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Predicação e relação como fundamentos da

Filosofia da Escola de Kyoto

Antonio Florentino Neto

Introdução

O objetivo central desta reflexão é apresentar os principais fundamentos lógico-onto-


lógicos que nos permitem compreender melhor as bases do pensamento oriental e, de
forma indireta, vislumbrar as principais referências orientais da filosofia da Escola de
Kyoto. Como contraposto metodológico, recorro à comparação destas bases com alguns
elementos da metafísica de Aristóteles, principalmente à demonstração do caráter axio-
mático do princípio de não-contradição e seus pressupostos linguísticos e lógico-on-
tológicos, que são as bases do que designo de forma geral como lógica predicativa. Esse
recurso tem como finalidade básica o esclarecimento dos mais importantes pontos
daquilo que denomino de lógica relacional, presente nos principais textos do Budismo
Māhāyana e no Taoísmo, textos bases das duas principais correntes formadoras do
Zen-budismo que, por sua vez, é uma das principais referências filosóficas da Escola
de Kyoto. Emprego aqui, de forma pouco ortodoxa, os termos lógica predicativa e l­ ógica
relacional como sinônimos das bases que fundamentam tanto as tradições ocidentais
como as orientais, sem entrar no debate internos das diversas escolas e das diversas
definições de lógica, presentes, tanto nas tradições ocidentais quanto orientais. Para o
que proponho, tomarei como referência algumas passagens do texto de Nagarjuna in-
titulado Versos fundamentais do Caminho do Meio, o capítulo 11 do Dao De jing e o livro
IV da Metafísica de Aristóteles.
Faço uso do recurso da oposição entre lógica relacional e lógica predicativa em
vista da pressuposição do caráter substancial lógico-ontológico dos fundamentos da
metafísica de Aristóteles e do caráter não substancial lógico-ontológico da metafísica
de Nāgārjuna e de Laozi. Dessa forma, vinculo inexoravelmente a fundamentação da
lógica predicativa ao caráter substancial do mundo, como pressupõe a lógica a­ ristotélica,
e a fundamentação da lógica relacional ao caráter não substancial do mundo, como
pressupõem as lógicas daoísta e nagarjuniana. Nesta perspectiva, vislumbro ainda a
possibilidade de retirar a ontologia do jugo da metafísica a partir da estruturação de
uma lógica desvinculada de qualquer pressuposição substancialista e predicativa.

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Para tratar da distinção entre lógica predicativa e lógica relacional faz-se necessário
também abordar algumas questões que são pressupostas ou que circulam este problema.
A primeira delas é a afirmação de que todos os enunciados relacionais seriam, neces-
sariamente, redutíveis a enunciados predicativos. Esse ponto é ­importante para a aná-
lise que será desenvolvida a seguir, pois se trata de uma possível avassaladora objeção à
possibilidade de uma lógica não predicativa, visto que o caráter relacional de uma
proposição seria decorrente da junção de enunciados predicativos e que, em última
instância, todos os enunciados relacionais seriam redutíveis a enunciados predicativos:
o caráter relacional de qualquer enunciado somente pode ser considerado como junção
de enunciados predicativos e a validade de um enunciado relacional deve ser verificada
a partir de seu desmembramento em enunciados predicativos. Ou seja, para se verificar
a validade ou o caráter de verdade de um enunciado relacional ele deve, necessaria­
mente, ser decomposto em enunciados predicativos e isso seria a demonstração de que
nenhum juízo de conhecimento poderia ter como base enunciados relacionais. Neste
sentido a asserção relacional “o copo está cheio de água” somente poderia ter seu valor
de verdade verificado a partir de sua decomposição em enunciados predicativos ele-
mentares tais como, por exemplo, “o copo é impermeável” e a “água é líquida”. Temos,
portanto, uma asserção relacional constituída de duas asserções predicativas nas quais
“copo” e “água” assumem funções de sujeitos, com predicações específicas e, necessa­
riamente, mediadas pela cópula “ser”.
A segunda questão, não menos importante, é a questão da redutibilidade de enun-
ciados relacionais a enunciados predicativos que conduz diretamente a outro ponto
central para se tratar das diferenças e proximidades entre o pensamento ocidental e
oriental: o da pressuposição de uma estrutura predicativa de linguagem e da ­necessidade
da existência do verbo ser enquanto cópula, para a formação de enunciados predicativos
e, consequentemente, da possibilidade de se verificar seu caráter de verdade. Esse ­ponto
nos remete ao cerne de uma das principais controvérsias da história da filosofia oci-
dental, qual seja, a do presumível caráter eminentemente grego da filosofia devido às
propriedades da língua grega, que teriam possibilitado a verificação da verdade de um
argumento a partir de sua composição lógico-linguística. A propriedade da língua
grega para a filosofia estaria precisamente na suposição de ela ser mais adequada para
a formulação dos enunciados predicativos em sua forma básica S é P.
O terceiro ponto, central na análise que faço aqui, refere-se ao presumível desco-
nhecimento do conceito de substância1 fora da filosofia grega. Como o debate em torno

1
Uso aqui o conceito latino “substância” de forma imprecisa, pois não pretendo analisar as possíveis
distorções que o termo grego “ousia” teria sofrido a partir de sua recepção medieval e sequer pre-
tendo compreender os diversos significados deste termo na Metafísica de Aristóteles.

