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Pesquisa (auto) biográfica: cotidiano, imaginário e memória.

Org. Elizeu Clementino de Souza, Maria da Conceição Passeggi.


Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008
281 p. (Coleção Pesquisa (Auto) Biográfica – Educação)

Capítulo 2 – p.91 a 107

OS CAMINHOS DE CONSTRUÇÃO DE UMA PESQUISA SIMBÓLICA

Ecleide Cunico Furlanetto


(Prof. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICID)

Escrever um texto implica atender um chamado. Para isso, é necessário encontrar


brechas no tempo linear que nos aprisiona no território das obrigações e nos
entregarmos a outro tempo, o da criatividade. Dessa forma, iniciamos uma viagem de
descobertas e de entrega ao caminho. Reconhecer o caminho que venho traçando como
pesquisadora e coordenadora do Grupo de Pesquisa Formação e Aprendizagem Docente
apresenta-se como desafio que pretendo enfrentar ao escrever este texto.

Em busca de novas maneiras de investigar: a descoberta dos símbolos

O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige


do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as
quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles.
Fernando Pessoa

Falar de minha trajetória de pesquisadora é explicitar uma maneira de pesquisar que


busca ir além das aparências; fazer e falar disso tem sido um grande desafio. No mestrado
(FURLANETTO, 1989) `desejei entrar nas salas de aula e descobrir seus fluxos.

Estava interessada em pesquisar as brechas, os intervalos, as rupturas e os saltos que


aconteciam nos espaços pedagógicos, mas não conhecia palavras para nomear, o que
apenas pressentia. O imprevisível interrompia, criando novos fluxos, uma nova ordem
impunha-se recriando tempos e espaços [...] Na época do mestrado, buscando compreender
esses fluxos pedagógicos,
p. 91

descobri Jung, um autor considerado pouco ortodoxo e, para muitos, incapaz de


referendar pesquisas em Educação. Jung permitiu-me descortinar um mundo novo,
introduzindo-me em dimensões da realidade pouco exploradas. Ele não se referia a um
sujeito iluminista racional com uma consciência soberana, mas nos apresentava um
sujeito multifacetado e plural com aspectos inconscientes pessoais e arquetípicos
relacionando-se com o mundo exterior ampliando sua consciência com base em encontros,
desencontros, projeções, e retiradas de projeções, clareza e cegueira. (FURLANETTO,
2005, p. 206)

Nessa época, iniciei a busca por uma nova maneira de realizar pesquisa. A porta de
entrada para esse território foi o Princípio da Sincronicidade. Jung (1984) observou a existência

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de acontecimentos coincidentes que não poderiam ser explicados pela lógica causal,
demandavam outra forma de compreensão que implica compreender as conexões não
aparentes. Para Von Franz (1980), a lógica causal é linear e busca o encadeamento, causal entre
os acontecimentos, enquanto a sincronística referenda-se em um pensamento de campo que não
busca compreender por que algo ocorre, mas como e para que os acontecimentos ocorrem em
conjunto. Com base nesse princípio, é possível olhar para a complexidade do real, percebendo-
o, não com uma seqüência de fatos lineares, mas como um campo relacional, no qual os eventos
se apresentam interligados.

Uma das maneiras de tentarmos apreender a complexidade do real consiste em


abrirmo-nos para a compreensão dos símbolos. Eles apresentam-se como sinais, muitas vezes
imperceptíveis para nossa psique modelada pelos princípios da modernidade. O termo símbolo
é de origem grega, symballo, um sinal de reconhecimento, formado pelas duas metades de um
objeto quebrado que se reaproximam (LALANDE, 1996). Na Grécia antiga, para garantir que
uma comunicação recebida fosse verdadeira, os interessados em se comunicar partiam um
objeto ao meio, sendo que cada um ficava com uma parte. A mensagem era enviada com o
pedaço do emissor, dessa forma, quem recebia podia constatar sua veracidade. O símbolo era
composto de partes, temporariamente separadas, mas destinadas a se juntar novamente.
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Jung denominou a duplicidade do símbolo de bipolaridade simbólica. Segundo Jacobi


(1986), o símbolo possui uma qualidade de unificador de pares opostos, o que faz com que ele
aproxime o inconsciente do consciente, o subjetivo do objetivo, e o oculto do revelado. Ele não
é nem concreto nem abstrato, nem objetivo nem subjetivo, nem pensamento nem sentimen-
to, é ambos. Para Jacobi (1986), ao unir os opostos dentro de si, para logo deixar que se
separem, o símbolo impede que se estabeleça a rigidez, a imobilidade. Executando esse
movimento, ele mantém a vida em permanente fluxo.

