Você está na página 1de 6

I

,
t o virus
- .

americano - .

'r• Brian Massumi


Tradução André Arias

1
••

'....

'
J

Pôr um rosto na ameaça. Depoi s dos ataques de 11


de setembro, a l inguagem usada em t o rno da ameaça
terrorista tinha um toque decididamente viral . Não
eram raras as comparações d iretas entre o terrori sta
e o vírus . Ambos possuem uma manei ra de te ati ngi r
i nesperadamente, de i rromper subi tamente por baixo do
l imi ar da percepção, atacando de qualquer d i reção com
urna impl acabil idade i numana, urna l etalidade d i spersa,
quando não com uma preci são assassina. o l i miar da
percepção coinci d i u amiúde com a fro nteira da nação .
>
o terrori sta era o inimi go "sem rosto", como o "outro",
como uma fita sol ta de RNA entocada em um suí no, à espera
de detonar a carne humana.
No meio d i sso, um terrorista doméstico mei o
incompetente, mas i maginativo , entrou em ação. Em maio
de 2002 , caixas de correio começaram a expl odi r no
Meio- Oeste estaduni dense . Durante a l guns d i as, dezoito
1 '
aparel hos expl osivos improvisados f o ram plantados em
cai xas de correi o do centr o do Texas até o norte de
I l linois . Os ataques não pareci am a l eatórios . Par eciam
seguir um padrão que ia sendo preenchido a cada ponto de
1 i ncêndio . Os i nimi gos da nação estavam enviando alguma
mensagem? Seri a o prelúdio de um ataque maior? Pâni c o ,
,• urna caçada rnultiestadual se segui u . o perpetrado r foi
preso a ntes do plano ser concluído . El e chegou perto,
1 porém. Expl icou que pretendia 2 4 explosões. Conf essou
que preci sava de mais seis para desenhar um sorri so pelo
coração dos Estados Uni dos .
Os estil haços sorridentes do Smily Face Bomber eram
como um jack - in-box retalhado fazendo careta . Você
conheceu o ini migo , e e l e é você.

Dos vários regimes de medo . o Smily Face Bomber tinha


bomba casei ra . Hoje temos emoti cons. Ai nda temos
' l iteralmente bombas virais de RNA, mas também temos
virali dades i nformaci onais de zero - e - um na forma
contagiosa da trollagem, dos mercadores de teori as
conspiratórias, e de tweets pres i denc i ais - a parelhos
expl osivos improvi sados para detona r o s oc i al via cai xas
J

de correios v i r tuai s. A reação d e pôr um r ost o no


"ini migo sem rosto" continua aí, mas sem a i ron i a .
o rost o carra ncudo é o emblema dos nossos dias .
o rosto carranc udo no comando , o emoti con humano
Donald Trump, tem fei to tenta tivas intermit entes de
pôr um rost o na cri se , de preferência não b ranco . Trump
vanglorio u-se do papel i maginário que seu muro xenófobo
ao sul da fronteira te r ia para d i minuir o contág i o.
Ins i s tiu em chamar a Covid-1 9 de o "vírus chinês",
mesmo enquanto os Estados Uni dos se to rnavam o epicentro
>
da pandemia (sugeri ndo uma denominação geográfica
diferente). Ele propôs a quarentena do res t o do país
para p r otegê-lo cont ra a elite costei ra doente de Nova
York . Ele até lançou a i deia de despachar as f orça s
milita res para as f ro nteiras do norte a fim de prot eger
a nação contra as horda s canadenses. Porque isso é uma
guerra - a ssim como a guerra a o t error t ambém o era - e
o que é uma guerra sem tropas? As " tropas" na l i nha de
frente, os especial ista s da s a úde pública, que pedem
desesperadamente por mais contingente - do tipo q ue
mane j a amostras de t est es em vez de armamento mil i ta r -,
\ não t êm o drama necessário .
A resposta mais consistente de Trump, entretanto , não
,• tem s i do a dramatização , mas a mi nimização . Aplaudi do
pela Fox News e por diversos especialistas e políticos
1 de direita , ele transfe r iu o mode l o do negacionismo
climático para o coronavírus. Uma gripezinha!,
,, . . ,._
excl amaram. E uma ma nei ra d iferente de por um rosto
nisso - um r ost o " l iberal" . o vírus é anódi no. A ameaça
real é a bomba terrorista do soci ali smo f urtivo. A
nação está compl e t ame nte assustada, e por i sso volta rá
choraminga ndo pai;a o "Grande Governo". E ainda que o
vírus seja um t ant o mortífe ro, nó s temos que seguir
adiante e man ter o país f unc i onando . "Não podemos t ornar
( a cura p i or que a doe nça" . A economia de l i vre mercado
deve ser salva a t odo custo . Os mais vulneráveis , afirma
o governador do Texa s , o t enente Dan Patrick, devem
ser bons soldados e se p repa ra r para o a utossacrifíc i o
para salva r o país des t a ameaça pi or q ue a morte : uma
,
economia doen te. Os i dosos, os desa b rigados , as pessoas
com a imun i da de comprometida, todos os que t endem, no
melhor dos tempos, a c ai r para o fim da l i s t a da triagem
(pessoas com deficiência, com síndr ome de Down, com
demência, os aut istas , os pob res) serão o s herói s não
cantados da nação . Qualquer semel ha nça com e ugeni a ...
Esta estratégia dup l a, apesar d a contradição d e
dramatizar e de minimizar simul taneament e, l evou Trump
a regi s tra r altos í ndices de a p r ovação . I sso i mpl ica
que não há cont radi ção alguma, mas um acopl amen t o
>
operacional entre do i s modos de projet ar a ameaça sobre
um rosto inimi go, com o intuito de afas t ar a percepção
do perigo . Em um regi me de medo, a personificação
p r ojet ada do perigo e a subsunção da v i da mesma
pela economia and a m de mãos d a das . Na era do 1 1 de
set embr o , o t errori s ta f o i ass i milado ao vírus do o utro,
desuma niza do . o i nimigo " inespecífico" e "assimétrico"
e ra preponderante, e preci samos de um coringa exp los i vo
para nos lembra r que o medo pode t er um rosto. Nos
nossos d i a s de peste contemporâneos, o que domina é a
ass i milação do vírus a um ini mi go identificado , p reso em
\ um espelho d emasiado huma no , como num debate, um f ace
a f ace, po l ari zado pelo ódio . A t écnica de produçã o do
,• o utro não est á de f orma a l guma acabada . Ela oscila com
a personi ficação , coexistindo com a figuração do peri go
1 como a out ra met ade de si próprio . A t axa de aprovação
de Trump rondou os 50% . Nós conhecemos o ini mi go - é a
nossa ou tra metade . A guerra a ss i métrica , pendul ando
.... como o equival e nte mo ral da g ue r ra civi l?
E a outra meta de? Sem necessariamente pe r sonificar
o u mercantili zar, a outra meta de (se posso extrapolar
minha própri a experiência ) se sent e gol peada e sitiada,
tan t o pela ameaça do ví rus qua n t o pela resposta
da outra - metade do o utro . Checa obsess i vamente o
' f eed de no tícias numa t entati va interminável de
t i rar a t empera t ura de uma crise que trans borda o
termômet ro a cada abordagem . Agudamente consci ente
da inumanidade do vírus e de sua indi ferença para com
1