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deste conceito é um dos pilares para a designação do conceito originário de filosofia na


Grécia e permanece, de alguma forma, em seus desdobramentos posteriores em toda
filosofia ocidental, sua inexistência em outras tradições, tais como a chinesa e a indiana,
seria mais um dos indicativos básicos do caráter grego da filosofia. Tratar, portanto, da
existência ou não da ideia de substância na origem do pensamento chinês e indiano,
em contraposição à sua indiscutível existência e de seu papel determinante no pensa-
mento grego antigo, seria um dos elementos que nos permitiria definir o estatuto da
filosofia e perguntar por sua existência fora do mundo grego-ocidental.
Neste sentido, a questão da presumível necessária redutibilidade de enunciados
relacionais a enunciados predicativos, da existência do verbo ser enquanto cópula no
grego antigo, como base para a lógica predicativa e o embate em torno da substância
última de todas as coisas estão intrinsecamente vinculados e formam o arcabouço teó-
rico que permitiu à tradição filosófica ocidental delimitar as fronteiras do que ela ­mesma
denominou como sendo filosofia.
Para a análise que faço dos pressupostos fundamentais da constituição da Escola
de Kyoto, enquanto uma vertente filosófica original que se situa entre as questões fun-
damentais postas pelo Ocidente e pelo Oriente, tomarei, como ponto de partida a
afirmação de que as bases que permitem compreender claramente o problema em
questão, estão presentes em três pensadores antigos: Aristóteles, Nāgārjuna e Laozi. A
escolha destes respectivos filósofos vincula-se diretamente à intenção metodológica que
tenho em vista, qual seja, a exposição clara do problema da substância primeira, que
funda tanto a filosofia ocidental quanto a oriental: para o Ocidente de forma a­ firmativa
e para o Oriente de forma negativa. O problema da substância primeira não é a­ bordado
de forma exclusiva por esses três filósofos antigos. Além disso, temos desenvolvimentos
distintos dessa questão em ambas as tradições. Todavia, é nestes três pensadores que
esta problemática vai se destacar de forma especialmente central e exaustivamente
discutida. Como consequência do desdobramento do problema da substância emerge
inevitavelmente outra questão precedente que não pode deixar de ser pensada: quais
são as referências lógicas, diretamente vinculadas às distintas estruturas argumentativas,
que fundamentam essas três formas de compreensão do que denomino aqui de “pro-
blema da substância”. Essa questão já antecipa o tom provocativo desta abordagem ao
se contrapor frontalmente às concepções correntes, no interior da filosofia ocidental,
que afirmam a não existência do conceito de substância no mundo oriental.

Predicação, princípio da não-contradição e substância em Aristóteles


O problema do movimento não se torna central na filosofia grega por um mero
despertar mágico da razão, diante do mito, mas sim a partir de um indicativo extremo

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que aponta a ação do movimento em sua forma mais ameaçadora possível: a putrefação
dos corpos.Com a percepção da putrefação do corpo do outro, tem-se o primeiro mo-
mento da compreensão da morte enquanto fenômeno psíquico. Porém, é com a transpo­
sição da percepção da putrefação do corpo do outro para a possível putrefação do meu
próprio corpo que o problema da mutação, do fluir de tudo, passa a ser o problema que
funda a filosofia. Diante do estado radical do movimento de todas as coisas, com a
putrefação do próprio corpo, o “eu” depara-se com a passibilidade do caráter ­axiomático
da impermanência e reluta em admitir sua própria dissolução, pois algo deve ­permanecer,
algo deve estar fora do âmbito do caráter avassalador do movimento. É justamente
neste contexto que situo a o embate que ocorre entre Aristóteles e Heráclito, no Livro
IV da Metafísica e classifico esse momento como uma das mais emblemáticas e ­influentes
passagens da história da filosofia ocidental.
Uma das obras mais influentes da história da filosofia ocidental, a Metafísica de
Aristóteles, é, na verdade, uma compilação póstuma de diversos textos deixados por ele
que foi editado alguns séculos após sua morte. Uma das principais características deste
livro é o caráter de síntese que ele apresenta em várias passagens distintas, tal como
pode ser explicitamente percebido em seu Livro, no qual o autor nos apresenta, em sua
forma mais elaborada, o mais importante dos três princípios básicos da sua lógica: o
princípio da não-contradição. A estrutura argumentativa apresentada no Livro IV da
Metafísica é, a meu ver, a pedra fundamental do pensamento filosófico que se desen-
volve no Ocidente e assim, o princípio da não-contradição torna-se, desse modo, o
elemento que norteará toda discussão filosófica posterior. Evidentemente, inserimos
também nesta abrangência da importância deste princípio algumas tentativas sistemá-
ticas em demostrar sua ineficiência.
Não abordarei aqui as objeções modernas e contemporâneas ao princípio de não-
-contradição, pois a intenção da abordagem que faço não é a de negá-lo ou defende-lo,
mas expor o emaranhado filosófico a que pertence. Nesse sentido, antecipo que o ob-
jetivo principal do retorno ao Livro IV da Metafísica é apenas um recurso de ­compreensão
da forma como os axiomas fundamentais do pensamento ocidental, a estrutura predi-
cativa dos enunciados lógicos e a busca por uma essência última das coisas formam, em
Aristóteles, um único elemento que pode ser designado como a base que funda a filo-
sofia ocidental. Observo ainda que o caráter incisivo do foco que apresento nesta ­análise
justifica-se pela necessidade de apresentar um contraponto à abordagem que farei a
seguir, de questões correspondentes encontradas nas tradições indianas e chinesas.
A Metafísica propõe-nos, por um lado, uma síntese da filosofia pré-socrática e
platônica e por outro lado, uma crítica direta e sistemática a Heráclito e, como disse
anteriormente, esse fato não é secundário: ao contrário, ele nos oferece justamente a

