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Chavões e realidades

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 6 de outubro de 2015

Chavões, frases-feitas, clichês, estereótipos ou como se queira chamá-los existem para que o sujeito que
não pensou num assunto possa obter a concordância imediata de outro que também não pensou.
Onde quer que você ouça ou leia um desses maravilhosos substitutivos do pensamento, pode ter a certeza
de que está assistindo a um encontro de dois corações que se apóiam e se reforçam mutuamente sem
nenhuma interferência do objeto sobre o qual fingem estar conversando.
Por exemplo, quando um cidadão afirma: ―Esquerda e direita são conceitos superados‖, o que ele quer
dizer é: ―Eu sou superior a essas coisas.‖ O ouvinte, mais que depressa, responde: ―Eu também.‖ E saem
os dois muito contentes da sua superioridade, enquanto as duas forças inexistentes continuam a disputar o
governo, xingar-se uma à outra, boicotar-se mutuamente e até trocar tiros, como se existissem.
A verdade é que nenhum fato ou coisa deste mundo, por pequeno e modesto que seja, se deixa apreender
na linguagem dos chavões. Estes não têm nada a ver com a descrição de realidades, mas apenas, na mais
bem sucedida das hipóteses, com a expressão da harmonia ou desarmonia entre as almas do falante e do
ouvinte.
Isso é assim pela simples razão de que nenhuma realidade vem junto com a linguagem pronta que a
expressa, mas em cada caso a sua descoberta requer a invenção da linguagem apropriada para expressá-
la.
É por isso que os autores de grandes descobertas na filosofia são também inventores de linguagens
originais. Conforme o talento literário de cada um, elas podem ser límpidas e claras como as de Platão ou
Leibniz, ou então abstrusas e indecifráveis como as de Kant ou Heidegger, mas sempre originais, únicas e
adequadas aos seus fins.
O chavão é, por excelência, a linguagem do auto-engano que busca transmutar-se em engano alheio, se
possível em engano geral. É a linguagem de quem fecha os olhos ao objeto e os arregala para ver a
reação do ouvinte. O pobre do objeto, do assunto, da questão, fica fora da conversa como um mendigo
que espia pela janela do Ritz.
Se voltamos ao exemplo acima e, em vez de participar da deliciosa harmonia entre o falante e o ouvinte,
voltamos os nossos olhos ao objeto da conversa, em cem por cento dos casos notamos que ele é bem
diferente do que o imaginam aqueles que nem mesmo tentaram imaginá-lo, mas se limitaram a usá-lo
como pretexto de um intercâmbio social.
Desde logo, se há pessoas que se dizem de esquerda ou de direita e que agem politicamente sob essas
bandeiras, é evidente que esquerda e direita existem como agrupamentos políticos reais que sob esses
nomes se reconhecem e por eles distinguem os ―de dentro‖ e os ―de fora‖.
Se suprimimos os nomes teremos de designá-los por outros da nossa própria invenção, nos quais os dois
grupos não se reconhecerão e que só servirão para complicar o vocabulário.
Como autodenominações de grupos políticos e símbolos da sua identidade, os termos ―esquerda‖ e
―direita‖ não estão superados de maneira alguma. Expressam uma realidade sociológica inegável.
Faz um pouco mais de sentido dizer que seus respectivos discursos ideológicos foram ultrapassados pelo
desenvolvimento crescentemente complexo do estado de coisas, que nenhum deles expressa
corretamente.
Teremos, com isso ―superado os conceitos‖ de esquerda e direita? De maneira alguma, pois essa acusação
é a mesma que a esquerda e a direita se fazem mutuamente, e, se não percebemos nem mesmo isso, é
que ignoramos o estado de coisas ainda mais profundamente do que as duas juntas, e nós é que estamos
superados. O sapientíssimo se revela um bobo na hora mesma em que tenta posar de superior.