Para Jung, tudo pode ser símbolo, desde que guarde um segredo que o torne vivo.
Um símbolo provoca a consciência de que, ao ser desafiado a decifrá-lo, se transforma. Para
Pieri (2002), os símbolos possuem função reveladora, na medida em que criam espaços para a
produção do conhecimento; função mediadora, pois são como pontes entre o oculto e o
revelado; função transformadora que possibilita a ampliação da consciência; e função
transcendente que estimula trânsitos entre diversos níveis de realidade. Eu acrescentaria
também uma função aglutinadora, pois um símbolo não se apresenta desconectado, ele é
como o nó de uma rede mais ampla e interligada.

É possível formar professores?

A segunda é a intuição.
A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la.
Por intuição se entende aquela espécie de entendimento
com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja.
Fernando Pessoa

Ao entrar no doutorado, optei por investigar os processos de formação de


professores. Passei a freqüentar um grupo de pesquisa e pude participar de atividades nas quais
recuperávamos nossas histórias de vida. Observei que os pós-graduandos,
p.93

ao ampliarem a consciência a respeito de suas trajetórias e dos sentidos que atribuíam a ela,
estabeleciam uma relação mais plena com seus projetos de pesquisa, o que redundava em dis-
sertações e teses que se destacavam das pesquisas tradicionais por serem singulares e criativas.
Essa experiência remeteu-me à descrição de Processo de Individuação, eixo estruturador da
obra de Jung. A individuação pode ser compreendida como:
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movimento que acontece na segunda metade da vida e implica um caminho para si que
permite ampliar o conhecimento a respeito dos trajetos existenciais com base em um
contato mais profundo com o inconsciente. Esse processo conduz a uma construção mais
sólida de identidade que reverte em um compromisso com o social, na medida em que o
indivíduo é capaz de situar-se com mais consciência nos processos da comunidade.
(FURLANETTO, 2006, p. 26)

Foi possível compreender que as trajetórias humanas se mostram como entrelaçamentos


de acontecimentos, aparentemente desconexos e que muitos deles se apresentam como símbolos
vivos que solicitam ser compreendidos. Ao mergulhar em busca dos sentidos desses símbolos,
os professores passam por processos de ampliação e transformação de suas matrizes peda -
gógicas que podem se configurar como espaços importantes de formação (FURLANETTO,
1997).

Realizei diversas pesquisas (FURLANETTO, 2000a; 2000b; 2001a; 20016; 2002; 2003;
2004a; 2004b; 2005) com vistas a dar continuidade ao caminho percorrido e a compreender os
processos de formação de professores. Paralelamente, investigava a formação de professores e
delineava alguns contornos de uma pesquisa simbólica. Para isso, fez-se necessário mergulhar
cada vez mais na obra de Jung, no sentido de ampliar a compreensão sobre os processos de
elaboração simbólica. Para Jung, os cenários analíticos não se traduzem em espaços de
"tratamento psicológico” construídos nos moldes do Modelo Biomédico. Para ele, delineiam-
se como possibilidades de encontros com a alma e de construção de sentidos para o que se
vive dentro e fora desses contextos. "A Psicologia do sonho e do comportamento humano será
de interesse geral, principalmente para as pessoas
p.94

que se dediquem à Educação" (JUNG, 1986, p. 74). Podemos traçar paralelos entre os cenários
analíticos e os cenários investigativos, pois ambos se configuram como possibilidade de
construção de sentidos para o que emerge dentro e fora de seus contornos, Dessa forma,
podemos nos apoiar no conhecimento produzido por Jung para traçar novos caminhos de
pesquisa.