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chave para compreender a questão central que está sendo colocada: a impossibilidade,
para Aristóteles, de admitir o caráter axiomático da impermanência e, consequente-
mente, a negação categórica da tese fundamental de Heráclito que afirma que tudo flui.
Não temos com Aristóteles a primeira crítica contundente à ideia de movimento como
o princípio de todas as coisas, como Heráclito havia pensado, pois Zenão de Eleia já
havia demostrado o caráter paradoxal dessa tese. O que a Metafísica de Aristóteles nos
apresenta como inédito é a junção da demonstração do caráter axiomático da negação
do movimento com a estrutura predicativa da lógica e a consequente conclusão da
necessidade da existência de um elemento não subjugado às regras da impermanência,
de um motor que coloca tudo em movimento, mas que não é movido por nada.
Nesta perspectiva, e como contraposição às reflexões sobre impermanência, onto-
logia e lógica, que se desenvolvem no Oriente, reitero o caráter de predicação da estru-
tura da lógica aristotélica que funda o que designo de forma geral como lógica ­predicativa
que, por sua vez seria a única possibilidade de se emitir juízos lógico-epistemológicos
válidos e verdadeiros sobre o mundo e, ao mesmo tempo, a possibilidade segura de
atingir a substância última, a essência de todas as coisa, que não está sob o jugo do
movimento: “Por conseguinte, a essência é o princípio de todas as coisas, tal como é o
princípio nos silogismos: de fato, os silogismos procedem a partir do ‘o que é’ e, aqui
neste caso, as gerações procedem a partir do ‘o que é’” (Aristóteles, 2005, p. 57).
Para fugir das armadilhas sofistas da impossibilidade de se emitir qualquer juízo
logicamente válido e verdadeiro sobre o mundo, Aristóteles, no Livro IV da Metafísica,
toma como referência inicial, para a construção de seu arcabouço argumentativo, a
necessidade de se chegar a axiomas. Este texto de Aristóteles é, inicialmente, a ­exposição
da necessidade de se definir axiomas na filosofia, como já havia sido feito na m
­ atemática;
a exposição de quais seriam os instrumentos necessários para a aquisição de tais axiomas;
e, por último, a definição do princípio de não-contradição como sendo o primeiro ­axioma
da filosofia. É fundamental ressaltar que o próprio Aristóteles nos adverte para o fato
de que o momento da aquisição de axiomas na filosofia não corresponde ao momento
inicial do próprio ato de filosofar e que a busca por axiomas já está inserida na d
­ inâmica
do pensamento filosófico e já pressupõe determinada aquisições e uma dela seria a
pressuposição de determinadas formas argumentativas válidas. Aristóteles nos adverte
da necessidade básica de conhecer as regras da silogística para a aquisição dos axiomas
filosóficos.

Quanto a tudo aquilo que alguns (entre os que foram mencionados) tentam ­estabelecer
a respeito da verdade, concernente ao modo pelo qual é preciso aceitá-la, fazem-no
devido à falta de formação nos Analíticos; de fato, é preciso chegar já sabendo previa-
mente esses assuntos, mas não buscá-los enquanto se ouve [sc. o presente curso].

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Assim, é evidente que compete ao filósofo, isto é, àquele que estuda como ­naturalmente
se apresenta qualquer essência, investigar também a respeito dos princípios silogísticos.
E convém que aquele que mais conhece a respeito de cada gênero seja capaz de e­ nunciar
os princípios mais firmes do assunto, de modo que também aquele que conhece a
respeito dos entes enquanto são entes é capaz de enunciar os princípios mais firmes
de todas as coisas. E este é o filósofo (Aristóteles, 2007, p. 18)

A busca por estabelecer os princípios básicos, a substância última e a essência das


coisas somente pode ser levada a cabo por aqueles que dominam as regras básicas do
pensamento. Abre-se aqui uma linha de reflexão sobre a questão da precedência de
determinadas aquisições para se atingir outras posteriores. Esse problema central para
a filosofia de Aristóteles é, entretanto, secundário para o que é tratado aqui. A questão
central para a comparação entre as bases originárias do pensamento ocidental e ­oriental
é a precedência do silogismo para a aquisição do caráter axiomático do princípio da
não-contradição. Temos, assim, o formato lógico abaixo como pré-requisito para aqui-
sição do principal axioma da filosofia aristotélica (ocidental).

