuais mais difíceis: um deslocamento da iconologia para a
sintomatologia, um deslocamento do extensivo para o intensivo e um deslocamento do
indicativo para o subjuntivo.

A imagem, um novo paradigma?


Dentro de uma década, eles desapareceram completamente da paisagem urbana de New
York: estou me referindo aos característicos sinais de trânsito amarelos “WALK/DON'T
WALK”, familiares a qualquer um que já esteve explorando New York a pé, mas também
além, dada sua vigorosa presença em tantos filmes e séries de TV. Introduzidos nos anos
1950, as robustas caixas eram reconhecíveis desde longe, cintilando sua clara mensagem
(unambiguous message) ao vagante metropolitano. Caminhar ou não caminhar1: o imperativo
maniqueísta deixa pouco espaço para o questionamento e exerce uma forma de coerção
dominadora em qualquer mente de pedestre. Não em toda mente de pedestre, entretanto, como
eventualmente parecerá claro. Dentre as multidões globais de visitantes a cidade, muitos que
não são familiares com o Inglês foram achados incapacitados para entender a mensagem,
mesmo que parecesse inconfundível se aparecido primeiro numa mente local.

1 “To walk or not to walk”


No fim de 1990, as autoridades decidiram sobre uma grande mudança, recolocando as
antigas caixas com outras recentemente desenhadas, nas quais as linhas de texto seriam
substituídas por pictografias. Começando em 1999 e durante a década seguinte, todas as
caixas antigas foram devagar mas firmemente trocadas por um novo tipo de sinal de trânsito
onde WALK seria trocada por uma figura passeante em perfil, enquanto que DON'T WALK
seria transformada em uma mão com a palma para a frente, que faz lembrar uma mão de
policial dirigindo o tráfego. Hoje, é dito que em algumas remotas partes do Queens, umas
tantas relíquias da época passada (old age) estão ainda a serem descobertas, mas caso
contrário, a profunda virada dos textos para as pictografias, da linguagem para a
imagem, é completa. (Figura 1)

