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COSMOVISÃO INDÍGENA E

AFRICANA
AULA 4

Prof. Awaju Poty


CONVERSA INICIAL
Neste quarto momento do nosso curso, focaremos a cosmovisão das
principais nações africanas.

A África é continente grande demais e múltiplo em demasia em suas


expressões culturais. Por isso, convém, para um estudo da sua cosmovisão,
nos limitarmos a algumas regiões daquele continente. Assim, também devemos
levar em conta que, para o estudo da sua cosmovisão, faremos algumas
delimitações. Seguiremos na perspectiva do tempo e da influência causada no
decorrer da história do continente, detendo-nos em alguns aspectos que se
destacaram e pontuando com seu tom o presente, como a indelével marca
cultural causada pelos impérios do Gana, Mali e Songai, que tiveram sua
existência entre os séculos X e XV de nossa era, e seus desdobramentos na
contemporaneidade. Segundo Oliveira:

A Cosmovisão Africana não surge fora do espaço e do tempo. Pelo contrário, é


analisando a história da África que podemos identificar sua dinâmica
civilizatória e a formação de sua Cosmovisão.

Não foi por acaso que os três grandes Impérios Africanos surgiram entre o
Saara e a Savana (impérios do Gana, Mali e Songai que tiveram sua existência
entre o século X e XV de nossa era). Além dos interesses econômicos e
religiosos, há explicações político-culturais.

Ao sul da África temos outros tipos de organização social e política dada a


tradição de povos como os yorubás, por exemplo, que organizavam-se
politicamente em torno de cidades-estado. Urbanizados, os yorubás detinham
a arte da metalurgia e podiam proteger-se em unidades políticas menores e
independentes. Já os povos da faixa Saara-Sahel, habituados ao nomadismo,
construíram os grandes impérios somente quando foi necessário combater a
progressão árabe.

Para compreender a África não é possível dividi-la apenas


geograficamente, pois a secção é também cultural, é bem distinta a África de
influência árabe da África tradicional, com suas cosmovisões de aspecto
xamanístico:

Enquanto na África do Norte a formação dos impérios está imbuída da


concepção de mundo árabe, onde existe a imposição de uma verdade religiosa
(islão) e econômica (modo de produção árabe), gerando uma política de
dominação, na África ao sul do Saara ocorreu outro processo –inédito-, onde
as etnias de territórios circunvizinhos especializavam-se em funções produtivas
(agricultura, caça, pesca, pastoreio, metalurgia), enquanto que a etnia
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autóctone era apenas dona da terra, dividindo o governo político e militar com
as etnias que chegavam. Isso gerava uma política de cooperação. (Oliveira,
2013, p. 5-8).

A história da África tem início antes da história do Egito, cuja


população era negra, e não branca, como é comumente apresentado no
cinema. Antes mesmo do Egito já temos história na África, e uma pré-história
que se perde no tempo. Porém, para o estudo da cosmovisão e dos elementos
formadores dessa cultura, e de seus desdobramentos na maneira de ver o
mundo dos africanos da diáspora, dispersos pelo mundo, iniciamos a
apreciação a partir dos três grandes impérios.

CONTEXTUALIZANDO
Quem não gosta de samba?

Se você não foi à Bahia, então vá!

Se você é morador de uma dessas frias cidades da Região Sul que não
têm carnaval, e se você nunca pôde ir à Bahia, basta ouvir o rádio ou assistir,
pela televisão, a um desfile alegórico, a uma roda de samba ou à apresentação
de um grupo de música popular, ou ainda algum ícone de nosso cancioneiro
popular, como Gilberto Gil ou Milton Nascimento, para tomar contato com a
exuberante cultura de matriz africana que temos no Brasil. Os
afrodescendentes, com sua riqueza cultural, fazem a alegria que contagia a
nossa nação. Seus dias de festa são dias de comemoração por todo o Brasil, e
em tudo se manifesta sua beleza: nas vestimentas, nas cores, nas formas, nos
sabores que dão gosto à vida cotidiana dos brasileiros.