AéB
BéC
AéC

O percurso argumentativo de Aristóteles em direção à superação da ideia do ca-


ráter axiomático do movimento, portanto, da afirmação da impossibilidade de que algo
possa ser e não-ser ao mesmo tempo, tem como base a estrutura silogística da lógica e
é um dos pilares da lógica predicativa. O princípio da não-contradição visa estabelecer
as bases que permitem o discernimento das várias formas da substância, como vemos
no Livro VII da Metafísica e, em última instância, defini-la como essência última. Temos,
assim, uma junção indissociável entre silogismo, princípio da não-contradição, definição
das várias formas da substância e essência como o sistema que permite a Aristóteles a
superação do projeto de Heráclito que afirmava a primazia da impermanência.

Assim, que um tal princípio é o mais firme de todos, é evidente; mas qual ele é, diga-
mo-lo depois disso: é impossível que o mesmo seja atribuído e não seja atribuído ao
mesmo tempo a um mesmo subjacente e conforme ao mesmo aspecto (considere-se
delimitado, em acréscimo, tudo aquilo que acrescentaríamos contra as contendas argu­
mentativas); ora, este é o mais firme de todos os princípios, pois ele comporta a defi-
nição mencionada. Com efeito, é impossível que quem quer que seja considere que um
mesmo fato é e não é – como alguns julgam que Heráclito afirmava. Pois não é neces-
sário que alguém também conceba aquilo que diz. E, dado que não é possível que os
contrários ao mesmo tempo pertençam a uma mesma coisa (considerem-se acrescen-

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tados por nós, nesta premissa, todos os acréscimos de costume), e dado que são con-
trárias entre si as opiniões contraditórias, evidentemente é impossível que um mesmo
homem, ao mesmo tempo, conceba que o mesmo fato é e não é. Pois aquele que erra
a respeito disso teria ao mesmo tempo as opiniões contrárias. Por isso, todos os que
demonstram reportam-se a esta opinião última. De fato, por natureza, este é também
o princípio de todos os demais axiomas (Aristóteles, 2007, p. 18-19).

Tratar, portanto, das bases do pensamento ocidental é retornar necessariamente a


um dos momentos mais decisivos do embate grego, que teria suplantado ­definitivamente
o caráter axiomático da impermanência e afirmado a supremacia de uma permanência
(eu) diante do horror da possibilidade de putrefação do próprio corpo. “O argumento
de Heráclito, ao afirmar que tudo é e não é, parece fazer tudo verdadeiro e isso não é
possível. Ou algo é, ou não é! De fato, há algo que sempre move aquilo que é movido,
e o primeiro que move é ele próprio imóvel” (Aristóteles, 2007, 34). Desta forma, assim
como na China e na Índia, a Grécia põe em movimento aquilo que passa a ser desig-
nado de filosofia, ou seja, estrutura uma relação intrínseca entre lógica, ontologia, lin-
guagem e verdade, com o intuito básico de resolver o grande problema da filosofia
universal: o horror da consciência do eu diante de sua própria finitude.

Vacuidade e cooriginação dependente em Nāgārjuna


Um dos mais importantes filósofos da tradição oriental é o monge budista i­ ndiano
Nāgārjuna, que provavelmente viveu entres os séculos I e III de nossa era. Sua impor-
tância se deve a vários motivos, mas destaco como principais a) o fato de ele ser o pri-
meiro sistematizador de uma estrutura logico-filosófica consistente que explica questões
centrais do budismo; b) ser o sistematizador do denominado budismo Mahāyāna, que
é uma das principais bases do Zen-budismo e c) por último, ser o fundador da Escola
Mādhyamika – Caminho do Meio- que é uma reação antimetafísica às perspectivas
“eternalista” e “niilistas” fortemente presentes nas tradições budistas de sua época, prin-
cipalmente entre os monges sarvāstivādas.
Independente das controversas sobre o grau de importância de Nāgārjuna para a
filosofia da Escola de Kyoto, faz-se imprescindível atribuir-lhe – como enumerado
anteriormente – o papel de principal sistematizador de uma das duas bases f­ undamentais
do Zen-budismo, que, de forma alguma, pode ser desconsiderado como uma referência
central na consolidação da Escola de Kyoto.
Com Nāgārjuna temos uma instigante possibilidade de interlocução com as bases
da filosofia ocidental, que nos fora apresentada em sua forma mais sistemática com a
Metafísica de Aristóteles, particularmente com o princípio da não-contradição, ­exposto
no Livro IV. Esse confronto entre Nāgārjuna e Aristóteles é, a meu ver, a possibilidade

