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Introdução
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Para tratar da distinção entre lógica predicativa e lógica relacional faz-se necessário
também abordar algumas questões que são pressupostas ou que circulam este problema.
A primeira delas é a afirmação de que todos os enunciados relacionais seriam, neces-
sariamente, redutíveis a enunciados predicativos. Esse ponto é importante para a aná-
lise que será desenvolvida a seguir, pois se trata de uma possível avassaladora objeção à
possibilidade de uma lógica não predicativa, visto que o caráter relacional de uma
proposição seria decorrente da junção de enunciados predicativos e que, em última
instância, todos os enunciados relacionais seriam redutíveis a enunciados predicativos:
o caráter relacional de qualquer enunciado somente pode ser considerado como junção
de enunciados predicativos e a validade de um enunciado relacional deve ser verificada
a partir de seu desmembramento em enunciados predicativos. Ou seja, para se verificar
a validade ou o caráter de verdade de um enunciado relacional ele deve, necessaria
mente, ser decomposto em enunciados predicativos e isso seria a demonstração de que
nenhum juízo de conhecimento poderia ter como base enunciados relacionais. Neste
sentido a asserção relacional “o copo está cheio de água” somente poderia ter seu valor
de verdade verificado a partir de sua decomposição em enunciados predicativos ele-
mentares tais como, por exemplo, “o copo é impermeável” e a “água é líquida”. Temos,
portanto, uma asserção relacional constituída de duas asserções predicativas nas quais
“copo” e “água” assumem funções de sujeitos, com predicações específicas e, necessa
riamente, mediadas pela cópula “ser”.
A segunda questão, não menos importante, é a questão da redutibilidade de enun-
ciados relacionais a enunciados predicativos que conduz diretamente a outro ponto
central para se tratar das diferenças e proximidades entre o pensamento ocidental e
oriental: o da pressuposição de uma estrutura predicativa de linguagem e da necessidade
da existência do verbo ser enquanto cópula, para a formação de enunciados predicativos
e, consequentemente, da possibilidade de se verificar seu caráter de verdade. Esse ponto
nos remete ao cerne de uma das principais controvérsias da história da filosofia oci-
dental, qual seja, a do presumível caráter eminentemente grego da filosofia devido às
propriedades da língua grega, que teriam possibilitado a verificação da verdade de um
argumento a partir de sua composição lógico-linguística. A propriedade da língua
grega para a filosofia estaria precisamente na suposição de ela ser mais adequada para
a formulação dos enunciados predicativos em sua forma básica S é P.
O terceiro ponto, central na análise que faço aqui, refere-se ao presumível desco-
nhecimento do conceito de substância1 fora da filosofia grega. Como o debate em torno
1
Uso aqui o conceito latino “substância” de forma imprecisa, pois não pretendo analisar as possíveis
distorções que o termo grego “ousia” teria sofrido a partir de sua recepção medieval e sequer pre-
tendo compreender os diversos significados deste termo na Metafísica de Aristóteles.
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que aponta a ação do movimento em sua forma mais ameaçadora possível: a putrefação
dos corpos.Com a percepção da putrefação do corpo do outro, tem-se o primeiro mo-
mento da compreensão da morte enquanto fenômeno psíquico. Porém, é com a transpo
sição da percepção da putrefação do corpo do outro para a possível putrefação do meu
próprio corpo que o problema da mutação, do fluir de tudo, passa a ser o problema que
funda a filosofia. Diante do estado radical do movimento de todas as coisas, com a
putrefação do próprio corpo, o “eu” depara-se com a passibilidade do caráter axiomático
da impermanência e reluta em admitir sua própria dissolução, pois algo deve permanecer,
algo deve estar fora do âmbito do caráter avassalador do movimento. É justamente
neste contexto que situo a o embate que ocorre entre Aristóteles e Heráclito, no Livro
IV da Metafísica e classifico esse momento como uma das mais emblemáticas e influentes
passagens da história da filosofia ocidental.