Tecendo paralelos

A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe,


reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo
depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição,
como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no
alto o que está de acordo com a relação que está embaixo.
Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa
relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteli-
gência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica,
e o símbolo poderá ser interpretado.
Fernando Pessoa

Ele faz referência a um método que denomina de Construtivo Sintético. Parte do


pressuposto de que o que se constela em um processo de análise é uma configuração psíquica
nova e requer ser tratado como tal (PIERI, 2002). O que dá sustentação a essa afirmação é a
percepção de que os cenários analíticos se configuram como campos energéticos que possibilitam
a emergência de símbolos. O método construtivo afasta-se do método causal reducionista que
busca reconduzir o material àquilo que já se sabe. Para essa abordagem, o novo implica
possibilidade de abertura de pensamento. Fazendo referência a essa maneira de abordar

3
conteúdos nos espaços analíticos, Jung (1983, p. 76) diz:

Por isso o abordo como se fosse um texto desconhecido, digamos alguma coisa em grego,
sânscrito em latim, onde desconheço algumas palavras ou o texto é fragmentário [ ... ]
Se eu citar aos senhores uma passagem grega ou latina, muitos não entenderão, não porque o
texto esconda, ou dissimule, mas porque os senhores não entendem nem grego nem latim [ ... ]
Portanto, antes de mais nada, quando os senhores abordarem
p. 95
um sonho, pensem "Não entendo uma palavra do que está aqui" Recebo muito bem essa
sensação de incompetência, pois então sei que será necessário um bom trabalho em minha
tentativa de entender o sonho..

Para Pieri (2002), essa metodologia articula-se em torno de três eixos: no saber que não
se sabe; na heurística do erro; na reciprocidade do encontro. E penso que se possa
acrescentar um quarto: a inexistência de um caminho pronto. Essa forma de abordar os
conteúdos inaugura na Psicologia uma proposta de interrogação contínua do sujeito e daquilo
que se encontra frente ao sujeito.

Penetrando na obra de Jung, deparamo-nos com algumas descrições de como proceder


para elaborar símbolos. Ele faz referência ao "aproximar-se circulando" (JUNG, 1983b). Essa
maneira mais lenta de se aproximar representa a necessidade de delimitar uma área sagrada que
contém os processos de transformação e também provoca a concentração de energia.

Jung distinguia duas formas de pensamento. O pensamento dirigido, considerado como


lógico e racional, capaz de se agarrar às situações, de descrever os caminhos que trilhou e os
conceitos em que se apoiou. No entanto, fazia referência também a uma outra maneira de
pensar que denominava de pensamento não dirigido, complementar à atividade estabilizadora
do pensamento dirigido. Esse tipo de pensar desenvolve traçados não lineares que permitem
circundar idéias e objetos; tece uma teia de relações interligadas que favorece a elaboração de
símbolos, ao penetrar no mundo dos sentidos (PIERI, 2002).

Esse movimento inspirou-me a pensar que os cenários investigativos assemelham-se a


vasos alquímicos capazes de conter processos de transformação e produção de conhecimentos
novos. Cada cenário de pesquisa configura-se como um vaso capaz de acolher os processos de
investigação que emergem das relações estabelecidas entre pesquisador, sujeitos e objeto de
pesquisa.

Jung também descreve um movimento que denominou de amplificação que pode nos
auxiliar na elaboração de novas rotas de investigação. Esse movimento consiste em descobrir
os
p. 96

sentidos daquilo que se apresenta como um enigma aparentemente indecifrável. Para Jung
(1983a), o caminho da amplificação assemelha-se ao do filólogo que, ao se deparar com uma
palavra rara e desconhecida, busca localizá-la em outros textos para compreendê-la a partir do
contexto. Jung amplificava os símbolos, inicialmente, com base no repertório de seus pacien-
tes, mas, também, lançava mão dos conhecimentos produzidos pela Ciência, Filosofia, Arte,
Religião e pela Tradição para ampliar a compreensão dos símbolos. Um terceiro movimento
pode ser construído em diálogo com Jung. Ele faz referência à reconstelação que ocorre quando
é possível atingir outro patamar de consciência com base na elaboração de símbolos.