A mudança nos policiantes sinais de trânsito de New York não é necessária para
entendermos que profundas modificações têm ultimamente estado em curso nos modos de
comunicação da sociedade. Muitos terão reivindicado que nós vivemos hoje numa era visual,
num tempo meticulosamente (thoroughly) desenhado e formado por imagens. Mas, como
frequentemente acontece, o incontestável consenso esconde uma realidade que é muito menos
óbvia do que parece. W.J.T. Mitchell, de maneira lúcida, observou que hoje as imagens têm
um status que estranhamente oscila entre o de um paradigma e o de uma anomalia (Mitchell,
1994: 13). De um lado, pareceria indiscutível que nossas vidas estão agora determinadas pela
visualidade e suas telas em um grau que era inimaginável até recentemente. De outro lado, o
pensamento contemporâneo (filosofia, teoria, crítica) ainda parece estar imperfeitamente
armado para confrontar uma realidade que não pode ser interpretada em bases textuais ou
(para dizer o mínimo) entendida como uma de suas extensões [do texto].
As vozes de W.J.T. Mitchell na América e Gottfried Boehm na Europa desempenham
um papel decisivo em revelar a diferença entre esse fenômeno e as metodologias disponíveis
para descrevê-lo (ver suas correspondências em Boehm and Mitchell 2009; as diferenças em
suas aproximações foram destacadas por Moxey 2008; Curtis 2010). Todavia, é essa mesma
diferença que faz o valor heurístico da assim chamada “virada icônica” (Boehm) ou “virada
pictórica” (Mitchell) incerta. Quando Boehm e Mitchell cunharam suas respectivas fórmulas
em caminhos levemente diferentes e independentes, permaneceu obscuro se o diagnóstico
referia-se a uma mudança na sociedade ou se isso era meramente uma virada epistemológica
dentro do processo de pensamento; em outras palavras, se essa “virada” dizia respeito a [1]
um aumento exponencial nas formas de comunicação visual – isto é, a emergência de novos
objetos ou [2] uma virada hermenêutica – isto é, uma mudança no jeito de pensar e ver [in the
way of thinking and seeing]. Se de fato a virada icônica pode ser exemplificada numa
mudança tecnológica que produz um aumento de artefatos visual mas que não modifica a
teoria que os descreve, a imagem não pode ter outro status senão o de uma anomalia; um tipo
de objeto híbrido, viciado por uma hubris [arrogância] constitutiva que impede seu particular
alocamento dentro das consagradas formas de conhecimento, no meio do caminho entre uma
ontologia do objeto e as semióticas do signo. Ainda, quais são as condições que precisam ser
encontradas – seria tentador perguntar a Mitchell e Boehm – a fim de verdadeiramente falar
de uma virada de paradigmas? Em quais bases nós podemos afirmar que uma imagem não é
um objeto suplementar, mas sim vem a ser um vetor, um meio [medium] ou um operador
decisivo para nossas práticas contemporâneas e para nossas formas de conhecimento?
A diferença que recém foi descrita não parece ser específica à questão da imagem, mas
sim a qualquer mudança paradigmática. A assim chamada “virada linguística”, cujo nome é
agora associado com Richard Rorty e ao volume que editou (Rorty, 1967), certamente não se
refere a emergência de novas formas de linguagem ou a uma transformação dentro da
linguagem, mas a uma preocupação sem precedentes para o fato de que a dimensão linguística
é onipresente a qualquer nível de vida social e que nós não podemos pensar seriamente um
tipo de vida social privada de qualquer dimensão linguística. Mesmo (yet) viradas epistêmicas
- mudanças paradigmáticas, como Thomas S. Kuhn as chamou – podem ter diferentes
alcances: numa escala restrita, a virada epistêmica concerne a emergência de uma nova
ciência ou disciplina, enquanto que em uma ampla escala, refere-se a uma mudança de ponto-
de-vista, onde todos os objetos observados pelas ciências no passado são então considerados
sob uma nova perspectiva. Nesse sentido, a virada linguística pode ser considerada a partir do
ponto de vista de uma diferenciação dentro de disciplinas (e a emergência das “linguísticas”
como um novo campo específico de investigação) enquanto que a virada antropológica, que
aconteceu há cerca de um século e meio, trouxe a antropologia como uma nova disciplina.
Ainda, pode ser também afirmado que o real alcance da virada antropológica é perdida se
reduzida a emergência de uma nova disciplina. Esse foi o argumento de Foucault: a
emergência do humano como uma nova “episteme” não é tanto sobre a emergência de um
novo objeto; ciências humanas não são ciências que tem o humano como seu objeto, mas
ciências que consideram todos os outros objetos de um ponto de vista antropológico, através
do vetor humano então falado. De uma maneira similar, a virada linguística alcança bem além
da simples inauguração de um novo objeto de estudo, cuja especificidade não foi ainda bem
percebida, mas constitui uma meta-teoria ou uma “metafilosofia” (Rorty, 1967:1), enquanto
isso nos compele a refletir sobre o meio (medium) de cada reflexão.
Hoje, somos encarados por algumas questões urgentes: É possível pensar de uma
maneira não-antropológica (essa é a questão pousada hoje pelo que é conhecido como
“realismo especulativo”) ? É possível pensar em bases de uma gramática diferente daquela da
linguagem proposicional? É uma imagem realmente mais que um simples objeto de alguma
disciplina regional? Pode a imagem, invés de ser concebida como uma reduplicação do
mundo, ser pensada como um acesso ao mundo e como um meio do mundo (acess of the
world and as a medium of the world)? Há aí algo como um pensamento visual ou, mais
exatamente, um pensamento com (with) e segundo (according to) as imagens?
Dentro das humanidades, um crescente número de vozes tende a dar uma resposta
positiva a essas questões. Reconhecidamente, entretanto, essa (overall sea-change) profunda
mudança geral ainda não produziu um consenso institucional geral, com algumas menores
exceções. Enquanto que nos EUA está sendo implementado um novo currículo de visual
culture studies, o mundo de fala germânica vem experimentando a introdução de uma nova
“ciência das imagens”, a Bildwissenschaft (ver por exemplo Sachs-Hombach, 2005).
Enquanto que no contexto americano é a noção de “cultura visual” que vem sendo
pesadamente contestada por suas várias implicações, especialmente a abolição da diferença
entre “arte” e “visualidade” (ver o famoso October “Visual Culture Questionnaire” (1996);
ver também Elkins et al. 2015). No contexto alemão, não é tanto o nivelamento de imagens
artísticas e não-artísticas que levantou objeções, mas a institucionalização da nova disciplina.
A primeira resposta que vem a mente quanto a isso é que uma disciplina já foi com
certeza criada, ainda mais que uma vez. No século vinte, a fundação de uma “ciência das
imagens” - uma “iconologia” - é associada com o nome de Erwin Panofsky (Bradekamp,
2003). Ainda, teve-se que esperar até 1967 (um prefácio a edição francesa de Iconografia e
iconologia) para Panofsky reconhecer abertamente que seu projeto iconográfico estava em
débito com o que Aby Warburg uma vez chamou Ikonologie – embora, como Giorgio
Agamben relembrou, Warburg nunca deu um nome definitivo a sua ciência (Agamben 1975)
– mas também com a inteira tradição setecentista da Iconologia (Panofsky, 1967: 3-4).
Estudar as ciências da imagem não é uma ideia caprichosa do século vinte: já na Iconologia
de 1603 de Cesare Ripa (Ripa, 1603), há uma tentativa de particularizar os elementos de uma
pintura a fim de torná-las “legíveis”; isso para dizer, para fazer todas persuasões “pelo olho”
comparáveis com o que persuade “pelas palavras”, como exemplificado pela alegoria do belo
e sua face “nublada”. (Figura 2)