Uma das obras mais influentes da história da filosofia ocidental, a Metafísica de
Aristóteles, é, na verdade, uma compilação póstuma de diversos textos deixados por ele
que foi editado alguns séculos após sua morte. Uma das principais características deste
livro é o caráter de síntese que ele apresenta em várias passagens distintas, tal como
pode ser explicitamente percebido em seu Livro, no qual o autor nos apresenta, em sua
forma mais elaborada, o mais importante dos três princípios básicos da sua lógica: o
princípio da não-contradição. A estrutura argumentativa apresentada no Livro IV da
Metafísica é, a meu ver, a pedra fundamental do pensamento filosófico que se desen-
volve no Ocidente e assim, o princípio da não-contradição torna-se, desse modo, o
elemento que norteará toda discussão filosófica posterior. Evidentemente, inserimos
também nesta abrangência da importância deste princípio algumas tentativas sistemá-
ticas em demostrar sua ineficiência.
Não abordarei aqui as objeções modernas e contemporâneas ao princípio de não-
-contradição, pois a intenção da abordagem que faço não é a de negá-lo ou defende-lo,
mas expor o emaranhado filosófico a que pertence. Nesse sentido, antecipo que o ob-
jetivo principal do retorno ao Livro IV da Metafísica é apenas um recurso de compreensão
da forma como os axiomas fundamentais do pensamento ocidental, a estrutura predi-
cativa dos enunciados lógicos e a busca por uma essência última das coisas formam, em
Aristóteles, um único elemento que pode ser designado como a base que funda a filo-
sofia ocidental. Observo ainda que o caráter incisivo do foco que apresento nesta análise
justifica-se pela necessidade de apresentar um contraponto à abordagem que farei a
seguir, de questões correspondentes encontradas nas tradições indianas e chinesas.
A Metafísica propõe-nos, por um lado, uma síntese da filosofia pré-socrática e
platônica e por outro lado, uma crítica direta e sistemática a Heráclito e, como disse
anteriormente, esse fato não é secundário: ao contrário, ele nos oferece justamente a
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chave para compreender a questão central que está sendo colocada: a impossibilidade,
para Aristóteles, de admitir o caráter axiomático da impermanência e, consequente-
mente, a negação categórica da tese fundamental de Heráclito que afirma que tudo flui.
Não temos com Aristóteles a primeira crítica contundente à ideia de movimento como
o princípio de todas as coisas, como Heráclito havia pensado, pois Zenão de Eleia já
havia demostrado o caráter paradoxal dessa tese. O que a Metafísica de Aristóteles nos
apresenta como inédito é a junção da demonstração do caráter axiomático da negação
do movimento com a estrutura predicativa da lógica e a consequente conclusão da
necessidade da existência de um elemento não subjugado às regras da impermanência,
de um motor que coloca tudo em movimento, mas que não é movido por nada.
Nesta perspectiva, e como contraposição às reflexões sobre impermanência, onto-
logia e lógica, que se desenvolvem no Oriente, reitero o caráter de predicação da estru-
tura da lógica aristotélica que funda o que designo de forma geral como lógica predicativa
que, por sua vez seria a única possibilidade de se emitir juízos lógico-epistemológicos
válidos e verdadeiros sobre o mundo e, ao mesmo tempo, a possibilidade segura de
atingir a substância última, a essência de todas as coisa, que não está sob o jugo do
movimento: “Por conseguinte, a essência é o princípio de todas as coisas, tal como é o
princípio nos silogismos: de fato, os silogismos procedem a partir do ‘o que é’ e, aqui
neste caso, as gerações procedem a partir do ‘o que é’” (Aristóteles, 2005, p. 57).
