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SÊNECA E A FILOSOFIA: O CAMINHO E O FIM DA FORMAÇÃO

HUMANA

PEREIRA MELO, José Joaquim (DFE/PPE/UEM)

Lúcio Aneu Sêneca, escritor, político e filósofo romano do século I da Era cristã,
conquistou lugar de destaque na história pela sua preocupação com o ser humano, o qual,
segundo ele, era premido pelo sofrimento, pela inquietação e pelo medo reinantes na
sociedade romana do seu tempo.
Para Sêneca, a superação desse quadro passava em grande medida pelo conhecimento,
que levava ao exercício da liberdade, condição essencial para se atingir a perfeição.
Configurava-se, assim, a vinculação entre o vir sapiens e o vir bonus, entre o bene sapere e o
bene vivere: o saber era a raiz da liberdade. Mas em que consistia, para Sêneca, esse saber que
levava o homem a ser livre? Qual era o elemento racional da conduta moral? Outra pergunta
ainda se faz necessária: qual a relação existente entre a virtude e o saber?
Quanto à primeira questão, encontramos em Sêneca que esse saber, cujo conteúdo
tinha poder e sentido soteriológicos, era o filosófico. Com isso, ele colocava duas teses
significativas: a primeira, que a liberdade tinha como fonte geradora a sabedoria; a outra, que
o caminho para a plenitude era a filosofia. Essas ideias Sêneca as buscou em Epicuro: “Deves
ser servo da filosofia se pretendes obter a verdadeira liberdade”; e lhes deu prosseguimento:
“Não será posto de lado quem a ela se entrega confiantemente; logo ela lhe prestará os seus
benefícios. É nessa entrega total à filosofia que consiste a liberdade” (Cartas, 8,7).
Assim, a filosofia convertia-se num recurso libertador e o conhecimento deveria ser
entendido como o instrumento de promoção da alma (REDONDO; LASPALAS, 1997). Neste
caso, a filosofia, para Sêneca, era a técnica da vida satisfatória e feliz. Para se chegar aos seus
domínios, fazia-se necessário centrar-se no homem, no humano; elevá-lo acima dos demais
homens. Ao colocar a alma nesse constante processo de concentração e transcendência, a
filosofia possibilitava ao homem aproximar-se da felicidade dos deuses e até mesmo
concorrer com ela.
Desse modo, a filosofia assumia a condição de mãe das demais ciências, o caminho
para a vida satisfatória e plena, e a sabedoria, por seu turno, também obtinha esse status, já

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que passava a ser o coroamento da filosofia (TURIENZO, 1966).
A sabedoria, tomada no sentido de prudência, identificava-se com a própria filosofia.
Por ela encontrava-se o Bem; ao possibilitar a razão, ela levava à condição de homem
(ALMEIDA PRADO, 1946) e à tranquilidade da alma, anseio natural de toda a humanidade.
No entanto, embora as entendesse como intimamente ligadas, Sêneca diferenciava a filosofia
da sabedoria.

A sabedoria é o bem supremo do espírito humano, enquanto a filosofia é o


amor, o impulso pela sabedoria; aquela aponta o fim que esta alcança. A
origem do termo “filosofia” é transparente: o próprio nome indica qual é
aqui o objecto do amor. A sabedoria tem sido definida por alguns como a
ciência das coisas divinas e humanas: para outros, a sabedoria consiste em
conhecer o divino e o humano, e as respectivas causas. Esta adenda parece-
me supérflua, porquanto as causas do divino e do humano são, em si, uma
parte do divino. Também a filosofia tem sido definida de várias maneiras:
uns consideram-na o estudo da virtude, outros o estudo do modo de adquirir
ideias correctas; por alguns outros foi ainda definida como a busca de uma
razão justa. Onde há, praticamente, acordo é em considerar que a filosofia e
a sabedoria são duas coisas diferentes. De facto, é impossível que a busca
de uma finalidade se confunda com essa finalidade. Do mesmo modo que
há grande diferença entre a avidez e o dinheiro, pois aquela é o sujeito e
este é o objecto de desejo, assim diferem a filosofia e a sabedoria. Esta é o
objecto, o prêmio que aquela obtém; aquela caminha, esta é o fim do
caminho (Cartas, 89, 4-6).