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mais clara possível de se compreender pontos centrais que nos dão acesso às diferenças
fundamentais que alicerçam as duas maiores construções do que chamamos de ­Filosofia
Ocidental e Filosofia Oriental. Diferentemente do que faz Aristóteles, Nagarjuna nos
apresenta uma linha de raciocínio que visa, em última instância, demonstrar a inexis-
tência de uma substância última, de uma essência, de uma natureza própria que seja a
garantia inabalável da possibilidade da permanência de algo, diante do caráter avassa-
lador do domínio do movimento sobre todas as coisas. A afirmação da inexistência de
uma substância última, de uma natureza própria e da interconexão de todos os ­elementos
do mundo físico e dos conceitos não aparecem no Budismo, pela primeira vez com
Nāgārjuna, mas o formato sistematicamente claro e lógico desses dois aspectos e a
interdependência entre eles, nos são apresentadas por ele, em sua obra principal intitu-
lada Versos fundamentos do caminho do meio (Mūlamadhyamakakārikā).
É fundamental considerar toda construção teórica do Budismo, inclusive a impla-
cável dessubstancialização do método de Nagarjuna, como uma resposta ao problema
central decorrente da percepção de que a putrefação dos corpos pode atingir também
o meu “eu”. O sofrimento, mais especificamente, o grande sofrimento diante da ­percepção
da finitude é o ponto de partida, também, do Budismo e da filosofia de Nagarjuna.
O percurso de Versos fundamentais do Caminho do Meio visa demostrar a impossi-
bilidade de se encontrar algo que possa ser definido como a substância última, ou na-
tureza própria (svabhāva), que dê garantia de algum tipo qualquer de independência
permanente a qualquer ente ou conceito. À demonstração da não existência de qualquer
possível independência permanente Nagarjuna denomina sūnyatā- vacuidade – que por
sua vez é também sinônimo de pratītyasamutpāda – cooriginação dependente – e o
processo metodológico (soteriológico) de acesso à unidade entre cooriginação depen-
dente e vacuidade, enquanto elementos fundantes de qualquer tipo de realidade é o
mesmo: o tetralema abaixo:

Nem X
Nem ¬X
Nem X ˄ ¬X
Nem ¬(X ˅ ¬X )
Esta estrutura argumentativa está presente em toda obra. Porém, aparece de forma
diretamente exposta em apenas alguns capítulos, como pode-se perceber já no p­ rimeiro
de todos, em que autor introduz como questão central a desconstrução do princípio de
causalidade a partir do tetralema acima. Vejamos o capítulo I:

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I. Exame das condições

1.1 Nunca, em nenhum lugar, são conhecíveis quaisquer entes originados a partir de si, a
partir de outro, a partir de ambos, de si e de outro, e também privados de causa.
1.2 Pois a natureza intrínseca dos entes não é encontrada nas condições etc.; e, apesar de
a natureza intrínseca ser ausente, também sua natureza extrínseca não é encontrada
nelas
1.3 Quatro são as condições: causa, base objetiva, imediatamente antecedente e d­ ominante;
não existe uma quinta condição.
1.4 O poder causal não possui condições; mas o poder causal também não é desprovido
de condições; as condições não são desprovidas de poder causal, mas elas também não
possuem poder causal.
1.5 São comumente chamados “condições” aqueles entes em dependência dos quais algo
é originado; mas, enquanto esse algo não for originado, como, então, eles poderiam
não ser não-condições?
1.6 Uma condição não é logicamente possível nem de um objeto inexistente nem de um
objeto existente. Haveria condição de que, no caso de um objeto inexistente? E para
que serviria uma condição, no caso de um objeto existente?
1.7 Desde que nenhum fator último da realidade – nem existente, nem inexistente, nem
existente e inexistente – leva a cabo a produção do efeito, como, então, sendo assim,
é logicamente possível uma “causa produtiva”?
1.8 É ensinado que um fator último da realidade, enquanto ele é existente, está presente
sem uma “base objetiva”; ora, por que, então, falar ainda em base objetiva se o fator
último da realidade está privado de base objetiva?
1.9 Se os fatores últimos da realidade não são originados, sua evanescência também não
é possível; em virtude disso, não é correto falar de uma “condição imediatamente
antecedente” – e qual condição existiria em algo que cessou de existir?
1.10 Visto que a existência de entes privados de ser intrínseco não é encontrada, também
não é possível isto: se isto é, aquilo vem a ser.
1.11 O efeito não está nas condições tomadas separadamente ou interligadas entre si. Como,
pois, surgiria das condições o que não está nelas?
1.12 Ora, se esse efeito, mesmo inexistente nas condições, provém dessas condições, por
que o efeito não advém também de não-condições?
1.13 O efeito é formado por condições, mas as condições não subsistem por si mesmas.
Como aquele efeito que é formado por condições provém de condições que não
subsistem por si mesmas?
1.14 Portanto, nenhum efeito formado por condições nem formado por não-condições
pode ser estabelecido, e, já que o efeito não existe, como haveria condições e não-
condições? (Nagarjuna, 2016, p. 39-40).