Para fugir das armadilhas sofistas da impossibilidade de se emitir qualquer juízo
logicamente válido e verdadeiro sobre o mundo, Aristóteles, no Livro IV da Metafísica,
toma como referência inicial, para a construção de seu arcabouço argumentativo, a
necessidade de se chegar a axiomas. Este texto de Aristóteles é, inicialmente, a exposição
da necessidade de se definir axiomas na filosofia, como já havia sido feito na m
atemática;
a exposição de quais seriam os instrumentos necessários para a aquisição de tais axiomas;
e, por último, a definição do princípio de não-contradição como sendo o primeiro axioma
da filosofia. É fundamental ressaltar que o próprio Aristóteles nos adverte para o fato
de que o momento da aquisição de axiomas na filosofia não corresponde ao momento
inicial do próprio ato de filosofar e que a busca por axiomas já está inserida na d
inâmica
do pensamento filosófico e já pressupõe determinada aquisições e uma dela seria a
pressuposição de determinadas formas argumentativas válidas. Aristóteles nos adverte
da necessidade básica de conhecer as regras da silogística para a aquisição dos axiomas
filosóficos.
Quanto a tudo aquilo que alguns (entre os que foram mencionados) tentam estabelecer
a respeito da verdade, concernente ao modo pelo qual é preciso aceitá-la, fazem-no
devido à falta de formação nos Analíticos; de fato, é preciso chegar já sabendo previa-
mente esses assuntos, mas não buscá-los enquanto se ouve [sc. o presente curso].
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Assim, é evidente que compete ao filósofo, isto é, àquele que estuda como naturalmente
se apresenta qualquer essência, investigar também a respeito dos princípios silogísticos.
E convém que aquele que mais conhece a respeito de cada gênero seja capaz de e nunciar
os princípios mais firmes do assunto, de modo que também aquele que conhece a
respeito dos entes enquanto são entes é capaz de enunciar os princípios mais firmes
de todas as coisas. E este é o filósofo (Aristóteles, 2007, p. 18)
AéB
BéC
AéC
Assim, que um tal princípio é o mais firme de todos, é evidente; mas qual ele é, diga-
mo-lo depois disso: é impossível que o mesmo seja atribuído e não seja atribuído ao
mesmo tempo a um mesmo subjacente e conforme ao mesmo aspecto (considere-se
delimitado, em acréscimo, tudo aquilo que acrescentaríamos contra as contendas argu
mentativas); ora, este é o mais firme de todos os princípios, pois ele comporta a defi-
nição mencionada. Com efeito, é impossível que quem quer que seja considere que um
mesmo fato é e não é – como alguns julgam que Heráclito afirmava. Pois não é neces-
sário que alguém também conceba aquilo que diz. E, dado que não é possível que os
contrários ao mesmo tempo pertençam a uma mesma coisa (considerem-se acrescen-
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tados por nós, nesta premissa, todos os acréscimos de costume), e dado que são con-
trárias entre si as opiniões contraditórias, evidentemente é impossível que um mesmo
homem, ao mesmo tempo, conceba que o mesmo fato é e não é. Pois aquele que erra
a respeito disso teria ao mesmo tempo as opiniões contrárias. Por isso, todos os que
demonstram reportam-se a esta opinião última. De fato, por natureza, este é também
o princípio de todos os demais axiomas (Aristóteles, 2007, p. 18-19).
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mais clara possível de se compreender pontos centrais que nos dão acesso às diferenças
fundamentais que alicerçam as duas maiores construções do que chamamos de Filosofia
Ocidental e Filosofia Oriental. Diferentemente do que faz Aristóteles, Nagarjuna nos
apresenta uma linha de raciocínio que visa, em última instância, demonstrar a inexis-
tência de uma substância última, de uma essência, de uma natureza própria que seja a
garantia inabalável da possibilidade da permanência de algo, diante do caráter avassa-
lador do domínio do movimento sobre todas as coisas. A afirmação da inexistência de
uma substância última, de uma natureza própria e da interconexão de todos os elementos
do mundo físico e dos conceitos não aparecem no Budismo, pela primeira vez com
Nāgārjuna, mas o formato sistematicamente claro e lógico desses dois aspectos e a
interdependência entre eles, nos são apresentadas por ele, em sua obra principal intitu-
lada Versos fundamentos do caminho do meio (Mūlamadhyamakakārikā).