Com essas reflexões, Sêneca põe em evidência que a missão da filosofia é orientar, por
meio da investigação e do amor à sabedoria, a caminhada formativa em busca da perfeição.
A filosofia não servia simplesmente para refletir sobre realidades que, por estarem em
íntima sintonia com a alma humana, apontavam-lhe o caminho a ser seguido. Não era um
requisito intelectual prévio, um repertório de ideias que criavam as condições favoráveis para
o desenvolvimento da luta em favor da dignidade humana. Para Sêneca, a filosofia era vida.
Por esse motivo, em algumas de suas posições, ele era duro com aqueles que procuravam
transformá-la num saber teórico, desvinculado da luta ascética, e também com outros que
propunham questões que não tinham por fim melhorar o homem (GARCÍA GARRIDO,
1969), ajudá-lo em sua escalada para a perfeição e a tranquilidade da alma.

Quem se entrega à respectiva prática, sem dúvida será capaz de arquitectar


argumentos cheios de agudeza, mas sem qualquer utilidade para a usa vida,
já que se não torna mais enérgico, mais moderado ou mais elevado por isso.
Em contrapartida, quem fizer da filosofia uma terapêutica torna-se-á forte
de espírito, cheio de autoconfiança, atingirá uma latura inigualável e tanto

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maior quanto mais dela nos aproximamos (Cartas, 111, 2).

Não ficaram também isentos das suas críticas aqueles que refletiam e discutiam sobre
os aspectos positivos da filosofia, mas não os colocavam em prática.

[...] é grande o entusiasmo dos jovens ainda inexperientes por todas as


formas de atingir e praticar o bem quando encontram alguém capaz de os
exortar e estimular. Mas nem sempre o resultado é satisfatório, ou porque os
mestres nos ensinam a argumentar e não a viver, ou porque os discípulos
procuram os mestres não com a intenção de cultivarem a alma, mas sim de
aguçarem o engenho (Cartas, 108,23).

Esse tipo de prática ou interesse não estava comprometido com a essência da filosofia,
cujo princípio e cujo fim, como “pedagoga da humanidade”, eram promover a formação e o
aperfeiçoamento do homem virtuoso. A virtude trazia consigo a exigência da entrega do
homem à filosofia, e em contrapartida, esta requisitava que ele se entregasse à virtude. Para
nosso pensador, a filosofia era o estudo da virtude por meio da própria virtude, porquanto nem
a filosofia se dava sem a virtude, nem a virtude se dava sem a filosofia; eram coisas
inseparáveis. O resultado dessa interação era o homem virtuoso, em que a perfeição fazia
morada:

[...] generoso para com os amigos e tolerante para com os inimigos, tratando
com a mais completa isenção os assuntos do Estado e os seus próprios [...].
Vimo-lo também distribuir dádivas [...], vimo-lo mostrar inabalável
persistência, suprindo com força de ânimo o cansaço físico [...]. Além disso,
conserva-se em todos os seus actos sempre igual [...], homem bom não por
cálculo mas por o seu caráter [...], incapaz de agir sem ser segundo o bem.
Num tal homem verificamos a existência da virtude levada à perfeição
(Cartas, 120, 10).

Nisso consiste, no pensamento senequiano, a virtude; dela e por ela vicejava a


transcendência, suprema síntese da paz, da tranquilidade e da liberdade, patrimônio máximo
do homem sábio.
Para se chegar à sabedoria era necessário trilhar o caminho da filosofia, que é definida
como amor et ad fectatio. Essa atitude de amor se interpreta na ansiedade de se atingir o
objetivo traçado. Na perspectiva de Sêneca, o sábio tinha que ser um “enamorado” da
sabedoria (ARTIGAS, 1952) e, a exemplo de todo verdadeiro enamorado, deveria se
apaixonar por ela e pelo caminho que levava a ela. No entanto, esse amor trazia o caráter de

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predileção; a filosofia não negava ao homem a possibilidade de desejar as coisas inferiores.
Se, em algum momento, ocorresse alguma incompatibilidade ou confronto entre essas coisas e
o supremo bem, o homem deveria estar pronto para afastar os obstáculos do seu caminho.
A investigação e o estudo dos elementos que constituem a esfera da sabedoria eram
situações que o sábio não podia abandonar, em razão de sua responsabilidade com a formação
do homem e de sua exemplaridade para a humanidade.