Os símbolos e a pesquisa

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A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o
conhecimento de outras matérias, que permitam que o
símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários
outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não
direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma
soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a com-
preensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser
bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o
entendimento de símbolos diferentes.
Fernando Pessoa

Com base nas pesquisas que vêm sendo realizadas no Grupo de Pesquisa Formação e
Aprendizagem Docente, que se iniciou em 1998, é possível perceber que os símbolos podem
emergir em diferentes etapas da pesquisa: na recuperação da trajetória do pesquisador, no
traçado metodológico e nos processos de produção e de análise de dados.

Os símbolos encaminham os pesquisadores ao mestrado

No Grupo, observamos que alguns pesquisadores entram em contato com


experiências nas quais alguns símbolos se constelam e são por eles instigados a procurar o
Mestrado.
p. 97

Este surge como possibilidade de elaboração do que viveram. Podemos observar esse
movimento na dissertação defendida por Biondo (2000) que ao assistir a apresentação de
Antígona sentiu-se profundamente emocionada e mesmo capturada pelo destino da protagonista.

Fui assistir, por curiosidade, a uma peça de teatro Antígona de Sófocles [...1
O mito me olhou! Ele se transformou num espelho e eu me vi refletida nele como
vi outras pessoas que conviviam comigo [...1
Nesse momento, sentia como se Antígona me fazia um convite para mergulhar no
seu drama e compartilhar sua história, pois através dela poderia compreender a
minha história. (BIONDO, 2000, p. 27-28)

Ela relatou essa experiência no Grupo e foi estimulada a aceitar o convite feito por
Antígona.

Manes (2001) transformou sua perplexidade em relação ao processo de formação das


enfermeiras em tema de pesquisa:

A visão que buscarei é a da formação das enfermeiras, mas não a visão daquilo
que se aprende nos bancos escolares e que, depois, pode ser devolvido sob
forma de provas, escritas ou orais. Estou me referindo à busca de um outro
aprendizado, sutilíssimo: aquele que transforma mulheres em enfermeiras. Para
além do conhecimento técnico-científico, percebi que algo nos havia
transformado de mulheres em enfermeiras. Algo que não nos tinha sido passado
pelas apostilas ou preleções, mas que tinha sido passado. (MANES, 2001, p.
11)

Tramarin (2005), ao cursar Pedagogia, realizou estágios nos quais presenciou cenas
que a impactaram. Ao iniciar o mestrado, expressou a necessidade de compreender o que
tinha visto e sentido. "Em algumas salas de aula, professores e alunos pareciam estar
travando batalhas pedagógicas" (TRAMARIN, 2005, p. 3).

5
p.98

Os símbolos emergem nas pesquisas

Um símbolo vivo pode surgir durante a pesquisa. Ele apresenta-se como mistério a ser
decifrado, aparece como uma tensão criativa e transformadora que, ao lançar o pesquisador no
espaço do desconhecido, possibilita desencadear processos de descoberta e conhecimento.
Muitas vezes, isso ocorre quando ele relata ou escreve sua história de vida. Observamos que,
ao entrar em contato com dimensões de seu processo de individuação, descobre que existem
questões que necessitam ser mais bem compreendidas.

Ferro (2003), corredora, obrigada a abandonar o atletismo, inspirou-se na imagem da


atleta ferida para resgatar o papel do corpo na formação do professor; Marques (2003),
Professora que coordenava estágios no curso de Psicologia, tomou a imagem do labirinto para
falar da importância da escuta simbólica na clínica psicológica; Cardoso (2003), docente do
curso de Serviço Social, partiu dos elementos da Alquimia para explicitar maneiras de exercer a
docência; Kieckhoefel. (2007) resgatou a ponte que atravessava todos os dias para ir à escola
para conceber sua pesquisa como uma nova ponte; Palumbo (2004) inspirou-se nas chaves
da casa da avó materna em Portugal para descobrir seu lugar na escola.

Levas-me todas as chaves e não poderei mais abrir ou fechar nenhuma porta. Ou refaço
todas elas ou fico com as portas trancadas. Foi o que disse o tio Manuel, do lado dos
Martins, no pequeno e singelo Trinhão, aldeia de Portugal, quando peguei as chaves da
casa de minha avó em Portugal. Como se naquele momento me apoderasse dos
significados, dos sentidos um pouco do passado, presente e futuro de minha história e
resgatasse parte de mim para conseguir viver no presente e caminhar no futuro. Que
símbolo tem essa chave na minha profissão? (PALUMBO, 2004, p. 12)

Para alguns pesquisadores, os símbolos auxiliam na definição do tema de pesquisa.