Se você não colocou uma arruda atrás da orelha para curar mau-olhado,
não saúda seu amigo desejando-lhe um bom “axé” e nunca comeu um
saboroso acarajé, está perdendo a oportunidade de fazê-lo. Graças à cultura
de matriz africana, você pode encontrar todas essas maravilhas em muitas
esquinas de nosso país e pode receber de um amigo afrodescendente ou não
um benfazejo desejo de bom “axé”.

TEMAS

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Após essa breve explanação, agora é importante destacarmos os
elementos que estruturam as sociedades africanas, pois são elas que nos
permitem afirmar que entre as culturas africanas há uma estrutura comum que
as identifica como uma matriz cultural.

Escolhi cinco elementos fundamentais que compõem a cosmovisão


africana para estudarmos e compreendermos essa concepção de mundo. São
eles:

1. Concepção filosófica africana.

2. O Universo africano.

3. A Força Vital.

4. A morte.

5. A ancestralidade.

TEMA 1 - CONCEPÇÃO FILOSÓFICA AFRICANA


Na concepção ocidental, o pensamento filosófico tem sua origem na
Grécia, e toda outra forma de pensar filosofia que não esteja firmada nessa
tradição não deve ser considerada válida. Essa forma de conceber filosofia
está sedimentada sobre um preconceito que não se sustenta, na medida em
que a própria filosofia grega tem sua origem na filosofia sânscrita, que a
antecede em milênios.
É possível que a filosofia africana seja mais antiga que a filosofia grega
e, é claro, muito mais antiga que a filosofia europeia que a sucede, obviamente.
Principalmente se levarmos em consideração que o alto Egito era negro e,
como já referimos, o Egito é um país africano e negro antes da invasão árabe.
A filosofia africana tem muita originalidade e pode contribuir muito para o
pensamento contemporâneo, principalmente no que se refere ao resgate de
uma cultura humanista, voltada para a solidariedade e para com o respeito à
natureza. Vejamos alguns aspectos dessa filosofia de vida:

Um importante elemento que encontramos na maioria das


populações africanas é a não separação entre natureza e política,
poder e religião, ou seja, não há uma estratificação entre estas
camadas importantes da vida da sociedade. Tudo é visto de acordo

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com o princípio da integração, onde os vários elementos se
comunicam e se complementam.

Outra realidade que gostaríamos de identificar é o caráter da


integração social que a visão de mundo africana possibilita. Exemplo
disso é que a urbanização não é anti-ecológica – veja que os palácios
centrais se situavam no meio das florestas sagradas -; outro exemplo,
é que nesse tipo de organização social-religiosa, o sujeito não é
individuado – como vemos por exemplo, no ocidente, a partir do
esquadrinhamento da ciência, mas faz parte de um todo integrado,
isto é, o sujeito é visto como parte do todo.

Os ritos de iniciação (socialização) são coletivos, e esta é uma


característica fundamental nos três Impérios Africanos pois aí, a
construção do sujeito dá-se fundamentalmente no processo religioso.
A iniciação forma coletivamente a pessoa para a sociedade africana.

A, nisso tudo, uma sabedoria profunda. A força sagrada é eminente à


natureza. Os elementos (biorritmo) são determinados por essa
conjugação. Oliveira, 2013, p. 15)

A projeção de um mundo que tem um fim escatológico, autodestrutivo, é


fruto de uma imaginação doentia, a projeção de um sentimento de aniquilação,
que nos está levando, de fato, a criar artefatos e condições de realizar essa
loucura. Nessa linha de pensamento, a contribuição da filosofia de vida africana
pode trazer um diagnóstico de sanidade para o pensamento ocidental.
Pode nos ajudar a lembrar que somos parte da natureza, e que sempre
que um rio, uma floresta, ou até mesmo um animal é destruído, nós como parte
de um todo estamos morrendo, isso para não dizer de nosso próprio
semelhante.