É fundamental considerar toda construção teórica do Budismo, inclusive a impla-
cável dessubstancialização do método de Nagarjuna, como uma resposta ao problema
central decorrente da percepção de que a putrefação dos corpos pode atingir também
o meu “eu”. O sofrimento, mais especificamente, o grande sofrimento diante da percepção
da finitude é o ponto de partida, também, do Budismo e da filosofia de Nagarjuna.
O percurso de Versos fundamentais do Caminho do Meio visa demostrar a impossi-
bilidade de se encontrar algo que possa ser definido como a substância última, ou na-
tureza própria (svabhāva), que dê garantia de algum tipo qualquer de independência
permanente a qualquer ente ou conceito. À demonstração da não existência de qualquer
possível independência permanente Nagarjuna denomina sūnyatā- vacuidade – que por
sua vez é também sinônimo de pratītyasamutpāda – cooriginação dependente – e o
processo metodológico (soteriológico) de acesso à unidade entre cooriginação depen-
dente e vacuidade, enquanto elementos fundantes de qualquer tipo de realidade é o
mesmo: o tetralema abaixo:
Nem X
Nem ¬X
Nem X ˄ ¬X
Nem ¬(X ˅ ¬X )
Esta estrutura argumentativa está presente em toda obra. Porém, aparece de forma
diretamente exposta em apenas alguns capítulos, como pode-se perceber já no p rimeiro
de todos, em que autor introduz como questão central a desconstrução do princípio de
causalidade a partir do tetralema acima. Vejamos o capítulo I:
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1.1 Nunca, em nenhum lugar, são conhecíveis quaisquer entes originados a partir de si, a
partir de outro, a partir de ambos, de si e de outro, e também privados de causa.
1.2 Pois a natureza intrínseca dos entes não é encontrada nas condições etc.; e, apesar de
a natureza intrínseca ser ausente, também sua natureza extrínseca não é encontrada
nelas
1.3 Quatro são as condições: causa, base objetiva, imediatamente antecedente e d ominante;
não existe uma quinta condição.
1.4 O poder causal não possui condições; mas o poder causal também não é desprovido
de condições; as condições não são desprovidas de poder causal, mas elas também não
possuem poder causal.
1.5 São comumente chamados “condições” aqueles entes em dependência dos quais algo
é originado; mas, enquanto esse algo não for originado, como, então, eles poderiam
não ser não-condições?
1.6 Uma condição não é logicamente possível nem de um objeto inexistente nem de um
objeto existente. Haveria condição de que, no caso de um objeto inexistente? E para
que serviria uma condição, no caso de um objeto existente?
1.7 Desde que nenhum fator último da realidade – nem existente, nem inexistente, nem
existente e inexistente – leva a cabo a produção do efeito, como, então, sendo assim,
é logicamente possível uma “causa produtiva”?
1.8 É ensinado que um fator último da realidade, enquanto ele é existente, está presente
sem uma “base objetiva”; ora, por que, então, falar ainda em base objetiva se o fator
último da realidade está privado de base objetiva?
1.9 Se os fatores últimos da realidade não são originados, sua evanescência também não
é possível; em virtude disso, não é correto falar de uma “condição imediatamente
antecedente” – e qual condição existiria em algo que cessou de existir?
1.10 Visto que a existência de entes privados de ser intrínseco não é encontrada, também
não é possível isto: se isto é, aquilo vem a ser.
1.11 O efeito não está nas condições tomadas separadamente ou interligadas entre si. Como,
pois, surgiria das condições o que não está nelas?
1.12 Ora, se esse efeito, mesmo inexistente nas condições, provém dessas condições, por
que o efeito não advém também de não-condições?
1.13 O efeito é formado por condições, mas as condições não subsistem por si mesmas.
Como aquele efeito que é formado por condições provém de condições que não
subsistem por si mesmas?