Recolhe-te a estas coisas mais tranquilas, mais seguras, melhores! [...]


elevar-se às coisas sagradas e sublimes para conhecer qual é a substância de
deus, seu prazer, sua condição, sua forma, que destino guarda a tua alma,
que lugar a Natureza nos destina após nos separarmos do corpo [...] (Sobre
a brevidade da vida, XIX, 1).

A investigação solicitava da alma dedicação plena: “En efecto, no puede encontrarse


nada más digno no sólo de dedicarle un tiempo, sino de consagrarse a ello” (Cuestiones
Naturalles, VI 4,4). Essas realidades superiores, uma vez compreendidas, davam segurança e
sentido ao caminho empreendido, favorecendo o acesso da razão à verdade, a única condição
para se encontrar descanso e tranquilidade.
Ao mesmo tempo, essas investigações levavam a filosofia senequiana à condição de
ciência. O destaque ao seu caráter científico e à sua dedicação à verdade faz parte de inúmeras
reflexões: “A sua única tarefa é descobrir a verdade acerca das coisas divinas e humanas [...]”
(Cartas, 90,3). Com base na orientação salvífica que o homem podia assumir, a investigação
da verdade tornava-se indispensável: “Como poderás tu saber quais os costumes que devemos
adotar se não averiguares primeiro qual o bem supremo do homem nem perscrutares a sua
natureza?” (Cartas, 121,3).
Isso explica a preocupação senequiana em mostrar a necessidade dos “princípios”
orientadores da vida do homem “Ora, à verdade não podemos chegar sem conhecermos os
princípios” (Cartas, 95,58). Assim, ele exorta o candidato a sábio a interiorizar a convicção
da importância dos princípios.

Devemos, por conseguinte, interiorizar essa convicção, que respeita à


totalidade da nossa vida. É a tal convicção que eu chamo um princípio. Tal
como for a natureza desta convicção, assim serão também as nossas acções
e os nossos pensamentos, e tal como for a natureza destes, assim será
também a nossa vida (Cartas, 95,44).

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Nessa direção, Sêneca procedeu a uma severa crítica aos que, dispensando os
princípios, defendiam que a plenitude da vida humana passava unicamente pela prática da
virtude:

De resto, esses filósofos que pretendem abolir os princípios de base não


percebem que, pelo próprio facto de os abolirem, estão afinal a confirmá-
los. Ao fim e ao cabo, qual é a tese deles? Que os preceitos cobrem todos os
aspectos da vida, que os princípios de base da filosofia são supérfluos. Mas
– valham-me os deuses! – esta sua afirmação não equivale menos a um
princípio de base do que se eu dissesse que podemos passar sem preceitos,
como coisa supérflua, que devemos, pelo contrário, servir-nos dos
princípios de base e aplicar-nos apenas ao seu estudo (Cartas, 95, 60).

Mesmo assim, não se podia fazer da filosofia refém da esfera teórica. O sábio não se
limitava à pura e simples contemplação da verdade, mas dedicava-se paralelamente a uma
ação prática.
Para Sêneca, em nada contribuía para a vida plena a adoção de uma orientação
exclusivamente contemplativa: “a contemplação agrada a todos; os outros a procuram; para
nós ela é ancoradouro, não porto” (Sobre o ócio, VII, 4).
Isto posto, pode-se entender que a proposta senequiana tinha como fim a vida, e a
filosofia respondia pelo primeiro estágio do fazer formativo (GARCÍA GARRIDO, 1969).
A contemplação deveria favorecer o homem, passo a passo, na sua busca pelo viver
autêntico; o inverso pouco ou nada servia:

Em que te ajudará nisto a filosofia, essa arte excelsa que tudo sobreleva?
Precisamente em levar-te a querer agradar mais a ti do que ao vulgo, a
avaliar a qualidade, e não o número, das pessoas em que emitem juízos
sobre ti, a viver sem temor dos deuses ou dos homens, a poder vencer a
adversidade ou a pôr-lhe cobro (Cartas, 29, 12).