TEMA 2 - O UNIVERSO AFRICANO


O Universo africano é compreendido como manifestação do invisível,
como parte de um todo interligado em múltiplas interações com o humano.
Onde “o visível constitui manifestação do invisível. Para além das aparências
encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das aparências se
manifesta” (Ribeiro, 1996, p. 39).
Para explicar a interdependência de todos os seres, Ribeiro relata uma
narrativa mitológica que conta a origem do homem e do Cosmos criados pelo
grande Deus Maa Ngala:

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Não havia nada, senão um Ser. Este Ser era um vazio vivo a incubar
potencialmente todas as existências possíveis. Tempo Infinito era a
morada desse Ser-Um. O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-Ngala.
Então, ele criou ‘Fan. Um ovo maravilhoso com nove divisões no qual
introduziu os nove estados fundamentais da existência. Quando o
Ovo Primordial chocou dele nasceram vinte seres fabulosos que
constituíram a totalidade do universo a soma total das formas
existentes de conhecimento possível. Mas, aí nenhuma dessas vinte
primeiras criaturas revelou-se apta a ser o interlocutor que Maa-
Ngalahavia desejado para si. Então, tomando uma parcela de cada
uma dessas vinte criaturas misturou-as. E, insuflando na mistura uma
centelha de seu hálito ígneo, criou um novo ser – o Homem – a quem
deu parte de seu próprio nome: Maa. Assim, esse novo ser, por seu
nome e pela centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio
Maa-Ngala. (Ribeiro, 1996, p. 40-1)

Este mito ilustra como a relação simbiótica do mundo natural com o


mundo sobrenatural compõe a essência do homem. A humanidade participa da
natureza divina e é dependente e interligada com todas as coisas existentes e
está intimamente unida a todos os elementos da natureza e ao seu criador. É o
resultado da interação de todos os elementos vegetais, minerais e animais.
Fan, o Ovo Primordial, traz em si o mundo que estava por vir. É a
representação dos elementos que compõem o Universo africano. Os vinte
seres são os estados da criação que antecedem a humanidade, da qual ela foi
criada, ou seja, são os elementos que nos compõem. O seu hálito ígneo é a
própria “Força Vital”, a parcela divina que é insuflada no humano-ser.
Assim, a humanidade, pela própria nominação, faz parte da divindade e
dela possui o hálito ígneo, que a faz interlocutora com Maa-Ngala e com ela
partilha a responsabilidade da manutenção, renovação e cocriação do
existente.

TEMA 3 - A FORÇA VITAL


Quase sempre se associa a categoria “Força Vital” ao povo Banto.
Porém, está comprovado que muitos outros povos da África também possuem
esse conceito. Podemos encontrar pesquisas como a realizada por Fábio Leite,
que encontrou esse conceito também entre os senufos, na África setentrional.
Segundo Leite, a Força Vital “refere-se àquela energia inerente aos seres que
faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo separação possível entre
as duas instâncias, que dessa forma, constituem uma única realidade” (Leite,
1984, p. 34).

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A Força Vital é um dos conceitos mais característicos da matriz africana,
não tanto pelo caráter de estruturação como é o papel principal dos cultos à
ancestralidade, porém tem a força do matiz, da marca de distinção. É a crença
motora de toda uma certeza de vitalidade na existência e de possibilidade de
recorrência no soerguimento da vida, na medida em que ela é a energia
primordial.

A Força Vital como vitalidade universal é capaz de individualizar-se


nas relações entre o homem e a natureza. A profunda relação
daquele com esta está nela sedimentada, uma vez que ela é a força
capaz de gerir tal relação. Essas relações não se restringem apenas
à relação homem-natureza, mas também incide sobre a realidade
social bem como sobre a relação do Homem com o sobrenatural.