Para outros, no entanto, acompanham o pesquisador e inspiram o traçado metodológico do
estudo. Eles cumprem o papel de eixos aglutinadores que possibilitam
p.99

descortinar e explicitar o caminho a ser seguido. Muitas vezes, observamos pesquisadores


aparentemente perdidos sem saber o rumo a tomar e, ao estarem atentos às emergências
simbólicas, descobrem como delinear os procedimentos metodológicos. Brandão (2003) foi
tocada pelo desenho de uma mandala que trouxe para o grupo de pesquisa. Ao tentar
compreender sua maneira de pesquisar, relatou a diferença entre uma pesquisa "mandala” e
uma "quebra-cabeça”:

Um pesquisador abre cuidadosamente uma caixa com muitas peças para montar um
quebra-cabeça. Passa a tarde compondo o quadro desenhado na capa da caixa do
passatempo [...]
Enfim, chega o momento em que o quadro está pronto, [ ... ]
O pesquisador observa sua produção, sorri, toma distância e admira o que realizou. Num
instante posterior, espalha com as mãos as peças e desmancha o quadro [ ... ]
O pesquisador poderá voltar a fazer amanhã a mesma cena, conforme o modelo [ ... ]
Um outro pesquisador poderá tomar conhecimento de seu trabalho, valer-se das mesmas
peças e replicá-lo [ ... ]
Um pesquisador senta no chão ladrilhado do templo e à sua frente um espaço abre-se
para a construção de uma mandala de areia [ ... ]
Fica ali horas e horas até poder admirar sua mandala pronta [...]
Sorri de felicidade, pois é uma produção sua, é sua obra de arte, é a sua expressão, ou melhor,
ele e a obra são uma coisa só [ ... ]

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Pode ser que não sobre nada visível da mandala, mas tornar-se-á conteúdo de suas
vivências e lembranças. Só ele pesquisador poderá testemunhar o que passou a fazer
parte de seu mistério [ ... ]
Como investigador disponibiliza o que fez, constrói parcerias, inspira o outro a fazer sua
própria busca. (BRANDÃO, 2003, p. 34-35)

Souza (2005) pautou-se no símbolo do Mosaico para compor sua pesquisa:

Como professor fui me tornando simbolicamente um mosaicista atento às peças e


aos cacos aparentemente desconectados [ ... ] Percebo que como pesquisador,
também me aproximo desta mesma imagem. Nesta dissertação, pretendo
recolher as "pe-
p. 100

ças" de minha experiência pedagógica: os projetos de trabalho que coordenei a fim


de reconhecer os movimentos, tons, texturas e compor uma pesquisa que se
apresente como um grande mosaico, que compartilhado com outros educadores
seja capaz de ressoar e interagir. (SOUZA, 2005, p. 5)

Assim como Brandão (2003) e Souza (2005), Trindade (2004) também se apoiou
nos símbolos para traçar seu caminho de pesquisa.

Delineei esta busca inspirando-me nos procedimentos metodológicos da Alquimia


ocidental, considerado "Via Seca" e as fases principais da "Via úmida". Elas me forneceram
os elementos que possibilitaram estruturar e descrever o meu trajeto de pesquisa.

Parti da matéria-prima, que me constituiu e que me permitiu traçar a trajetória


percorrida nesses já completos 26 anos de docência, até o encontro com a
Interdisciplinaridade, quando começou um outro despertar, o início de uma verdadeira
transmutação alquímica [ ... ]

Iniciada a obra e focando meu objeto de estudo, a Química, entendi que seria necessário
buscar, nas suas origens, seu significado. Nesse movimento, percebi-me novamente como
o alquimista ao se deparar com a Nigredo, o primeiro estágio da Obra em andamento, e o
indício de que ela não tardaria a realizar-se. Aí toda a "Matéria-Prima" foi decomposta no
"negro mais negro que o negro".