o aconteci mento d e sua própria emergência . Dobrada


sobre seus p rópri os ques tionamen tos e postergando
indefinidamente por necessidade de agarrar- se à alguma
coi sa. Embora não seja uma personific a ção , i sto é
intensame nte indi viduali zante - ass i m como o é o
dis t anciame nto social imuni tári o , devi damente pra ticado
e ntre as buscas na internet sobre os úl t i mos números
estarrecedor es. Esta indivi dual ização não está na base
da mesma economia l iberal para a qual os Donal d Trumps
e Dan Patricks do mundo nos pedem para sacrificarmo s
nossas vidas?
Do i s regimes de medo : pro jetivo- agressivo e
i munit ári o - defensivo , personi ficação e i ndivi duali zação .
Unidos n o curso d a a gonia neoli beral. Est e é o v í rus
americano? Sor r ia.

Cuidar do aconteci mento. Vi r ou lug ar comum a filosofia


,.., contemporânea afirmar que, ética e poli t i cament e , o
acontecimento é um apelo para nos t or narmos iguais a
ele . Per sonificar e individuali zar não são iguais a
um acontecimento qu e vigo r osament e demonstra nossa
\ interdependência . Nada como o f echa mento da economia
para nos lembrar de como nossas v i das estão finamente
,• suspensas em uma rede de mu t uali dade . Nunca antes
senti mos a me r cearia do bair ro ou a s pessoas que
1 trabalham com entrega t ão int egrad a s à existência
social. A o r i gem mesma do vírus está entrelaçad a
em uma teia ecol ógica: uma r ota de transmi ssão
mul t iespécie para a qual os c i enti stas há muit o tempo
nos ale rt am que a s condi ções esta va m dadas, em razão da
destru i ção dos háb ita ts e do aquecimento global. I sso
não envol ve uma só cida de - envolve um plane ta . Isso
e nvo l ve o cui da do de uns com os outros, em consonâ ncia
com o cui dado com o p laneta. I sso envolve não uma
' personi ficação , ma s assumi r o i mbri cament o integral de
cada um em um mundo mais que h uma no .
1 Em vez de trans f erir o negacioni smo das mudanças
cli máticas para a Covi d - 19 , temos a opção de transferir
o momentum coleti vo que tem sido construído pelo
movimento de emergênci a climá tica a o apo i o mútuo e à
cel ebração da vida nessa crise , com o olhar vol tado já
para além da dela, para continuar a luta contra a mai or
das crises da q ual esta é indiscutivel mente tributária.
I sso inclui dar passos em direção a um t i po de economia
que jamais nos pediria - a nossos v i z i nhos , ao planeta
- para nos deitarmos e mo r rermos . Ist o é o que dever i a
ser cantado das va r andas : pós- capi tali smo , em voz a l ta.
Não me refiro à imitação que faz disso o "soci ali smo
democrático", que não passa de uma tentativa de dar
um rosto humano ao capitali smo . El e é o mel hor dentre
alte r nativas o f erecidas. Mas j á vimos o nde os r ostos
nos conduzem.
Uma i mb r icação mútua de uns com o s outros : tentemos
algo transindi vi dual de-s t a vez . Um mundo mai s que
,., humano : faça- o multiespéci es .
Isto é para vocês , Trump e Companhia : o l hando para
trás, lhes dar ia uma coi sa sobre a qual vocês poderiam
dizer que t inham razão . Exceto a parte do f urtivo .
1 Em voz alta .

,•

--

Brian Massumi é filósofo .

Você também pode gostar