Ela é, portanto, uma das categorias mais importantes que estruturam


a cosmovisão africana, pois ela é tomada como fonte primordial da
energia que engendra a ordem natural do universo e atua de maneira
específica em cada sociedade deste continente. “A origem divina da
força vital e a consciência da possibilidade de sua participação nas
práticas históricas explicam a notável importância que lhe é atribuída
e, não raro, a sacralização de várias esferas em que se manifesta.
(Leite, 1984, p. 34)

Para compreendermos o conceito de “Força


Vital”, temos de concebê-la como sendo a manifestação da criação e da
sustação da vida em todos os seus aspectos. O declínio da Força Vital
representa o próprio declínio da vida, assim como sua fartura representa a
abundância de vida. A Força Vital em desequilíbrio é doença, desgraça ou
morte, por isso há todo um trabalho para mantê-la em equilíbrio satisfatório.

A Força Vital não abrange apenas a relação do Homem com a


natureza. Ela abarca todos os seres, sejam eles minerais, animais ou
vegetais e “estabelece individualizações que se hierarquizam
segundo as espécies e faz a natureza povoar-se de forças ligadas
aos seus mais variados domínios. (Leite, 1984, p. 35)

Segundo Fábio Leite (1984, p. 35),

deve-se ressaltar o fato de que o preexistente é quem cria o mundo.


Ao criá-lo, injeta nele sua sacralidade que é a Força Vital. Assim,
cada ser criado passa a possuir a Força Vital e deve mantê-la no
transcurso de sua vida individualizada. Tais desdobramentos, de
certa forma, multiplicam a Força Vital inicial e dão vitalidade a todos
os seres do universo. Ela constitui-se, então, como a parte mais
íntima da materialidade dos seres criados pelo preexistente. Dessa
forma, a elaboração contínua do mundo é também tarefa do homem
nesse intercâmbio privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo
ações transformadoras ao criar o ser humano no âmbito de sua

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competência, assim como aqueles elementos ligados à organização
da sociedade (Oliveira, 2013, p. 20).

O conceito de “Força Vital” é muito importante por conectar-se com


outros conceitos, dando-lhes sentido, pois é na sua incorporação por parte de
uma comunidade, ao absorver um ente que parte para o pré-existente, que o
culto à ancestralidade ganha sentido. Também na técnica de manutenção do
equilíbrio social e ambiental é que a educação ambiental é salientada, no
sentido da manutenção da “Força Vital”.

TEMA 4 - A MORTE

Dentro da visão de mundo e de seu sistema de crenças, os povos


africanos acreditam que a alma continua a existir após a morte física. Por isso,
nesse sistema os ritos funerários ganham grande importância. Como
consequência, “a morte apresenta-se como fator de desequilíbrio por
excelência pois promove a dissolução da união vital em que se encontram os
elementos constitutivos do ser humano, estado esse que faz configurar a
existência visível” (Leite, 1984, p. 43).

A crença na vida após a morte, a observação de que o corpo é


reintegrado na natureza, a concepção de que o falecido passa a integrar o
panteão dos ancestrais, faz da morte um fator positivo na medida em que a
perda é transformada em um ganho, pois o falecido não deixa seus familiares.
Ao contrário, torna-se um protetor, e sua contribuição continua no reino do
invisível e preexistente.

Os ritos funerários fazem ver aos africanos os elementos que


extrapolam a própria morte, ou seja, a participação do indivíduo morto
no plano do sagrado - no seio dos ancestrais. Além do mais, toda a
sociedade participa e é testemunha da distribuição da energia vital da
pessoa que morreu para os elementos naturais, como a terra que
abrigará seu corpo.

A vitalidade da pessoa morta é transferida para os elementos naturais


que vão contribuir para a vida da comunidade. De certa forma, a
morte de um indivíduo é o aumento da força da comunidade já que
sua energia volta-se para ela fortalecendo os elementos naturais
essenciais para a vida do grupo.

Quanto ao indivíduo que morreu ele passa, por causa da


imortalidade, a fazer parte de um outro plano onde estão os
ancestrais – a não ser que ele volte para a comunidade-, onde sua
energia vital fará parte agora do zamani. (Oliveira, 2013, p. 27-28).