A filosofia estava estreitamente relacionada à vida, ensinava a viver; mais ainda,


ninguém poderia viver sem ela. Essa máxima senequiana era recorrente nas exortações a
Lucílio, o seu discípulo predileto: “Deve-se aprender a viver por toda a vida” (Sobre a
brevidade da vida, VIII, 3); “... enquanto vivermos, temos que aprender a viver!” (Cartas,
76,3). “A sabedoria cinge-se às ações, não às palavras (Cartas, 88,6); “[...] devemos praticar a
filosofia. Quer nos determine a lei inexorável do destino, quer algum deus moderador do
universo ordene todos os acontecimentos, quer seja ao acaso que a filosofia deverá proteger-

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nos” (Cartas, 16,5).
Mesmo que a tarefa não fosse fácil, Sêneca enfatizou definitivamente a tonalidade
essencialmente prática da filosofia (ARTIGAS, 1952): esta deveria ser a forma de vida do
sábio, ela é que deveria estar situada no primeiro plano do seu programa de vida.
Dessas considerações emergem três questões. A primeira diz respeito à virtude, à
sabedoria e à filosofia como elementos inseparáveis. A segunda é que a filosofia era a meta e
o fim da formação, a educação “consumada”; a sabedoria era o objetivo, o instrumento e o
caminho do processo formativo, a educação se “realizando”. A terceira evidencia o fato de
que a sabedoria e a filosofia promovem o homem na sua totalidade, quer na sua inteligência
quer na sua vontade, o que resultava na sua transformação. Neste caso, esses saberes deixam
de ser, respectivamente, um “conhecimento puro”, superficial ou mera argumentação para
agradar determinada plateia (REDONDO; LASPALAS, 1997); rompem com os recursos
estilísticos de uma retórica elegante para se converter num saber prático, útil, eticamente
valioso, que tenha em conta a virtude.

A filosofia não é uma habilidade para exibir em público, não se destina a


servir de espetáculo; a filosofia não consiste em palavras, mas em acções. O
seu fim não consiste em fazer-nos passar o tempo com alguma distracção,
nem em libertar o ócio do tédio. O objetivo da filosofia consiste em dar
forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em
orientar os nossos acctos, em apontarmos o que devemos fazer ou pôr de
lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre
escolhos (Cartas, 16,3).

Com isso, o primado do mundo senequiano foi dedicado à prática; a teoria, por sua
vez, somente tinha sentido se fornecesse o ânimo para uma vida reta, segundo os ditames da
virtude. Esse entendimento de filosofia, aprovado, vivido e proposto por Sêneca, explicava-se
pelo fato de ela ser dedicada ao homem, à vida humana.
Como “pedagoga da humanidade”, a filosofia deveria chegar ao homem concreto,
“deveria ensinar a agir, não a falar” (Cartas, 20, 30), determinar-lhe uma conduta prática que
fosse resultante da harmonia entre o interior e o exterior.

Há, pois, uma coisa que te peço, meu caro Lucílio, com todo o empenho;
interioriza a filosofia no mais íntimo de ti mesmo e fundamenta a avaliação
do teu progresso não em palavras que digas ou escrevas, mas sim na tua
firmeza de ânimo e na diminuição dos teus desejos, comprovas as palavras
com os atos (Cartas, 20, 2).

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Dotada desse perfil prático, a filosofia não ensinava apenas a conhecer coisas, mas a
viver bem, conforme a virtude (FRAILE, 1965). Não era próprio da filosofia levar ao
conhecimento das coisas, mas, sim, libertar a alma e realizar a vida. O conhecimento deveria
ser o trânsito para se chegar a algo melhor. Enfim, a filosofia, além de nada pedir, tinha por
fim cumprir os mais altos objetivos, ou seja, o estudo da virtude.
Por organizar a alma, a filosofia fornecia o discernimento dos verdadeiros valores e,
assim, apontava a direção a ser seguida (Cartas, 16, 1-3). Ao colocar cada coisa em seu
devido lugar, até chegar à alma, ela explicava a realidade em suas diversas manifestações:
“moral, natural e racional”. Organizava todas as coisas em função de um dado programa de
vida (TURIENZO, 1966).
Em face disso, para Sêneca, era mais importante que o homem se tornasse virtuoso do
que douto, ou seja, a preocupação dominante deveria ser a utilidade moral da filosofia.