A Química nascida como ciência de uma necessidade da Ciência Moderna acabou por
constituir-se na mais moderna das ciências na medida em que desconsiderando sua
história, expulsou de seu corpo teórico o conhecimento desenvolvido até então. Resgatar
os pressupostos da Alquimia mostrou-se como uma possibilidade instigante para passar à
nova fase do trabalho, a Albedo. Concluída esta etapa, a Química ganhou vida. Restava
levá-la à sala de aula, onde a obra alquímica pode se realizar. Agora não como um
sistema coerente de conceitos que pode explicar, de uma certa maneira, os fenômenos
com os quais nos deparamos. Havia atingido a Rubedo. (TRINDADE, 2004, p. 115)

Os símbolos emergem espontaneamente, não são produzidos conscientemente, eles


aparecem e aos poucos vão revelando seu potencial mediador, transformador e organizador.
Referindo-se
p. 101

ao livro Luas e Luas (THUMBER, 1999) que se transformou em um eixo estruturados de seu
trabalho, Carrenho comenta:

Luas e Luas emergiu de um espaço relacional intersubjetivo, ele apareceu sem que
tivéssemos consciência de toda sua potencialidade e tomou conta de meu trabalho,
organizando-o e só posteriormente descubro que os movimentos implícitos no contexto da

7
história nortearam toda minha pesquisa. (CARRENHO, 2003, p. 32)

Ao ler o livro de história Luas e Luas, a pesquisadora descobriu como esboçar sua
pesquisa, como o rei da história precisou consultar as crianças, além dos sábios, para resolver o
enigma que se apresentava ao reino.

Ao acompanhar as pesquisas que se desenvolvem no grupo, observamos que os


símbolos podem estruturar o processo de produção de dados. Passamos a denominar produção de
dados ao invés de coleta, pois, como dissemos anteriormente, os cenários de pesquisa
constituem-se em campos interativos nos quais os dados não se encontram disponíveis para serem
coletados, mas são produzidos com base nas interações que ocorrem nesses espaços.

Byington (2003) nos auxilia a compreender como podemos criar espaços propícios para
emergências de símbolos. Ele faz referência à utilização de técnicas expressivas; elas
favorecem a elaboração simbólica, ativando símbolos e funções estruturantes. As técnicas
expressivas convidam nosso ser inteiro a participar de processos nos quais é necessário
expressar conhecimentos. Guelfi (2000) apresentou cartões com imagens para serem escolhidas
e comentadas pelos sujeitos de pesquisa; Simone (2004) trabalhou com colagens, desenhos
individuais e coletivos; Souza (2005) utilizou-se da confecção de mosaicos para produzir dados;
Oliveira (2006) escolheu utilizar colagens e filmes como desencadeadores de reflexões.

A colagem foi escolhida por ser um recurso atrativo que produz bons resultados,
dependendo dos fins aos quais se destina. O filme "O Jarro" foi selecionado para
mobilizar nos professores aspectos de sua formação. (OLIVEIRA, 2006, p. 62)
p. 102

Silva (2007) possibilitou aos sujeitos de pesquisa, docentes de um curso superior de


Design, que se expressassem através de desenhos; para isso, apoiou-se em Shõn (2000), cujo
entendimento é que qualquer linguagem artística que venhamos a empregar é sempre uma
tentativa de explicitar e simbolizar um tipo de inteligência que é inicialmente tácita e
espontânea.

No desenvolvimento desta pesquisa os desenhos, também, constituíram-se em símbolos


que pareciam encontrar ressonâncias nas falas dos sujeitos, pois os traços, cores e formas
tornaram-se expressões complementares às suas palavras, conforme foi observado nas
atividades desenvolvidas nos encontros com o grupo focal. (SILVA, 2007, p, 73)

As atividades expressivas estimulam o pensamento não dirigido descrito por Jung,


favorecendo o movimento de circundação; esse tempo na pesquisa é muito importante, pois se
traduz em tempo de abertura à criatividade, acolhe uma maneira desregrada, desenfreada e livre
de pensar que não se compromete com as relações causais, com a realidade imediata e,
portanto, se liberta de suas regras. O pensamento não dirigido, ao anteceder o dirigido, fertiliza-
o, proporcionando a essa nova etapa material farto e rico para ser organizado.