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O tetralema se aplica às quatro possibilidades causais de qualquer ente, fenômeno


e a quaisquer outras possíveis coisas que possam reivindicar a necessidade de algum tipo
de causa original. Ao afirmar a impossibilidade de se defender qualquer uma das quatro
possiblidades lógicas de um enunciado, ao afirmar que há uma equivalência entre nem
x, nem não x, nem x ou não x, nem não (x ou não x) ou nem não (x ou não x), Nagarjuna
parece nos convencer da impossibilidade de se afirmar qualquer coisa sobre o mundo e
sobre os conceitos, sendo, portanto, um cético radical. Porém, o objetivo do recurso
lógico empregado por ele é demostrar a impossibilidade de se afirmar qualquer ­existência
independente, qualquer substância última, essência ou natureza própria, consequente-
mente, qualquer tipo de causa que subsista por si mesma. Neste sentido qualquer afir-
mação que vise fundamentar a tese da existência de algo que coloca tudo em m ­ ovimento,
mas não é movido por nada, é radicalmente abandonada por conduzir ao erro.
Ao afirmar a inexistência de qualquer substancialidade última de todos as coisas
Nagarjuna não defende a inexistência das próprias coisas. Ele não postula algum tipo
de niilismo ou qualquer convencionalidade referente ao mundo. Ao demonstrar a ine-
xistência de svabhāva e a consequente relacionalidade de tudo, Nagarjuna não poderia
afirmar que tais coisas não existam substancialmente, ou existam apenas convencional-
mente. Essa afirmação parece ser tão problemática quanto qualquer afirmação recha-
çada pelo próprio Nagarjuna. A afirmação de que não há uma substância última não
nos obriga a concluir que algo não exista, a não ser que se tome a substancialidade como
critério existencial. O que Nāgārjuna faz, entretanto, é exatamente demonstrar o erro
lógico decorrente de se pressupor a substancialidade como critério existencial e as de-
vastadoras consequências de tais pressuposições.
A relacionalidade que funda, portanto, o caráter de existência de um mundo não
constituído de substâncias últimas é, por sua vez, uma relacionalidade destituída de
substancialidade. A relacionalidade que pressupõe a existência de substancialidade é
o que chamo de relacionalidade relativa e, por outro lado, a relacionalidade não subs-
tancial, destituída de qualquer vínculo lógico ou ontológico com qualquer resquício
de substancialidade é o que chamo de relacionalidade absoluta. Essa distinção é fun­
damen­tal para a compreensão do conjunto de alterações propostas por Nagarjuna, ao
afirmar que as coisas são destituídas de substancialidade, que são vazias, o que signi-
fica afirmar que estão em uma relação de cooriginação dependente a partir da não
­existência de uma substância última qualquer. A pressuposição da substancialidade é
o elemento fundante e, ao mesmo tempo, o elemento constitutivo básico de uma ló-
gica que pressu­põe a distinção ontológica entre o sujeito e o predicado do enunciado.
­Nesta ­perspectiva, qualquer enunciado relacional pode ser, em última instância, redu-
zido a um enunciado predicativo e seu caráter relacional seria, deste modo, apenas

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relativo a um momento ainda posterior e, portanto, ainda passível de ser reduzido ao


momento axiomático, anterior ao relacional, necessariamente predicativo.

Vazio e cheio em Laozi

As bases da lógica chinesa já estão presentes, de alguma forma, nos principais


textos clássicos chineses, mas é no I ching, Livro das mutações que elas aparecem em sua
forma inicial e, posteriormente, com Laozi e Zhuangzi assumem seu formato mais
elaborado. Suas bases são bem distintas daquelas que possibilitaram a lógica na Grécia
Antiga e na Índia de Nagarjuna, mas é fundamental ressaltar que estruturas argumen-
tativas próximas a essas duas vertentes de pensamento também existiram na China
Antiga, onde encontramos lógicos tais como Huizi e Gon Sunlong, que podem ser
inseridos, com facilidade, no grupo de filósofos que, tanto na China quanto na Índia,
participaram do período inicial da estruturação de suas respectivas lógicas. Porém, as
lógicas de Huizi e Gon Sunlong, tidos como os principais filósofos da Escola dos Ló-
gicos na China, não serão consideradas nesta abordagem, visto que suas contribuições
para a formação do pensamento Zen-budista – uma as bases da filosofia da Escola de
Kyoto, são secundários. Abordarei aqui uma forma de lógica, definida como lógica re-
lacional daoísta, de Laozi, que, por sua vez, opunham-se radicalmente à Escola dos
Lógicos.
Diferentemente de Aristóteles e Nagarjuna, Laozi não recorre ao tradicional pa-
radigma do movimento para tratar da questão da impermanência, mas sim a uma re-
ferência relacional, que permite inferir a inexistência de qualquer substancialização,
inclusive do próprio tempo. A estrutura lógica do daoísmo de Laozi está presente em
toda tradição filosóficas chinesa e está expressa, de uma forma visual muito clara e
expressiva, no formato da figura que caracteriza o Yin e Yang. Esses dois termos podem
ser considerados juntos como o elemento que garante o fio condutor do que se pode
denominar, de forma geral, de “pensamento chinês”, pois ele está presente em todas as
grandes linhas de pensamento chinês, do I Ching às bases da filosofia chinesa atual. Yin
e Yang designam o caráter complementar de tudo e de todas as coisas e, ao extremo,
designa uma relacionalidade absoluta presente em todos os níveis de uma rede com-
posta, por sua vez, por elementos básicos que contém o mesmo modelo.