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Fica claro que o sistema de crenças que sustenta a cosmovisão africana
conforta a comunidade ao afirmar que o falecido está próximo, embora não
visível aos olhos comuns, e que ainda está mais íntimo na dimensão do
sentimento. Essa concepção garante o reequilíbrio da perda gerada pela morte,
pois ela se integra ao conceito da preservação da Força Vital, tendo em vista
que ela, a Força Vital, permanece no seio da comunidade.

Segundo Fábio Leite (1984, p. 44):

Esses fatores explicam a notável importância conferida às cerimônias


funerárias que, se em parte podem ser consideradas como ritos de
passagem, de outra se constituem em ritos de permanência, pois
delas nascem os ancestrais”.

Os ritos funerários têm importância fundamental no


restabelecimento do equilíbrio social. Eles não atuam somente no
plano psicológico; mas revelam também “a capacidade de a
sociedade dominar a desordem provocada pela morte e dar
continuidade à vida ao elaborar o ancestral, fazendo com que a
imortalidade do homem se configure de maneira precisa e em relação
vital com o grupo social.

Nessa concepção da morte, não temos o pesar, senão o sentimento de


permanência de uma presença com relação à pessoa que agora se encontra
novamente no preexistente. Não há a tristeza da ausência, apenas da não
existência neste plano, mas de certa forma ganha-se ainda uma presença mais
enraizado no ser, pois encontra-se dentro de nós mesmos, onde nosso espírito
habita.

Podemos ver que os ritos funerários são ao mesmo tempo de


passagem e de permanência. De passagem, pois direcionam o
destino de seus mortos para a imortalidade entre os ancestrais. Têm
a função, portanto, de harmonizar o desequilíbrio causado pela morte
de um membro da comunidade.

O ritual funerário transforma o morto num ancestral - aqui estamos


diante de um ritual de permanência. Sua vida fora desfeita, mas sua
força vital, não. Ela volta para a comunidade, alimentando-a. Sua
morte é sinal menos de perda que de ganho. A comunidade, com
efeito, perde um membro, mas ganha sua energia vitalizante. O
indivíduo desaparece; a comunidade cresce. A força vital que dantes
o habitava, reside agora na sua família, entre os membros de sua
linhagem.

A família é, sem embargo, o núcleo comum onde o africano pode


vivenciar seu universo, alimentar sua força vital, interagir no tempo
com as pessoas e as divindades, aprimorar seu sistema de

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socialização, dominar a palavra e preparar seus ritos, tanto iniciáticos
como de passagem ou permanência. (Oliveira, 2013, p. 27-28)

A morte não causa medo nem sentimento de perda, e o sistema africano


de crença até superlativa a morte, não no sentido Tana tônico, mas afetivo.
Não há um desejo de morte, mas uma reverência e uma certeza na
imortalidade, então a morte passa a ter uma naturalidade, como no trajeto de
uma viagem para próximo.

TEMA 5 - A ANCESTRALIDADE

Praticamente em toda a África, temos o culto aos ancestrais como um


fenômeno preponderante. Marco Aurélio Luz (1995, p. 93) ressalva que: “Um
dos aspectos invariantes da religião negra é a existência do culto aos
ancestrais. Tanto a tradição nagô como a jeje e a congo-angola, que cultuam
as forças cósmicas que regem o universo, se complementam com o culto aos
ancestrais”.

Muitas vezes se confunde a importância dos rituais fúnebres com a do


culto aos ancestrais, por ser a cerimônia fúnebre a porta de entrada para uma
nova situação de ser, porém, sem dúvida, o culto aos ancestrais é a pedra de
toque de toda a sistemática cultural africana e é preponderante na cosmovisão
que a determina.

Essa constante na cultura africana e na cultura negra em geral é a


pedra fundamental da cosmovisão africana, pois o culto aos
ancestrais sintetiza todos os elementos que a estruturam. Aliás, aqui
o movimento é o inverso: a cosmovisão africana retira do culto aos
ancestrais praticamente todos os seus elementos.