Os símbolos e a análise de dados

Os símbolos podem auxiliar os pesquisadores a efetuar análise dos dados, na


medida em que favorecem um tipo diferenciado de análise que permite penetrar em territórios
pouco explorados pelas pesquisas convencionais. Simone (2004) fez a leitura simbólica das
colagens, desenhos, falas e construções coletivas realizadas pelos sujeitos. "O critério para
definir as emergências simbólicas foi pautado no reaparecimento reiterado de algumas
palavras nas falas dos professores, ou quando explicitavam a vivência de alguma
transformação interna significativa seja de ordem pessoal ou profissional" (SIMONS, 2004, p.
18).
8
p. 103

Tramarin (2005) pautou-se na leitura simbólica dos relatórios dos estágios; Souza
(2005) realizou, com o apoio dos sujeitos de pesquisa, a leitura simbólica de mosaicos
construídos no contexto da pesquisa. Oliveira (2006) estimulou a elaboração dos símbolos
que emergiram no contexto da pesquisa (colagens e análise de um filme). Uma mestranda fez
referência aos movimentos de circundação, amplificação e reconstelação, descritos
anteriormente, como facilitadores da elaboração de símbolos no processo de análise de
dados.

No movimento de análise, desenvolvi três etapas: circundação, amplificação e


reconstelação (FURILANETTO, 2005). A etapa da circundação consiste em uma
exploração inicial, que identifica o símbolo matricial de cada sujeito da pesquisa, o
símbolo que o envolveu e envolve em diversos territórios, que tem se constituído desde o
seu nascimento e que esteve presente nas suas relações com os alunos.
Na de amplificação explorei o potencial de cada símbolo, na busca de ampliar a
abordagem feita anteriormente. Busquei novos movimentos e/ou componentes, ainda não
considerados ou não devidamente aprofundados e na reconstelação refleti sobre o
Pertencimento por meio de cada símbolo identificado e explorado. (PERCEVALLIS,
2007, p, 55)

Nas pesquisas mais recentes, temos procurado incluir os sujeitos da pesquisa no


processo de elaboração simbólica; dessa forma, eles transformam-se em co-pesquisadores.
Essa atitude está ancorada no pressuposto de que os símbolos, ao serem elaborados no contexto
em que emergem, são melhor compreendidos. "No contexto dos grupos focais, emergiram
alguns símbolos que foram elaborados a partir da interação grupal. Os sujeitos da pesquisa
puderam participar da análise dos dados coletados na pesquisa' (OLIVEIRA, 2006, p. 25).

Silva (2007) descreve como os processos de produção e análise de dados passam a


ocorrer de forma integrada aproximando-se de uma pesquisa colaborativa.

A análise de dados pautada nos passos da elaboração simbólica não foi realizada somente
pela pesquisadora, os sujeitos da
p.104

pesquisa participaram deste processo. O que fez com que os processos de coleta e
análise de dados se articulassem.
Escolhemos elaborar os símbolos em conjunto, porque acreditamos que a participação
dos sujeitos na elaboração simbólica é de vital importância, pois os símbolos qGe
emergiram, foram produzidos no campo investigativo e os sentidos atribuídos a eles,
serão muito mais ricos e verdadeiros se forem construídos conjuntamente.
Constatamos que o processo de análise de dados se deu em 3 níveis de elaboração durante
os encontros e em um 4° nível de elaboração realizado pela pesquisadora após o processo
de produção de dados para compor a análise final.
1° nível - comentários dos desenhos realizados individualmente pelos sujeitos de pesquisa.
As produções gráficas foram realizadas e comentadas no contexto grupal.
2° nível - Os comentários foram analisados pela pesquisadora com intuito de organizar o
material para que ele pudesse ser novamente elaborado pelo grupo.
3° nível - A devolução ao grupo do material organizado propiciando novos comentários,
reflexões, ressignificando os achados.
4° nível de elaboração - A análise final da pesquisadora com base nas observações
realizadas pelo grupo e no diálogo com autores e pesquisadores que discutem processos de
formação. (SILVA, 2007, p. 75)

Na pesquisa realizada por Silva, observamos que o processo de produção e análise de


dados foi percebido pelos sujeitos como um espaço de crescimento e transformação. Ao
elaborarem em conjunto os símbolos que emergiram no contexto da pesquisa, captaram as
transformações pelas quais tinham passado, o que nos leva a pensar no potencial formativo

9
desse tipo de trabalho.