'A ciência das imagens é fácil...'


É significante que a maioria das enciclopédias iconológicas do século dezessete
intentem isolar figuras que são capazes de ter a mesma definição de letras ou palavras,
elementos imutáveis que podem circular e ser rearranjados em novos sintagmas pictóricos. A
imagem é subordinada ao texto em todos os fins [in all respects] e não pode ser pensada
independentemente disso. Na Iconologia de Ripa, os ícones não tem uma lógica própria; eles
seguem o modelo do texto: a eles é suposto ser tão literal quanto possível.
No século vinte, Erwin Panofsky suportou a tentativa de reiniciar o projeto
iconológico em novas bases, livres de seu viés literalista. O primeiro movimento consistia em
simplesmente transformar a “iconologia” de seus predecessores em “iconografia”, desde então
deixando o termo “iconologia” disponível para uma redefinição semântica. O nível
iconológico irá nomear tanto o terceiro e mais alto nível da análise panofeskyana – o do
significado – como o próprio projeto. Sua tentativa de libertar a imagem de seu viés literalista
e de demonstrar a importância de seu logos acabará por cimentaro viés literalista ainda mais
firmemente, como deveremos ver a seguir. Mas enquanto isso, não devemos esquecer que o
primeiro movimento anti-textual panofskyano foi visto pelos seus contemporâneos como um
ataque direto à filologia e suas supostas prerrogativas. Quando em seu European Literature
and the Latin Middle Ages, originalmente lançado em 1948, escreve que somente a literatura
possui uma estrutura autônoma (eine autonome Struktur) e que somente a literatura é
portadora de ideias (Träger von Gedanken), o grande filologista Ernst Robert Curtius aparenta
estar se direcionando diretamente a Panofsky e Warburg (paradoxamente, ele dedica o livro ao
último).

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