Deveria ser óbvio para todo mundo, mas para muitos é quase um segredo esotérico inacessível, que a
qualidade boa ou má, a veracidade ou falsidade das idéias de um grupo não tem nada a ver com a sua
existência ou inexistência como grupo. Argumentar que duendes não existem não prova que inexistam
grupos que acreditam em duendes.
Ainda mais bobo é aquele que afirma desprezar toda ―retórica ideológica‖ e, em vez disso, examinar
somente os interesses materiais malignos por trás da aparente disputa de ideologias, acreditando com isso
estar firmemente assentado no terreno dos fatos e a salvo de idéias ilusórias.
Mas, em primeiro lugar, apontar interesses materiais por trás de um discurso ideológico é precisamente o
que as ideologias inimigas fazem umas com as outras. E o fazem quase sempre com razão, porque toda
ideologia, como já a definia Karl Marx, é um ―vestido de idéias‖ (Ideenkleid) costurado para encobrir um
interesse material, um projeto de poder, uma ambição mundana.
Por outro lado, é certo que, se esses interesses se apresentassem nus e crus, sem a embalagem
ideológica, seriam imediatamente desmoralizados e não enganariam a ninguém. A ideologia, portanto, é
parte integrante do projeto maligno, que não pode ser compreendido sem referência a ela.
Por fim, também é certo que, se um discurso ideológico, uma vez formulado, serve de símbolo verbal da
identidade de um grupo, o qual sem essa identidade estaria privado da possibilidade de agir em conjunto,
o conteúdo desse discurso não será nunca totalmente alheio à conduta real do grupo, que em certa
medida será obrigado a ajustar suas ambições de poder às promessas e valores do discurso.
A tensão entre a identidade do grupo e os interesses materiais em jogo é um elemento permanente da
vida político-ideológica, e fazer abstração da ideologia para enfocar somente os interesses materiais
isolados é condenar-se a não compreendê-los de maneira alguma.
Um exemplo característico é o chavão mais em moda hoje em dia, segundo o qual o sr. Lula não é
comunista nem esquerdista, apenas um político sem filiação ideológica que enriqueceu ilicitamente.
Esse chavão soa agradável em diferentes áreas do espectro ideológico. Para o esquerdista, ele é a fórmula
mágica para isentar de toda culpa pelos crimes do PT a corrente política que o criou, que o incensou, que
lhe deu a hegemonia e que, se ele for para o buraco, pretende continuar no poder sob outros nomes
quaisquer.
Para o direitista, fornece um poderoso argumento retórico: ―Estão vendo como na esquerda ninguém
presta, como são todos uns ladrões e salafrários?‖ E, para o homem ―superior a ideologias‖, é mais uma
prova da sua superioridade sublime. Todos os pretextos servem, portanto, para o interessado se fazer de
bonito mediante a supressão de pelo menos duas perguntas:
1) Se o Lula é apenas um ladrãozinho sem compromisso com o comunismo, por que distribuiu tanto
dinheiro a ditaduras e partidos comunistas, quando podia guardá-lo para si mesmo?
2) Por que as FARC o homenagearam por ter salvado in extremis o comunismo continental, em vez de
acusá-lo de usar o comunismo em benefício próprio?
Que o sr. Lula seja apenas um ladrãozinho egoísta sem vínculo ou compromisso com o comunismo
internacional é uma das idéias mais estúpidas e indefensáveis que já passaram por um cérebro humano.
De um lado, há o fato incontestável de que ele é aceito e celebrado por todos os governos e partidos
comunistas do mundo não só como um parceiro e irmão leal, mas até como uma espécie de herói, de
salvador providencial.
Se ele alcançou essa posição sem nada fazer pelo comunismo e agindo sempre somente no interesse
próprio, então ele enganou a todos os líderes e governos comunistas do universo, incluindo os serviços
secretos de Cuba e da China, tidos como extraordinariamente eficientes e maliciosos, só não logrando
tapear o tirocínio superior dos comentaristas brasileiros de mídia.
De outro lado, resta o fato igualmente incontestável de que nenhum espertalhão logrou jamais utilizar-se
do comunismo em benefício próprio sem beneficiar ainda mais algum governo ou partido comunista —
pelo menos não logrou fazê-lo sem pagar com a vida.