Eis, meu caro Lucílio, o que eu costumo fazer: de todo conhecimento,


mesmo daquele que está mais afastado da filosofia, procuro retirar algo útil
[...].
De que maneira as ideias platônicas me farão melhor?
O que posso tirar de tais raciocínios, que me ajude a refrear as paixões
(Cartas, 58).

A filosofia ensinava a viver melhor, a transitar nos desencontros da sorte, nos assédios
das paixões, e a pôr fim aos males que torturavam o homem. Ao assumir essa condição, por
receitar “remédios para a alma” e criar condições para o rompimento com os vícios, ela se
aproximava da medicina:

Os meus dias e as minhas noites, os meus esforços e pensamentos têm com


como objectivo pôr termo aos meus antigos defeitos. Procedo de modo a
que cada dia seja o equivalente de uma vida inteira; mas, Hércules me
valha! Não apressa a gozá-lo como se fosse o último, apenas o encaro como
se pudesse ser de facto o meu último dia! (Cartas, 61,1).

Sêneca, entretanto, tem também suas contradições. A mesma arte de vida, a filosofia,
convertia-se na arte de morrer, conforme ele exortava seu sogro Paulino: “Deve-se aprender a
viver por toda a vida e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a
morrer” (Sobre a Brevidade da Vida, VII, 4). Essa preocupação demonstrada pela morte
assume valor significativo quando deixava claro que o primeiro princípio de sua filosofia

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moral residia na aceitação dessa realidade humana: o homem é mortal e o seu fim está
programado. Para o desenvolvimento dessa reflexão lançou mão do pensamento de outros
filósofos, como Epicuro, que aconselhava “a meditar na morte”, ou a “atribuir a maior
importância à aprendizagem de morte”. A essas palavras de Epicuro Sêneca acrescentava:
“Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servidão ...” (Cartas, 26, 8.10).
Na aceitação consequente da morte encontrava-se uma das bases da liberdade, pois
isto implicava a superação dos muitos medos que atormentavam a existência humana.
Segundo ideia que repetiu com insistência, o mais terrível da morte era o medo que se
tem de morrer, donde derivou a sua defesa do direito ao suicídio, que não poderia ser
motivado pela covardia, mas considerado uma saída honrosa de uma vida inútil. Nessas
condições, Sêneca propôs o suicídio como um direito que a divindade reservou aos homens
(MANJARRÉS, 2001).
Desse ponto de vista, a filosofia era uma facilitadora da consciência de que à condição
humana era inerente a morte e, assim, ela era um meio de evitar que o homem tivesse medo
da morte.
Em substância, a filosofia senequiana constituía-se como boa meditação sobre a morte
e uma constante meditação para a morte. Dessa forma, Sêneca colocava a filosofia em face do
homem, da vida e da morte, e a justificava com base no próprio homem (USCATESCU,
1965).
Além de destacar as funções da filosofia, Sêneca teve a preocupação de mostrar as
operações que esse conhecimento realizava no homem e com o homem.
De modo geral, para Sêneca, a filosofia tinha uma função “configuradora”, cuja
realização passava, primeiramente, pela cura da alma, ou seja, pelo exercício de uma função
“terapêutica” e “exortadora”.

Costumavam os antigos [...] escrever logo a seguir à epígrafe das cartas


estas palavras: “se estás de boa saúde, tanto melhor; eu estou de boa saúde”.
Quanto a nós teremos antes razões para dizer: “se te aplicas à filosofia,
tanto melhor!” De facto é na filosofia que reside à saúde verdadeira. Sem
ela, a alma estará doente e mesmo o corpo, embora dotado de grande
robustez, terá somente a saúde própria dos dementes, dos frenéticos.
Cultive, portanto, em primeiro lugar a saúde da alma, e só em segundo lugar
a do corpo, esta última, alias, não te dará grande trabalho se o teu objectivo
apenas for gozar de boa saúde (Cartas, 15, 1-3).