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Para exemplificar o caráter lógico desta estrutura básica e seus pressupostos não
substancialistas e não essencialistas recorro ao capítulo 11 do Dao De Jing, em que temos
uma das mais elucidativas passagens de um texto chinês sobre o caráter relacional de
Yin e Yang, presentes em todas as coisas. Neste capítulo temos, não um tratado sobre a
constituição última das coisas, sobre a aparência e a essência dos fenômenos, não encon-
tramos neste texto uma reflexão sobre a estrutura lógica dos argumentos, como temos
na Escola dos Lógicos, com Huizi e Gon Sunlong, temos sim, neste texto, um ­formato
aparentemente pueril, “não filosófico”, um formato plástico, que parece desconsiderar
a competência intelectual do leitor, que ao invés de tratados recebe alegorias. Vamos ao
texto:

trinta raios perfazem o meão


no imanifesto (無-有)o uso (有-用)do carro
barro moldado faz o jarro
no imanifesto (無-有) o uso (有-用) do jarro
talham-se portas e janelas para a casa
no imanifesto (無-有) o uso (有-用) da casa
portanto
utilizando-se o manifesto (有) útil fica o imanifesto (無).

Recorro aqui à tradução do Dao De Jing feita por Mario Bruno Sprovieiro. Insiro,
porém, alguns ideogramas originais no texto traduzido para elucidar melhor alguns
aspectos, que, a meu ver, são centrais neste texto. O capítulo 11 é composto ­basicamente
por quatro partes: três argumentos e uma conclusão. Entretanto, como já dito anterior-
mente, ele apresenta propositalmente um formato alegórico. O primeiro argumento
tem como referência uma roda, o segundo um recipiente, um jarro ou um copo, o ter-
ceiro uma casa e por último temos a conclusão, mas todos os três argumentos têm a
mesma estrutura que pode ser definida pelos termos traduzidos por Sprovieiro como
“imanifesto” “manifesto” e “uso”. Aqui temos a chave para a compreensão do caráter
lógico relacional deste texto e da presença do Yin e Yang em sua base argumentativa. O
capítulo 11 traz três ideogramas chaves que são: wu 無, you 有 e yong 用 e suas respe-
tivas combinações entre si. Wu 無 é um dos ideogramas mais importante na filosofia
chinesa e, posteriormente, um “conceito” chave na filosofia da Escola de Kyoto: signi-
fica “nada” e é um dos caracteres possíveis que formam frases negativas; you 有 é um dos
possíveis caracteres que podem ser traduzidos por “ser”, porém tem significado predomi­
nantemente existencial, podendo ser traduzido também por “ter” e “existir”; por último
temos o ideograma yong 用 que pode ser traduzido aqui por “usar”, “colocar em prá-
tica” e “empregar”.

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predicação e relação como fundamentos da filosofia da escola de kyoto

“Trinta raios perfazem o meão, no imanifesto o uso do carro”. Os trinta raios da


roda se juntam e formam seu meão, seu cubo, mas é a inexistência de algo é seu wu you
無有, traduzido por Sprovieiro por “imanifesto” que a torna um artefato que pode ser
empregado de forma útil, que faz seu o you yong 有用 do carro. Mantido os devidos
esclarecimento, poderíamos muito bem traduzir aqui wu you 無有 por “não ser”, que
é justamente o vazio do meão da roda, que permite a inserção do eixo e torna a roda,
uma roda. A relação complementar entre o vazio do meão e o preenchimento do eixo
é a exemplificação mais elementar do caráter complementar de Yin e Yang. Não temo
aqui uma pergunta pela “essência” ou pela “substância última” da roda, mas sim uma
exposição alegórica da relacionalidade complementar entre “vazio” e “pleno”, em uma
perspectiva que visa o caráter funcional do carro e, consequentemente, a recusa radical
de recursos substanciais. Os argumentos seguintes, do recipiente e da casa são amplia-
ções e esclarecimentos da mesma linha lógica.