Willi Münzenberg, que era um milhão de vezes mais esperto que Lula, foi simplesmente acusado de tentar
fazer isso, e já o assassinaram antes que alguém pudesse verificar se fez ou não.
Não é humanamente concebível que um movimento que condenou à morte cem milhões de pessoas
pudesse poupar generosamente a vida de um vigarista que o ludibriasse de forma tão humilhante ante os
olhos da humanidade inteira.
Muito menos concebível é que depois disso continuasse a aplaudi-lo e paparicá-lo como o fazem os
governos de Cuba, da China, da Venezuela etc. Essa hipótese é tão absurda, tão monstruosamente
inverossímil, que acreditar nela mesmo por um minuto e em segredo já seria prova de uma imbecilidade
descomunal.
A desenvoltura ingênua com que tantos no Brasil a alardeiam sem a menor inibição é a prova definitiva de
que algo no cérebro nacional não vai bem.
Erros monumentais como esse não aparecem sozinhos. Provêm de uma ignorância estrutural, profunda e
dificilmente reversível, quanto à natureza e função das ideologias em geral.
Os palpiteiros que superlotam a mídia e as cátedras imaginam que ideologia seja algo como uma crença
religiosa, que exija a adesão profunda e sincera das almas. Nessa perspectiva, um comunista, por
exemplo, poderia ser um ―verdadeiro crente‖ ou um mero oportunista sem crença nenhuma.
Essa diferença pode ter existido em outras épocas, quando a URSS baixava as Tábuas da Lei e condenava
como heréticos os trotskistas, os revisionistas etc. De fato, não pode existir ―verdadeiro crente‖ sem um
texto canônico obrigatório para todos.
Mas já faz três décadas, pelo menos, que nada disso existe no movimento comunista. A concepção
eclesiástica do Partido como guardião da doutrina infalível foi substituída pela flexibilidade de um
pluralismo ilimitado onde todos os discursos ideológicos são bons, desde que seus adeptos consintam em
agir segundo uma estratégica unificada.
Concomitantemente, a antiga hierarquia vertical foi trocada por uma organização mais flexível sob a forma
de ―redes‖, onde as palavras-de-ordem não despencam das alturas olímpicas de um Comitê Central mas se
espalham quase anonimamente, como se fossem meras exigências do senso comum em vez de ordens do
Camarada Fulano ou Beltrano.
A substituição da unidade ideológica pela unidade puramente estratégica, concebida nos anos 80 do século
passado e testada com sucesso espetacular na guerrilha de Chiapas, México, em 1994 — chamada por isso
―guerrilha pós-moderna‖ –, permitiu que o movimento comunista não somente sobrevivesse incólume à
queda da URSS, mas multiplicasse sua força e capacidade de ação.
A esquerda mundial está hoje muito mais unificada e organizada do que 60 ou 70 anos atrás. Ganhou em
força de atuação conjunta o que perdeu no debate ideológico. Quem não percebe isso não merece ser
ouvido em matéria de política.
Para tornar as coisas ainda mais incompreensíveis aos sábios iluminados, resta o fato de que ―esquerda‖ e
―direita‖ só são entidades simetricamente opostas nos dicionários.
Na vida real, ―esquerda‖, hoje, não é um ―rótulo ideológico‖ e sim um movimento unificado e
organizadíssimo sem nenhuma ideologia definida, ao passo que ―direita‖ é na melhor das hipóteses o
nome de um amálgama confuso de discursos ideológicos inconexos, ao qual não corresponde nenhuma
organização ou movimento unificado nem mesmo em escala nacional, quanto mais mundial.
Não são espécies do mesmo gênero. Aquele que assim as concebe para fazer-se de superior a ambas,
como um domador que cavalga simetricamente dois cavalos com um pé em cada um, é na verdade um
acrobata impossível com um pé num cavalo de carne e osso e o outro no conceito abstrato de um cavalo
hipotético.

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