Desde a complementaridade dos gêneros, até o caráter coletivo dos


rituais africanos, o culto aos ancestrais preserva e atualiza, da melhor
maneira possível a originalidade e a genuinidade dos elementos
estruturantes da cosmovisão africana. A concepção de universo, da
força vital, da morte, etc., estão nele contemplados. Sua dinâmica
perpassa desde o caráter mais eminentemente religioso até seu
caráter de produção. A relação entre a vida e a morte é singular; a
relação entre o Homem e a natureza e entre o Homem e as
divindades são emblemáticas, ou seja, tudo o que se passa nos
cultos aos ancestrais está presente, de maneira geral, no que
estamos chamando de cosmovisão africana. O que equivale a afirmar
que a cultura negra, em África ou fora dela, deve muito de sua
estrutura, de seu fundamento, ao culto dos orixás. (Oliveira, 2013, p.
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Para compreendermos a ancestralidade, devemos pensar em uma
árvore que cresce em direção ao infinito. Nascemos de dois, que nasceram de
quatro, que nasceram de oito e assim vamos acrescendo até o infinito. O
infinito é o preexistente, e os primeiros que existiram são os mais próximos e
íntimos da força da criação.

Em relação à tradição nagô no Brasil há três categorias de culto aos


ancestrais: Os Esa, os Egungun e as Iya-mi Agba. Segundo Marco
Aurélio Luz (1995, p. 93) todas as três “estão englobados no conceito
de ara-orun, habitantes do orun, do além”.

Os Esa “são considerados os ancestrais coletivos dos afro-brasileiros.


Seu culto se refere à comunidade em geral e não se caracteriza pela
pertinência a uma família ou uma linhagem” (Luz, 1995, p. 93).
Apesar de tanto em África quanto no Brasil a linhagem tradicional
possuir valor inestimável, os Esa se destacaram por seu trabalho
junto às comunidades, e é a elas que eles vão servir e ajudar, e não
às suas famílias de origem.

Enquanto os Esa têm manifestação coletiva os Egungun têrm


manifestação individuada. Além dessa diferença há outra: a
representação do espírito individualizado, o Egungun, caracteriza-se
pela aparição no aiyê. Os Esa, por sua vez, não têm essa
propriedade de espírito individualizado e não se manifestam no aiyê.
(Oliveira, 2013, p. 34)

Os ancestrais do início dos tempos são pais de todos, pois estão na


origem de tudo, sua história é comum a todos e pertencem aos mitos
compartilhados por toda a comunidade, diferentemente dos mais recentes, dos
que faleceram ainda em nossa existência e que se restringem ao panteão
familiar. Temos ainda a distinção de gênero, e seus atributos.

O culto dos Egungun é o culto dos ancestrais masculinos, “originário


de Oyó, capital do império nagô, foi implantado no Brasil no início do
século XIX” (Luz, 1995, p. 95). Seus principais terreiros, e hoje em dia
praticamente os últimos, se encontram na Ilha de Itaparica, na Bahia.

Segundo Marco Aurélio Luz (1995, p. 95-6): “Os Egungun


concretizam um valor característico da cultura negra, que é a busca
da expansão da existência pelo homem negro através das
homenagens e lembrança eterna mantida pelos seus descendentes,
uma vez o espírito preparado e ritualizado através da religião”.

Os iniciados no culto aos ancestrais Egungun têm a certeza de que


tanto a vida como a morte é uma e a mesma coisa. Eles acreditam
que vão continuar existindo em outro plano, e ligados sempre à sua
territorialidade, à sua família, à sua linhagem. (Oliveira, 2013, p. 34)

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O culto aos ancestrais traz uma conotação estruturante na medida em
que reorganiza o desequilíbrio causado pela ausência que a morte traz. De
acordo com esse conceito, a morte não propicia uma ausência, mas apenas
desloca a presença para outro plano, que por sinal não é distante; muito pelo
contrário, emocionalmente ainda está mais próximo do que o seu estado em
vida.