1.14 Portanto, nenhum efeito formado por condições nem formado por não-condições
pode ser estabelecido, e, já que o efeito não existe, como haveria condições e não-
condições? (Nagarjuna, 2016, p. 39-40).
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Para exemplificar o caráter lógico desta estrutura básica e seus pressupostos não
substancialistas e não essencialistas recorro ao capítulo 11 do Dao De Jing, em que temos
uma das mais elucidativas passagens de um texto chinês sobre o caráter relacional de
Yin e Yang, presentes em todas as coisas. Neste capítulo temos, não um tratado sobre a
constituição última das coisas, sobre a aparência e a essência dos fenômenos, não encon-
tramos neste texto uma reflexão sobre a estrutura lógica dos argumentos, como temos
na Escola dos Lógicos, com Huizi e Gon Sunlong, temos sim, neste texto, um formato
aparentemente pueril, “não filosófico”, um formato plástico, que parece desconsiderar
a competência intelectual do leitor, que ao invés de tratados recebe alegorias. Vamos ao
texto:
Recorro aqui à tradução do Dao De Jing feita por Mario Bruno Sprovieiro. Insiro,
porém, alguns ideogramas originais no texto traduzido para elucidar melhor alguns
aspectos, que, a meu ver, são centrais neste texto. O capítulo 11 é composto basicamente
por quatro partes: três argumentos e uma conclusão. Entretanto, como já dito anterior-
mente, ele apresenta propositalmente um formato alegórico. O primeiro argumento
tem como referência uma roda, o segundo um recipiente, um jarro ou um copo, o ter-
ceiro uma casa e por último temos a conclusão, mas todos os três argumentos têm a
mesma estrutura que pode ser definida pelos termos traduzidos por Sprovieiro como
“imanifesto” “manifesto” e “uso”. Aqui temos a chave para a compreensão do caráter
lógico relacional deste texto e da presença do Yin e Yang em sua base argumentativa. O
capítulo 11 traz três ideogramas chaves que são: wu 無, you 有 e yong 用 e suas respe-
tivas combinações entre si. Wu 無 é um dos ideogramas mais importante na filosofia
chinesa e, posteriormente, um “conceito” chave na filosofia da Escola de Kyoto: signi-
fica “nada” e é um dos caracteres possíveis que formam frases negativas; you 有 é um dos
possíveis caracteres que podem ser traduzidos por “ser”, porém tem significado predomi
nantemente existencial, podendo ser traduzido também por “ter” e “existir”; por último
temos o ideograma yong 用 que pode ser traduzido aqui por “usar”, “colocar em prá-
tica” e “empregar”.
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Conclusão
Uma das questões mais polêmicas e recorrentes que aparece ao tratar da contrapo
sição entre o caráter substancial e metafísico da lógica predicativa, e não substancial e
antimetafísico da lógica relacional é a pergunta pela “aplicabilidade” dos recursos lógicos
relacionais ao âmbito do conhecimento científico. De forma clara, a pergunta que
surge frequentemente diz: é possível fazer ciência a partir das bases da lógica relacional?
Independente da afirmativa ou negativa da resposta fica, como um bom exemplo que
elucida o que expus anteriormente, a análise sobre o hipotético comportamento de um
cientista moderno, por exemplo, de um físico, diante da matéria enquanto objeto de
pesquisa e diante da matéria enquanto um objeto qualquer que pertença à sua vida
cotidiana. Ao analisar, por exemplo, a constituição da matéria de um copo de vidro,
nosso físico abandonará progressivamente várias proposições predicativas com p retensões
de verdade, inicialmente admitidas. Os enunciados predicativos tais como “o copo é
liso”, “o copo é impermeável” perdem, progressivamente, para o cientista, o valor de
verdade de acordo com o tipo de experiência feita por ele e de acordo com os instru-
mentos de observação que utiliza. Diante dos olhos e do tato, tais afirmações são ver-
dadeiramente consistentes, mas elas não resistem a uma observação feita com o auxílio
de um microscópio. Porém, se a análise da matéria feita pelo físico se torna mais espe-
cífica, se ele passa à análise da estrutura molecular da sílica, elemento predominante na
composição do vidro do copo e nosso cientista passa a excluir cada vez mais enunciados
predicativos do plano dos enunciados que dizem, verdadeiramente, algo sobre o copo.