Por outro lado, quando o homem deixava a orientação da filosofia para ceder às

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exigências excessivas do corpo, num indicativo de que a sua alma estava enferma, isto
significava uma contravenção à ordem natural e, neste caso, a filosofia não cumpria sua
função, o que se caracterizava como uma derrota.
Segundo Sêneca, não bastava conseguir o domínio das más tendências do corpo para
obter a liberdade da alma, eram necessárias também atenções particulares: estudos, leituras,
participação em conferências e discussões com os filósofos. Acrescente-se a coragem,
dedicação e constância para se percorrer o longo e complexo caminho traçado pela filosofia
para se chegar à sabedoria, à virtude, e por fim, à saúde da alma (MANJARRÉS, 2001).
Além disto, a filosofia orientava a conduta humana; tinha, portanto, uma função
“diretiva”. “Se queres saber o que a filosofia traz de útil à humanidade dir-te-ei: Os seus
preceitos [...] Aquilo que a filosofia me permitiu foi tornar-me igual à divindade. Foi esse o
convite que recebi. Por isso vim. Respeite-se, portanto, a palavra dada” (Cartas, 48, 7 e 11).
Ao despertar no homem a sua origem divina, a filosofia levava-o a buscar os deuses e
a se aproximar deles; afinal, a natureza o havia dotado da capacidade de chegar aos deuses e
assemelhar-se a eles, independentemente de qualquer convenção social, política ou
econômica.
Além disso, como apontava o que se devia fazer, a filosofia desempenhava também
uma ação “normativa”. Não se contentava em infundir “princípios” ou “convicções”: ditava
“preceitos”, ou seja, regras de conduta. “Ninguém, a não ser que formado a partir de base e
totalmente orientado pela razão, podia estar apto a conhecer todos os seus deveres e saber
quando, em que medida, com quem, de que modo e por que razão de agir” (Cartas, 95,5).
A razão atribuía ao homem uma dignidade única entre os distintos seres. Essa
condição enobrecia e dava sentido à sua vida, o que, por sua vez, fazia-o semelhante às
divindades (LÉON SANZ, 1997). Outra das virtualidades da filosofia era que ela
proporcionava segurança e firmeza em meio às dúvidas e dificuldades; tinha, portanto, uma
função “confirmadora” e “confortadora”. “... a filosofia dá-lhe a possibilidade de manter a
alegria com a morte diante dos olhos, de estar forte e contente seja qual for o estado físico, de
não perder a força da alma quando se esvai a do corpo” (Cartas, 30,3).
Acrescente-se a isto o fato de a filosofia ser a fonte dos verdadeiros prazeres: daí a sua
função “gratificadora”. “Tu não podes escapar ao inevitável, mas podes vencê-lo! Abre-se
caminho à força, e esse caminho será a filosofia a indicar-to. Dedica-te a ela, se de facto
queres salvar-te, se queres viver seguro e feliz, se queres, enfim, e isso é o fundamental, ser

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livre” (Cartas, 37,3).
Além de proporcionar o verdadeiro prazer ao homem, a filosofia ensinava-o a
desfrutar os bens possibilitados pela virtude e a transcender os males que a vida lhe oferecia, o
que demandava tempo e predisposição para desvendá-la, dada a sua exigência de
exclusividade.
Enfim, ao operar desta maneira sobre o homem, a filosofia socorria-o, resgatava-o da
escravidão e o liberava da Fortuna: tinha uma função “soteriológica” (REDONDO;
LASPALAS, 1997).

Em que te ajudará nisto a filosofia, essa arte excelsa que a tudo sobreleva?
Precisamente em levar-te a querer mais a ti do que ao vulgo, a avaliar a
qualidade, e não o número de pessoas que imitem juízos sobre ti, a viver
sem temor dos deuses ou homens, a poder vencer a adversidade ou pôr-lhe
cobro (Cartas, 29,12).
.......................................................................................
Para repelir todas as violências do acaso a filosofia possui um incrível
poder. Nenhum dardo pode penetrar no seu corpo, tão bem defendido e
resistente ele é (Cartas, 53,12).
.......................................................................................
A filosofia deverá circundar-nos, como uma muralha inexpugnável que a
fortuna, embora a assalte com inúmeros engenhos, nunca poderá transpor. A
alma que se aparta de tudo quanto é externo, que se defende no seu domínio
próprio, alça-se por isso mesmo a um lugar inacessível donde vê todos os
dardos cair sem lhe tocarem. A fortuna não tem um braço assim tão longo
quanto se julga: apenas atinge os que dela encontram próximos (Cartas,
82,5).