FINALIZANDO

Para compreender a cosmovisão africana, é importante termos em conta


que, para eles, não há separação entre os vários elementos constitutivos de
suas vidas; todos os fenômenos fazem parte de uma mesma existência, a
natureza faz parte do social, a vida faz parte da morte.
O que não se pode confundir é a noção de separação com a de
distinção, pois o africano vê o mundo como um todo, ou seja, não há
separação, todos fazem parte de uma mesma existência, o que não significa
que não faça distinção entre os elementos constitutivos de sua vida.

Para o africano, “o visível constitui manifestação do invisível. Para além


das aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das
aparências se manifesta” (Ribeiro, 1996, p. 39). Também é bastante importante
levar em conta que é o mundo é criado a partir do preexistente e, ao criá-lo,
injeta-se nele sua sacralidade, que é a Força Vital (Leite, 1984, p. 43).

Na cosmovisão africana, a divindade engendra o mundo, colocando nela


sua própria força de vida. Ela gera e é gerada no existente, a partir da sua
preexistência não manifestada.

“A morte apresenta-se como fator de desequilíbrio por excelência, pois


promove a dissolução da união vital em que se encontram os elementos
constitutivos do ser humano, estado esse que faz configurar a existência
visível” (Leite, 1984, p. 43).

Quando ocorre a morte, o existente volta ao preexistente, e não ao não


existente, e compreender isso é determinante, pois o africano crê na
imortalidade da alma.

No momento do falecimento e da liberação da “Força Vital”, não ocorre o


desaparecimento, mas o aparecimento em outra realidade, do invisível à
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percepção cotidiana, dos afazeres corriqueiros, para uma realidade dilatada e
ampliada, pois a “Força Vital” é multiplicada pelos sentimentos de incorporação
na coletividade.

Em síntese, poderíamos dizer que, em sua concepção filosófica, o


africano não separa natureza e política, poder e religião, bem como concebe o
seu Universo como manifestação do invisível, como parte de um todo que se
encontra, em múltiplas interações, interligado com o humano.

A “Força Vital”, no entanto, está diretamente inter-relacionada com a


morte e com o culto à ancestralidade; temos de concebê-la como sendo a
manifestação da criação e da sustação da vida em todos os seus aspectos. No
momento da desintegração da matéria e do retorno da Força Vital ao
preexistente, temos a morte.

Esse fator implica um rito de passagem de fundamental importância que


acontece nas cerimônias funerárias, que, se por um lado podem ser vistas
como rito de passagem, por outro também podem ser vistas como rito de
permanência, pois dela nascem os protetores das famílias e da comunidade,
ou seja, os ancestrais, que continuam a existir junto aos seus, mas somente
em outro plano. Dessa maneira, as sociedades africanas perpetuam sua
cosmovisão em um incessante transformar-se e renovar-se, mantendo sua
“Força Vital”.

REFERÊNCIAS
LEITE, F. Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. In: Introdução
aos Estudos sobre África Contemporânea. São Paulo: Centro de Estudos
Africanos da USP, 1984.

LUZ, M. A. Agadá: dinâmica da civilização africana-brasileira. Salvador: Centro


Editorial e Didático da UFBa: Sociedade de Estudos da Cultura Negra no
Brasil, 1995.

OLIVEIRA, E. Filosofia da ancestralidade. Disponível em:


<https://filosofiadaancestralidade.files.wordpress.com/2013/02/cosmovisc3a3o-
africana-no-brasil-eduardo-oliveira.docx>. Acesso em: 23 mar. 2017.

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RIBEIRO, R. Y. Alma africana no Brasil. Os iorubás. São Paulo: Oduduwa,
1996.

SANTOS, G. A. A invenção do “ser negro”: um percurso das ideias que


naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de
Janeiro: Pallas, 2002.

Leitura obrigatória da disciplina

SANTOS, G. A. A invenção do “ser negro”: um percurso das ideias que


naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de
Janeiro: Pallas, 2002.

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