A sílica, matéria básica da composição do vidro do copo é um composto químico
formado por dois átomos de oxigênio e um átomo de silício e, caso o referido físico
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avance em sua análise da composição da matéria que forma o copo de vidro, que é
objeto de pesquisa, ele entra, portanto, no universo da composição particular de cada
átomo e suas respectivas subdivisões, o que o coloca diante de possibilidades insólitas,
tais como a de afirmar que a matéria é composta por átomos que se subdividem em
partes que estão em movimento constante. Outro ponto importante a ser considerado
é que o comportamento de cada átomo particular, que forma o composto q uímico
denominado de sílica, somente pode ser rastreado a partir de suas ligações, e que, em
outro composto químico, ou em uma molécula, os mesmos átomos se comportam de
forma significativamente diferente. O oxigênio que forma o composto químico sílica é
o mesmo que forma a molécula da água, mas nos dois casos distintos, assim como em
todos os casos nos quais o oxigênio está presente, eles se comportam de forma com
pletamente diferente, devido à ação dos outros átomos, presentes na formação dos
compostos e das moléculas. A partir deste momento não é mais possível afirmar que
proposições predicativas tais como “o copo e liso” ou “o copo é impermeável”, sejam
aceitáveis como proposições dotadas de caráter de verdade.
A matéria que compõe o copo, o objeto de pesquisa de nosso cientista, é uma
constituição relacional de elementos que estão em movimento e que não podem ser
percebidos isoladamente; que não apresentam nada que possa ser definido como sendo
sua substância última. Levar às últimas consequências as considerações que fiz sobre a
impossibilidade lógica de se emitir um juízo predicativo e, ao mesmo tempo, v erdadeiro
sobre o copo, parece apontar para um ceticismo que impossibilita qualquer postura
prática diante do copo enquanto objeto de análise do nosso cientista. Porém ele não
hesitaria em recorrer ao mesmo copo para tomar água e saciar sua sede, em usar o
mesmo copo em sua vida cotidiana, independente da constituição não estática da ma-
téria e das moléculas da sílica. Se recusar a lidar com o copo em sua vida cotidiana, para
finalidades práticas e funcionais, que pressupõem a aceitação apenas funcional de enun-
ciados predicativos tais como “o copo é impermeável” é não reconhecer os níveis dis-
tintos dos enunciados e suas respectivas funções.
Esse exemplo nos permite compreender o movimento de dessubstancialização dos
entes e a ruptura com o predomínio do caráter predicativo dos enunciados no plano
epistemológico do conhecimento do mundo fenomênico e nos permite também com-
preender como é possível pensar o mundo a partir dos pressupostos relacionais da va-
cuidade e cooriginação dependente do budismo mahāyāna e do caráter complementar
e também relacional do vazio e do cheio, a partir de exemplos tipicamente ocidentais,
como é o caso do comportamento do cientista que acabo de descrever.
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Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. 2005. Metafísica, Livro VII. Tradução, comentários e notas de Lucas
Angioni. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução no 11, IFCH, Unicamp: Cam-
pinas.
2007. Metafísica, Livro IV. Tradução, introdução e notas de Lucas Angioni. Clás-
sicos da Filosofia: Cadernos de Tradução no 14, IFCH, Unicamp: Campinas.
LAOZI. 2003. Dao De Jing, Tradução de Mario Bruno Sprovieiro. Editora Hedra: São
Paulo.
NAGARJUNA. 2016. Versos fundamentais do Caminho do Meio. Tradução, comentário e
notas de Giuseppe Ferraro. Editora PHI: Campinas.
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