Formação da alma, orientação para ação, direcionamento moral, refúgio e consolação,


negação dos vícios, retorno à natureza quanto à morte: tais eram, para Sêneca, as formas que
davam corpo a esta arte de vida que era a filosofia (LI, 1998).
Nessa dinâmica pedagógica, a filosofia deveria ser praticada sem que houvesse a
preocupação com a acumulação de conhecimentos desprovidos de conteúdo moral. Esse foi o
motivo de Sêneca ter negado qualquer valor à ação voltada para si mesma. O valor de uma
ação estava no seu fundamento ético: fazer um benefício, orientar, ensinar, meditar, adotar a
austeridade física eram práticas que incorporavam valor apenas se executadas com um fim
moral (CAMPOS, 1991).
Dessa forma, fica explícito o motivo pelo qual Sêneca, em grande medida seguindo a
tradição estoica, deixou num segundo plano as reflexões metafísicas para se dedicar a uma
filosofia do homem, tendo em conta os problemas éticos, a moral de cunho prático e a

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sabedoria como plenitude humana. Com isto, Sêneca evidencia a dignidade e o prestígio da
filosofia, que para ele era o refrigério do gênero humano, independentemente de os homens
serem bons ou medianamente maus (USCATESCU, 1965).
Essas ideias senequianas, que foram apresentadas num momento em que a sociedade
romana era palco de tantas dissensões, de instabilidade política e social, de arbitrariedade e
decadência de costumes, e que expressavam sua preocupação com a formação e a promoção
humana, ao avançar dos séculos, conquistaram a simpatia e o interesse do homem medieval e
do homem moderno, chegando à contemporaneidade com força de provocar novas discussões,
principalmente no que se refere aos direitos humanos.
Enfim, pode-se concluir que o pensamento senequiano não se ateve ao seu momento
histórico, mas ganhou centúrias para influenciar o pensamento de outros homens em outros
tempos.

Referências

ALMEIDA PRADO, A. L. A. de. Apontamentos para um estudo sobre a moral de Sêneca nas
Epistolae ad Lucilium. Anuário de 1946-1947. São Paulo, Faculdade de Filosofia do Instituto
“Sedes Sapientiae” da Universidade Católica de São Paulo. 1946-47, p.159-170.
ARTIGAS, J.. Sêneca: La filosofia como forjación del hombre. Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, Instituto “San José de Calasanz”de Pedagogía, 1952.
FRAILE, G. História de la filosofía. Madrid: BAC, 1965. VOL.VI.
GARCÍA GARRIDO, J. L. La filosofia de la educación de Lucio Anneo Séneca. Madrid:
Editorial Magisterio Español, 1969.
LEÓN SANZ, I. M. Séneca (h.a.C. –65 d.C.). Madrid: Ediciones del Oro, 1997.
LI, W. Introdução. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: Nova Alexandria, 1998.
MANJARRÉS, J. M. Sêneca e el poder de la cultura. Madrid: Editorial Debate, 2001.
REDONDO, E.; LASPALAS, J. História de la educación. Madrid: DYKINSON, 1997.
TURIENZO, Saturnino Alvarez. La Filofía como arte de vida en Séneca. In: Estudios sobre
Séneca. Octava semana española de Filosfía. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Científicas, Instituto Luis Vives de Filosofía y Sociedad Española de Filosofía, 1966, p. 247-
261.
ULLMANN, R. A. O estoicismo romano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1966.

11
USCATESCU, J. Sêneca, nuestro contemporâneo. Madrid: Editora Nacional, 1965.
SÉNECA, L. A. Cartas a Lucílio. Madrid: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
_______. Cuestiones Naturales. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas,
1979.
_______. Sobre a brevidade da vida. São Paulo: Nova Alexandria, 1998.
_______. Sobre o ócio. São Paulo: Nova Alexandria, 1998.

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