Neste processo, observamos que um novo espaço formativo teve início durante a
pesquisa, pois ao acolher os símbolos, os sentidos e as experiências do grupo outras
possibilidades de formação começaram a despontar, fomos percebendo sinais de 'partido'
nos projetos docentes, assim, foram sendo arquitetados espaços de formação com
autoria, ou seja, espaços com aderência às vivências dos sujeitos, que nomearam suas
reflexões quando expressaram:
p.105
S1: "Como isto é importante, veja só como nos expomos...".
S1: "Este trabalho aqui, nos traz muitas reflexões... fico pensando depois... vários dias".
51: "Estas reflexões surgiram a partir das nossas conversas aqui...".
S1: "Já te falei este trabalho traz muitas reflexões, a principal é retomar a fala, poder
vermos o que estamos fazendo..."
S4: " Pôxa, não tinha visto isto, eu construí!".
S2: "... mas foi uma surpresa, estava lá dentro e eu nem tinha percebido!".
S2: "Ainda resisto um pouco, apesar de perceber as mudanças, me sinto um profissional-
professor, mas preciso vestir a camisa e encarar isto: sou professor! Agora estou começando a
encarar isto...".
S3: "Estes encontros provocam mais reflexão"...
Estas declarações representam um novo movimento, composto de sinais e sentimentos que
antes eram apenas pressentidos, e que o desenvolvimento desta pesquisa fez emergir
criando espaços e dilatando brechas, que puderam dar sentido aos diferentes desenhos
formativos dos sujeitos. (SILVA, 2007, p. 77)

Como vimos anteriormente, o símbolo é bipolar, ele carrega em si pares de opostos.


Oliveira (2006), ao analisar as falas dos sujeitos de pesquisa produzidas no contexto do grupo
focal, localizou alguns pares de opostos que foram reapresentados ao grupo para serem
elaborados. Podemos destacar como exemplo: professor idealista/realista; professor
completo/incompleto; professor lutador/pacificador; professor emoção/razão; professor
transmissor/formador; e professor distante/amigo. O processo de elaboração simbólica
proporcionou aos professores oportunidade para circundar, amplificar e transcender as pola -
rizações, favorecendo a ampliação da consciência a respeito do que é ser um professor.

As pesquisas mais recentes realizadas no Grupo têm observado a presença de redes


simbólicas. Elas apresentam-se como campos energéticos que articulam símbolos. Uma
pesquisadora fez referência a esse processo:

A linguagem simbólica, aqui considerada como expressão do pensamento, da


experiência e da transcendência, também contemplou a rede de relações entre o símbolo
matricial e os símbo-
p.106
los com os quais se relacionou, ou seja, considerou cada símbolo em sua rede de significados.
(PERCEVALLIS, 2007, p. 54-55)

Padilha (2007) observou:

Os eixos que emergiram do estudo piloto e que estruturaram a realização das entrevistas,
também elaboraram a análise de dados. Como descrevemos anteriormente, a análise de
dados apoiou-se em uma leitura simbólica. Para efetuar esta leitura, lemos o material das
entrevistas diversas vezes, buscado em cada eixo temático localizar uma rede simbólica que
desse sustentação aos depoimentos dos professores. Os símbolos em conjunto expressam
uma maneira de olhar e pensar que está constelada em determinado momento.
(PADILHA, 2007, p. 113)
Ao atender ao chamado, foi possível retomar a trajetória percorrida. Um longo
caminho foi trilhado no sentido de inventar uma maneira plausível de pesquisar. Não
nos encontramos mais sob o domínio da Ciência Moderna que nos impõe a
descoberta da verdade, mas vivemos uma época de passagem que nos desafia a buscar
o intangível, o que se mostra ocultando. Ao terminar, dialogo mais uma vez com
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Fernando Pessoa. Ele nos remete a uma quinta qualidade necessária para compreender
os símbolos.

A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é


a graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito,
falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do
Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas,
que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que
delas usam, falando ou escrevendo.
Fernando Pessoa, Mensagem

p.107

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