Conclusão
Uma das questões mais polêmicas e recorrentes que aparece ao tratar da contrapo­
sição entre o caráter substancial e metafísico da lógica predicativa, e não substancial e
antimetafísico da lógica relacional é a pergunta pela “aplicabilidade” dos recursos ­lógicos
relacionais ao âmbito do conhecimento científico. De forma clara, a pergunta que
surge frequentemente diz: é possível fazer ciência a partir das bases da lógica relacional?
Independente da afirmativa ou negativa da resposta fica, como um bom exemplo que
elucida o que expus anteriormente, a análise sobre o hipotético comportamento de um
cientista moderno, por exemplo, de um físico, diante da matéria enquanto objeto de
pesquisa e diante da matéria enquanto um objeto qualquer que pertença à sua vida
cotidiana. Ao analisar, por exemplo, a constituição da matéria de um copo de vidro,
nosso físico abandonará progressivamente várias proposições predicativas com p ­ retensões
de verdade, inicialmente admitidas. Os enunciados predicativos tais como “o copo é
liso”, “o copo é impermeável” perdem, progressivamente, para o cientista, o valor de
verdade de acordo com o tipo de experiência feita por ele e de acordo com os instru-
mentos de observação que utiliza. Diante dos olhos e do tato, tais afirmações são ver-
dadeiramente consistentes, mas elas não resistem a uma observação feita com o auxílio
de um microscópio. Porém, se a análise da matéria feita pelo físico se torna mais espe-
cífica, se ele passa à análise da estrutura molecular da sílica, elemento predominante na
composição do vidro do copo e nosso cientista passa a excluir cada vez mais enunciados
predicativos do plano dos enunciados que dizem, verdadeiramente, algo sobre o copo.
A sílica, matéria básica da composição do vidro do copo é um composto químico
formado por dois átomos de oxigênio e um átomo de silício e, caso o referido físico

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antonio florentino neto

avance em sua análise da composição da matéria que forma o copo de vidro, que é
objeto de pesquisa, ele entra, portanto, no universo da composição particular de cada
átomo e suas respectivas subdivisões, o que o coloca diante de possibilidades insólitas,
tais como a de afirmar que a matéria é composta por átomos que se subdividem em
partes que estão em movimento constante. Outro ponto importante a ser considerado
é que o comportamento de cada átomo particular, que forma o composto q ­ uímico
denominado de sílica, somente pode ser rastreado a partir de suas ligações, e que, em
outro composto químico, ou em uma molécula, os mesmos átomos se comportam de
forma significativamente diferente. O oxigênio que forma o composto químico sílica é
o mesmo que forma a molécula da água, mas nos dois casos distintos, assim como em
todos os casos nos quais o oxigênio está presente, eles se comportam de forma com­
pletamente diferente, devido à ação dos outros átomos, presentes na formação dos
compostos e das moléculas. A partir deste momento não é mais possível afirmar que
proposições predicativas tais como “o copo e liso” ou “o copo é impermeável”, sejam
aceitáveis como proposições dotadas de caráter de verdade.
A matéria que compõe o copo, o objeto de pesquisa de nosso cientista, é uma
constituição relacional de elementos que estão em movimento e que não podem ser
percebidos isoladamente; que não apresentam nada que possa ser definido como sendo
sua substância última. Levar às últimas consequências as considerações que fiz sobre a
impossibilidade lógica de se emitir um juízo predicativo e, ao mesmo tempo, v­ erdadeiro
sobre o copo, parece apontar para um ceticismo que impossibilita qualquer postura
prática diante do copo enquanto objeto de análise do nosso cientista. Porém ele não
hesitaria em recorrer ao mesmo copo para tomar água e saciar sua sede, em usar o
mesmo copo em sua vida cotidiana, independente da constituição não estática da ma-
téria e das moléculas da sílica. Se recusar a lidar com o copo em sua vida cotidiana, para
finalidades práticas e funcionais, que pressupõem a aceitação apenas funcional de enun-
ciados predicativos tais como “o copo é impermeável” é não reconhecer os níveis dis-
tintos dos enunciados e suas respectivas funções.
Esse exemplo nos permite compreender o movimento de dessubstancialização dos
entes e a ruptura com o predomínio do caráter predicativo dos enunciados no plano
epistemológico do conhecimento do mundo fenomênico e nos permite também com-
preender como é possível pensar o mundo a partir dos pressupostos relacionais da va-
cuidade e cooriginação dependente do budismo mahāyāna e do caráter complementar
e também relacional do vazio e do cheio, a partir de exemplos tipicamente ocidentais,
como é o caso do comportamento do cientista que acabo de descrever.

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predicação e relação como fundamentos da filosofia da escola de kyoto

Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. 2005. Metafísica, Livro VII. Tradução, comentários e notas de Lucas
Angioni. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução no 11, IFCH, Unicamp: Cam-
pinas.
2007. Metafísica, Livro IV. Tradução, introdução e notas de Lucas Angioni. Clás-
sicos da Filosofia: Cadernos de Tradução no 14, IFCH, Unicamp: Campinas.
LAOZI. 2003. Dao De Jing, Tradução de Mario Bruno Sprovieiro. Editora Hedra: São
Paulo.
NAGARJUNA. 2016. Versos fundamentais do Caminho do Meio. Tradução, comentário e
notas de Giuseppe Ferraro. Editora PHI: Campinas.

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